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s0b 0 corpo, 0 que cabia as mulheres @ aos ho- mens. A sagragGo da esctitora, também anali- sada por Fillipie Ariés, foi reforgaca pela familia @ pelos amigos. O capitulo dez trata-se dos quartos 4 prova de som, como o de Emily Dickson, @ qual passou a maior parte do seu tempo tran- cada nele, sem parecer perceber o que ocorria & sua volta, assim como Marcel Proust, para o qua! “o siléncio tornava a alma mais sensivel *(p. 274). Michelle Perrot encerra seu livro descre- vendo 0 quarto como um lugar de praticas nor- malizadoras, um terreno de experiéncias, um local democratico e, por vezes, solitério. Para a autora © quarto ainda mantém seus segredos, mas apresenta a és, historiadores/os, suas manchas e suas paredes (4s vezes com ouvidos). © que Perrot demonstra biithantemente nesse ensalo 6 uma nova perspectiva de se pensar 0 social, o cultural, de perceber a dualidade entre ‘© piiblico © privado a partir dos quartos descritos pela literatura. Nesta, néo 6 a veracidade dos ersonagens ou os seus atos que importam, mas as questées colocadas pelosias escritores/as. A literatura mostra o desconhecido, o esquecido 1a posira ou no arquivo. Embora o livio de Perrot retorce significati- vamente © olhar literario que devemos ter em nossa prépria narrativa historiogrética, evidencia tantos nomes, autores/as e romances que oca- siona uma necessidade de se fazerem outros estudos, a fim de perceber em cada eseritora nuances para uma histéria das mulheres, entre tantas outras. Notas * Joana Moria PEDRO, 2003. # José Carlos Rels, 2010. * Durval Muniz ALBUQUERQUE JUNIOR, 2011. Sobre esse ossunto, ver Hayden WHITE, 2001, Referéncias ALBUQUERQUE JUNIOR, Durval Muniz. “Em Estado de Palavra: quando a histéria ndo consegue que se meta fora a literatura”. In: FLORES, Maria Bernadete Ramos; PIAZZA, Maria de Fatima Fontes (Orgs.). Histéria e Arte: movi- mentos ortisticos @ correntes infelectuois. Campinas: Mercado das Letras, 2011. p. 249- 261. PEDRO, Joana Maria. “Um didlogo sobre mulheres @ histéria”. Revista de Estudos Feministas, v. 11, n. 2, p. 509-212, 2003. REIS, José Carlos. O desafio historiogratico. S60 Paulo: FGV, 2010. WHITE, Hayden. Trépicos do discurso. $40 Paulo: Edusp, 2001. Lorena Zomer Hil Universidade Federal de Santa Catarina Uma teoria feminista-vegana: a politica sexual da carne Apolitica sexual da carne: a relagdo entre carnivorismo ea domindancia masculina ADAMS, Carol. Tradugdo de Cristina Cupertino. Sao Paulo: Alatide, 2012. 350p. Carol Adams pode ser apresentada como uma escritora feminista e@ ativisto pelos direitos dos animais. Uma escritora atuante e versatil, que Publicou suas ideias sobre o vegetarianismo, os direitos dos animais, a violencia doméstica e 0 ‘abuso sexual em artigos, livios, revistas, sites © en- Ciclopédias. Dos livios que escreveu, hd dois que tratam, particularmente, da ligagéo entre a o- pressGo das mulheres @ o dos animois no huma- nos: The sexual politics of meat: a feminist-vege- torian critical theory (1990) @ The pornography of meot (2003). Dentre outros livros, pode-mos citar: Ecofeminism and the sacred (1993); Neither man nor beast: feminism and the defen-se of animals (1994); Animals and women: feminist theoretical explorations, com Josephine Donovan (1998); Violence against women and children: a christian theological sourcebook, com Marie Fortune (1995); The inner art of vegetarianism (2000); Prayers for animals (2004); Meditations on the inner art of vegetarianism (2001); ¢ 0 pretacio de Sister species: women, animals, ond social justice (2011). Finalmente, depois de vinte anos apés a publicagdo da primeira edi¢do, a obra politica sexual da came é langada no Brasil, ganhando 382 Estudos Feministos, Florionépols, 22(1): 361-391, janelio-obi2014 um novo subiitulo: A relago entre carnivorismo € a dominéncia masculina, lembrando que o ‘original feve como sublitulo: "A feminist-vegeta- rian critical theory’, 0 que nos forece um impor- tante dado para questionarmos: As teorias feminis- tas sGo aceitas no Brasil? E importante essa ques- 10, pols 0 subtitulo do original sugere uma propos- ta tedrica feminista, © sua nega¢do ou mesmo ‘ocultagdo representa, por outro lado, o descaso. A questéo colabora para pensarmos que a resposta é negativa, existe uma falta das radugdes feministas ou mesmo a escassez desses textos. Através