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A teoria e a formacao do historiador Leditgime C4 ypurndepie> BD pronrcertar pumdorrnenTon > 1 Uma “disciplina” - Entendendo como funcionam os diversos campos de saber Ps coPias cot a. ‘y | Dados Internacionais de Cataloga¢io na Publicagio (CIP) (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Barros, José D'Assun¢do ‘Teoria da Histéria / José D’Assunglo Barros. — Petropolis, RI: Vozes, 2011. | Contetido : 1. Principios e conceitos | fundamentais Bibliografia ISBN 978-85-326-2465-9 ia ~ Filosofia 2. ~Teoria 1 | ro-12iat eDD-901 Indices para catélogo sistemstico: 1 ria 901 O ponto de partida de nossas reflexdes refere-se & pré- pria “cor itwigdo de um campo disciplinar”. Nao nos refe- riremos especificamente ao campo di linar da Histéria, ainda, mas a qualquer “campo disciplinar”'. O que significa falar de um certo conjunto de praticas, concepedes e obje~ tos de estudo como um campo especifico de conhecimento, ‘ou como uma “disciplina” (no sentido cientifico)? Nosso olhar aqui ~ independentemente de tratarmos da Historia ou da Geologia, da Quimica ou da Medicina, da Antropo- 1.0 conjunte de observacdes que desenvolveremas aqui sobre“campos dsipina- 61 Ou tauzoy op opnars o, tossazayut ap cidure> nae ap onus> ou #20[09 anb esuz!a © oWio9 epruyap 96 proKsp eae ua) e — opmsa ap sora(qo snas ap sundje sensu sesso woo egaied ‘owueyiod ‘onb 9 ~ wawopy op opmso 0 w18 ‘erBojodonuy & wo> turmuro> wo ura) anb “eLoNsIF ® uISsy “Way owxgid oF prea] sou anb 0 “apopeinynsuts ap od wind ‘eadosd ap -epnuap! woo eurjdiosip eu wre sey essod 25 anb exed ‘oiduias afans apepipunyoid ap aaj o120 wa anb ores wupquies 9 sew ‘(ouewiny 9 anb ojmnbep opmise oped , seu -suiny setuge, sepeusey> sep ass2zaqut 0 ‘ojdutoxa 10d) imaians ar SALT GPT BA alboaaee age -red seudiosip no setpugi> seuio9 anb 1911020 apog (esmbsod eum ‘oqz901 opxoyos euin anb op epute ste ‘eonpad etm toagon soe 0 wind ‘sopeyuasjua wia1as® soyesap ap no) sazueanexd snas soped sepisootod wiasas v seorpuiny ap 9 opmis9 ap soiefqo ap operfojatidsyeur oun(uo> umn pre“opor wn owoo odure> asso auyjap anb ofdure stews assoustuy um apsap rmput anb o “(1) ,s2ssere1 ap oda, 03139 wn 1od ‘epeu seus ap sayue “epympsuos > eundisip vpor :wmnuioa-re8n] awu9prAs wn ‘opour 01199 2p ‘9 anb offnbe sod souazeSaur0p ‘sooseutios -suen sayuestiog sens se quouTeate[es OUD tq ‘seonpzd 2 sa1oges ap seurdiostp odures wn ap orSeuuaye 9 ovimin JW & OwO> [ey ‘anb sazeur|diosip sodure> sop ose> aL (ez 008 ‘naraunoa) apep fos ens wa ouenb opSeavasaxdo ens we owe ein I cialGo 9 ajo Odie oes ‘nb sanbjenb,anb sodwe> sop eyoay ens wa enasa.re ‘ode ‘un epue sousiewors fend oe 592404 0601905 2002-0E61 -su0> eu Soprafoatia oF sa No wraafoatia anb soyvadse sosiaarp soe a1uaureaneyos OFXOyas essoU B PIEIUDEIO | OPEN O “<(6t ‘e002 ‘NaI. 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Os objetos da historia — isto é, 0 seu “campo de interesses” — em que pese que paregam coincidir em um primeiro momento com os objetos possiveis das demais ciéncias sociais e humanas, serdo sempre objetos “histo- remporalizados’, marcados por uma atengio a I if He a i | | uy | “Tmudanga em alguns de seus niveis. 