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John R. Searle aR iow ema ee A Redescoberta da Mente Martins Fontes pr The I Ps, amt aio 26 Darin tpn Tarfecrberta da mei Jan St Tale rts dane icp 9 Bri reser {ioraria Martin Fontes Eltors Leda, ue Const Raa 330 01595 000 So Paulo SP Brasil ra (1) 244.3677 x (1) 301 1082 email inicrinstescncbr pes natinjntes ca SUMARIO Agradecimentos Introdugao 1, O que hi de errado com a Filosofia da Mente 2, A historia recente do materialismo: a repetigio domesmoerro...... dj Apéndice: Fi‘ algum problema com a Psicologia Popular? é peat! 4, Rompendo o dominio: eérebros de silicio, rob6s feonscientes e outras mentes 4, Consciéncia e seu lugar na natureza 5. Reducionismo ¢ a irredutibilidade da consciéncia G Acostrutura da consciéncia: uma introducao - @Winiconseiente e sua relacio com a consciéneia ‘Gonseiéncia, intencionalidade e o “Background” ‘Arition da razio cognitiva. D estudo propriamente dito VI A REDESCOBERTA DA MENTE selho Académico e ao Gabinete do Reitor da Universida- de da Califmia, Berkeley, e especialmente & Rockefeller Foundation Center de Bellagio, Itélia Parte do material deste livro apareceu alhures, em forma preliminar. Especificamente, trechos dos capitulos 7e 10 foram desenvolvidos a partir de meu artigo “Cons- cigncia, inversdo explanatoria e cigncia cognitiva” (Beha vioral and Brain Sciences, 1990) ¢ 0 capitulo 9 é baseado em minha conferéncia presidencial para a Associagio FilosGfica Americana em 1990. Sou especialmente grato a Ned Block, que leu ma- wuserito inteiro em sua forma preliminar ¢ fez muitas ‘observages proveitosas. Acima de tudo, quero agradecer minha muller, Dagmar Searle, por seu constante auxitio © conselho, Como sempre, ela tem sido minha maior in- fluGneia intelectual e minha fonte mais forte de estimulo e ingpirago, F a ela que este livro é dedicado. INTRODUCAO Este livro tem diversos objetivos, alguns dos quai admitem um resumo breve, mas somente emergira medida que 0 leitor prosseguir em sua leitura. Seus obje- tivos mais facilmente enuncidveis sio estes: quero criticar f superar as tradigdes dominantes no estudo da mente, = {unto a “materialista” quanto a “dualista”, Como conside- 404 consciéncia o fendmeno mental principal, quero co- iegar um exame sério da consciéncia em seus préprios Aerm0s, Pretendo colocar uma pé de cal na teoria de que a Mente é um programa de computador. E quero fazer algu- [propostas para reformar nosso estudo dos fendmenos Wis de uma maneira que justifique a esperanga na berta da mente. Hii Geren de duas décadas, comecet a trabalhar com i filosofia da mente, Precisava de uma explica- nienclonalidade, tanto pars estabelecer uma base inh teoria dos atos de fala quanto para completar ‘A meu ver, a filosofia da linguagem é um ramo Ih da mente; portanto, nenhuma teoria da lingua- AS AREDESCOBERTA DA MENTE gem completa sem uma descrigdo das relagdes entre mente e linguagem e de como o sentido — a intencionalida- de derivada de elementos lingiifsticos ~ é fundamentado na intencionalidade intrinseca da mente/eérebro, mais: ba ica em termos biolégicos. Quando lia os autores cléssicos © tentava explicar seus pontos de vista para meus alunos, eu ficava estarreci- do ao descobrir que, com poucas excegdes, esses autores negavam sistematicamente 0 que eu considerava verda- des simples ¢ Sbvias sobre a mente, Era entio, como ainda é, comum negar ~ implicita ou explicitamente — assergdes como as Seguintes: Todos temos estados de conscigncia internos subjetivos € qualitativos, e temos estaclos mentais intrinsecamente intencionais, como cren- as e desejos, intengdes e piercepgdes. Tanto a consciéncia quanto a intencionalidade so processos biolégicos cau- sados por processos neurdnicos de baixo nivel no cére- bro, e nenhum deles € redutivel a outra coisa qualquer. Além disso, consciéncia e intencionalidade sio essencial- ‘mente ligadas, j4 que s6 entendemos a nogio de um esta- do intencional inconsciente em termos de sua acessibil dade & consciéncia, Antes © agora, tudo isso © mais ainda era negado pe- las concepgdes dominantes. A corrente principal da orto- doxia consiste em varias versdes de “materialismo” Igualmente incorretos, os oponentes do materialismo ge- ralmente abragam alguma doutrina de “dualismo de pro- priedades”, aceitando assim o aparato cartesiano que eu considerava desacreditado jé ha muito tempo. O que eu argumentava entdo (Searle, 1984b) e repito agora é que podemos aceitar os fatos Sbvios da fisiea ~ que o mundo merKoDucéo consiste inteiramente de particulas fisicas dentro de cam- pos de forga ~ sem negar que entre as caracteristicas fisi- ‘cas do mundo ha fendmenos biol6gicos como os estados intemos qualitativos de consciéncia ¢ intencionalidade intrinseca. ‘Mais ou menos ao mesmo tempo em que surgia meu interesse em questdes da mente, nascia a nova disciplina da ciéncia cognitiva, A ciéneia cognitiva prometia um rompimento com a tradi¢io behaviorista na psivologia, porque pretendia penetrar na caixa-preta da mente ¢ eXa~ minar seu funcionamento intemo. Infelizmente, porém, a maioria dos cientistas cognitivos da corrente principal simplesmente repeiit. os piores erros dos behavioristas: incistiu em estudar apenas fen6menos objetivamente obser vveis, ignorando, dessa forma, as caracteristicas essenciais ‘da mente, Portanto, quando esses cientistas abriram a gran de caixa-preta, s6 encontraram If dentro uma pargo de pe- quenas caixas-pretas ‘Assim, tive pouco auxifio tanto da corrente principal da filosofia da mente quanto da ciéneia cognitiva nas mi- nnhas investigagdes, e prossegui na tentativa de desenvol- ver minha prépria explicagao da intencionalidade e de sua relagao com a linguagem (Searle, 1983). Contudo, apenas desenvolver uma teoria da intencionalidade deixava mu tos problemas importantes por discutir e, pior ainda, dei- xava sem resposta 0 que me parecia o principal problema existente, Este livro 6 uma tentativa de preencher ao me- nos algumas dessas lacunas. ‘Uma das mais dificeis —¢ mais importantes ~ tarefas da filosofia € tomar clara a distingdio entre as caracteristi- cas do mundo que sio intrinsecas, no sentido em que AREDESCOBERTA DA MENTE existem independentemente de qualquer observador, ¢ as caracterfsticas que sio relativas ao observador, no senti= do em que somente existem em relago a algum observa- dor ou usuétio externo. Por exemplo, o fato de um objeto ter uma massa determinada 6 uma caracteristica intrinse- cca desse objeto, Se todos morréssemos, ele ainda teria aquela mesma massa, Mas 0 fato de aquele mesmo objeto ser uma banheira nio é uma caracterfstica intrfnseca; ela existe somente em relagdo a observadores ¢ usuarios que atribuem a fungao de uma banheira a tal objeto. Ter massa € intrinseco, mas ser uma banheira é relativo ao observa- dor, mesmo que o objeto tanto tenha massa quanto seja uma banheira. E por isso que hé uma ciéneia natural que engloba a massa em seus dominios, mas nio existe nenhuma ciéncia natural de banheiras, Urn dos temas que permeia todo este livro é a tentati- va de tomar claro quais dos predicados da filosofia da mente designam caracteristicas que slo intrinsecas, e quais relativas ao observador, Uma tendéncia dominante na filo- sofia da mente e na ciéncia cognitiva tem sido supor que a Computagio € uma caracterfstica intrinseca do mundo ‘que consciéneia ¢ intencionalidade sio de alguma forma suprimiveis, tanto em favor de outra coisa qualquer quanto pelo fato de serem relativas ao observador, ou redutfveis a algo mais bisico, como a computagao. Neste livro, de- ‘monstro que essas hipsteses esto exatamente invertidas; consciéncia e intencionalidade so intrinsecas e ndo-supri- iveis, ¢ a computagio —exceto nos poucos casos em que 4 computacdo est sendo efetivamente executada por uma mente consciente ~¢ relativa ao observador, inrRoDuGio i Aqui vai um breve mapa para ajudar o leitor, ou lei- tora, a orientar-se ao longo do livro. Os primeiros trés capitulos contém criticas as comentes dominantes da filo- sofia da mente. Sao uma tentativa de superar tanto o dua- smo quanto 0 materialismo, com uma atengio maior dis- pensada, nesses capftulos, ao materialismo. De inicio, pen- sei em dar ao livro 0 titulo de O que hd de errado coma Filosofia da Mente, mas, afinal, esta idéia aparece como 6 tema dos trés-primeiros capftulos e como o titulo do pri- rmeiro. Os préximos cinco capitulos, de 4 a 8, so uma série de tentativas de apresentar uma caracterizagio da conscigneia. A partir do momento em que ultrapassamos tanto o materialismo quanto o dualismo, como situamos a consciéncia em relagao ao resto do mundo (capftule 4)? Como explicamos sua aparente irredutibilidade estabele- ida pelos modelos padres da reducdo cientifica (capitu- Jo 5)? Mais importante, quais sdo as caracteristicas estru- turais da consciéncia (capitulo 6)? Como explicar 0 in- “conscientee sta relagao com a consciéncia (capitulo 7)? E quais so as relagdes entre as capacidades de consciéneia, intencionalidade e Background que nos permitem fun- ccionar como seres conscientes no mundo (capitulo 8)? No decorrer dessas discussdes, tento superar varios chavies, cartesianos, tais como dualismo de propriedades, intros- peccionismo e incorrigibitidade, mas, nesses capitulos, © ‘trabalho fundamental ndo ¢ critico. Tento situar a cons- cigneia dentro de nossa concepeo geral do mundo e do [7 pmseor nto tue "Batyowd temo wad comcon fo crea plo stor Dente a tadacs pss gua "st “fog “neces consents expen” ee. Ver 2 ope cap deo ar deo nto exp st ak oR) 6 A REDESCOBERTA DA MENTE resto de nossa vida mental. O capitulo 9 amplia minhas criticas anteriores (Searle, 1980a e b) ao paradigma domi- nante na ciéncia cognitiva, eo capftulo final dé algumas sugestées, por exemplo, sobre como devemos estudar a ‘mente sem cometer tantos erros dbvios. Neste livro, tenho mais a dizer sobre as opinises de ‘outros autores do que etn quaisquer de meus outros traba- Ihos ~ talvez mais do que em todos eles juntos. Isto me deixa extremamente apreensivo, pois € sempre possivel que eu 08 possa estar compreendendo tao erradamente quanto eles a mim. O capftulo 2 deu-me as maiores dores de cabeca nesse aspecto, € posso apenas dizer que tentei o mais que puck: montar um sumrio adequado de todo um Conjunto de concepedes que considero inaclequadas. Quan- to as referéncias: os livros que lina minha inféncia filos6- ica. livros de Wittgenstein, Austin, Strawson, Ryle, Ha- re ete, — contéin poucas ou nenhuma remissiio a outros autores, Penso que, inconscientemente, passei a aereditar que a qualidade filoséfica é inversamente proporeional a0 ‘niimero de referencias bibliograficas, e que nenhuma gran de obra de filosofia jamais continha muitas notas de roda- 1pé. (Quaisquer que sejam suas outras falhas, 0 Concept of Mind, de Ryle, € um modelo nesse sentido: nao tem ne~ nhuma.) No exemplo presente, porém, nao ha referencias bibliogrificas evasivas, ¢ provayelmente serei censurado mais pelo que omiti do que pelo que inclu titulo é uma homenagem dbvia ao clissico de Bru- no Snell, The Discovery of the Mind. Que possamos, re- descobrindo a consciéncia — aquilo que realmente im- portante, no 0 Ersatz cartesiano nem 0 Doppelganger behaviorista - redescobrir também a mente. CAPITULO 1 O QUE HA DEERRADO COM A FILOSOFIA DA MENTE 1.A solucdo para 6 problema mente-corpo e por que muitos preferem o problema a solucao \ 0 famoso problema mente-corpo, fonte de tanta con- trovérsia ao longo dos dois ultimos milénios, tem uma solugdo simples. Esta solucdo encontra-se ao aleance de qualquer pessoa instruida desde 0 inicio de um estudo jo sobre 0 cérebro hi cerca de um século, e, em certo sentido, todos sabemos que é verdadeira. Aqui esté ela: os fenémenos mentais so causados por processos neurofi- siolégicos no eérebro, ¢ sf, eles proprios, caracteristicas do cérebro, Para distinguir esta concepeao das muitas ou- tras neste campo, chamo-a de “naturalismo biol6gico”. Os processos fatos mentais fazem parte de nossa histéria natural biol6gica tanto quanto a digesta, a mitose, a meio- se oa secregao enzimitica, © naturalismo biol6gico suscita milhares de questdes préprias dele. Qual 6, exatamente, 0 caréter dos processos jiolbgicos, © como, exatamente, os elementos da A REDESCOBERTA DA MENTE neuroanatomia — neurdnios, sinapses, fissuras sindpticas, receptores, mitocOndrias, células da neuréglia,-fluidos transmissores etc, — produzem fendmenos mentais? E que dizer da grande variedade de nossa vida mental — dores, desejos, sensagdes agradaveis, pensamentos, experiéncias visuais, crengas, sabores, odores, ansiedade, medo, amor, 6dio, depressio e euforia? Como a neurofisiologia expli- ca a multiplicidade de nossos fendmenos mentais, tanto conseientes como inconscientes? Estas questdes formam © objeto das neurociéneias, e enquanto escrevo isto ha, literalmente, mithares de pessoas investigando essas quest@es'. Mas nem todas elas so neurobiolégicas. Al- gums sio filosGficas ou psicolégicas, ou parte da ciéneia cognitiva em geral. Algumas das questdes filosGticas sio: 0 que € exatamente a consciéncia, € como exatamente os fendmenos mentais conscientes relacionam-se com 0s it~ conscientes? Quais so as caracteristicas especiais do “mental”, caracteristicas como consciéncia, intencionali- dade, subjetividade, causagao mental; e como exatamente clas fancionam? Quais so as relagdes causais entre fend~ ‘menos “mentais” ¢ fendmenos “fisicos”? E podemos nés caracterizar tais relagdes causais de maneira a evitar 0 epifenomenalismo? Tentarei dizer algo sobre algumas dessas questdes posteriormente, mas neste ponto quero ressaltar um fato notvel. Eu disse que a solugio para o problema mente- corpo deveria ser Gbvia para qualquer pessoa instrufda, ‘mas hoje, na filosofia e na ciéncia cognitiva, muitos ~ tal- ‘ver. a maioria dos especialistas ~ afirmam nao considerd- Jade modo algum ébvia. De fato, eles nem sequer acredi- tam que a solugao que propus seja verdadeira, Se alguém 0 QUE HA DE ERRADO COM A FILOSOFIA DA MENTE 9 cexaminar 0 campo da filosofia da mente nas tiltimas duas décadas, vai encontré-lo ocupado por uma pequena mino- ria que insiste na realidade e irredutibilidade da conscién- cia e da intencionalidade, e cujos membros tendem a con- siderar-se dualistas de propriedades, e um grupo muito maior da correntesprincipal, cujos defensores consideram- se materialistas de um tipo ou de outro. Os dualistas de propriedades pensam que 0 problema mente-corpo & s- pantosamente dificil, talvez completamente insoliveF. Os materialistas concordam com que, se a intencionalida- de e a consciencia realmente existem e sto irredutiveis @ fendmenos fisicos, entéo de fato haveria um dificil pro- blema mente-corpo, mas eles pretendem “naturalizar” intencionalidade, etalvez também a consciéncia, Por “na- turalizagio” de fendmenos mentais eles entendem a sua redugiio a fendmenos fisicos. Pensam que admitir a reali dade e irredutibilidade da consciéncia e outros fenémenos ‘mentais