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4. A adolescéncia em Samoa Mancaner Mean Introducio Durante os tiltimos cem anos, pais e professores deixaram de encarar a infancia e a adolescéncia como ponto pacifico. Em vez de buscar encaixar a crianga num molde educacional infle- xivel, entaram adaptar a educagZo as necessidades dela. Duas forcas os impeliram a essa nova tarefa: o desenvolvimento da cigncia da psicologia; as dificuldades ¢ os desajustamentos da juventude. A psicologia sugeriu que havia muito a ganhar com co conhecimento da maneira como as criancas se desenvolviam, dos estigios através dos quais elas passavam, do que o mundo adulto podia esperar razoavelmente do bebé de dois meses ou da crianca de dois anos. As fulminagdes do péilpito, os la- mentos ruidosos do fildsofo social conservador, os registros dos tribunais da juventude e das agéncias de assisténcia social, tudo isso sugeria que alguma coisa deveria ser feita com 0 perfodo que a cigncia havia rotulado de adolescéncia. O espe ‘culo de uma geracio mais jovem que divergia cada vez mais amplamente dos padres ¢ ideais do passado, geracio deixada a deriva sem a ancoragem de padrées domésticos respeitados ou valores religiosos coletivos, aterrorizava 0 reacionétio cau- teloso, atraia o propagandista radical a empreender cruzadas missiondrias em meio & juventude indefesa e preocupava os menos esclarecidos dentre nés. 0 8 Cultura epersonalidade Na civilizacao americana, com suas muitas linhagens de imigrantes, suas dezenas de padrdes conflitantes de conduta, suas centenas de seitas religiosas, suas condigdes econémicas cambiantes, esse status intranquilo, perturbado, da juventude era mais evidente que na civilizagdo mais antiga e mais aco- modada da Europa. As condigdes americanas desafiaram 0 Psicélogo, o educador, o filésofo social, a oferecer explicagoes aceitveis para os problemas da crianca em desenvolvimento. Como hoje na Alemanha do pés-guerra, onde as geracdes ‘mais jovens tém ajustamentos ainda mais dificeis a fazer que nossas criancas, um grande volume de teorizacdes sobre a adolescéncia inunda as livrarias, assim, nos Estados Unidos, © psicélogo tentou explicar a inquietacio da juventude. O resultado foram obras como a de Stanley Hall sobre “Adoles céncia’, que atribuiu ao periodo pelo qual as criancas estavam passando a causa de seu conflito e sofrimento. A adolescéncia foi caracterizada como a fase em que o idealismo florescia e a rebelido contra a autoridade ganhava forca, um espaco de tempo durante o qual dificuldades e conflitos eram absoluta- mente inevitaveis. O psicélogo infantil cuidadoso, que baseava suas concluses em experimentos, nao endossou essas teorias, Ele disse Nao temos dados. Sabemos pouco sobre os primeiros meses de vida de uma crianga. Estamos apenas aprendendo quando os olhos de um bebé seguirio a luz pela primeira vez. Como po- demos dar respostas definitivas para questées relativas a0 modo ‘como uma personalidade desenvolvida, sobre a qual nada sabe- ‘mos, reagiré A religifo? Aaadolescéncia em Samoa 9 Mas as adverténcias negativas da ciéncia nunca sio bem aceitas. Se o experimentalista nao se comprometia, o filésofo, © pregador e o pedagogo faziam um esforco maior para dar ‘uma resposta mais facil. Eles observaram 0 comportamento dos adolescentes em nossa sociedade, registraram os sintomas onipresentes ¢ dbvios de desassossego e anunciaram esses as- ppectos como caracteristicos do periodo, Maes eram avisadas de que “filhas na adolescéncia” apresentam problemas especiais. Esse, diziam os te6ricos, é um periodo dificil. As mudancas fisicas que se processam no corpo de seus meninos e meninas tém suas implicagoes psicolégicas especificas. F impossivel es- cagar tanto de uns quanto de outros; a medida que o corpo de sua filha muda, deixando de ser infantil para se converter num corpo de mulher, seu espirito também mudaré de maneira ine- vitavel - e tempestuosa, Os tebricos olhavam a sua