3 it He PAL | Pode-se dar também que o centro de interesses de uma \ disciplina esteja situado em uma confluéncia, em uma co- | 4. Essa € a definigdo proposta por Marc Bloch em seu Ivo Apologia da Hist CONSTITUICAO DE UM CAMPO DISCIPLINAR | {60 homem se dS0 no tempo Mais tarde, a Hst6r | "estudo do passadoe seus objetes os temas que ‘esses acompanham esse movimento concentrando-se mais nos periodos que se Quadro 1. Constituigao de um campo disciplinar lestam ou se cstinguem do presente. Mas com os Annales € outros movimentos 4o século XX, ou mesmo com os fundamentos do Materasmo | ads do século IK fcard claro lencquecendo na dire de cons ‘aos bjetos que remetem a0"homem envolvid pela temporaldade” De rest, vale lemérartambém que ae Tan rasingularidade"importante da Historia enquanto campo refere-se ao seu necesito apoio er fonts tos ndcos que nos chegam das o- dest capitulo, estaremos entendendo como uma "mattzdscipinar do campo de ‘onhecimento em questio,eremetem aos principios com os quas esto de acordo todos oshistoriadores, fed “opeprfosuio> pf atuausqeuormynsut sazan 10d 2 opioajaqeiso pf oiuawst2a4yu09 op a1uerp zeuasaude as ap wa) ‘not 9 anb o yenb ep owrerp ‘opeprreudistpsaiur exryssasou 9 _suaqut eum ap 0138 OU SopoI 2s-0Ep ‘ages ap soduued sof 8 sonou so annua urasajaqeisa as wipqure anb apeparrepyios 2p soSe] $0 outoo wag ‘ean wss9 4 “ovsed un ap eDUgTede e anb oe ‘eum ap wugzede e odures cAou umn ap ciuaunf8ans ap ossoooud 0 anb sap aroped opti toc gipa tae pa NORE snas woo opuewuayua wiRA ef wipqUIE) steUOLIpeN stew seu pstp se anb seuiajqoud soxou 2 sofque ap wep eyays { os reuorysod as exed apepryeuatod a apeprede> v zensout ap ogesap 0 zewauo ap wae xeurdiosipsoyun eyed eum ~ © ura souaur ojad no ‘erromsay et ‘eappepsaA eum wa op upsur, psoa 98 aquawiaquanbay stenb seu ‘sop!oajaqeiso yf sod re uio> sean] seanp seWU2Kjua anap Joqes ap odure> onott Spor ‘sazaqes ap atuaisnc pf apax eum ap o1as ou aMMRsHOD 26 vsed ‘srewapy ‘artoureumiodo sowazeyoa fenb x orysonb appmmdonpan ws epegrioa pss wajdomp 7557 ) ‘soqueonesd sms so opt no wrextand ‘sexeur|drostpiaqut (5903. | b w “41 2p oduwe>, 0 wo> eiayp oySeb ens axapsuo> a¢ and wa “apepueInBuls, ys -tsodo 2) soBoqpip sod opmnnsuonas aquauiayueysu0d 2 opinsy -su09 efos opu anb seuydostp odures 9s umn apepraa eu aysexa ‘eu ‘opepauapt gp ay] 2 oorun zej o anb apepuemnsins eum ayuaureyad aquasoide saqes ap odures epeo exoquia :osioaut ‘ouaw9U2] 0 sepuayus ospaid pias ‘opueztrejog “,sareutydi> 10 & ogSefar tH aISe1IUIOD no oRSisodo sod , sip ® auyap anb opnbe :sezavyed seonod ‘ura ~ eupisixe ens e eogpsn{ anb 2 ‘eoyssodso ‘worm usu -[eax eusoy v anb opinbe owos no ‘sazopruyap sonourpied snas sop ortin{u09 0 ouroo eprpuaua ibe ‘(z) apypuirynSusg ‘ens e mnssod eurjdiosip epeo anb ap oy 0 exed euuode assip 2s anb op eierpaust epugnbasuon eum ‘auespe opumnsog -eroasty euidgad ens ap ra11009p ou sooSeutzoysuren ¥ ovfafns pasa wipqures ‘opmyso ap sora{qo ap sapepiriqissod 9 soiuauresqopsap snas soe arzyar 28 anb ou ayraunejnonied ‘euydrsip eum ap soonpusay sassoxaitt ap ovun(ui09 0 anb searasqo a1dumno pf apsap 2 ‘oyusureuny -10do soutareyjoa ovsanb essay “sassoxaiur ap eyaup steur e124s9 ens ap opty A219 oF opSefar WlOD sepLanp extap vu ‘owow opdosd nas wo sazan sod ‘onb euydiostp exo sanbyenb ap no “eugin ep eyosopy ep ‘jeuiag eUIDIpayy ep Nao € raro, alids, que um novo campo de saber