leva ao comprometimento com alguma forma de cartesianismo, e eles nio véem como tal enfoque pode se tomar compativel com © quadro completo de nosso mun- do cienttfico. ‘Acredito que 0s dois lados esto completamente enganados. Ambos aceitam um determinado vocabukério ¢, com ele, um conjunto de hipéteses. Pretendo mostrar que 0 vocabulirio € obsoleto, e que as hipsteses sto fal- sas, E fundamental mostrar que tanto o dualismo quanto 0 monismo sio falsos porque em geral se supde que esg0- tam 0 campo, nfo deixando outras opgGes. A maior parte de minha discussio seré dirigida as virias formas de materialismo, porque € a visio dominante. © dualismo, sob qualquer forma, € hoje considerado fora de cogitaao 10 AREDESCOBERTA DA MENTE porque se admite que ¢ incompativel com 0 enfoque cien- tifico global Dessa forma, a questo que quero propor neste capi tulo e no préximo 6: 0 que acontece em nosso meio e his- t6ria intelectual que toma dificil enxergar essas observa- des tio simples que fiz a respeito do “problema mente- corpo"? O que fez com que 0 “materialism” parecesse ser o tinico enfoque racional da filosofia da mente? Este lo € 0 préximo abordam a situagao atual da filosofia da mente, ¢ o presente poderia receber o titulo de “O que hi de errado com a tradigo materialista na Filosofia da Mente”. Vista a partir da perspectiva dos tltimos cingtienta ‘anos, a filosofia da mente, bem como a ciéncia.cognitiva e determinados ramos da psicologia, apresentam um espeticulo muito curioso. A caracteristica mais admirével € o quanto da corrente principal da filosofia da mente dos titimos cingtienta anos parece obviamente falso. Acredi- to que no haja nenhuma outra frea da filosofia analitica contemporinea onde tantas coisas implaustveis sejam afirmadas. Na filosofia da linguagem, por exemplo, niio é de modo algum comum negar a existéncia de frases e atos de fala; mas, na filosofia da mente, fatos Sbvios sobre 0 mental, tais como 0 fato de que todos nés realmente te- mos estados mentais subjetivos conscientes, € que estes no so suprim{veis em favor de qualquer outra coisa, so rotineiramente negados por muitos, talvez pela maioria dos pensadores avangados do assunto. ‘Como € que tantos filsofos e cientistas cognitivos podem afirmar tantas coisas que, pelo menos para mim, parecem obviamente falsas? Pontos de vista radic (0 QUENA DE ERRADO COM A FILOSOFIA DA MENTE u filosofia quase nunca slo insensatos; hé Geralmente razSes poderosas e muito profundas que justificam sua defesa, ‘Keredito que um dos pressupostos nao declarados por ts do corrente conjunto de enfoques & que eles representam, as dinicas altenativas cientificamente aceitaveis a0 anti- Cientificismo que acompanhou o dualismo tradicional, @ crenga na imortalidade da alma, 0 espiritualismo etc. A aceitagao das concepgdés correntes € motivada no tanto por uma conviegio independente em sua veracidade quan to por um pavor daquelas que sto, aparentemente, as tni- cas altemativas. Quer dizer, a escolha que nos ¢ tacita- ‘mente apresentada dé-se entre um enfoque “cientffico”, ‘como 0 representado por uma ou outra das correntes Ver~ Ses do “materialismo”, ¢ um enfoque “anticientifico”, ‘como 0 representado pelo cartesianismo ou por alguma coutra concepeao religiosa tradicional da mente. Outro fato singular, estreitamente relacionado ao primeiro, € que & maioria dos autores clissicos esté profundamente compro- = metida com 0 vocabulirio ¢ as categorias tradicionais. Biles realmente consideram que ha algum significado mais cou menos evidente associado ao vocabulitio arcaico do “Gualismo”,“*monismo”, “materialismo”, “fisialismo” etc. ¢ que as questdes tém que ser propostas ¢ solucionadas nesses termos. Usam essas palavras sem embarago nem ironia, Um dos muitos objetivos que tenho neste livro € mostrar que essas duas hipéteses estio erradas. Com- preendidos de manera correta, muitos dos enfoques atual- mente em voga si incompativeis com o que conhecemos ‘arespeito do mundo, tanto a partir de nossas proprias €X- periéncias quanto das ciéncias espectficas. Para expressar que sabemos ser verdadeiro, deveremos desafiar as hic poteses por tris do vocabulio tradicional 4 REDESCOBERTA DA MENTE Antes de identificar alguns desses enfoques questio- ndveis, quero fazer uma observaciio sobre estilos de apre- Sentagio, Autores que esto prestes a afirmar algo que soa absurdo muito raramente vém a piblico para expressilo diretamente, Em geral, um conjunto de artificios retéricos ou estilisticos ¢ empregado para evitar ter que dizé-lo em Palavras simples. O mais Gbvio desses artificios 6 fazer rodeios através de um discurso muito evasivo, Penso que é Gbvio nos eseritos de diversos autores, por exemplo, que eles consideram que realmente ndo temos estados mentais como crengas, desejos, medos etc. Mas € dificil encontrar ttechos onde eles efetivamente afirmem isto de forma direta, Em geral, querem,manter 0, vocabulario de senso comum, ao mesmo tempo em que negam que o tesmo represente, efetivamente, algo no mundo real. Outro artifi- clo ret6rico para disfargar o implausfvel é dar uma desig- ago a0 ponto de vista de senso comum e entio rejeitar cesta designagdo, mas no seu contetido. Assim, 6 muito dificil, mesmo no periodo atual, vir a piblico e afirma “Nenhum ser humano jamais foi consciente.” Antes, o(a) fil6sofo(a) sofisticadota) nomeia a concepgao de que as Pessoas so algumas vezes conscientes, por exemplo, como “a intuigdo cartesiana”, e entio comeca a contestar, questionar, negar algo descrito como “a intuigiio cartesia na’’. Novamente, é dificil vir a pliblico afirmar que nin- ‘guém na histéria do mundo jamais bebeu porque estava com sede, ou comeu porque estaya com fome; mas & fécil contestar algo se voce pode rotulé-lo de antemio como “psicologia popular”. E, para dar um nome a este estrata- gema, vou chamé-lo de estratagema de “dar-um-nome”. A Outro estratagema, o preferido, chamarei de estratagema (0 QUEHA DE ERRADO COM A FILOSOFIA DA MENTE. 13 da “eracherSica-da-ciéneia”, Quando um(a) escrtor(a) en- tra em apuros, tentatragar uma analogia entre sua propria assercio e alguma grande descoberta cientffica do passa- do. A concepgao parece tola? Bem, os grandes génios cientificos do passado parece'ram tolos a seus contempo- rneos ignorantes, dogmaticos e preconceituosos. Galilew 6 a analogia hist6rica favorita, Retoricamente falando, a idia € fazer com que yoc’, o leitor cético, sinta-se, caso nio acredite na concepeio que esté sendo desenvolvida, bancando o cardeal Belarmino para 0 Galileu do autor. Outros favoritos sao o flogisto e 0s espiritos vitais, e outra ver.a idéin € forgar o(a) Ieitor(a) a supor que, se ele (ela) vida, por exemplo, que 0s computadores esto efetiva- ‘mente pensando, s6 pode ser porque eré em algo to nao cientifico quanto 0 flogisto ou 05 espititos vitais, II. Seis teorias inverosstmeis da mente Nao tentarei fornecer um catélogo completo de todas as implausiveis concepedes materialistas em voga na filo- sofia contemportinea ¢ na ciéncia cognitiva, mas relacio- nnarei somente meia diizia para dar uma idéia da questio. que esses enfoques tém em comum ¢ uma hostilidade ‘em relagio & existéncia ¢ ao caréter mental de nossa vida mental ordindria, De uma maneira ou de outra, todos eles tentam depreciarfendmenos mentais ordindrios como cren- ‘gas, desejos ¢ intengdes, ¢ colocar em dtivida a existéncia de caracteristicas gerais do mental, como a consciéncia e asubjetividade’, AREDESCOBERTA DA MENTE Primeiramente, talvez a versdo mais radical desses enfoques seja a idéia de que, enquanto tas, os esiados ‘mentais nfo existem de modo algun, Este enfoque & sus- tentado por aqueles que se autodenominam “materialistas eliminativos”. A idéia € que, contrariamente a uma opi- nigo amplamente aceita, na verdade no existem quais- aur fos como erengas, deseo, espera, medos et ersGes primeiras dessa concepgao foram pro Feyenbend (1963) eRony(198), 0 ‘Um segundo ponto de vista, utilizado frequentemente Para dar sustentagio wo materialismo eliminativo, € a assergo de que a psicologia popular é —com toda a proba- bilidade — simplesmente¢ inteiramente falsa. Este enfoque foi desenvolvido por B. M. Churchland (1981) € Stich (1983). A psicologia popular inclu asserg6es como as de ue as pessoas as vezes bebem porque estio com sede ¢ comem porque estio com fome; que elas t8m desejos ¢ crengas, que algumas dessas erengas so verdadeiras, ou pelo menos falsas; que algumas crengas so melhor sus tentadas que outras: que as pessoas as vezes fazem algo Porque querem fazé-lo; que elas vez por outra tém afl (8, € que estas so quase sempre desagradéveis. E assim = mais ou menos indefinidamente - por dante. A conexio entre a psicologia popular e o materialismo eliminativo & esta: presume-se que a psicologia popular seja uma teoria empitica, e supbe-se que a entidades que “postula”— afl- Bes, sensagies agradveis, nsias e assim por diante — sejam entidades tedricas exatamente correspondentes, ontologicamente falando, a quarks e muGnios. Se a teoria € abandonada, as entidades te6ricas morem com ela demonstra a falsidade da psicologia popular seria remo- 0 QUE HHA DE ERRADO COMA FILOSOFIA DA MENTE 15 vver qualquer justificativa para aceitar a existéncia das enti- dades da psicologia popular. Sinceramente, espero nao estar sero injusto ao caracterizar essas concepgdes como ‘implausiveis, mas tenho de confessar que esta é a impres- so que elas me dio. Permitam-me retomar a listagem. ‘Uma terceira concepgiio deste mesmo tipo defende que nfo hé nada de especificamente mental nos chamados estados mentais. Estados mentais consistem inteiramente nas stias relagdes causais entre si, e entre 0s inputs € 08 ou puts do sistema do qual fazem parte. Essas relagGes causais poderiam ser reproduzidas por qualquer sistema que tives se as propriedades causais corretas. Assim, um sistema feito de pedras ou latas de cerveja, se tivesse as relagbes ‘causais comretas, deveria ter as mesmas. crengas) desejos etc. que nés temos, porque tudo 0 que existe so crengas & desejos. A versio mais influente desta concepedo € chama- da de “funcionalismo”, e € tfo amplamente defendida que ‘chega a constituir uma ortodoxia contemporanea. ‘Uma quarta concepeo implaustvel, ¢, na verdade, a ‘mais famosa e amplamente accita do presente catilogo, & ‘© ponto de vista de que um computador poderia ter — na verdade deve ter ~ pensamentos, sentimentos e entendi- ‘mento unicamente em virtude de implementar um progr ‘ma de computador apropriado com os inputs e outputs apropriados. Batizei alhures esse enfoque como “int géncia artificial forte”, mas ele também tem sido chama- do de “funcionalismo de computador”. Uma quinta forma de ineredibilidade € encontrada na assergo de que nfo devemos considerar nosso vocabuli- rio mental de “renga” “desejo”, “medo” e “esperanga” etc. como uma representactio efetiva dos fenémenos in- 16 A REDESCOBERTA DA MENTE trinsecamente mentais, mas, mais propriamente, apenas como um modo de dizer. E simplesmente um vocabulério ‘Gil para explicar e prognosticar o comportamento, mas io para ser tomado fiteralmente, como se remetesse a fendmenos psicolégicos reais, intrinsecos, subjetivos. Os adeptos deste ponto de vista consideram que 0 uso do vocabulirio de senso comum & uma questio de assumit ‘uma “atitude intencional”” em relagao a um sistema’. Em sexto lugar, outra concepgao radical é que talvez ‘a conscigneia como normalmente a consideramos - como fendmenos de sensibilidade e percepgao internos, intimos e subjetivos ~ na verdade nao exista, Esse enfoque quase nunca é desenvol ido explieitamente*, Muito poucas pes- soas se dispdem a vir a piblico afirmar que a conseiéneia niio existe. Recentemente, porém, tormou-se comum que autores redefinam a nogao de consciéncia, de modo a esta ‘do mais referir-se a estados conscientes efetivos, isto é, estados mentais de primeira pessoa, intemos, subjetivos, qualitativos, mas, ao contrério, a fendmenos de terceira pessoa, publicamente observaveis. Tais autores aparen- tam crer que a consciéncia existe, mas, na verdade, aca- bam por negar sta existéncia’ Algumas vezes, erros na filosofia da mente produ- zem etros na filosofia da linguagem. A meu ver, uma tese inverossfmil na filosofia da linguagem, que vem do mes- mo grupo de exemplos que acabamos de considerar, é a concepgio de que onde os significados esto envolvidos no hi absolutamente quaisquer fatos significantes aléth de padres de comportamento verbal. Sob este enfoque, ‘mais notayelmente sustentado por Quine (1960), nao ha absolutamente nenhum fato importante se, quando voce 0 QUE HA DE ERRADO COMA FILOSOFIA DA MENTE 7 ‘ou eu dizemos “coelho”, quetemos significar coelho, uma parte ndo separada de um coetho ou um estagio da vida de Iho*. maces ‘que podemos fazer em face de tudo isso’ Para mim, nfo 6 0 bastante afirmar que tudo parece implaust- vel; 20 contrério, penso que um filésofo com paciéncia bastante e tempo deveria sentar e fazer uma refutacio pponto por ponto, linha por linha, de toda a tradigo. Tentei fazer isto com uma tese especifica da tradic20, a assergio de que computadores tém pensamentos e sentimentos © centendimento unieamente em virtude de instanciar‘um pro- ‘grama de computador (0 programa de computador “cor- reto” com as “corretos” inputs ¢ outputs) (Searle, 1980a). Esta concepeao, inteligencia artificial forte, 6 um objetivo atraente por ser razoavelmente claro; hé uma simples © decisiva refutagio, ¢ a refutagio pode ser estendida a ou- tras versdes do funcionalismo. Também tentei refutar a tese da indeterminabilidade de Quine (Searle, 1987), que, acredito, também se presta a um atague frontal, Em outros pontos de vista, entretanto, a situacdo € muito mais com- plicada, Como, por exemplo, alguém empreenderiaarefu- tagdo do ponto de vista de que a consciéncia no existe Deveria eu beliscar seus adeptos para lembré-los de que so conscientes? Deveria beliscar a mim mesmo ¢ relatar (08 resultados no Journal of Philosophy? ara conduzir um argumento no sentido tradicional, 6 essencial que haja algum fundamento comum. A ndo ser que os participantes concordem com as premissas, no hé como tentar tirar uma conclusfio, Mas, se alguém ‘negar a existéncia da consciéncia logo de inicio, € dificil saber qual seria a base comum no estudo da mente, A meu 18 ‘A REDESCOBERTA DA MENTE Yer, se sua teoria resulta na concepeo de que a conscién- cia no existe, vocé simplesmente produziu uma reductio ‘ad absurdum da teoria, € © mesmo acontece com muitas ‘outras concepedes da filosofia da mente contempordinea. ios anos debatendo essas questées, tanto em pi- blico quanto por escrito, convenceram-me de que, muito freqientemente, os problemas fundamentais do debate hilo sobem a superficie, Se vocé discute com pessoas, por exemplo, sobre a inteligéncia artificial forte ou a indeter- ‘minabilidade da traducao, a implausibilidade transparente dessas teorias & disfarcada pelo carter aparcntemente técnico dos argumentos langados para frente e para