volta para 0s adolescentes em nossa civilizagdo e repetiam com grande firmeza: “Sim, tempestuosa.” Semelhante concepcao, embora nao sancionada pelo expe- rimentalista cauteloso, ganhou ampla aceitacZo, influenciou nossa politica educacional, paralisou nossos esforgos parentais. ‘Assim como deve se preparar para 0 choro do bebé quando nasce seu primeiro dente, a mae também tem de se fortalecer € suportar com toda a equanimidade que the for possivel as manifestacbes desagradaveis ¢ turbulentas da “idade dificil” Se no havia nenhuma censura a fazer & crianga, tampouco havia algum programa, exceto tolerancia, a recomendar a0 professor, O tedrico continuava a observar 0 comportamento dos adolescentes americanos, ¢ a cada ano proporcionava no- vas justificagdes para sua hipétese, a medida que as dificulda- des da juventude cram ilustradas e documentadas nos registros das escolas ¢ dos tribunais juvenis. a Cultura e personalidade Nesse meio-tempo, porém, outra maneira de estudar o desenvolvimento humano ganhava terreno, a abordagem do antropélogo, do estudioso do homem em todos os seus mais diversos contextos sociais. O antropélogo, a medida que refle- tia sobre seu crescente corpus de material referente aos costu mes de povos primitivos, comecava a compreender o enorme papel desempenhado na vida de um individuo pelo ambiente social em que cada um nasce e é criado, Um a um, aspectos do comportamento que haviamos nos acostumado a considerar complementos invariéveis de nossa humanidade revelaram-se meros resultados da civilizacao, presentes nos habitantes de uum pais, ausentes em outro, e isso sem mudanga de raga. Ele aprendeu que nem raga nem humanidade comum podem ser consideradas responsiveis por muitas das formas que mesmo. ‘emoges humanas tio bi: as quanto amor, medo e raiva as sumem sob diferentes condicées sociais. Assim, 0 antropélogo, refletindo a partir de suas observa- ‘Bes acerca do comportamento de seres humanos adultos em outras civilizacées, chega a muitas das mesmas conclusdes que obehaviorista atinge em seu trabalho com bebés humanos que ainda néo tém nenhuma civilizago para moldar sua maleével humanidade. Com essa atitude diante da natureza humana, 0 antropé- logo ouviu o comentario corrente sobre a adolescéncia. Viu atitudes que Ihe pareciam depender do ambiente social ~ como rebelido contra a autoridade, perplexidades filoséficas, florescimento do idealismo, conflito e huta- serem atribuidas uma fase de desenvolvimento fisico. E, com base em seu co nhecimento do determinismo da cultura, da plasticidade dos seres humanos, ele duvidou, Bram essas dificuldades decor- =| A alolescéncia em Samoa Pa rentes do fato de ser adolescente ou do fato de ser adolescente nos Estados Unidos? Para o bidlogo que duvida de uma hipotese antiga ou deseja pdr a prova uma nova proposigdo, hé o laboratério biolégico. Ali, em condigGes sobre as quais pode exercer 0 mais rigido controle, ele consegue variar a luz, 0 ar, o alimento que suas plantas ou animais recebem, desde o momento do nascimento ¢ durante toda a sua existéncia, Mantendo todas as condigdes constantes, exceto uma, ele pode fazer medigdes precisas do efeito desta tiltima. Esse & 0 método ideal da ciéncia, o método do experimento controlado, por meio do qual todas as hipd- teses podem ser submetidas a um teste estritamente objetivo. 0 da psicologia infantil s6 pode reproduzir patcialmente essas condigées ideais de laboratério, Ele nfo tem como controlar o ambiente pré-natal da crianga que submeterd mais tarde a medigées objetivas. No entanto, pode controlar 0 ambiente inicial da crianca, os primeiros dias de sua existénci e decidir que sons, vis6es, cheiros e gostos devem afetéla. Para 0 estudioso da adolescéncia, contudo, nao existe tal simplicidade de condigdes de trabalho. O que desejamos tes- tar é nada menos que o efeito da civilizagao sobre um ser humano em desenvolvimento na puberdade. Para pé-lo a prova da maneira mais rigorosa, teriamos