surja a partir de certos desdobramentos de um campo di nar ja existente, ou que se desprenda desse campo origi- nal adquirindo identidade propria, ou mesmo que 0 novo campo disciplinar se forme a partir de elementos disper- 08 oriundos de varios outros campos. Podemos, a titulo ilustrativo, trazer o exemplo da Biologia. Essa expressio, que logo daria origem a designagéo desse campo de estu- dos hoje tao conhecido, foi cunhada em 1800 pelo médico alemao Karl Friedrich Burdach (1776-1847), e dois anos depois seu significado foi aperfeigoado e fixado pelo na- turalista alemao Gottfried Treviranus (SCHILLER, 1968: 64). Todavia, até fins do século XVIII,.a maior parte do “objetos de interesse” que hoje so especificos da Biologia, bem como certos aspectos que constituem hoje a sua gularidade”, estavam na verdade espalhados em outros campos de saber, tais como a Medicina ~ notadamente naquelas de suas especialidades que estudavam a “anato- mia” ¢ a “fis cada, is como os gedlogos, que procuravam inserir a ia dos seres vivos na Histéria da Terra, e 0s tedlogos, que se preocupavam em mostrar como a natureza estava perfeitamente ajustada a ideia (MAYR, 1998: 53). Treviranus (1776-1837) viu a necessi- dade de constituir um estudo unificado de todos os seres a da criagao divina » vivos (plantas e animais)’, e sua nova maneira de ver as coisas foi logo acompanhada pelo naturalista francés Jean- Baptiste de Lamarck (1744-1829). Pode-se dizer que, desde ento, aqueles elementos de estudo que hoje sio vistos como tipicamente “biol6gicos’, e que antes estavam a cargo de ou- tros campos de saber, comegaram a migrar para formar este novo campo disciplinar que hoje ¢ claramente definido como “Biologia”. Mas isto foi acontecendo aos poucos, no decorrer do século XIX (cf. MENDELSOHN, 1965), até que 0 novo campo disciplinar se visse perfeitamente consolidado*. Un Hanjeren DE VERS 7.48 vemos, mas adiante, que "tora precsamente uma maneita de ver cosas, e que, quando se estabelece um novo orizonte tebreo€possivel itera Tei exergar o mundo de oura manela. Com uma nova ora, pode-se dizer, passa mesmo Vver em um nove mundo? 1 Um sintoma interessant dessa gradual consoldacso da Biologia como compo “antes de seu estabelecimentodefinitvo, ¢ 0 fato de que, 20 longo do Se autoidenticar como bidlogos. € como “naturalist que se apresenta Darwin (1809-1882), trio malor do paradigma que hoe se colaca como para 2 Biologia, ov também 0 aturlista alemdo Est Haeckel (1834-1919), que {de outvos campos dsciplinarespreeistents, entre 054 terminaria por anexar a prépriaBotUnca como uma de suas modaidades intra iplinaes. Também anexou tum ramo da Medicina, que era a Anatomia, Nos cas de hoje, tal como a Zoologl, a Genética ou a Fisiologia, a Botinice ¢ a Anatomia a 4 eppuppuot essq -,eosB] ep eLgIstH & no rey PUOISIH “en “Hod PONSTEL B owoD ‘saxorsauE sojno9s sou ureNSTXO yf anb serino 2p ope] oF ‘senno sete 9 eLOASTEy-ONSNY EAI) uOISIE ‘eoruIQUODY BHIOWSIH] B OWOD sepepFEpoU sexoUIU ” wraBt10 optrep ‘XX opnoys op Bed & ,soousoisty sodureo,, ap oeSeoydnius vsourfniaa v ayuapiaa wag 9 “ELOISE ep ose ON “oonpid 9 TenDafauT oYfeqen op opsiatp ap atogdsa eum e souaut no swt epuodsesio9 anb euxayur opseztu80 ap odin ‘onno anbrenb no ,opSeonde ap sodure, staxjssod wa souau oe reqnzed 2s e eSouron opso