trés Pior ainda, € dificil trazer abertamente & superficie as assungdes que levam a essas teorias. Quando, por exem- plo, alguém se sente A vontade com a idéia de que um computador teria, repentina miraculosamente, estados ‘mentais apenas em virtude de executar um determinado tipo de programa, as assungdes subjacentes que fazem essa concepedo parecer possivel quase nunca sio formu: ladas explicitamente. Assim, nesta discussao, quero tentar lum enfoque diferente da refutacdo direta, Nao vou apre- sentar mais uma “‘refutagio do funcionalismo”; na verda~ de, quero dar inicio a tarefa de expor—e assim minar — as bases sobre as quais se assenta toda essa tradigao, Se voc esl seduzido pelo funcionalismo, creio que niio precisa de refutago; vocé precisa de socorro. A tradigtio materialista € s6lida, complexa, ubiqua e, ainda assim, evasiva. Seus varios elementos — sua atitude em relago a consciéneia, sua concepedo da verificagio ccientifica, sua metafisica € teoria do conhecimento — silo todos mutuamente sustentadores, de modo que, a0 ser (0 QUE HA DE ERRADO COM A FILOSOFIA DA MENTE wv contestada uma parte, os défensores podem facilmente re- correr 8 outra parte cuja exatidao € tida como certa. Falo agui por experinea propria, Quando voc® present uma refutagdo da IA (inteligéncia artificial) forte ou da tese indeterminabilidade ou do funcionalismo, 0s defensores no consideram necessério tentar rebater seus argumentos reais, porque sabem de antemio que voce deve estar erra- do. Eles sabem que a tradigéo materialista — que muitas vvezes chamam erradamente de “ciéneia” ~ esti do lado deles, Ea tradigio ndo é somente parte da filosofia acadé- mica, Se voc® assistir a conferéncias sobre a ciéncia cog- nitiva ou ler artigos populares sobre inteligéneia artificial, vai se deparar com a mesma tradigdo. Esta é muito grande para ser resumida num parigrafo ou mesmo num capitu- To, mas aeredito que, se continuar a permitir que ela se revele asi mesma, oleitor nfo ters dificuldade para reco- a oe de nar um aague 20 fondaments, precio especificar determinados elementos da estrutura um pou- ‘co mais precisamente ¢ dizer algo sobre sua histéria. II. Os fundamentos do materialismo moderno Por “tradigao” quero referir-me, em grande parte, 20 grupo de concepgtes e pressuposigdes metodoldgicas que se concentra em tomo das seguintes (frequentemente nao la oes eteses: a conscincia e suas caracteristicas especiais so de im- portincia muito reduzida. 6 bastante possivel, realmente 20 A REDESCORERTA DA MENTE esejéve, fazer uma descrigfo da linguagem, da cognigao © dos estados mentais em geral, sem levar em conta a consciéncia e a subjetividade’ * 2. A ciéncia € objetiva, E objetiva nao somente no sentido de que se empenha por chegar a conelusdes que sejam independentes de preferéncias e pontos de vista Pessoais, mas, mais importante, envolve uma realidade ue € objetiva. A ciéncia ¢ objetiva porque a propria reali. dade € objetiva. 3. Porque a realidade € objetiva, o melhor método Para o estudo da mente é adotar 0 ponto de vista objetivo, ou de tereeira pessoa. A objetividade da ciéncia requer ue os fenémenos estudados sejam completamente obje- tivos, e, no caso da ciéncia cognitiva, isto significa que cla deve estudar objetivamente 0 comportamento obser. vavel. No que diz respeito a ciéneia cognitiva madura, 0 estudo da mente e o estudo do comportamento inteligente Cnclusive os fundamentos causais do comportamento) io praticamente o mesmo estudo, 4..A partir do ponto de vista objetivo, de terceira pes- oa, a unica resposta & pergunta epistemoldgica “Como Conhecerfamos os fendmenos mentais de outro sistema?” # conhecemos pela observacio de seu comportamento, Esta €. tinica solugao para o “problema de outras mentes”, A epistemologia representa um papel especial na ciéncia cognitiva porque uma cigncia objetiva da copnigzo deve ser capaz de distinguir coisas como cogniciio, com. Portamento inteligente, processamento de informa etc., de outros fendmenos naturais. Uma questo bisica, talver ’ questo basica, no estudo da mente 6 a questo episte- ‘mol6gica: como saberfamos se algum outro™'sistema” tem (0 QUE HA DE ERRADO COM A FILOSOFIA DA MENTE 21 luis e tais propriedades mentais ol iio? E a tinica resposta Cientifica é: através de seu comportamento, 5. Comportamento inteligentee relagdes eausais de comportamento inteligente so, em certo sentido, a essén- cia do mental, A accitagao do ponto de vista de que ha uma conexao essencial entre mente © comportamento va ria desde a versio radical do behaviorismo, que afirma que néo ha nada que possa ter estados mentais a menos que tenha disposigoes para comportamento, até a tentati- va funcionalista de definir as nogdes mentais em termos de rela eausas intemas ¢ extemas, na confusaasser so de Wittgenstein (1953, § 580), “um ‘processovinterno necessita de critérios exteriores”*, 6. Cada evento no universo 6, em principio, conheei- Vele inteligivel por investgadores hnmanos. Porque area- lidade ¢ fisica, e porque a ciéncia envolve a investigacio da realidade fisica, e porque no hé limites ao nosso conhecimento da realidade fisica, segue-se que todos os eventos no universo sto conhectves e inteligiveis por nés, is coisas que existem sdo essencialmente fisicas, na forma em que o fisico é tradicionalmente con- cebido, isto €, como oposto ao mental. Isto significa que nas oposigdes tradicionais ~ dualismo versus monismo, mo versus materialismo ~ 0 termo da direita de- signa a concepedo correta, ¢ 0 termo da esquerda designa a concepeao falsa. Ii deve estar claro que essas concepgdes se susten- tam mutuamente; porque a realidade € objetiva (t6pico 2), deve ser essencialmente fisica (t6pico 7). E a ontologia objetivista dos tépicos 2 € 7 leva naturalmente & metodo- logia objetivista dos tpicos 3 € 4. Mas, se a mente real- 22 A REDESCOBERTA DA MENTE ‘mente existe e tem uma ontologia objetiva, entdo parece que sua ontologia deve ser, em certo sentido, comporta- ental e causal (t6pico 5). Isto, entretanto, impele a epis- temologia para o primeiro plano (t6pico 4), porque agora toma-se crucialmente importante poder distinguir 0 com- ortamento dos sistemas em que nao hé estados mentais daqucles que realmente tém estados mentais. A partir do fato de que a realidade ¢ essencialmente fisica (t6pico 7), € do fato de que cla é completamente objetiva (t6pico 2), natural admitir que, na realidade, tudo € conhectvel por 'n6s (t6pico 6). Por fim, uma coisa € Sbvia: nio ha lugar — ou existe, de qualquer maneira, muito pouco espacgo — ara a consciéncia nesse quadro geral (t6pico 1) Ao longo deste livro, espero mostrar que cada um desses t6picos é, na melhor das hip6teses, falso, e que 0 uadro total que apresentam nao é apenas profundamente do cientifico, é incoerente. IV. Origens histéricas dos findamentos Historicamente, como chegamos a esta situagdo? Co- mo chegamos a uma situagdo em que as pessoas podem afirmar coisas que so incompativeis com fatos 6bvios de suas experigncias? O que queremos saber €: o que hi com a hist6ria da discusstio contemporiinea na filosofia da mente, psicolo- gia, ciéncia cognitiva e inteligéncia artificial que torna tais perspectivas concebiveis, que as faz parecer perfeita- ‘mente respeitiveis e aceitéveis? Em qualquer tempo dado na hist6ria intelectual estamos, todos és, trabalhando (0 QUE HA DE ERRADO COM A FILOSOFIA DA MENTE 23 dentro de determinadas tradigdes que fazem determinadas perguntas parecerem as perguntas certas e determinadas respostas parecerem as tinicas respostas possfveis. Na filosofia da mente contempordnea, a tradigfio hist6rica est nos tomando cegos para os fatos dbvios de nossas experiéncias, dando-nos uma metodologia © um vocabu- rio que faz hipéteses obviamente falsas parecerem acei- taveis, A tradigio emergiu de suas primitivas ¢ toscas ori- ‘gens behavioristas hé'mais de meio século, através de suas teorias de identidade “tipo-tipo” e “ocorréncia-ocor- Féncia”, até a sofisticagio dos atuais modelos computa- cionais de cognigao, Ora, o-que hd com a tradiggo.que a toma to poderosa em tal via contra-intuitiva? Gostaria de ter dessas questdes um entendimento suficiente que ‘me permitisse fomecer uma andlise histérica completa, mas temo que tenha somente umas poucas conjecturas € sugestdes a fazer sobre a natureza dos sintomas. Parece- ‘me que hé pelo menos quatro fatores em atuagivo. Primeiramente, temos um terror de cair no dualismo cartesiano. A faléncia da tradigao cartesiana e 0 absurdo de supor que hé dois tipos de substincias ou propriedades 1no mundo, “mental” e “‘fisica”, so t20 ameagadtores para rds e tém uma hist6ria to execrvel que relutamos em admitir qualquer coisa que possa cheirar a cartesianismo. Relutamos em reconhecer qualquer dos fatos consensuais, que soam “cartesianos” porque parece que, se aceitarmos 6s fatos, teremos de aceitar toda a metafisica cartesiana, Qualquer espécie de mentalismo que reconheca os fatos bvios de nossa existéncia 6 considerada automaticamen- te suspeita, No limite extremo, alguns filésofos relutam em admitir a existéncia da consciéncia porque nao conse- 2 24 ‘A REDESCOBERTA DA MENTE #uem enxergar que o estado mental da consciéncia 6 ape- nas uma caracteristca bioldgica ordinéa, isto &, fsiea, do eérebro. De um modo talvez mais exasperante ainda eles sio auniliados nesse erro por aqueles filésofos que de bom grado reconhecem a existéncia da consciéneia e assim fazendo, supe estar afirmando a existéncia de algo ndo-fisico. A concepeio de que a consciéncia, os estados men- tais ete. existem, no sentido mais singelo e bvio, ¢ de. Sempenham um efetivo papel causal em nosso comporta. ‘mento nifo tem nada de especial a ver com o dualismo cartesiano, Além do mais, ninguém precisa ler as Medi. ‘agoes para estar conscio de que somos conscientes, ou de que nossos desejos, como fendmenos mentais, conscien tes ou inconscientes, sio fendmenos causais reais, Mas {quando alguém lembra aos filésofos essas “intuigdes car, tesianas”, é imediatamente acusado de cartesianismo, Pose soalmente falando, fui acusado de sustentar alguma dow. trina maluea de “dualismo de propriedades” e “acesso Privilegiado”, ou de acreditar em “introspecgI0” ou “neo. Vitalismo”, ou até“mistcismo”, ainda que nao tenha nuns a, implicita ou explicitamente, endossado quaisquer des. Sas concepgaes, Por qué? Em parte, sem divida, simples. mente por negligéncia intelectual (ou talvez algo ainda Pior) da parte dos comentadores, mas hi também algo mais profundo em questo, Eles acham dificil entender que alguém poderiaaceitar os fatos Sbvios sobre os esta, dos mentais sem aceitar 0 aparato cartesiano que tradicio. nalmente acompanhiou 0 reconhecimento desses fitos, Acreditam que as tinicas escolhas reais vidveis da0-ce entre alguma forma de materialismo e alguma forma de (0 QUE HA DE ERRADO COM A FILOSOFIA DA MENTE 25 ualismo. Um dos meus objetivos ao escrever este livro consiste em demonstrar que esta concepedo esté errada, que alguém pode fazer uma descrigao coerente dos fatos da mente sem endossar qualquer um dos desacreditados aparatos cartesianos, Em segundo lugar, junto com a tradigfo cartesiana, herdamos um vocabulério, e, com 0 vocabulirio, um de- terminado conjunto de categorias, dentro das quais esta- ‘mos historicamente c6ndicionados a raciocinar sobre es- ses problemas. O vocabulirio nao é inocente, porque nele esti implivito um surpreendente ntimero de assergdes te6- rieas que so quase certamente falsas. O vocabuldrio inclui uma série de oposigdes aparentes: “fisico” versus “mental”, “corpo” versus “mente”, “materialisto” ver- sus “mentalismo”, “matéria” versus “espirito”. Implicita estas oposigdes esti a tese de qute, sob os mesmas aspet tos, o mesmo fenémeno nao pode, literalmente, satisfazer ‘a ambos os termos. As vezes a semintica, ¢ mesmo a morfologia, parecem tomar explicita esta oposigzio, como na aparente oposigao entre “materialismo” e “imateria- lismo”. Assim, espera-se que acreditemos que, se algo € mental, nfo pode ser fisico; que se 6 uma questio de esp rito, nflo pode ser uma questilo de matéria; se é imaterial, nao pode ser material, Mas esses enfoques parecem-me obviamente falsos, em vista de tudo o que sabemos a res- peito da neurobiologia. 0 cérebro causa determinados fe- nOmenos “mentais”, tais como estados meniais conscien- les, € esses estados conscientes sio simplesmente caracte- risticas de nivel superior do cérebro. A consciéncia é uma propriedade emergente, ou de nivel superior, do cérebro, no sentido absolutamente inécuo de “de nivel superior” ‘A REDESCOBERTA DA MENTE “emergente”, no qual a solidez € uma propriedade emergente de nivel superior de moléeulas de HO quando estas esto em uma estutua cristalina (pelo), e liquider 6, de forma scmelhante, uma propriedade emergente de nivel superior de moléculas de HO quando estas estto, falando grosso modo, girando em tomo umas das outras (gua). conscigncia€ uma propriedade mental e portan- 10 fisica, do eérebro, no sentido em que a liquidez. € um: Propriedade de sistemas de moléculas, Se hi uma tee que g0stara de tomar clara nesta discussdo, esta tse ¢ simples: mente a seguinte: 0 fato de uma caracteristica ser mental no implica que no sea sca; 0 fato de uma caracteristica ser fisica ndo implica que nio seja mental, Revisando Descartes, por enquant® poderiarnos dizer nfo somente “penso, ogo existo” e“sou um ser pensante”, mas tamibém su um ser pensante, portantosou.um ser fsico, Observe-se, porém, como o vocabulirio toma cific, se nao impossvel, dizer 0 que pretendo usando a termi: nologia tradicional Quando digo que a consciéncia€ uma caractristicafisica de nivel superior do cérebro, a ten- déncia & entender que isto significa fisico-em-oposigao- a0-mental,significando que consciéncia deve ser deserita somente em termos comportamentais ou neurofisiol6g 05 objetivas. Mas o que quero dizer, realmente, € que a conscigncia enquanto consciéncia, enquanto mental, en- quanto subjetiva, enquanio qualitativa,é fsica, e fisica porque mental, Tudo iss0 mostra, creio eu, a inadequagao do vocabulirio tradicional Junto com as oposigies aparentes esto designagSes que aparentemente esgotam as possiveis posigdes que ‘alguém possa ocupar: hi o monismo versus dualismo, ma- 0 QUE HA DE ERRADO COMA FILOSOFIA DA MENTE ar terialismo ¢ fisicalismo versus mentalismo e idealismo, A avidez de se encaixar nas categorias tradicionais produz ‘uma terminologia excéntrica, tal como “dualismo de pro- priedades”, “monismo andmalo”, “identidade de ocor- réncia” etc. Minhas préprias concepeses niio se encaixam em nenhum dos rétulos tradicionais, mas, para muitos fildsofos, a idéia de que'alguém possa defender um ponto de vista que nao se éncaixe nessas categorias parece incompreensivel".Pior ainda, talvez, ha diversos substan- tivos e verbos que parece ter significados claros, como se realmente representassem objetos ¢ atividades bem definidos ~ “mente”, “ego” e “introspecgio” sao exem- plos bvios. O vocabulirio contemporfineo da cigécia cognitiva nao é melhor. Tendemos a admitir acriticamente {que expresses como “cogni¢do” “inteligéncia” e“pro- ‘ccssamento de informagao” tém definigdes claras e efeti- vamente representam algumas categorias naturais. Em minha opinito, tais assungdes estao erradas, Vale enfati- __zax este ponto: “inteligéncia”, “comportamento inteligen- te", “cognigio” e “processamento de informatio”, por cexemplo, nao so idéias definidas precisamente. E, mais, cespantoso ainda, muitas nogdes que soam bastante técni- ‘cas sto pobremente definidas — nodes como “compu- tador”, “computagdo”, “programa” e “simbolo”, por exemplo, Nio importa muito, para grande parte dos obje- tivos da ciéncia da computagio, que essas nodes sejam mal definidas (assim como também nao é importante que 60s fabricantes de mobilidrio tenkam uma definigto filoso- ficamente precisa de “cadeira” e “mesa""); mas, quando cientistas cognitivos afirmam coisas como cérebros so computadores, mentes so programas etc., entio a defini ‘iio dessas nogdes toma-se crucial. 