de construir varios tipos de civilizagao diferentes e submeter grande mimero de criencas adolescentes a esses ambientes diversos. Fariamos uma lista das influéncias cujos efeitos desejéssemos estudar. Se quiséssemos estudar a influéncia do tamanko da familia, construiriamos uma série de civilizagdes semelhantes em todos os aspectos, exceto na organizacao da familia. Se en: contréssemos depois distingao no comportamento de nossos 22 Cultura e personatidade adolescent mos dizer com seguranga que o tama- nho da familia havia causado a diferenca; que, por exemplo, © filho Ginico tinha uma adolescéncia mais conturbada que a crianga pertencente a uma familia numerosa. E assim pode riamos proceder através de uma diizia de situacdes possiveis: conhecimento sexual precoce ou tardio; experiéncia sexual precoce ou tardia; pressio para o desenvolvimento precoce Segregacdo dos sexos ou coeducacio desde a tenra infancia; divisio do tra- ou desestimulo ao desenvolvimento preco balho entre os sexos ou tarefas comuns para ambos; pressio para fazer escolhas religiosas cedo ou auséncia de tal pres- sfo. Farfamos um fator variar, mantendo os demais razoa velmente constantes, e analisarfamos que aspectos de nossa civilizagdo seriam sesponsaveis pelas dificuldades de nossas criangas na adolescéncia, \s0 houvesse algum. Pot infortiinio, esses métodlos ideais de experimentacio nos so negados quando nosso material consiste em seres humanos € em todo 0 tecido de uma ordem social. A coldnia-teste de Herddoto, em que bebés deveriam ser isolados, e os resulta- dos registrados, nao é uma abordagem possivel. Tampouco é viivel 0 método de selecionar a partir de nossa prépria civi- lizagao grupos de criangas que correspondam a um requisito ‘0u outro. Esse método consistiria em selecionar quinhentos adolescentes de farrilias pequenas e quinhentos de familias snumerosas ¢ tentar descobrir quais haviam experimentado as maiores dificuldades de ajustamento na adolescéncia. Mas no poderiamos saber quais eram as outras influéncias exercidas sobre essas criangas, que efeito seu conhecimento sobre sexo ‘ou o ambiente de sua vizinhanga poderia ter tido sobre seu desenvolvimento adolescente, A adolescéncia em Samoa 23 Que método, entio, esté aberto para nés, que desejamos realizar um experimento humano, mas nio temos poder, seja para construir as condig6es experimentais, seja para encontrar exemplos controlados desses condigdes espalhados aqui e ali por toda a nossa prépria civilizaca0? O nico método é 0 do antropélogo: it para uma c:vilizagdo diferente ¢ fazer um es tudo de seres humanos sob condigdes culturais diferentes em alguma outra parte do mundo. Para esses estudos o antropé: Jogo escolhe povos muito simples, primitivos, cuja sociedade jamais aleancou a complexidade da nossa. Nessa escolha de povos primitivos como esquimés, australianos, ilhéus dos Mares do Sul ou indios pueblos, 0 antropélogo é guiado pelo conhecimento de que & mais ficil levar a cabo a andlise de uma civilizacao mais simples. Em civilizagdes complicadas como as da Europa, ou as civilizagdes mais elevadas do Oriente, anos de pesquisa sio necessarios antes que 0 estudioso comece @ compreender as forcas em ago dentro delas, Um estudo da familia francesa, apenas, envolveria um exame preliminar da historia francesa, ou do direito francés, das atitudes catdlicas e protestantes em relacio ao sexo ¢ as relagdes pessoais. Um povo primitivo sem lingua escrita apresenta problema bem menos intricado, e 0 estudioso treinado pode dominar a estrutura fundamental de ‘uma sociedade primitiva em poucos meses. ‘Além disso, ndo escolhemos uma comunidade camponesa, simples na Europa ou um dos grupos isolados de montanhe- ses pobres brancos estabelecidos no Sul dos Estados Unidos, porque os modos de vida desses povos, embora simples, per- tencem essencialmente a tradicao histérica em que se inserem as partes complexas da civilizago europeia ou americana. Em 2 Cultura e