eurgdostp zanbpenb — ayuerp 10d UUNSSe 2 “TeapNN kDIS}y “EOTLIPUIPOULIAT, “OAC “eTURDAWY WI apIAIpqns as anb woisyy v owio> ~ sooseaferodss sens epure ‘myuasaide opu zeuydiostp odure> umn ag azyp unsse 10d “(¢) sauvuydisipoasus sodures ~ sourayur sowusureqopsap 2 sagsez -qepadso se1a8 v eSouro> saqes ap odureo wpeo ‘apeprxa|dusos ap [Paju oua> zessedezyn no zaajoxuasap oF ‘anb [ey opis 119} apepmuiapou ep 2 coy‘ owrauTDeytOD op eLgIsTy v ab reypessax osppaid pres ‘reundosip odures sanbrenb ap ayuer82) Uy opsuaump vum steus sexapIsuod ered “wEny os1959) WI, 9z 3s-2pod \,jeuorssyord zopeuorsiy, op omne; ep a ‘opbepunyas wssap ansed y “91138 eISap 7 OA OU soUTaIIA 080] outo> i ‘sosiadstp sowouiaja opseiado essou sex0ds00 ‘sextap was (pognuap eyesBor SiBvanb za eu erga op eapinyeopuowuoexedepenbope uraq 128 aoared wlapr essa 9 op euL193 96 urapod suns 2 ou30 9p Hopuardsap as wwopod sun ‘saoaredesop soxjno 9‘aiBans wapod sodure> sonou :owuautaout ‘ou}9 um znpoud sareuy dsp sodureo so eazeqe anb oszoarun ‘ose ou segdeuiojsuen ap eoqumpurp y-apepiun eum ap aned ajuaurenqnu 2s-opussepeyiy os um seuLI03 exed wodnufe 28 sopezedss oqes ap sodure> stop anb epute 1311000 2pog e>Isn © 9 euPIpayy ¥ anus opxouo> wu “exsan8-soq op snzed v aBins = woisnur ep seonnadeaar sapeprrepuaiod se sexojdxo emooud anb seurdistp odures ~ edesoiomisnyy y ‘opauoosoyuy eum ‘ur soprenpord ayuowupeiay ops anb saxeurdissp sodurea w9q “Wel 9H ;aPepuENBus, eaou eu ‘onoU O8fe eUD ep mnred e ‘anb aye ‘opniso ap svaxp sezino ap assazaiuT ap sora(qo snas au -o2a1 anb 2 sosiadstp saque souauua ap smued v eutti0 as anb seundisrp odures ap ofduiaxa win 220110} sou eiBojorg Vy ao desdobramento interno e a crescente especializagio - que se apresenta como uma caracteristca de praticamente todos os “campos disciplinares” no perfodo contemporaneo — tem sido uum aspecto inerente & historia do conhecimento na civilizaglo ‘ocidental, sobretudo a partir da Modernidade, o que no im- pede que os efeitos mais criticéveis do hiperespecialismo sejam constantemente compensados pelos movimentos interdisci- plinares e transdisciplinares, voltados para uma “religacio dos saberes” em um mundo no qual os campos de produgao de co- mhecimento vivem a constante ameaca do isolamento”. Para além disso, trés aspectos fundamentais a serem con- siderados quando se fala na constitui¢ao de um “campo dis- ciplinar” relacionam-se ao fato de que nenhuma disciplina adquire sentido sem que desenvolvam ou ponhain em mo- vimento certas teorias, metodologias e praticas discursivas (4 6), Mesmo que tome emprestados conceitos ¢ aportes de outros campos de saber, q jd desenvolyidas por outras ou que se utilize de vocabuliio jé existente para dar forma a0 seu discurso, nao existe jina que no combine de ria, Método e Discurso. Bem entendido, ar ndo se desenvolve no sentido de pos- suir apenas uma tinica orientagao tebrica ou metodalégica, | 10, Para um exemplo sgnicativo, ca coletinea A religag dos soberes (MORIN, 2000, 28 { } ‘mesma maneira, o desenvolvimento de um campo discipli- nar acaba gerando uma lin poderdo se comunicar os seus tes ¢ leitores. Ha mesmo campos di gerando certo repertério de jargées, facilmente reconheci- do, mesmo externamente'', De todo modo, qualquer campo disciplinas, & medida que vai se constituindo, vai