28 A REDESCOBERTA DA MENTE Em terceiro lugar, hoje se verifica uma tendéncia objetivadora persistente na filosofia, na ciéncia e na vida intelectual em geral. Temos a convicgao de que, se algo é real, deve ser igualmente acessfvel a todos os observado- res competentes. Desde o século XVIT, as pessoas instru das do Ocidente passaram a aceitar uma pressuposigzio metafisica absolutamente basica: a realidade é objetiva. Essa assungio mostrou-se titil para nés de muitas manei- ras, mas é obviamente falsa, como revela um momento de reflexdo sobre os estados subjetivos proprios de qualquer pessoa. E esta assungdo levou, talvez inevitavelmente, a concepeao de que a tinica forma “cientifiea” de estudar a mente € vé-la como umn conjunto de fendmenos objetivos, A partir do momento em que adotamos.a hiptese de que algo qualquer que seja objetivo deve ser igualmente aces- sivel a qualquer observador, as questdes so automatica- mente desviadas da subjetividade dos estados mentais, voltando-se para a objetividade do comportamento exter- no, Em decorréncia disso, ao invés de perguntarmos: “O que & ter uma crenga?”, “O que é ter um desejo?”, “O que significa estar em determinados tipos de estados conscien- tes?”, fazemos a pergunta de terceira pessoa: “Sob que condigoes irfamos arribuir, do exterior, crengas, desejos etc. a algum ouiro sistema?” Isso nos parece perfeitamnen- te natural, porque, sem diivida, a maioria das questdes que precisamos responder sobre os fendmenos mentais envol- ‘ve outras pessoas, € ndo apenas nés mesmos. Contudo, o carter de terceira pessoa da epistemolo= gia nao nos deve cegar para 0 fato de que a ontologia efe- tiva dos estados mentais € uma ontologia de primeira pes- soa. © modo como © ponto de vista de terceira pessoa & (0 QUE HA DE ERRADO COM A FILOSOFIA DA MENTE 29 aplicado na prética torna dificil pard ribs perceber a dife- renga entre algo que realmente tem uma mente, como um ser humano, € algo que se comporta como se tivesse uma mente, como um computador. E, a partir do momento em. que vocé esquece a distingao entre um sistema que real- mente tem estados mentais ¢ outro que meramente atua como se tivesse estados mentais, entio voce pérde de ista uma caracteristica essencial do mental, a saber, que sua ontologia é essencilmente uma ontologia de primeira pessoa. Crengas, desejos etc. so sempre crengas ¢ dese- jos de algitém, ¢ so sempre potencialmente conscientes, ‘mesmo os casos em que so efetivamente inconscientes. ‘Apresento una argumentagéo para este titimo ponto no capftulo 7. Agora, tentarei diagnosticar um pailrao his toricamente condicionado de investigago que faz.0 enfo- que de terceira pessoa parecer 0 tinico ponto de vista ‘tificamente aceitével a partir do qual se pode exami- par a mente, Seria necesséirio um historiador para respon er a perguntas como quando a questio de sob-que-con- digées-atribuirfamos-estados-mentais veio a parceer a per- gunta certa? Mas 0s efeitos intelectuais de sua persistén- ia parecem claros. Exatamente da mesma forma como a distingio de senso comum estabelecida por Kant entre as aparéncias das coisas e as coisas em si eventualmente levava a extremos de absoluto idealismo, a persisténcia dia pergunta do senso comum: “Sob que condi¢des atxi- buirfamos estados mentais?” nos Ievou ao behaviorismo, Ao funcionalismo, & IA forte, ao materialismo eliminati- Vo, a atitude intencional e, sem diivida, a outras confu- ses conhecidas apenas dos especialistas. 30 A REDESCOBERTA DA MENTE Em quarto lugar, por causa de nossa concepgao da histéria do desenvolvimento do conhecimento.passamos a sofrer daquilo que Austin chamou de “ivresse des grands profondeurs”. Seja como for, nfo parece bastante afirmar verdades simples ¢ Sbvias sobre a mente ~ queremos algo mais profundo, Queremos uma descoberta te6rica, E, logi- camente, nosso modelo de uma grande descoberta teérica vvemn da historia das ciéncias fisicas. Sonhamos com algu- ma grande “ruptura” no estudo da mente, aguardamos ansiosamente uma ciéncia cognitiva “madura”. Assim, 0 fato de as concepgdes em questéo serem implausiveis ¢ ccontra-intuitivas no conta contra elas. Pelo contritio, pode parecer um grande mérito do funcionalismo contem- porfineo ¢ da inteligéncia artificial o fato de irem comple- tamente contra nossas intuigdes. Pois nfo € exatamente essa caracteristica que torna as ciéncias fisicas tio fasci- nantes? Nossas intuigdes correntes sobre espaco e tempo u, a propésito disso, sobre a sotidez da mesa a nossa fren- te, terminaram por mostrar-se meras ilusdes substituidas por um conhecimento muito mais profundo do funciona- mento interno do universo, Uma grande ruptura no estudo da mente no poderia, de modo semelhante, mostrar que nossas crengas mais firmemente defendidas sobre nossos estados mentais sdo igualmente ilusérias? Nao podemos, sensatamente, esperar por grandes descobertas que itio superar nossas suposigées de senso comum? E, quem sabe, algumas dessas grandes descobertas nfo poderiam ser feitas por um de nés? > (0 QUE HA DE ERRADO COM A FILOSOFIA DA MENTE V. Minando os fundamentos Uma maneira de expor algumas das caracteristicas notiveis da argumentagdo que vou apresentar consiste em formuli-las em oposigdo aos sete prinefpios que mencio- nei anteriormente. Para fazer isto, preciso primeiro tornar claras as distingSes entre oniologia, epistemologia e cau- sacdo. Hé uma distingZo entre as resposias as questes: O que € isto? (ontologia), Como tomamos conhecimento disto? (epistemologia), e O que isto causa? (causaciio). Por exemplo, no caso do conigao, a ontologia ¢ que este & uma grande pega de tecido muscular na cavidade tora ca; a epistemologia € que descobrimos isto através do uso de esietascdpios, eletrocardiogramas e, numa emergén- cia, podemos abrir o peito e dar uma olhada; € a causagao 6 que 0 coracio bombela sangue através do corpo. Com essas distingdes em mente, podemos comegar 0 trabalho. 1. A consciéncia é realmente importante. Demons- trarei que niio hé como estudar os fenémenos da mente sem, implicita ou explicitamente, estudar a consciéncia, ‘A raziio bisica disso & que realmente nao temos nogao do ‘mental independentemente de nossa nogfo de conscién- cia, Sem dvida, a cada dado instante da vida de uma pes- soa, a maioria dos fenémenos mentais na existéncia dessa ‘mesma pessoa ndo esté presente na consciéncia, No mé- todo formal, a maioria dos predicados mentais que se aplicam a mim a cada dado instante ter condigdes de uti- lizagao, sejam quais forem os meus estados conscientes naquele momento, Entretanto, embora a maior parte de nossa vida mental em qualquer ponto dado seja incons- 32 A REDESCOBERTA DA MENTE ciente, demonstrarei que nijo temos idéia de um estado ‘mental inconsciente, exceto em termos derivados de esta- ddos mentais conscientes. Se estou certo sobre isto, entdo todo o debate recente sobre estados mentais em principio inacessiveis @ consciéncia 6, de fato, incoerente (mais sobre isto no capitulo 7), 2. Nem toda a realidade é objetiva; parte deta é sub- Jjetiva, Hé uma confusio persistente entre a assergao de que deveriamos fentar, tanto quanto possivel, eliminar da busca da verdade preconceitos subjetivos pessoais e a assergaio de que 0 mundo real nao contém elementos que sejam irredutivelmente subjetivos. E esta confusto, por sua vez, é baseada numa confusdo entre o sentido episte- mol6gico da distinga0 subjetivofobjetivo © 0 sentido ontol6gico. Epistemicamente, a distingao discrimina dife- rentes graus de independéncia de assergSes em relagio aos caprichos de valores especiais, preconceitos pessoais, pontos de vista e emogdes. Ontologicamente, a distingo determina categorias diferentes de realidade empirica (mais sobre essas distingdes no capitulo 4), Epistemi- camente, o ideal de objetividade expressa uma meta que vale a pena, mesmo se inalcangvel. Fm termos ontoldgi- cos, porém, a assergdo de que toda a realidade € objetiva , neurobiologicamente falando, simplesmente falsa. Em geral, os estados mentais t8m uma ontologia irredutivel- mente subjetiva, como teremos ocasio de examinar de modo mais detalhado mais adiante. . Se estou certo em pensar que consciéncia e subjetivi- dade so essenciais para a mente, entio a concepeaio do ‘mental empregada pela tradigo é mal concebicla desde 0 0 QUE HA DE ERRADO COM A FILOSOFIA DA MENTE 33 inicio, ja que se trata, essencialmente, de uma concepgio objetiva, de terceira pessoa. A tradigdo tenta estudar a mente como se esta consistisse em fenémenos neutros, independentes de consciéncia © subjetividade. Tal enfo- ‘que, porém, deixa de fora as caracteristicas cruciais que distinguem 0s fendmenos mentais dos ndo-mentais. E isto, mais que qualquer outra tazao, explica a implausibi- lidade das concepgies que mencionei 110 inicio. Se, por exemplo, voce tentartratar erengas como fendmenos que niio tém conexio essencial com a conscincia, entio € provével’que acabe adotando a idéia de que elas possam ser definidas unicamente em termos de comportamento externo (behaviorismo), ou em termos de relagdeside cau- sa’e efeito (funcionalismo), ou de que elas realmente no existam de modo algum (materialismo eliminativo), ou {que 0 debate sobre crengas ¢ desejos deva ser apenas in- terpretado como uma determinada maneita de falar (a ati- tude intencional). 0 absurdo méximo tentar tratar a pr6= pria consciéneia independentemente da consciéncia, isto 6, traté-la unicamente a parti de um ponto de vista de ter- ceira pessoa, ¢ isto leva & concepgdio de que a consciéncia como tal, como eventos fenoménicos “intemos” dos” , nao existe realmente. Algumas vezes a tensio entre a metodologia € © absurdo dos resultados torna-se visivel, Na literatura re~ cente, hé uma disputa sobre algo chamado qualia © ‘supde-se que 0 problema seja: “pode o funcionalismo ex- plicar os qualia?”. O que 2 controvérsia revela € que a mente consiste em dltima andlise, por assim dizer, em ‘qualia, © fancionalismo nfo pode explicar os qualia por- que foi concebido em torno de um problema diferente, & 34 A REDESCOBERTA DA MENTE saber, atribuigies de intencionalidade baseadas em testemu- nhos de terecira pessoa, 20 passo que 0s fenémenos mentais efetivos nio tém nada a ver com atibuigdes, mas sim com a existéncia de estados mentais conscientes e inconscientes, ambos fentémenos subjetivos, de primeira pessoa 3. Porque é wm erro supor que a ontologia do mental E objetiva, é um erro supor que a metodologia de uma cién- cia da mente sé deva ocupar-se de comportamento objeti~ vamente observdvel. Porque os fenémenos mentais e: essencialmente relacionados & consciéneia, e porque a consciéncia é essencialmente subjetiva, segue-se que a ontologia do mental é cssencialmente uma ontologia de primeira pessoa, Os estados mentais so sempre estados mentais de alguém. HA sempre uma “primeira pessoa”, um “eu”, que tem esses estados mentais, A conseqiiéncia disso para a presente discussdo € que o ponto de vista de primeira pessoa é primeiro. Na pratica efetiva de investi ‘gagdo, estudaremos, € claro, outras pessoas, simplesmen- ‘te porque a maior parte de nossa pesquisa nio € sobre nés ‘mesmos, Mas € importante enfatizar que 0 que estamos tentando atingir ao estudarmos outras pessoas € precisa- ‘mente o ponto de vista de primeira pessoa. Quando estu- damos ele ou ela, 0 que estamos estudando € o ew que & ele ou ela, E esta nao é uma questio epistémica. Levando em consideragdo as distingSes entre ontolo- gia, epistemologia e causagdo, se alguém tivesse que re- sumir a crise da tradigdo em um pardgrafo, seria este: A ontologia subjetivista do mental parece intolerd- vel. Parece metafisicamente intolerdvel que devesse haver centidades “privadas”, irredutivelmente subjetivas, no mun- 0 QUE HA DE ERKADO COM A FILOSOFIA DA MENTE 35 do, ¢ epistemologicamente intolerdvel que devesse haver tuma assimetria entre 0 modo como cada homem ou mu- Iher conhece os seus fendmenos mentais internos eo modo ‘como as pessoas de fora os conhecem. A crise produz. um afastamento da subjetividade, e a nova diregdo assumida ‘consiste em reescrever a ontologia em termos da episte- mologia e da eausacdo, Primeiro, desfazemo-nos da, sub- |tividade pela redefinigdo da ontologia em termos de tercei ra pessoa, da base epistémica, do comportamento. Dizemos “Estados mentais so apenas disposigSes para compor- tamento” (behaviorismo), ¢ quando a absurdidade disso tomna-se insuportivel recortemos & causagio, Dizemos, “Os cestados mentais so definidos por suas relagGes caustis (funcionalismo), ou “Os estados mentais sio estados com- cionais” (IA forte). ie Pree aig adie, faumente em mish opin, que no estudo da mente somos forgados a escolher entre “introspecedio” ¢ “‘comportamento™. Hé diversos erros envolvidos nisto, entre eles: 4, E um erro supor que sabemos da existéncia dos {fendmenos mentais em ouiras pessoas somente pela ob- servacdo de seu comportamento. Creio que a “solugio tradicional para o “problema de outras mentes”, ainda que {if venha nos ocupando ha séculos, no sobreviverd sequer ‘a.um momento de reflexao séria, Terei mais a dizer sobre ‘essas questées posteriormente (no capitulo 3), mas, por fora, somente isto: se voc’ pensar por um momento sobre como sabemos que cies € gatos sto conscientes, ¢ que computadores e carros nao sfo conscientes (¢, a propésito, nfo hi diividas de que vocé e eu sabemos dessas coisas), 36 A REDESCOBERTA DA MENTE veré que a base de nossa certeza nao é 0 “comporta- mento”, mas antes uma determinada concepgao causal de como 0 mundo funciona. Qualquer um pode ver que cies € gatos so, em certos aspectos importantes, relevante- mente semelhantes a nés. Aqueles so 05 olhos, isto é a Pele, estas so as orelhas etc. O “comportamento” so- ‘mente faz, sentido como a expresso ou manifestagdo de uma realidade mental subjacente, porque podemos perce- ber a base causal do mental e, desse modo, perceber 0 comportamento como uma manifestagao do mental. O principio a partir do qual “resolvemos” 0 problema de utras mentes, como demonstrarei, no é: mesmo-com- Portamento-portanto-mesmos-fendmenos-mentais. Este & © velho erro cultuado no teste de Turing, Se esse-princfpio estivesse correto, todos terfamos que concluir que os ridios so conscientes porque exibem comportamento verbal inteligente. Mas nao tiramos qualquer conclusio desse tipo, porque temos uma “teoria”” sobre como os radios funcionam. O prinefpio a partir do qual “resolve- mos © problema de outras mentes”” é: mesmas-causas- mesmos-efeitos ¢ causas-relevantemente-similares-efei- tos-relevantemente-similares, Naquilo que diz respeito a0 conhecimento de outras mentes, 0 comportamento sozi- ‘nho néio tem interesse para ns; 6 antes a combinacdo do conportamento com o conhecimento dos sustentaculos cau sais do comportamento que forma a base de nosso conhe- cimento, Contudo, mesmo o precedente parece-me fazer con- cessdes demais & tradicao, porque sugere que nossa atitu- de bisica em relagdo a cds, gatos, rédios ¢ outras pessoas € epistémica; sugere que, em nossos procedimentos did- 7 0 QUEHA DE ERRADO COM A FILOSOFIA DA MENTE ios com o mundo, estamos ocupados “solucionando 0 pro~ blema de outras mentes”, € que cles € gatos esto passa: do no teste e radios e carros fracassando. Mas esta suges- testé errada, Exceto em casos excepeionais, no sol “onamos o problema de outras mentes, pois ele no apa Nossas capacidades de Background para lidar com 0 smitem Jidar com pessoas de uma maneira & )os uma reek ‘mundo nos pet m le com carros de outra, mas, além disso, nilo criam hipétese no sentido de que essa pessoa seja consciente © aquele carro no seja consciente, exceto em casos ineo~ muns, Terei mais a°dizer sobre isto mais adiante (nos capitulos 3c 8). FFevidente que, nas cigncias, as quest realmente aparecem, mas as questdes epist® : mais fundamentas, para a compreensio da natureza 2 ‘mente do que para o entendimento da natureza dos fend- menos estudados em qualquer outra disciplina. Por que Geveriam ser? Hé questdes epistémicas interessantes S0- bre o conhecimento do passado em histéria, ou sobre 0 conhecimento de entidades ndo-observadas em fisica ‘Mas a pergunta: “Como se pode verificar a existéncia dos fenémenos?” ndo deveria ser confundida com a pergunta “Quail 6 a natureza dos fendmenos cuja existencia € veri ficada?” A questio crucial no € “Sob que condigSes airibuirfamos estados mentais @ outras pessoas?””, mas ‘O que € que as pessoas eferivamente t€m quando 0 que sao fendmenos mentais”, es, ¢ como eles i@ncias, as questées epistémicas micas nao sao antes tém estados mentais?” e nio “Como tomamos conhecimento del funcionam eausalmente na vida do organismo' m= Nio quero que este ponto seja mal compreencido: nfo estou afirmando que é fécil decifrar os estados men- 38 AREDESCOBERTA DA MeWTE hs a hl tne ge speci com anes as | 4 questo. Penso. € imensamente dificil estudar fendmenos mentais, ae ico gul para a metodologia é o universal — use qualquer Eamenis ama gue ela maa cso ce ferment ou ama qu futcones A ace apresentando aqui é diferente: i ie et no dete sa Seog mae epistemologia de qualquer outra dis qualquer outro lugar, todo 0 problema d: : i aleangar a ontologia preexistente, 3 anes 5. Comportamien Portamento nda sao fendmenos mentais. Acredito mentais com o comportament. mo ou relacdes causais para com- fundamentais para a existéncia de ue a relagao dos estacos ment to € puramente contingente, E fécil perceber isto quando consideramos como é Baie vel ter estados mentais sem 0 comportamento.¢ 9s ck feo Portumento sem estados menais (dare alguns exernpicn 2 intl 3). Causelmene, sabemes que os rection ais so suficientes para qual e eta 1 qualquer estado mental, ¢ ue a lizagto entre esses processos cerebrais e 4 sisterns nery 0101 ai ‘oso motor € uma conexao neurofisiolégica contin. gente como qualquer outra, 6. E incompattvel com o universo e nosso lugar nel eee oie rer le supor que tudo & conhecivet » como tal, sio simp] eG ce omo tal, iplesmente ‘mais desenvolvidos numa série completa de caminhos 0 QUE HA DE ERRADO COM FILOSOFIA DA MENTE. 39 evolutivos que inclui os cérebros de edes, babuinos, golfi- hos etc. Ora, ninguém supe, por exemplo, que 0s cies possam ser levados a compreender a mecénica quantica; © cérebro do cio simplesmente no é desenvolvido aquele rau, E € fic imaginar um ser que, ao longo da mesma progressdo evolutiva, seja mais deseavolvido do que nés, ue esteja para nés aproximadamente como estamos para os cies. Da mesma forma como achamos que os ces niio podem compreender mecnica quantica, assim este pro- duto evolutive imaginario concluiria que, embora os, seres huimanos possam entender mecénica quantica, ha muita coisa que eérebro humano ndo pode compreen- der. E uma boa idéia perguntarmos a nds mesmos: quem pensumos que somos? ao menos parte da resposta & que somos animais biol6gicos selecionados por enfrentar am- bientes de caga e extrativismo, e que, até onde sabemos, rio tivemos nenhuma alteraglo significativa em nosso conjunto de genes por vérios milhares de anos. Felizmente (ou infelizmente), a natureza é prédiga, ¢ exatamente como cada macho produz esperma suficiente para repovoar a Terma, assim também temos muito mais neurSnios do que precisamos para uma existéncia de caga e extrativismo. Acredito que o fenémeno do excesso de neurdnios ~ em oposigao, digamos, ao dos polegares opostos - & a chave para compreender como saimos da caga-extrativismo © produzimos filosofia, ciéncia, tecnologia, neuroses, publi- cidade ete. Mas no deveriamos nunca esquecer quem somos; e, por sermos como somos, é um erro admitir que tudo o que existe & compreensivel aos nossos cérebros. E claro que metodologicamente temos de agir como se pudéssemos entender tudo, porque nfo ha nenhuma ma- neira de conhecer o que ndo podemos: para saber os limi 0 AREDESCOBERTA DA MENTE {fs do conhecimento, terfamos de conheeer os dois lados lo limite. Dessa forma, a onisciéncia potencial é aceitivel como um artificio heuristico, mas seria auto-enganagai supé-la um fato. i sre, Hat do mais, sabemos que muitos seres em nossa ‘Lae t€m estruturas neurofisiolégicas diferentes 0 bas ante da s ralmente Pak ROSSA Para que nos possam ser iteralmente ‘Me-conhectveis quais realmente sejam as experigneias lesses seres, Discutirei um exemplo disto no capitulo 3 7.A concepedo cartesiana do fsico, a concepcio da realidade fisica como “res extensa”, 6 simplesmemne di afirmagées sobre a realidade fisica. Quando chegamos 4 DroposigZo de que a realidade éfisica, chegamos ao que é talver. ponto crucial de toda a discussio. Quando canst. deramos 0 “fisico”, consideramos talver coisas con ‘moléculas € étomos e particulas subatémicas. E conside. ramos que sejam fisicas num sentido de que sfo opostas a0 mental, © que coisas como sensagdes de softimento so mentais. E, se somos educadios em nossa cultura, tar bén considers que sss das cateaoras evn aoe {ar tudo 0 que existe. Mas a pobreza dessas categorias toma-se aparente tio logo vocé passa a pensar scbre oe diferentes tipos de objetos que o mundo contém, isto & ‘Wo logo vocé comega a pensar sobre os fatos que comes. Pondem a diversas espécies de afirmacces empiricas. As. sim, se vocé pensar sobre problemas de balanga de paga, mento, sentengasndo-grumaticais, azdes pun smpeges a I6gica modal, minha habilidade para esquiar, o rover. no do estado da Calif6mia, e tentos marcados em joes de futebol, estaré menos inclinado a pensar que tudo deve 0 QUE HA DE ERRADO COM A FILOSOFIA DA MENTE 41 ser categorizado ou como mental ou como fisico. Da lista que forneci, quais itens so mentais € quais sao fisicos? Hé pelo menos trés coisas erradas com nossa concep- iio tradicional de que a realidade € fisica. Primeiro, como “observei, a terminologia & esquematizada em tomo de uma falsa oposigao entre 0 “fisieo” € 0 “mental”, e, como {i afirme, isto é um erro. Em segundo lugar, se conside- ramos 0 fisico em termos cartesianos como res extensa, nto ¢ ultrapassado, mesmo como uma questao de fisica, supor que a tealidade fisica seja fisica segundo essa defi- nigdo, Desde a teoria'da relatividade, passamos a conside= rar, por exemplo, elétrons como pontos de massa/energia, Assim, na definig&o cartesiana de “fisico”, 05 elétroné nao seriam incluidos como fisicos. Em terceito lugar, ¢ mais importante para nossa presente discussfo, € um erro muito profundo supor que a questo crucial para a ontologia seja: “Que espécies de coisas existem no mundo?” em oposigo a: “Quais devem ser as eircunstincias no mundo para que nossas afirmagGes empiricas sejam verdadeiras?”. Noam Chomsky disse uma vez. (durante uma conver- sa) que, to logo passamos a compreender qualquer coisa, classificamo-la como “fisica”, Sob esse ponto de vista, tri- vialmente, qualquer coisa é ou fisica ou ininteligivel. Se consideramos a constituigdo do mundo, entdo logicamen- te tudo nele é feito de particulas, € as particulas estio entre nossos paradigmas do fisico. B, se formos chamar de fisica qualquer coisa que € constitufda de particulas fisicas, entfo, trivialmente, tudo no mundo ¢ fisico. Mas dizer isto ndo é negar que o mundo contenha tentos mar= cados em jogos de futebol, taxas de juros, governos © sofrimentos. Tudo isso tem sua propria maneira de existir ~ atlética, econémica, politica, mental ete, AREDESCOBERTA DA MENTE A conelusio € esta: uma vez que vocé se dé conta da incoeréncia do dualismo, vocé também pode ver que 0 mo- nnismo ¢ 0 materialismo esto igualmente errados. Os dua- listas perguntaram: “Quantos tipos de coisas e proprieda- des existem?”, e contaram dois. Os monistas, confrontan- do-se com a mesma questio, chegaram somente até um. Mas 0 erro verdadeiro foi realmente comegar a contar, Mo- hismo e materialismo sdo definidos em termos de dualis- ‘mo e mentalismo, ¢ j4 que as definigées de dualismo mentalismo so incoerentes, 0 monismo e o materialismo +herdaram essa incoeréncia. E comum considerar o dual ‘mo como tendo duas versbes: dualismo de substincias ¢ dualismo de propriedades; mas a estas quero adicionar uma terceira, que chamarei de “dualismo de conceitos”” Esta concepgao consiste em considerar os conceitos dua. listas muito seriamente, isto €, consiste no ponto de vista de que, em algum sentido relevante, “fisico” implica mental”, e “mental” implica “nio-fisico” Tanto o dua- lismo tradicional quanto o materialismo pressupSem o dualismo conceitual definido dessa forma, Introduzo es definiedo para tomar claro por que me parece melhor Considerar o maierialismo como realmente uma forma de duatismo. E esta forma de dualismo que comeca pela acei- tagdo das categorias cartesianas. Creio que, se vocé tomar essas categorias seriamente — as categorias de menital ¢ fisico, mente e corpo -, como um dualista coeremte, aca- bard por ver-se compelido ao materialismo. O materialis- ‘mo €, portanto, em certo sentido, a mais fina flor do dua lismo, ¢ volto-me agora para uma discussao de suas di culdades e sua histéria recente. CAPITULO 2 0 AHISTORIA RECENTEDO MATERIALISMO: A REPETICAO DO MESMO ERRO 1.0 mistério do materialismo ipde significar exatamente a doutrina co- ” odia pensar que nnhecida como “materialism”? Alguém podia pensar q O que se suy consistiria na concepgio de que a microestrutura do mun- do seja inteiramente constitu de particuls materia A difculdade, porém, € que a coneepso ¢ coerents 69m praticamente qualquer filosofia da mente, exceto, tlvez> 0 ponto de vista artesiano de que, além das pares P= sicas, hd amas ou substncias mentais “imaterias’ ent dadesespirituais que sobreviver 3 destruigfo de nossos corpse vivem na imortalidade, Atualmente, por, SH onde posso ver, ninguém acredita na existincia de syPs> tanciasespiritaisimorais, a no ser no terreno reli gio= so. Pelo que conhego, niio ha ee eg soficas ou cientificas para a aceil xi Sash mess ones Asi ean de indo posi renga, mtivaa pela religio, cm alms ne ais, pemanece a questo: exatamente 0 que se “4 A REDESCOBERTA DA MENTE nificar © materialismo na filosofia da mente? A que con- Cepgdes se supde que se oponha’? Se alguém 16 os primeiros trabalhos de nossos con- femporiineos que se intitulam materialistas — J. J.C. Smart (1965), U. T. Place (1956) e D. Armstrong (1968), por exemplo -, parece claro que, quando eles declaram a iden. tidade do mental com o fisico, esto afirmando algo mais do que simplesmente a rejeigao do dualismo de substan. clas cartesiano, Parece-me que querem negar a existéncia de quaisquer fendmenos mentais irreduttveis no mundo, Bles querem negar que haja quaisquer propriedades feno. menol6gicas irredutiveis,tais como consciéncia, ou qua- fia. Ora, por que sio tig ansiosos por rejeitar a existencia de fendmenos mentais intrinsecos inedutfveis? Por que ‘io reconhecem simplesmente que essas propriedades Propriedades bioldgicas ordingrias de nivel superior de sistemas neurofisiolégicos como os cérebros humanos? Penso que a resposta a isso ¢ extremamente comple Xa, mas ao menos parte da resposta tem relago com o fato de que eles aceitam as categorias cartesianas tradi. Cionais e, juntamente com as categorias, 0 consequente vocabulério com suas implicagdes, Acredito que, a partir desse ponto de vista, accitar a existéncia e irredutibilida de dos fendmenos mentais seria equivalente a admitir algum tipo de cartesianismo. Nos termos deles, seria um “dualismo de propriedades”, e nfo um “dualismo de subs. ‘ancias”, mas, a partir de seu ponto de vista, o dualismo de propriedades seria exatamente tao incompativet'tom © materialismo quanto o duatismo de substincias. A esta altura, ficard bvio que sou contrério as pressuposigges Por tris de sua concepezo, Aquilo em que quero insistir 45 A HISTORIA RECENTE DO MATERIALISMO incessantemente € que podemos aceitar os sen ae da fisiea— por exerplo, que o umndo ¢ consti int ramente de particu fisicas em campos de fora — sem a0 mesmo tempo, negar 0s fatos Gbvios de nossas Ea expetiéncias ~ por exemplo, que somos todos eae e que ossosesados consents fm propredades feno- menogiasirredteis bastante expecta. O ero ¢ s- por qu esss dus tse si ncornpates cal er deriva da acitgo das pressuposies cisimuladas plo vora bali radio, Minka coneepso, enfacamente € uma forma de dualismo. Rejelto tanto o dualisio de propriedades qun‘o ode substcis; mas, juan p= las rares pas quis ei o dualism, rif igualmery te 0 materialismo e o monismo. O erro profundo é supor ave devamesescoler cme ens COnCegSeS. Ea incapacidade de perceber a coeréncia ne lsmo ingénuo com fisicalsme ingénvo que leva Aque- les debates bastante confusos na histra primitva desse tema, nos ais 0 autores tetam encontrar um voeabu Msi “topco-neuro” ov evitar algo que designam por "penurbadores nomoligics” (Smart, 1968). Not que ninguém considera que, digamos, a digestéo tenha doe ser desoria num voeabulério “topico-neutro”. Nin- quem sente o impulso de dizer: “ha algo peo em tim que se parece com o que acontece quando eu digro uum pizza”, Embora as pessoas realmente sintam o im Pulso de dizer: "ha