personatidade vez disso, escolhemos grupos primitivos que tém milhares de anos de desenvolvimento historico em linhas completamente diversas das nossas, cuja lingua nao possui nossas categorias indo-europeias, cujas ideias religiosas sao de natureza diversa, cuja organizacio social no s6 é mais simples como muito di ferente da nossa, A partir desses contrastes, vividos o bastante para surpreender ¢ esclarecer aqueles acostumados a0 nosso proprio ambiente de vida ¢ simples o bastante para serem logo compreendidos, & possivel aprender muitas coisas sobre 0 efeito de uma civilizagao sobre os individuos que nela vive. Assim, para investigar o problema particular, ndo escolhi ir para a Alemanha ou para a Riissia, mas para Samoa, uma ilha dos Mares do Sul a cerca de 30° do equador, habitada por um povo polinésio moreno. Como eu era mulher ¢ podia esperar obter maior intimidade trabalhando com meninas, e no com meninos, e porque, em razio de uma escassez de mulheres etndlogas, nosso conhecimento sobre meninas primitivas é muito mais superficial que aquele sobre meninos, optei foca- lizar a menina adolescente em Samoa. Ao optat por isso, porém, fiz algo muito diferente do que te- ria feito se me concentrasse num estudo da menina adolescente em Kokomo, em Indiana, Neste titimo caso, eu teria ido direto ao ponto crucial do problema; nao teria de me deter muito sobre a lingua de Indiana, as maneiras & mesa ou os habitos de sono de meus sujeitos, nem fazer um estudo extensivo de como eles aprendiam a se vestir, a usar o telefone, ou sobre © significado do conceito de consciéncia em Kokomo. Todas essas coisas sfo 0 tecido geral da vida americana, do meu co- nhecimento como investigadora, do conhecimento de vocés como leitores. A adolescéncia em Samoa 25 Com esse novo experimento sobre a menina adolescente primitiva, porém, a questo era inteiramente oposta, Ela fa lava uma lingua cujos sons me eram estranhos, em que subs- tantivos se tornavam verbos e vice-versa, como num passe de magica. Todos os seus hdbitos de vida eram diferentes. Ela se sentava de pernas cruzadas no chio, ¢ sentar-se numa cadeira a deixava rigida e infeliz. Comia com os dedos, de um prato de fibra trancada; dormia no chao, Sua casa era um mero circulo de pilastras, coberta com um cone de colmo, atapetada com fragmentos de coral desgastados pela agua. ‘Todo o seu ambiente material era diferente, Coqueitos, pés de fruta-pao mangueiras balangavam sobre sua aldeia, A ‘menina nunca tinha visto um cavalo, nfo conhecia nenhum animal, exceto 0 porco, 0 cachorro € 0 rato. Sua comida era inhame, fruta-po, bananas, peixe, pombos selvagens, porcos cozidos ¢ caranguejos. Do mesmo modo como era necessé rio compreender esse ambiente fisico, essa rotina de vida tio diferente da nossa, conhecer seu ambiente social em suas atitudes em relago a criangas, em relagdo a sexo e & perso- nalidade apresentava forte contraste com o ambiente da me- nina americana Concentrei-me nas meninas da comunidade. Passavaa maior parte do tempo com elas. Estudet com a méxima atengio as familias em que as adolescentes viviam. Fiquei mais tempo nas brincadeiras infantis que nos conselhos dos ancidos. Falando sua lingua, comendo sua comida, sentando-me descaka e de pernas cruzadas no piso torrado de seixos, fiz 0 possivel para minimizar as diferencas entre nés e para aprender a conhecer € compreender todas as meninas de trés aldeias na costa na pequena ilha de Ta’d, no arquipélago Manw'a. 26 Cultura e personalidade Durante os nove meses que passei em Samoa, reuni mui- tos fatos detalhados sobre essas meninas, 0 tamanho de suas familias, a posicdo e fortuna de seus pais, o niimero de seus irmaos ¢ irmas, a quantidade de experiéncias sexuais que ha- viam tido, ‘Todos esses fatos rotineiros sio resumidos numa tabela no apéndice, Eles so apenas o esqueleto mais simples, mal chegando a constituir matéria-prima para um estudo de situagdes familiares ¢ relagdes sexuais, padrées de