também se inscrevendo em certa modalidade de Discurso, por vezes, ‘com dialetos internos. £ por isso que nao é possivel a nin- ‘guém se transformar em legitimo praticante de determinado campo disciplinar, se o iniciante no novo campo de estudos no se avizinhar de todo um vocabulério que jé existe pre- viamente naquela Disciplina, e através do qual os seus pares se intercomunicam". A questio da Interdisciplinaridade (7) j4 nos referimos, € por ora nao mais aprofundaremos esse ponto sendo para chamar atengdo para o fato de que, ao se colocarem em contato interdisciplinar ou transdisciplinar, dois campos disciplinares podem enriquecer sensivelmente um a0 outro nos seus préprios modos de ver as coisas e a si mesmos. Particularmente a Hist6ria, no decorrer do século XX ¢ além, foi beneficiada por uma longa histéria de contribui- ‘$0es interdisciplinares as concep¢Ges e abordagens dos his- toriadores. A Geografia, a Antropologia, a Psicologia, a Lin- guistica estiveram fornecendo frequentemente conceitos e metodologias aos historiadores, e certos desenvolvimentos em ambitos como a Histéria Cultural ou a Historia das Mentalidades nao teriam sido possiveis, certamente, sem os ara modificar a propria maneira de ver as coisas neste ou naquele campo cientifico. Didlogos entre a Fisica e a Astro- nomia, ou entre a Quimica e a Fisica, nos oferecem alguns exemplos muito concretos de renovacéo”. Por fim, nao é obviamente possivel pensar uma sem admitir 0 seu lado de fora — uma zona de ite 13. Thomas Kuhn, em seu io esruturadasrevoludescleniicas (1962), a0 dscor- Fer sobre 0 atomismo quimica desenvolvido por Dalton, eé-nos conta dos“efetos ‘evoluciondiosresultantes da apicago da Quimica a um conjunto de questoes€ “tevelagao” (esta tltima correspondendo aquele “modo de co- § nhecimento” em que o mundo sobrenatural comunica algo { dirctamente, ¢ unilateralmente, aquele que recebe a palavra | ow o conhecimento revelado). Da mesma maneira, podem constituir visdes de mundo, dotadas de suas préprias singu- Jaridades, uma mitologia ou uma cosmogonia. A Magia — que também propde uma pritica e um modo de agir sobre a vida cotidiana ~ também esta implicada em um tipo de visto de ‘mundo. Uma concep¢io artistica, do mesmo modo, pode cor- tesponder a outro tipo de visio de mundo, e jé vimos atrés que a Arte mais costuma langar mao dos impetos intuitivos e do livre jogo das sensagées e sensibilidades do que dos proce- dimentos te6ricos. A “Teoria’, portanto, corresponde apenas a uum dos varios tipos de visio de mundo que se disponibilizam a0 homem no seu permanente esforgo de compreender e re- criar o mundo no qual se encontra inserido. Embora a palavra “teoria” também possa ser empregada ara diversos outros tipos de atividades, jé fizemos notar que geralmente as teorias ~ e as teorias da hist6ria nao séo ex- cegdo — correspondem a um tipo de visio de mundo que se relaciona mais estreitamente com 0 que hoje entende- mos por Ciéncia®. Quando a “Teoria” nao € vista como, cla mesma, diretamente relacionada a um conhecimento que se postula como cientifico, ao menos se pode dizer que ela se mostra necessariamente - no sentido em que hoje a compreendemos (¢ nao mais no sentido filoséfico- contemplativo que possufa na Antiguidade) - como um dos produtos das sociedades cientificas. Vale