algoacontecendo em mim que sepa Fece com o que acontece quando vejo uma laranja’ impulso ¢ tentar encontrar uma deserigo dos aa que nfo vse o voeabulfrio mentaliico, Mas qual a fine lidade de se fazer isso? Os fatos permanecem os mesmos 46 A REDESCOBERTA DA MENTE O fato € que os fendmenos mentais tém propriedad mentalisticas, da mesma forma como 0 que acontece a meu estOmago tem propriedades digestivas. Nio noe livramos dessas propriedades simplesmente encontrando um vocabulério alternativo. Os filésofos: esl escjam rejeitar a existéncia de propriedades mentais sem negar a realidade de alguns fendmenos que funda. Mentem 0 uso de nosso vocabuldrio mentalistico. Dessa forma, eles t8m que achar um vocabulirio alternative para desreverosfendmenos. Em minha opinise pene tudo isso & perda de tempo. Deverfamos simplesmente ‘admitir, em primeiro lugar, os fenémenos mentais (e por. oo isicos), da mesma maneira como admitimos ae 1nomenos digestivox no estomago, - Neste capitulo quero examinar, bem resumidamente a histéria do materialismo durante o ultimo meio an Creio que esta histéria apresenta um padrio bastante con, fuso, mas muito revelador, de argumentagao e conn argumentado, que se tem verficado na filosofia da meng desde o Positivismo dos anos 30. Esse ‘padrao nem semy zl € visivel na superficie. Nem é mesmo visfvel na men ue as mesmas questdes estejam sendo discutidas. Mas fereito que, contariamente&8 aparéncias superfciis, fee realmente um tema principal de discuss na filoso- mente nos tltimos cinglienta anos, mais ou menos, ¢ este tema é o problema mente-corpo. Muitas vezes, 7 fil6sofos parecem discutir outa coisa qualquer - a andlise da crenga ou a natureza da conscigncia, por exemplo mas quase invariavelmente fica claro que eles nao esta realmente interessados nas caracteristicas: especiais ie renga ou da conscigncia, Nao estio interessados em A HISTORIA RECENTE DO MATERIALISMO 47 como o fato de ter uma crenga difere do fato de fazer uma suposigo ou propor uma hip6tese, mas, antes, querem tes- lar suas certezas sobre o problema mente-corpo contra 0 exemplo da crenca. © mesmo acontece com a conscién- cia; hd, surpreendentemente, pouca discussio sobre a consciéneia como tal; antes, os materialistas véem a cons- ciéncia com um “problema” especial para a teorial mate~ rialista da mente. Isto é, querem encontrar uma maneira de “manipulic” a consciéncia, dado seu materialismo*, (0 padrao que essas discusses quase invariavelmen- te parecem adotar é o seguinte, Um fildsofo desenvolve tuma teoria materialista da mente. Faz. isso a partir da as~ sungio arraigada de que alguma versio da teoria mate rialista da mente deva ser a correta ~ afinal, no sabe- mos, através das descobertas da ciéncia, que niio ha nada no universo além de partfculas fisicas ¢ campos de forga aagindo sobre as particulas fisicas? E, sem divida, deve ser possivel apresentar uma descrigao dos seres humanos de um modo que seja consistente e coerente com nossa explicagao da natureza em geral. B, com certeza, no de- corre dai que nossa explicagao dos seres humanos deva ser um materialismo consumado? Dessa forma, o fil6so- fo planeja dar uma explicagio materialista da mente. Ele, cntdo, enfrenta dificuldades. Parece sempre que esté dei- xando algo de fora. © padrdo geral de discussio é que as criticas da teoria materialista geralmente tomam uma forma mais ou menos técnica, mas, na realidade, por tris, das objegdes técnicas esté uma objegdo muito mais pro- funda, e essa objecao mais profunda pode ser colocada de forma bastante simples: a teoria em questao deixou de Jado a mente; excluiu alguma caracteristica essencial da 48 ‘A REDESCOBERTA DA MENTE ‘mente, tal como consciéncia, qualia ou contetido seman. P seleabeete eae repetidamente. Uma tese mate- 2 ae i eke ‘Mas a tese encontra dificuldades; d ie tomam formas diferentes, mas sio sem- co . ee. Subjacente mais. Sbvios por todos nos conheidon see as meas extemos parapet co tee nati te lcfender os argumentos apresentados por aqueles que insistem em preservar os fatos. Depois de alguns fina manobras desesperadas para explicar a razao das if a dades, apresenta-se algum novo desenvolvimento qu pretensamente resolve as dificuldades, mas entiio ce : ie que ele enfrenta novas dificuldades, s6 que a nie alae novas — so, na verdade, as mesmas velhas Se refletissemos sobre a filosofia da mente nos tlti- ‘mos cingiienta anos como um tnico individuo, nian que tal pessoa é um neurético compulsivo, 2 jue neurose assume a forma de reper d mesmo pan de Su eaa diversas vezes. Segundo minha ane scl ume no oe rca forum aa IAG ban tebe seat leo en que esto sendo cometidos. A refutagdo direta simples. mente conduz a uma repetigao do puro de compare, mento neurético. O que temos que fazer, em ae lugar, € ir atrés dos sintomas e encontrar as assuncdes« inconscientes que resultaram no comportamento. Dep i de varios anos discutindo esses temas, estou hoje ae vencido de que, com muito poucas excecdes, tados os A HISTORIA RECENTE DO MATERIALISM 49 grupos envolvidos na discussio dos temas correntes na filosofia da mente sto eseravos de um determinado con- junto de categorias verbais. Eles sdo prisioneiros de uma determinada terminologia, uma terminologia que reeua pelo menos até Descartes, se nfo antes, ¢, para superar 0 comportamento compulsivo, teremos que examinar 2 rigens inconscientes das discussdes. Teremos quie tentar por a descoberto © que € aquilo que todos esto dando por certo para estimular a controvérsia e manté-la viva. ‘Nao desejaria que meu uso de uma analogia terapeu- tica fosse visto como insinuagao de um endosso geral de modes psicanaliticos de interpretagao de temas intelec- tuais, Assim, vamos modificar a metéfora terapéutica da seguinte maneira: quero sugerir que meu empretndimen- {0 atual € um pouco parecido com aquele de um antrops- Jogo ocupado em descrever 0 comportamento exético de uma tribo distante. A tribo tem um conjunto de padrdes dle comportamento ¢ uma metafisica que devemos tentar revelar ¢ entender. E facil cagoar das momices da tribo Ue fil6sofos da mente, e devo confessar que nem sempre {ui capaz de resistir a essa tentagdo, Mas de inicio, pelo ‘menos, devo insistir em que a tribo somos nds — somos ‘0s posstiidores das assungGes metafisicas que tornam possivel 0 comportamento da tribo. Desta forma, antes {que efetivamente apresente uma andlise e uma critica do comportamento da tribo, quero apresentar uma idéia que deverfamos todos considerar aceitével, porque a idéia é realmente parte de nossa cultura cientffica contempora- hea. E, ainda assim, mais tarde afirmarei que a idéia € incoerente; trata-se, apenas, de mais um sintoma do mes- ‘mo quadro neurético. 50 4 REDESCOBERTA DA MENTE Aqui esté a idéia, Acreditamos que a pergunta a se- {guir deve fazer sentido: como é posstvel particulas nfio- inteligentes de matétia produzirem inteligéncia? Como é ossivel que as particulas ndo-inteligentes de matéria em nossos cérebros produzam o comportamento inteligente €m que nés todos nos engajamos? Ora, isto nos parece configurar uma pergunta perfeitamente inteligivel. Na verdade, parece um projeto de pesquisa muito valioso, e de fato € um projeto de pesquisa amplamente persegui- do’ e incidentalmente muito bem fundado, Porque consideramos a pergunta inteligivel, conside- ramos a seguinte resposta plausivel: particulas ndo-inteli- gentes de matéria padem produzir inteligéncia por causa de sua organizacao. As particulas néo-inteligentes de ma- {ria estio organizadas em determinadas formas dindmi- cas, ¢ €a organizacao dinamica que € constitutiva da inte- ligéncia. De fato, é perfeitamente possivel reproduzit arti ficialmente a forma de organizagao dindmica que tora Possivel ainteligéncia. A estrutura subjacente dessa orga- nizagdo € chamada de “computador”, 0 projeto de progra- magao de um computador € chamado de “inteligéncia artificial”; e, quando em operacdo, o computador produz inteligéncia porque esté executando o programa de com- Putador correto com os comretos inputs e outputs: Ora, essa hist6ria nfio soa ao menos plausivel a voce? Devo confessar que se pode fazer com que soe bastante plausivel a mim, ¢ na verdade penso que, se no parece znem sequer remotamente plausfvel a voe@, é provavel que ‘Voc® nio seja um membro completamente socializado de fossa cultura intelectual contempordnea. Mais adiante mostrarei que tanto a pergunta quanto a resposta sio A HISTORIA RECENTE DO MATERIALISHO 51 incoerentes. Quando apresentamos a pergunta ¢ damos a resposta nesses termos, realmente nfo temos a mais vaga isin daquilo que estamos falando, Mas apresento est exemplo aqui porque quero que ele parega natural, na verdade promissor, enquanto projeto de pesquisa. ‘Afirmei, poucos pardgrafos atrés, que a histéria do materialismo filos6fido no século XX exibe um padrio curioso, um padrao no qual ha uma tensfo recorrente entre, por um lado, 0 fmpeto materialista de dar uma explicagdo dos fendmenos mentais que no faz. nenhuma referéncia a qualquer coisa intrinseca ou irredutivelmente mental, €, por outro, a condigao intelectual geral com que cada investigador depara de nao afirmar qualquer coisa que seja obviamente falsa, Para permitir que esse'padra0 se mostre a si mesmo, quero agora apresentar um esboco bastante conciso, da forma mais neutra e objetiva que pu- der, do padrao de teses e respostas que os materialistas, personificaram, © objetivo do que se segue € fomecer cevidéncia para as assergies feitas no capitulo | através de ilustrages concretas das tendéncias que identifiquei.. II, Behaviorismo No inicio era o behaviorismo. O behaviorismo apre- sentou-se em duas variedades: “behaviorismo metodol6- gico” e “behaviorismo légico”. O behaviorismo metodo- logico & uma estratégia de pesquisa em psicologia, no sentido de que uma ciéneia da psicologia deva consistir em descobrir as correlagSes entre inputs de estimulos & ‘outputs comportamentais (Watson, 1925). Uma ciéncia lenhuma referéncia [ua rt itens ist i ee ages! l6gico vai ainda um degrau além e réncia, exceto na medida em que existam na forma de comportamento. De acordo com o behaviorismo 164 ies 6 uma questo de definigao, uma questo de ania er, ‘¢a, que os termos mentais possam ser definidos em S mos de comportamento, que afirmagdes sobre a ae Possam ser traduzidas, sem nenhum residuo, em afirm: : g0es sobre o comportamento (Hempel, 1949; Rj a 1949), Deacondocom o behaviorsmolosico, mutase pais Padrdes de comportamento ocorrentes, a as, om disses pr 0 copra, Ain "gundo uma exposigdo behaviorista padrdo, dizer que John |acha que vai chover é simplesmente dizer que John estard inclinado a fechar as janelas, guardar os apetr : chos de jardim e levar um guarda-chuva se sair & a N 5 modo material de discurso, o behaviorismo ‘sustenta 5 a comportamento. No modo formal de discurso, consiste nha concepcdo de que afirmagées sobre fendmenos men. tais podem ser traduzidas em afirmagdes sobre cor tamento possivel e real. i As objegées ao behaviorismo podem ser divididait em dois tipos: objegGes de senso comum e objecdes mais. oh Menos técnicas. Uma objecio de senso comum Obvia €a de que o behaviorista parece deixar de lado os fen6- A HISTORIA RECENTE DO MATERIALISMO- menos mentais em questilo, Nao fica nada para a expe- rigncia subjetiva do pensar ou do sentir na explicagio be- haviorista; existem apenas padres de comportamento objetivamente observavel. Diversas objegdes mais ou menos téenicas foram feitas ao behaviorismo légico. Primeiro, os behavioristas nunca conseguiram tomar a nogao de uma “ evento de dor.xé idéntico ao evento neurofisiol6gico y "AHISTORIA RECENTE DO MATERIALISMO 7 Compreendemos tal afirmagio porque entendemos que 0 mesmo ¢ tinico evento foi identificado em virtude dde duas espécies diferentes de propriedades, proprieda- ddes de dor e propriedades neurofisiolégicas. Se assim for, porém, entdo parece que estamos diante de um dile- rma; ou as caracteristicas de dor sio caracteristicas intros- pectivas, meftais, subjetivas, ou nfo sio, Ora, se sto, dat Gecorre que no nos livramos realmente da mente, Conti- uuamos ainda com uma forma de dualismo, se bem que ‘um dualismo de propriedades, e nfio de substincias. Continuamos com conjuntos de propriedades mentais, ainda que nos tenhamos livrado de substincias mentais. Se, por outro lado, tentamos tratar a “dor” como se no designasse uma caracteristica mental subjetiva de deter- rinados eventos neurofisiolgicos, entao seu significado toma-se totalmente misterioso e inexplicado, Assim como ocorreu com 0 behaviorismo, deixamos de lado @ mente, pois nido temos como especificar essas caracterfsticas ‘mentais subjetivas de nossas experiénc Espero que esteja claro que isso é apenas uma repe- tigdo da objegao de senso comum ao behaviorismo. Nesse caso, n6s a colocamos na forma de um dilema: ou a espé cie de materialismo da identidade deixa de lado a mente, ou nfo deixa; se deixa, ¢ falsa; se nfio deixa, no é mate- rialismo. (0s teéricos da identidade australianos pensavam ter uma resposta a essa objegio. A resposta era tentar des- ‘crever as supostas caracteristicas mentais através de um vocabulirio “tépico-neutro”. A idéia era obter uma des- ctigo das earacteristicas mentais que no mencionasse © fato de que eram mentais (Smart, 1965). Isto pode certa- 58 ‘A REDESCOBERTA DA MENTE mente ser feito: podemos nos referir adores sem mencio- nar 0 fato de que sto dores, exatamente da mesma forma que podemos nos referir a avides sem mencionar o fato de que sio aviges. Isto é, podemos nos referir a um aviao dizendo: “Uma determinada poreio do patriménio per- tencente aos Estados Unidos”, e podemos nos referir a uma persistente imagem amarelo-laranja dizendo: “Um determinado evento ocorrendo em mim que 6 como o evento que acontece em mim quando vejo uma laranja.” Mas o fato de que alguém possa referir-se a um fenéme- no sem especificar suas caracteristicas essenciais nao significa que ele nao exista e nao tenha aquelas caracte- tisticas essenciais. F, ainda, uma dor ou uma imagem Persistente, ou um avido, mesmo que nossas descrigdes deixem de mencionar esses fatos, Outra objegdo mais “técnica” & teoria de idemtidade era esta: parece improvaivel que para cada tipo de estado mental haja um e somente um tipo de estado neurofisio- 6gico ao qual seja idéntico. Mesmo que minha crenga de que Denver é a capital do Colorado seja idéntica a um determinado estado de meu cérebro, parece ser demais esperar que todo 0 mundo que acredita que Denver é a capital do Colorado deva ter uma configurago neurofi- siol6gica idéntica em seu eérebro (Block e Fodor, 1972; Putnam, 1967). E através das espécies, mesmo que seja verdadeiro que em todos os seres humanos as dores sao idénticas a eventos neurofisiolégicos humanos, no pre- cisamos excluir a possibilidade de que, em-algumas outras espécies, pudesse haver cores que fossem idénti- cas a algum outro tipo de configuragdo neurotisiolégica, Parece, em resumo, demais esperar que cada tipo de est A