da leitura de textos literdrios © filoséficos, Adams propde e discute uma andiise mais apurada dos ligagées entre feminismo e vegelatianismo, bem como a telagdo entre 0 patriarcado e a prdtica de comer came. Descreve o que chama a estrutura do “teferencial ‘usente”, sendo 0 que, nesse contexto, separa a. ‘came @ 0 animal morto a partir do produto final. Afungao do referencial ausente é manter a came separada de qualquer ideia de que ela era um animal. As mulheres sGo referencias ausentes em nossa cultura também, sendo vistas como um corpo a ser consumido usado pela publicidace € de muitos outros modos. A teoria feminista & importante, porque nos ajuda a entender o modus operandi de como as opressdes estGo interligadas. O livro mostra como 0s animais sGo consumidos, literalmente, e como as mulheres 60 consumidas, visualmente, através de acesso sexual de seus compos estupraveis. A Politica Sexual da Care discute como, especialmente em tempos de escassez, muitas vezes as mulheres dao aos homens a came, a qual eles consideram ser o “melhor” dos alimentos. O livro € dividido em trés partes e nove capi- tulos. A primeira parte do livro, intitulada “Os textos Patiarcais da came”, 6 dividida em quatro copitu- los que sdo: ‘A politica sexual da carne"; "Estupro de animais, retalhamento de mulheres"; “Violéncia mascarada, vozes silenciadas” e “A palavra se fez came”. A autora cunhou o temo “antropoino- gratia’, que significa mostrar animais como seres que pedem para serem comidos, uma perspectiva que, segundo ela, 6 um dos alicerces do patriarcado. Desse modo, a “antropomo- gratia" 6 0 conceito central, criado nessa primeira parte, que esta no bojo da andlise dos textos Teferentes a came que compoem a sequéncia. Carol Adams (2011) pergunta-nos se somos predadores ou néo. Ela diz que, na tentativa de os ver como seres naturais, aigumas pessoas aigumentam que os seres humanos sao simples- mente predadores como alguns outros animais, simplificando e coisficando © corpo dos animais. Para a autora, o vegetarianismo € visto como do natural, enquanto © carnivorismo dos outros ‘animais 6 transtormado em paradigmatico. Os animais se tomam coisas a servigo dos prazeres camais, ditos naturais, pelos machos humanos, ditos predadores. Assim. os direitos animais sGo criticados e as desanalogias mais profundas com animais carnivoros permanecem intocadas, Porque a nogdo de seres humanos como preda- dores é consoante com a ideia de que precisa- mos comer carne. Diz a autora que, de fato, o camivorismo verdadeiro para apenas 20% dos ‘canimais nao humanos, segundo a biologia atual. Em A politica sexual da carne, ela nomeou esse processo conceitual no qual o animal desa- parece da estrutura do referencial ausente. Ani- mais em nome e corpo sdo feitos ausentes como ‘animais para que a came exista. Se animais esto vivos, eles no podem ser came. Logo, um cadd- ver substitul 0 animal vivo, e animals se tornam teferenciais ausentes. Os animais sao feitos ausen- tes através da linguagem, que renomeia caddve- tes antes que consumidores e consumidoras participem em comé-los. O referencial ausente nos permite esquecer do animal como uma enti- dade independente. O assado no piato é desen- corporado do poico © qual ela ou ele um dia foi. referencial ausente resulta do cativeiro ideold- gico € 0 reforea: a ideologia patriarcal estabele- ce © padréo cultural de ser humano e de ser animal. Na politica sexual da came, é simples- mente impossivel ser homem sem comer caine. Asegunda parle do livro, intitulada “Da bar- tiga de Zeus", esta dividida em trés copitulos, os ‘quais séo, respectivamente: “Textos desmembra- dos, cnimais desmembrados", “O monstro vege- fariano de Frankenstein’ e “O feminismo, a Grande Guerra @ 0 vegetarianismo modemo". Os capi- tulos da segunda parte abordam aiguns roman- ces nos quais aparecem personagens vegetaria- nas. A autora entende que a teoria feminista 6 a base para essa critica literéria, j4 que a historia da came ¢ feita nao somente de textos de came, mas principaimente do apagamento da palavra feminista e vegetariana. Diz ela: “Mucar um animal do seu estado original, fazendo-o se transformar em comida, compara-se a mudar um texto do seu estado original, fazendo-o se transformar em algo mais agradavel” (p. 148). Para os escritoras abordadas, a questao do vegetarianismo toma- se uma mediagdo feminina