dizer, a “Teo- ria” ou € parte integrante do discurso cientifico (uma se- gunda natureza da propria Ciénci mundo que dialoga com o cientifico, com essa dimen- sao da cultura que veio a ocupar uma posigao central no mundo moderno. Pode-se ter uma “teoria” a respeito de ou é uma visio de qualquer coisa, e mesmo com relacao a questdes meno- res que se rel Mas obrigatoriamente o pensar no “modo tedrico” deve se amparar, nos dias de hoje, em certos procedimentos ¢ pressupostos que foram reforcados pelo padrao de cien- tificidade da vida moderna. Jé ressaltamos que a “teoria” sem demonstragio, sem encadeamento coerente de suas jonem a uma espécie de sabedoria pratica. partes, sem verificabilidade, pode se converter meramente em um conjunto de “conjecturas’, pelo menos de acordo com © pensamento que passou a predominar no mun- do contemporaneo. £ incontornével, portanto, antes que possamos prosseguir mais confortavelmente na reflexdo sobre 0 “tebrico’, que esbocemos um delineamento, ainda in, acerca do que ¢ a “Ciénci Smnpreendida como forma especifica de produ- sheciffento, pode ser identificada a partir da copresenca de alguns aspectos que Ihe sio inerentes, Deve antes de tudo visar e constituir um conhecimento a ser produido sistema- ticamente, com rigor metodologico™. O saber cientifico tam- bém deve ultrapassar, necessariamente, o mero nivel descriti- ‘vo ou narrativo, de modo a fornecer explicagées ou “sistemas para a compreensao” acerca dos fendmenos que examina, Esse sistema explicativo ou compreensivo deve buscar a coeréncia ‘44, Podemos no interior desta afmatva abrir um longo paréntesis para pontuar ‘também algumas consideragdes acerca do que seis uma ‘metadologa cients, ainda que consderando a imensa vaiedade daqullo que fica sob a bandera do “metodo” quando pensamas em cada tipo de ciéncia em particular, cada qual com ‘seus métodose técnicas especfcos. Em primeio lugar, se, para além da ciénca, ‘0 "método" aparece em inumerasoutasstividades humanas em tudo, conforme vio, ques relaciona20"Yaer), pode-se der que a iéncapressupe um caro “so cient” do Métod. De mado ger como se sabe, um Método se caraceriza Pela "hxacbo de certosprocedimentas"para ating determinadafnalidade, emu ‘as vezs se ted em vista procecimentos que possam ser sempre usados em um ‘mesma prtica, ou em prtias similares, Hs métodos para pesca, para se exercar ‘mas salentes ¢ que o Método tem sido empregado de manera “scumlativa © ‘xaustva: A medida que o pesquisador ou oexperimentadaravonca na execudo sos procedimentos proposts pelo Método ~ sea no que se reere&repetigdo de ‘2lgunsprocedimentosno interior de uma série, seja no ques refere as etapas que So percoridas em alg fa etapa do método, por 235s dae, se trna“um progresso para fim, ndo obstante a sinuosidade do cami tematizacio"é outro aepec- ja clentfica,embora possa ser uma boa metodologia para a _além isso, 0 metodo centico deve virfrmulado em uma inguageme {a5 com ume ligica que Ihe se propia. Nao ha como negar também que fo ulagio de regras, que 2 tllzadas pela Comunidade cinta, constitu ads De igual mane, é prec rente no que se reere ao métodk “recta” & uma lista para reproduc "mesmo" js um métod {mito de qualquer ciéncla - corresponde a um conjunto de procedimentos para buscar o“nowr para amplia o conhecimento