HISTORIA RECENTE DO MATERIALISMO 59 dlo mental seja idémtico « algum tipo de estado neurofi- siol6gico. B, de fato, parece uma espécie de “chauvinis- mo neurdnico” (Block, 1978) supor que somente entida- des com neurénios, como nés préprios, possam ter estados S Castarcoka objeeio “técnica” a teoria de identida- de derive da lei de Leibniz. Se dois eventos s6 sfo idénti- cos se tiverem todas as suas propriedades em comum, entio parece que estaddos mentais no podem ser identi 95 a estados fisicos, porque estados mentais t&m defer- ‘minds propriedades que estados fisicos nao t€m (Smart, 1965: Shaffer, 1961). Por exemplo, minha dor esta no meu dedo do pé, mas meu estado neurofisiolégico cor- respondente percore toda a extenso do dédo do pé até 0 {élamo, e vai além, Assim, onde esté a dor, realmente? s te6ricos da identidade nao tiveram muita dificuldade com esta objegfo. Bles salientaram que a unidade de and- lise € realmente a experiéncia de ter dor, € que a expe- rigncia Guntamente com a experiéncia da imagem inte- gral do corpo) presumivelmente tem lugar no sistema nervoso central (Smart, 1965). Neste ponto, parece-me «que 05 materialistas estio absolutamente certos Uma objegdo técnica mais radical a teoria da identi- dade foi apresentada por Saul Kripke (1971) com 0 seguinte argumento modal: se fosse realmente verdadei- Fo que a dor é id€ntica & excitago da fibra Cento esta {eria que ser uma verdade necesséria, da mesma forma due a afirmagao de identidade “o calor € idéntico 20 movimento das moléculas” € uma verdade necesssria. Isto porque, em ambos os casos, as expressdes de cada lado do enunciado de identidade sdo “designadores rigi- 0. A REDESCOBERTA DA MENTE dos”, Com isto ele quer dizer que cada expressio identi fica o objeto a que se refere em termos de suas propric- dades essenciais. Essa sensago de dor que tenho agora é essencialmente uma sensagao de dor porque qualquer coi- a idéntica a essa sensagio teria que ser uma dor, ¢ este estado cerebral é essencialmente um estado cerebral por- ue qualquer coisa idéntica a ele teria de ser um estado cerebral. Assim, parece que o te6rico da identidade que declara que dores sio determinados tipos de estados cerebrais, € que esta dor especifica é idéntica a este esta- do cerebral especifico, seria forgado a considerar tanto que € uma verdade necesséria que, em geral, as dores so estados cerebrais quanto que € uma verdade necesséria ue esta dor especifica é um estado cerebral. Mas nenhu- ma dessas altemnativas parece correta. Nao parece certo afirmar quer que as dores em geral sejam necessariamente estados cerebrais, ou que minha dor atual & necessaria- mente um estado cerebral: porque parece ficil imaginar que alguma espécie de ser pudesse ter estados cerebrais Como esses sem ter dotes, ¢ dores como essas sem estar nesses tipos de estados cerebrais. E até possivel conceber ‘uma situago na qual eu tivesse exatamente essa mesma dor sem ter esse mesmo estado cerebral, e na qual eu tives- se exatamente esse mesmo estado cerebral sem ter dor. O debate sobre & forga desse argumento modal con- tinuou por alguns anos, e ainda persiste (Lycan, 1971, 1987; Sher, 1977). Do ponto de vista de nossos presentes interesses, quero chamar a atengo para 0 fato de quese- trata essencialmente da objegdo de senso comum em rou- Pagem sofisticada. A objecdo de senso comum a qual- ‘quer teoria de identidade é a de que voce nao pode iden- A HISTORIA RECENTE DO MATERIALISMO 61 tificar qualquer coisa mental com qualquer coisa no-men- tal, sem deixar de lado o mental. Segundo 0 argumento ‘modal de Kripke, a identificagao de estados mentais com estados fisicos teria que ser necesséria, e, nfo obstante, no pode ser ncessra, porque omental no podria set necessariamente fisico. Como diz Kripke, citando Butler Tudo é 0 que é, e nifo uma autra coisa, ‘ si comets tide quncquel tipo de estado mental éidéntico a algum tipo de estado neurofisiolégico parecia realmente forte demais. Contudo, parece qus 2 motvago filos6feasubjacente do materalismo poderia ser preservada com uma tese muito mais fraca, a tese de que, para cada exemplo ocorréncia de um estado ce haverd algum evento neurofisiol6gico acoréncia a0 qu ‘esse exemplo ocorréncia seja idéntico. Essas concepedes cram chamadas “teorias de identidade ocorréncia-ocor- réncia”, e logo substituiram as teorias de identidade tipo- tipo. Alguns autores realmente achavam que uma teoria dle identidade ocorréncia-ocorréncia pudesse escapar & foorca dos argumentos modais de Kripke’ IV, Teorias de idemidade ocorréncia-ocorréncia (Os tesricos da identidade ocorréneia herdaram @ obje~ gio de senso comum as teorias de identidade tip, objeg0 de que eas anda pareciam cones alguma forma de da lismo de propriedades; mas eles tinham algumas dificul- dades adicionais pr6prias. “ Uma delas era a seguinte. Se duas pessoas que esto ‘no mesmo estado mental esto em estados neurofisiols- a AREDESCOBERTA DA MENTE sicos diferentes eno o que i com esses estados neuro fsiolégieos diferentes que os coloca no mesmo estado mental? Se tanto voc quanto eu acreditamos que Denve1 € a capital do Colorado, entio o que € que temos em siolégicas a mesma crenga? Note-se que 0s teéric a identidade ocorneia nto podem dara esa pergunla a resposia de senso comin eles no podem afimar que 0 due toma dois eventos neroisildyicos 0 mesmo ipo de evento mental é que eles tém o mesmo tipo de ee teristicas mentais, porque era precisamente a eliminacao cu redugio dessas caracteristoas mentais que o materia, lismo buscava atingir. Eles tém que encontrar coe resposta nlo-mentalistica &pergunts: “O que hi com lois estados neurofisioldgicos diferentes que os transfor- ma em ocorrEncias do mesmo tipo de estado mental” ada toda a tradigo dentro da qual estavam trabalhan do, nica respons plausivel sé poeria dase em estilo behaviorist, Sua resposia foi que um estado neurofisio- gico era um estado mental particular em virtude de sua fungao,¢ isto leva naturalmente a pr6xima concepsao. V. Puncionalismo caiva-preta O que toma dois estados neurofisiolégicos ocorrén. cias do mesmo tipo de estado mental € 0 fato de dese penharem a mesma fungo na vida aldo orgasim A nogaio de uma fungdo é um tanto vaga, mas os iced deta ocrénsic nua mai cope dan, neira seguinte. Duas ocorréncias de estado cerebral dife- | }HSTORIA RECENTE DO MATERIALISMO 6 rentes seriam ocorréncias do mesmo tipo de estado mnen- {al sse 08 dois estados cerebrais tivessem as mesmas rela~ ‘gbes causais com os estimulos de input que 0 organismo fecebe, com seuis diversos outros estados “mentais” © com seu comportamento de output correspondente (Lewis, 1072; Grice, 1975). Dessa forma, por exemplo, minha trenca de que esté para chover seré, em mim, um estado fcausado pela minha percepgao davconeentractio de nu- ens ¢ do aumento das trovoadas; e, juntamente com meu escio de que a chuva nao entre pelas janelas, essa pet- ‘eepeio, conseqiientemente, faré.com que eu as fethe..No- {e-se que, ao identificar estados mentais em termos de fiyas relagSes causais — no apenas com estimulos de Jnpute comportamentos de output correspondents, mas também com outros estados mentais -, os tedricos da Jdentidade ocorréncia imediatamente evitavam duas obje~ ges ao behaviorismo. Uma delas era a de que o behavio- Fismo tinha negligenciado as relagdes causais dos esta dos mentais e, de acordo com a segunda, havia uma cit- Jularidade no behaviorismo, no sentido de que as crengas Ainham que ser analisadas em termos de desejos, © estes jon termos de ctengas. Os te6ricos da identidade ocorrén- fea da linha funcionalista podem aceitar essa circularida~ ide de bom grado, argumentando que todo o sistema de teonceitos pode ser convertido em termos do sistema de elagdes causais. ‘0 funcionalismo tinha um belo artificio téenico atra- ‘yés do qual tornava esse sistema de relagdes completa mente claro sem invocar quaisquer “entidades mentais Iisteriosas”, Esse artifieio é chamado de “sentenga de Rumsey”, e funciona da seguinte maneira: suponhamos ‘A REDESCOBERTA DA MENTE que John tem a crenga de que p, e que esta é causada por sua percepedio de que p; e, juntamente com seu desejo de que q, a crenga de que p causa sua ago a. Porque esta- mos definindo crengas em termos de suas relagées cat is, podemos eliminar o uso explcito da palavra “cren ga” na frase anterior, € simplesmente dizer que hé um algo que toma parte em tais c tais relagdes causais, Fa- lando formalmente, 0 modo como eliminamos a meng explica de cenga consists simplesmente na cola de uma varisvel, “x”, no lugar de qualquer expresstio que se refira & crenca de John de que p; e fazemos preceder de um quantificador existencial toda a sentena (Lew: 1972), Toda a hist6ria sobre a crenga de John de que ode entio ser contada da seguinte maneira: * (Bx) ohn tem x & é causado pela percepyao de que p & x Juntamente com um desejo de que q causa a acao a) Além disso, supde-se que as sentengas de Ramsey se livram da ocorncia de termos psicol6gicos remanes- centes, como. “‘desejo" e “percepeao”. Uma vez que as sentengas de Ramsey sejam compreendidas desse modo, resulta que o funcionalismo tem a vantagem crucial de mostrar que ndo hi nada de especialmente mental nos estados ments. Falar de estados ments € simplesmen- te falar de um conjunto neutro de relagdes causais: ¢ 0 aparente “chauvinismo" das teorias de identidade tipo- tipo —isto€, 6 chauvinismo de supor que somente sist ‘mas com cérebros como os nossos possam ter estados rentais—6 endo evitado por essa concepg0 muito mais liberal”. Todo e qualquer sistema, no importa do que | HISTORIA RECENTE DO MATERIALISMO 65 fosse constituido, poderia ter estados mentais, contanto (que tivesse as relagbes causais corretas entre seus inputs seu funcionamento interno ¢ seus outputs. O funcionalis- mno dessa variedade nfo diz nada sobre como a crenga opera para ter as relagdes causais que tem. Simplesmen- {o, trata a mente como uma espécie de caixa-preta na qual ‘essas diversas relagdes causais ocorrem e, por éste moti- ‘yo, € as vezes rotulado de “funcionalismo caixa-preta’ "As objegdes ao Funcionalismo caixa-preta exibiram a mesma mistura das objegGes de senso comum € téeni- eas que vimos antes, A objegdo de senso comum era d:de que o funcionalismo parece deixar de lado a sensagao subjetiva qualitativa de pelo menos alguns de nossos es- {ados mentais, Hé determinadas experiéneias qualitativas hem espeefficas envolvidas no ato de ver um objeto ver- metho ou ter uma dor nas costas, ¢ simplesmente descre- ver essas experiéncias em termos de suas relagGes cau sais deixa de lado esses qualia especiais. Uma prova disto foi oferecida da seguinte maneira: suponhamos que ‘uma parte da populagio tivesse seus espectros de cores invertidos de tal maneira que, por exemplo, a experiéncia que eles designam por “ver vermelho” fosse chamada de “ver verde” por uma pessoa normal; e o que eles desig nam por “ver verde” fosse chamada de “ver vermelho” por uma pessoa normal (Block e Fodor, 1972). Ora . po- demos supor que esta “inversto de espectro” seja inteira- mente niflo-detectavel por quaisquer dos testes usuais de discernimento de cores, jé que 0 grupo anormal fiz exa- tamente as mesmas discriminagdes de cores em resposta fa exatamente os mesmos estfmulos tal como o resto da populagao. Quando instadas a colocar os lipis vermelhos 66 A REDESCOBERTA Da MENTE numa pilha ¢ os lépis verdes em outra, essas pessoas fa- zem exatamente o que o resto de n6s_farfamos; parece diferente para elas em seu interior, mas niio hd como detec- tar esta diferenga a partir do exterior. Ora, se essa possibilidade ¢ até mesmo inteligivel para nds ~ e seguramente é -, entéo o funcionalismo cai- Xa-preta deve estar errado em supor que as relagées cau sais especificadas de forma neutra sejam suficientes para explicar fendmenos mentais; isto porque tais especifica- goes deixam de lado uma caracteristica crucial de muitos fendmenos mentais, ou seja, sua sensagdo qualitativa, Uma objeco angloga cra a de que uma populagéo enorme, digamos toda a populagio da China, podia com- Portar-se de forma a imitar a organizacio funcional de lum eérebro humano, fazendo-o a ponto de ter as relagdes de estimulos e respostas corretas ¢ padriio correto de relagdes de causa-e-efeito intemas. Mesimo assim, po- +m, o sistema ainda ndo perceberia coisa alguma como um sistema. Toda a populagao da China nao sentiria uma dor somente imitando a organizagio funcional apropria- daa dor (Block, 1978), Outra objegdo mais técnica ao funcionalismo caixa- Preta remetia & parte da “caixa-preta”: 0 funcionalismo definido dessa forma falhava em expor em termos mate- riais 0 que hd, nos diferentes estados fisicos, que fornece aos fenémenos materiais diferentes as mesmas relagées causais. Como ocorre que essas estruturas fisicas tio diferentes sejam causalmente equivalentes? A HISTORIA RECENTE DO MATERIALISMO Vi. Inteligéncia artificial forte’ Neste ponto ocorteu um dos mais empolgantes avangos de toda a hstria de dis mi anos do materials mo. A cigneia da inteligéncia artificial em desenvo! Inentofornece uma resposta a esa questo: estruturas Imateriais diferentes podem ser mentalmente equivalen- tes se forem exeougSes em méquinas diferentes do mesmo programa-de computador. De fat, dad esta res posta, podemos ver que a mente relimente € um progra- ma de computador, ¢ 0 ebro € apenas uma deni a ilimitada série de hardwares de computador (ou “wena res")? que podem ter uma mente. A mente és par o cérebro como 0 programa esté para o hardware (John- son-Laird, 1988). A inteligéncia artificial e o funciona- lismo fundiram-se, ¢ um dos aspectos mais chocantes desta unio foi a constatagao de que alguém pode ser um materalista consumado em relacdo & mente e ainda aere- Aitar, com Descartes, que na verdad o eérebro nfo tem importincia para mente, Porque a mente € um progra- ‘a de computador, e porque um programa pode ser e catado em todo qualquer equipamento (contanto que 0 esuipamento sea poente«estvel 0 bastante par exe- cutar 08 pasos do programs), os aspects espeifica: Inente ments da mente podem se espcificados, ext dads e entendidos sem o conliecimento de como 0 eére- ar mao i pa geo ein ps ru a ohare space om poe ae ane de las “emer emi ago como “nes Un dose elertciao neo nds” om que eae cue sib. N60) A REDESCOBERTA DA Mewre fe ‘materialista, voo8 niio pre- ua oe&rebro para estudara mente, es copnitvg sit 222 subi a nova discipina da “eigncia captlos 7,9 i adie sobre exta mis diane aos © 10); a esta altura, estou ay i estou apenas registran- do a historia recente do materialismo. Tanto a dieu da imteligéncia antifi oe a teoria filoséfica do fun- mputador. Batizei esta con. atficial forte" (Searle, 1980a) dle “funcionalismo de compu, © la também foi chamada tador” (Dennett, 1978), As objegoes quanto na fraca, so nume- Tosas e complexas, Na Plexas. N20 tentarei resumi-las. Em gera m computador, A objegio de ser a mente quit#te de senso comum 414 forte era simples- Tada ate 2 modelo