complexa entre as telagées de poder estabelecidas tanto no especismo quanto no sexismo. Aterceira parte do livro: “Coma arroz, tenha fe nas mulheres", esté dividida em “A distorgao Estudos Feministas, losiandpols, 22(1}: 361-391, janero-abal2014 383 do corpo vegetariano” e “Por uma teoria critica feminista-vegetariana’. Nessa parte, ela lan¢a ‘sua proposta, que 6 a de uma teoria critica femi- nista-vegetariana, argumentando que a defesa dos animals é a teoria @ 0 vegetarianismo ¢ a Prdtica, assim como 0 feminismo € a teoria @ 0 vegetarianismo faz parte de suas prdticas, ou seja, para o leque de prdticas feministas, & Necessério pensar a came como elemento vitil da cultura patriarcal. © consumo da caine ¢ de dominio mais masculino, e © vegetaticnismo, entéo, age como um sinal de doenga do cultura Patriarcal, expressa em trés modes: na revela- ¢0 da nulidade da came, na nominagao das telagdes @ na recusa do consumo de caine e da cultura patriarcal, E importante observar que 0 titulo da resenha propée uma Teoria Feminista-Vegana, mas o livro 6 sobre uma teoria critica feminista-vegetariana, como sugere © Ultimo capitulo. Optamos pelo temo feminismo-vegano, pois a palavra vega- nismo aparece no texto de Adams nos comentd- tios da vigésima edigdo, isso esté dado pelas condigées de producGo. | que a terminologia veganismo aparece na literatura académica somente no final dos anos 1990. Quando 0 livio fol escrito, era comum a palavia vegetarianismo, que esté relacionada 4 questéo da climentagao serve para diferenciar as pessoas que ndo co- mem nenhum tipo de came, enquanto a palavra veganismo 6 mais ampla, significa a pratica de Go utilizar produtos derivados de animais nGo s6 na alimentagGo, mas também no vestuatio, nos Produtos domésticos, entre outros. A obra 6 rica, embora a tradugéo deixe muito © desejar. Vale a pena comparar os duas edigdes: a original e a traduzida. Observamos, ao ler @ analisar a tradugao, comparando-a com 0 original, que, na capa do livio As politicos sexuais da came, ha uma ilustragdo que opa- feceu originalmente em uma toaiha de praia em 1969, mostrando uma mulher dividida em cortes de “came”, como a imagem dos cores da caine de vaca, e na qual se lia o subtitulo: “Qual 6 0 seu corte?” Na traduedo, a capa foi frocada por uma imagem com silhuetas femi- ninas sensuais impressas em cima de um fundo Peto e branco, que sugere 0 couro de uma va- ca. A troca das imagens sugere, para nés, uma suavizage no impacto das comparagées entre a violéncia sexista e a especista, além disso, vai G0 encontro dos interesses dos latifundiarios nacionais, jG que somos um dos maiores exporta- dores de came no mundo. Havia algumas imagens publicitarias intemas No livto original que foram abortadas pelo editor da traducdo, a sua auséncia colabora para nosso ‘aigumento referente & capa, o que nos leva a pensar que essas imagens foram supridas no intuito de diminuir gastos gréficos ou por desinteresse do editor. De quaiquer modo, a tradugGo e publi- ‘cagG0 do livio A Politica Sexual da Came toma mais acessivel a discussdo proposta por Adams e se transforma em uma ferramenta para se pensar as relagées entre a opressdo das mulheres e dos ‘animals come baseadas na mesma hierarquia ue sustenta o pensamento patriorcal, Patricia Lessa ill Universidade Estadual de Maringé Michelle Camargo Il Universidade Estadual de Campinas Textos, tessituras e filamentos: as escritoras de si Aaventura de contar-se: feminismos, escrita de sie invengdes da RAGO, Margareth. Campinas: Unicamp, 2013. 344 p. Margareth Rago 6 uma esctitora feminista @ libertaria que inspira estudantes de diferentes territérios @ saberes. Na cartografia de suas narrativas, as memérias de mulheres apagadas da histéria dos “vencedores” figuram entre poéticas e politicas de resisténcia, Ela graduou- se em Histéria e Filosofia pela Universidade de Sdo Paulo, cursou o mestrado e o doutorado em Histéria, na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Trabaihou pelo mundo lecionando na Universidade Federal de Uberléndia, no Connecticut College, nos Estados Unidos, realizou semindrios na Universidade de Patis 7 @ fol professora visitante na Columbia University. Foi uma das criadoras e diretora do Arquivo Edgar Levenroth da UNICAMP. 384 Estudos Feministas, Florianépolis, 22(1}: 361-391, janeiro-abriy2014

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