js existent. De resto, com relaca0 a sa busca metedoldgica no "novo" vale leva ‘ques esiabelece ne Cidncia ene as duns grande Ssingulrizam nas vias lécis: a Observagio al o> D entre todas as suas partes, Em tiltima instincia, nao busca, a iéncia, no seu sistemstico processo de produzir 0 conheci- ‘mento, fornecer valoragées éticas ou que tenham por escopo final julgar os fendmenos observados de acordo com algum ponto de vista moral (tal como ocorre com a Btica ou com a Religio)", Sobretudo, trata-se de um conhecimento demons- trado, tanto a partir de uma ldgica argumentativa, como no que se refere a comprovacio de dados que lhe sirvam de base informativa. B por fim, ¢ este é um dos seus aspectos mais definidores, um conhecimento que deve ser “testivel’ isto 6, passivel de ser verificével ou percorrido mais de uma vez por ‘qualquer pesquisador que se proponha a seguir todos os pas- sos da pesquisa original. Para tanto, o conhecimento produzi- do cientificamente deve explicitar necessariamente o “cami | | ho” e os “pressupostos” que permitiram que 0 eS fosse | produzido (o"método" «também a visio de mundo’ iso é,8 | eoria’, que o sustenta), assim como deve esclarecer as condi- | Ges de produgéo do conhecimento em questo”. al entre todas as suas «45. "Buscar e no necessatiamente"alangar’acoerénca tt swt pares. £ mais de um estado de esto ~ de um modo de procedercentifia fe que aqui estaeros alan. sy conhecdo texto de Max Weber que tem por tu Acne 2 ee nce cp a cei ae ese eee gt cbt opened ea eae te whens cin zeae aeeemore ent 2 Bem discutido 0 que é a Ciéncia, ou pelo menos 0 que é 0 “cientiico’, podemos agora desfechar algumas conclusbes a respeito da especificidade do “tebrico”, Nas sociedades moder- nas, uma Teoria pode ser definida como um corpo coerente de prinefpios, hipéteses ¢ conceitos que passam a constituir ‘uma determinada visio cientifica do mundo. Conforme Ma- rio Bunge ~ um dos mais célebres estudiosos de Episte- mologia — uma teoria seria um “conjunto de proposigoes ligadas logicamente entre si e que possuem referentes em co- mum” (1982: 41). Faz parte da ideia de teoria a possibilidade de demonstragio (de confirmar ou de extrair consequéncias daquilo que é formulado). Para estarmos no imbito da Teo- ria também é necessério que o que se formula teoricamente seja submetido a um didlogo com outras proposigdes tedricas, seja para reforco ou para refutacdo. Por isso as diversas teorias relacionam-se, por contraste ou por interacio, no interior de ‘um campo de conhecimento mais vasto, que é 0 campo cien- tifico especifico que se tem em vista. Desta maneira, se uma visio de mundo como a Religido pode se colocar como uma experiéncia intima do ser humano perante Deus ou diante do mundo supranatural, nada impedindo que seja experiencia da isoladamente, jé a Ciéncia ~ ¢ as teorias que nesta esto envolvidas.~ colocam-se necessariamente em um campo de didlogos. Nao se pode avangar no campo cientifico, nem se |_movimentar no univers6 te6rico de um determinado campo de saber, sem se conectar com os diversos autores que jé per- correram esse mesmo campo de saber formulando conceitos € hipoteses, propondo qu se sugerindo respostas, ou arris- lemonstragdes e procedimentos argumentativos, aA

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