computacional da mente deixava de caracterfsticas cruciais da mente, tais como cons. | HISTORIA RECENTE DO MATERIALISMO 69 ciéneia e intencionalidade. Creio que o argumento mais conhecido contra a IA forte foi meu argumento da sala chinesa (Searle, 1980a), que demonstrava que um siste- ‘ma podia definir um programa de modo a fomecer uma simulagio perfeita de alguma capacidade cognitiva huma- na, como-a capacidade de entender chinés, mesmo que esse sistema ndo tivesse absolutamente nenhuma com- preensao do chinés. Basta imaginar que alguém que nao ‘entende nada dé chinés seja trancado numa sala com uma oreo de simbolos chineses e um programa de computa- dor para responder perguntas em chinés. O input para 0 sistema consiste em sfmbolos chineses em forma de per- guntas; 0 output do sistema consiste em sfmbolos chine- ses em resposta as perguntas. Podiamos spor que, de tao bom o programa, as respostas &s perguntas fossem indis- daquelas de alguém que tivesse o chinés por lingua matemna. Mas, nao obstante, nem a pessoa que est dentro da sala nem nenhuma outra parte do sistema en tende literalmente chinés; e, porque 0 computador pro- gramado ndo tem nada que esse sistema no tenha, 0 computador programado, como computador, também nao entende chinés. Porque o programa € puramente for- mal ou sintético, e porque mentes tém contetidos mentais ‘ow seméinticos, qualquer tentativa de produzir uma mente apenas com programas de computador deixa de lado as caracteristicas essenciais da mente. Além do behaviorismo, das teorias de identidade tipo, tworias de identidade ocorréncia, funcionalismo e IA for- c, houve outras teorias na filosofia da mente dentro da tradigdo materialista geral, Uma destas, que remonta a0 inicio da década de 1960, no trabalho de Paul Feyera- 0 AREDESCOBERTA DA MENTE bend (1963) e Richard Rorty (1965), foi recentemente revivida em diferentes formas por autores como P. M. Churchland (1981) e S. Stich (1983). F.a concepeo de que os estados mentais no existem de modo algum. cepgfio € chamada de “materialismo eliminativo”, ¢ para ele que me volto agora. VIL. Materialismo eliminativo sua verstio mais sofisticada, o materialismo eli minativo argumenta como segue: nossas crengas de sen- so comum sobre a mente constituem uma espécie de teoria primitiva, uma “psicologia popular”. Mas, como ocorre com qualquer teoria, as entidades postuladas pela teoria podem ser justificadas somente na medida em que a teo- ria seja verdadeira. Assim como o malogro da teoria da combustio do flogisto eliminou qualquer justificativa ara se acreditar na existéncia do flogisto, assim o fra- asso da psicologia popular elimina o fundamento l6gico das entidades da psicologia popular, Assim, se resulta que a psicologia popular é falsa, entdo ndo terfamos jus- lificativa para acreditar na existéncia de crengas, desejos, esperancas, medos etc, De acordo com os materialistas climinativos, parece muito provavel que a psicologia po- pular terminaré por mostrar-se falsa. Parece provavel que uma “ciéneia cognitiva madura” viré demonstrar que a maioria de nossas crengas de senso comum sobre estados mentais sio completamente injustificadas. Esta conclu- sio teria a conseqiiéncia de que as entidades que sempre supusemos existir, nossas entidades mentais ordindrias, n || HISTORIA RECENTE DO MATERIALISMO fem na verdade. E, portanto/ finalmente temos smente elimina a mente. iio exis uma teoria da mente que simples n Dai a expressio “materialismo eliminativo’ ‘Um argumento paralelo, utilizado em favor do “ma- tio surpreendente- OE SSE {erialismo eliminativo”, pare = jenteruim que temo ng estar compreendendo-o bem. Ta fielmente quanto sou capaz de expor, af vai ele tivéssemos uma cineia perfeita da neu: ia teoria que real- oa se amo o cco balks, Taleo 0° Jn 6 a premissa. Aqui esté a conclusde: Portanto, as entidades aparentemente especificadas pelas expresses da psicologi popular, por erengas esPe- fants, medos, desejosete.,na verdade nio existe. 41 ver realmente o quo ruim € esse argumento, basta piyginarmos um argumento paralelo da fisica: ‘A REDESCOBERTA DA MENTE 108 aqui uma teoria que e» ‘ cara: eee fisicos populares correntes : taco de golfe”, “raquete de té1 is ica. Na fisica teéric aod ead u tedrica para nenhuma dessas expresses, ¢ redt f ae tipo brando desses.fenémenos niio sio pos si ores rete do modo como nos sea popular odin fica a realidade. cans Portanto, casas de campo de vétios pisos, raquetes de ténis, tacos de golfe, de tis, econ do gfe, caminbonets Chevrolet etc. ra Nao encontrei esse erro disci is sin lg, so ingsmen Gaen i sobre a premissa obviamente falsa de que, | qualquer teoria empirica e correspondente tax ce no ser que haj ai Eee eae ea poe Tee o entidads de teorias superiores da cignca Ds ens fo exe, Se voc fom sigur st uc ene angie $e ampere cando-a a qualquer coisa que Vé a0 seu redor — ou a voce uer coisa que ve 20 aa ce "A HISTORIA RECENTE DO MATERIALISHO B Com o materialismo eliminativo, wma vez mals, encontamos 0 mesmo padrio de objeydes téenicas ¢ de cco comum ue verificamos anteriormente. As obje- bes técnicas tém a ver com o fato de que 2 psicologia Popular, se é uma teoria, nfo é, contudo, um projeto de pesquisa. Nao é, em si, um campo rival da pesak cien- vrca, e, na verdade, os.thaterialistas eliminativos °° ance a psicologia popular, segundo seus eriticas, 0 fquase sempre injustos. De acordo com seus defensores, tim das contas a psicologia popular nfo é uma teoria tho ruim; muitos de seus-prineipios centrais so bastante passivels de mostrar-se verdadeiros. A obje¢49 de senso Pemum ao materialismo climitiativo é, simplesmente, de que parece ser Joven, Parece loueuraafirmar ane 0° eet sede ou desejo, que nunca tive uma don ique thunea tive realmente tha crenga, ou que minhas erengs ‘ desejos nfo desempenhiam nenhum papel em mec portamento, Ao contrério das teorias materalisins ante- Fores, o materialismo eliminativo nem deixa @ mente rote de lado; ele nega, de inicio, a existéncia de qual- quer coisa que se possa deixar de lado. Quand confton- Fidos com a objego de que o materialismo eliminsli'® parece insensato demais para merecer um éxAme sério, os defensores quase invariavelmente Tecorrern 20 6 tratugema da era-herbica-da-ciéncia (P. S: Churchland, 1987), Isto é eles declaram que renunciar & erensa de que temos crenga € anélogo a abundonar& crengas nun terra plana ov em pores-do-Sol, por exemple ‘Vale a pena salientar, em toda esta discussio, que cama determnada assimetria paradoxal surgiu na histéria flo materialismo. As teorias de identidade tipo-tipo ante- " AREDESCOBERTA DA MEWrE riores argumentavam que mentais cartesianos ¢ mist cram nada mais que es tados fisicos); e defen que se poderia mostr riam idénticos a tipo: Podfamos nos livrar de estados teriosos porque tais estados nao tados fisicos (nada “além de” es- diam isto com base na assungiio de far que tipos de estados mentais 8 de estados fisic uma correspondéncia entre as assergdes ie ce meses noes convenconas om dre No caso do mo eliminativ. ese considera -as0 do materialismo eliminativo, o q consid desses estados mentais se- Os materialistas mais recentes a oisas como fendmenos mentais idénticos a estados cerebrais, bastante esclarecedor, ¢ 0 que livrar-se dos fenomenos mentai Considero esse exemplo le revela € uma nsia de is aqualquer custo. VII. Naturatizando 0 contetido Depois de meio século desse racdrak debates sobre 0 mater ‘ialismo, Lsuineeee alguém podia supor que os | HISTORIA RECENTE DO MATERIALISMO 5 Estrategicamente, a idéia € desvincular 0 problema da consciéneia do problema da intencionalidade. Talvez, ‘alguém poderia admitir, a consciéncia seja irredutivel- mente mentale, portanto, no sujeita a tratamento cienti- fico, mas pode ser que a consciéncia nao tenha muita importineia, de qualquer maneira, ¢ possamos sobreviver sem ela, Precisamos apenas naturalizar a infencionalida- de, sendo que “naturalizar a intencionalidade” significa explicé-la totalmente em termos de — reduzi-ta a —fend- menos fisicos, ndo-mentais. O funcionalismo foi uma dessas tentativas de naturalizar 0 contctido intencional, © tem sido revitalizado através de sua associagdo a teorias ‘causais externalistas de referéneia. A idéia por trés de tais concepgbes € a de que 0 contetido semyintico, isto €, significados, nfo podem estar inteiramente nas nossas, cabegas porque o que hi em nossas cabecas é insuficien- te para determinar como a linguagem se relaciona com a realidade. Além do que hé em nossas cabecas, 0 “conted- do restrito”, precisamos de um conjunto de relagbes cau- sais fisicas reais com os objetos do mundo, precisamos do “contetido amplo”. Estas concepgdes foram original- mente desenvolvidas em torno de questdes de filosofia da linguagem (Putnam, 1975b), mas é facil ver como se estendem a contetidos mentais em geral. Se 0 significado dda sentenga “a égua € timida” nao pode ser explicado em termos do que esté dentro das cabecas daqueles que falam © portugués, entio a crenga de que a égua é timida tam- bém nao 6, exclusivamente, uma questo daquilo que est ‘em suas cabecas. Idealmente, seria prefertvel uma expli- io do contexido intencional formulada exclusivamente cem termos de relagbes causais entre pessoas, por um lado, c objetos ¢ estados de coisas no mundo, por outro. AREDESCOBERTA DA MENTE on ke adversério da tentativa causal extenalista de izar 0 contetdo, e, acredito, uma explicacto aind menos plausfvel, 6a idéia de que os contetidos imtencio. hais podem ser individualizados por sua fun ies ica, biol6gica, darwiniana. Por exemplo, meus desejos terdo um contetido com referéncia a égua ou aliments oe trabalharem para ajudar-me a obter égua as ae ou alimento do prs sat nenhuma tentativa de naturalizar o conte rete Zin uma explicacio (andlise, redugdo) do con- 0 intencional que seja mesmo remotamente plausi vel. Considere a mais simples espécie de crenga, Ps exemple, acredito que Flsbent fr um ronsnelen er ae ste Balzac Ora, com que se pareceria uma andlise uele contetido, formulada em termos de causacio fy. 1 bruta ou da selegio natural darwiniana, sem usar nenhum termo mental? Nao deveria ser surpresa sane ninguém o fato de que essas tentativas sequer chentene ser postas em agao, as Mais uma vez, io teleol6- tais concepgdes naturalizadas do Contetido estao sujeitas tanto a objecdes técnicas qui 8 obees de senso comum. O mas famoso toe her TORT ices talver sein a questo da disiungao (Fodor, ). Se um determinado conceito € causado por ume determinada espé sterminada espécie de objeto, ento como explicamos Os casos dle identidade equivocada? Se “cavalo” é causado Few iay 108 Ot por vacas que sejam erroneamente enti ee Gome Cavalos, entio teremos que afirmar que a anilise de “cavalo” & disjunti , sjuntiva, que significa ou cavi ou determinadas espécies de vacas? aa | HISTORIA RECENTE DO MATERIALISMO n Enquanto escrevo isto, explicagdes naturalisticas (externalistas, causais) do contetido estio em plena voga. Todas elas fracassario por razSes que, espero, agora sejam 6bvias. Deixarao de lado a subjetividade do con- tetido mental. Por meio de objegGes técnicas haverd con- Ira-exemplos, como.os casos de disjunedo, € os contra- exemplos serao recebidos com artificios — relagdes no- molégicas € contrafactuais, ou coisa que 0 valha, eu poderia predizer ~ mas o méximo que vocé poderia espe- rar dos artificios, mesmo que fossem bem-sucedidos em. bloquear os contra-exemplos, seria um paralelismo entre o resultado do artificio e intuigdes sobre 0 contesido men- tal. Ainda assim, vooé nao atingiria a esséncia do conted- do mental. Nio sei se alguém jé formulou a dbvia objecio de senso comum ao projeto de naturalizar o contetido inten- cional, mas, a partir da discuss toda, espero que fique claro qual serd ela, No caso de ninguém ter ainda formu- Jado esta objego, aqui vai ela: qualquer tentativa de reduzir a intencionalidade a algo niio-mental sempre fra- cassard por deixar de lado a intencionalidade. Suponha, por exemplo, que voc8 concebeu uma perfeita explica- fo externalista causal da crenga de que a 4gua € dimida. Esta explicagao é dada pela exposigao de um conjunto de relagdes causais no qual um sistema representa a éguae a midade, ¢ essas relagdes so inteiramente especificadas sem nenhum componente mental. O problema sbvio: um sistema poderia ter todas essas relagdes e, ainda as- sim, no admitir que a 4gua é imida, Esta € apenas uma cextenstio do argumento da sala chinesa, mas a moral para a qual chama a atengio é geral: vocé no pode reduzir 0 8 AREDESCOBERTA DA MENTE contetido intencional (ou dores, ou qualia) a algo dife- rente, porque, se pudesse, seriam uma outra coisa, e nao sito uma outra coisa. O oposto do meu ponto de vista é ©xposto muito sucintamente por Fodor: “Se a contigtda: cle € real, tem que ser realmente uma outra coisa” (1087, P. 97), Pelo contrério, a contigiidade (ie, intencionali, dade) 6 real, e ni € algo diferente Um sintoma de que algo estéradicalmente errado com © Projeto 6 o fato de as nogdes intencionais serem ineren. femente normativas. Elas estabelecem padres de verda. de, racionalidade, consisténcia etc., e nio ha forma de esses padres poderem ser intrinsecos a um sistema que consista inteiramente de relagdes causais ndo-intencio. nais, cegas, brutas. Nao hé componente normativo para a causago da bola de bilhar. As tentativas biol6gicas dar. \inlanas de naturalizar 0 contetido tentam escupar a esse Problema apelando para o que eles supdem seja o carfter hormativo e increntemente teleolégico da evolugdo bio. lgica. Mas isto é um erro muito grave. Nao hf nadla de normativo ou teleolégico na evolugao darwiniana, Na verdade, a principal contribuigo de Darwin foi prec mente eliminar 0 propésito e a teleologia da evolugdo ¢ colocar em seu lugar formas de selegto puramente natu. tals, A exposigdo de Darwin demonstra que a aparente {eleologia dos processos biolégicos é uma ilusto, E uma simples extensio desse discernimento salien- {ar que nogdes como “propésito” nunca sao intrinsecas a organismos biol6gicos (a nao ser que, logicamente, estes roprios organismos tenham estados e processos inten. cionais conscientes). E mesmo nogdes como “Fungo bio. égica” slo sempre tomadas relativas a um observador 9 AMISTORIA RECENTE DO MATERIALISMO 8 frocessos causais. e atribui um valor normativo aos fr z Nato hé diferenga factual no coragde que corresponda & diferenga entre dizer: 1, © coragiio causa o bombeamento do sanguc. edizer 2..A fungi do coragao € bombear sangue. Mas 2 atribui um status normativo aos fatos causais, i 0, € causa de nosso Paramentefisicos do coagio, ofa por causa de nosso interesse na reli det ato com todos s outros fates, omo nosso interes na sobrevivénca. Em resumo-os mecanismos darwinianos e até mesmo as fungdes bio vicas em si so inteframente desprovidos de propésito ou Picolosia ‘Todas as caracteristicas teleolégicas estao in- {eiramente na mente do observador".

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