amizade, lealdade, responsabilidade pessoal, todos esses impalpaveis centros de turbuléncia na vida de nossas adolescentes. Como essas partes menos mensuraveis de suas vidas eram to simi- lates, como a vida de uma menina era t4o parecida com a de ‘outra, numa cultura no complexa ¢ uniforme como Samoa, sinto-me justificada ao generalizar, embora tenha estudado apenas cinquenta meninasem trés pequenas aldeias vizinhas. Nos capitulos que se seguem, descrevi a vida dessas meni- nas, de suas irmazinhas que logo sero adolescentes, de seus irmaos, com quem um rigoroso tabu as proibe de conversar, de suas irmas mais velhas, que deixaram a puberdade para trds, dos ancidos de suas familias, de suas mies e pais, cujas atitudes perante a vida determinam as atitudes dos filhos. Por meio dessa descricio tentei responder & pergunta que me en: viou a Samoa: sfo as perturbagdes que atormentam nossos adolescentes consequéncia da natureza da propria adolescén- cia ou da civilizacdo? Sob condigdes diferentes, a adolescéncia apresenta-se sob outra imagem? Além disso, em razio da natureza do tema, em decorréncia do carter desconhecido dessa vida simples numa ilhota do Pa cifico, tive de fazer uma descricdo de toda a vida social em Sa- ‘moa, selecionando os detalhes sempre no intuito de iluminar ‘A adolescéncia em Samoa 7 o problema da adolescéncia. Questdes de organizacdo politica, que nfo interessam menina nem a influenciam, nao foram do sistema de parentesco ou de cultos aqui incluidas, Minti a0s ancestrais, genealogias e mitologias, de interesse apenas para o especialista, serio publicadas em outro lugar. Mas tentei apresentat ao leitor a menina samoana em seu contexto social, dlescrever 0 curso de sua vida do nascimento & morte, 0s pro- blemas que ela tera de resolver, os valores que a guiardo em stuas solugGes, as dores e os prazeres de seu destino humano langado numa ilha dos Mares do Sul. Essa descrigo busca fazer mais que iluminar esse problema particular, Ela deveria também dar ao leitor uma ideia sobre uma civilizagio diferente e contrastante, outra maneira de vi: ver, que outros membros da raga humana consideraram satisfa- toria e digna, Sabemos que nossas percepgdes mais suis, nossos valores mais elevados, baseiam-se todos em contraste; que luz sem escuridio ou beleza sem feiura perderiam as qualidades que agora nos parecem possuir. De maneira semelhante, se quisermos apreciar nossa propria civilizacZo, esse elaborado paco de vida que fizemos para nds mesmos como povo ¢ que tanto nos esforgamos para transmitir a nossos fillhos, devemos confrontar nossa civilizagZo com outras muito diversas. Quem viaja pela Europa volta aos Estados Unidos sensivel ds nuances em suas proprias maneiras ¢ em filosofias que até ento the ha- viam passado despercebidas, no entanto, Europa e Estados Uni- dos so partes de uma sé civilizagao. E com variagdes dentro de um grande padrio que o estudioso da Europa hoje ou 0 es- tudioso de nossa prépria historia aguca seu senso de apreciagéo. Contudo, se saimos do caudal da cultura indo-europeia, a apreciacdo a que podemos submeter nossa propria civilizacio 8 Cultura e personalidade melhora ainda mais. Aqui, nas partes remotas do mundo, sob condigdes historicas muito diferentes daquelas que fizeram Grécia e Roma florescer e declinar, grupos de seres humanos desenvolveram padrdes de vida téo diferentes dos nossos que néo podemos arriscara conjectura de que iriam chegar algum_ dia as nossas proprias solugGes. Cada povo primitivo escolheu um conjunto de talentos humanos, um conjunto de valores humanos, e moldou para si mesmo uma arte, uma organizacio social, uma religio que sfo sua contribuicdo singular para a hist6ria do espirito humano, ‘Samoa € apenas um desses padres diversos ¢ graciosos, mas, assim como o viajante que um dia se afastou de casa & mais sabio que o homem que nunca foi além da soleira da prépria porta, o conhecimento de outra cultura deveria agucar nossa capacidade de esquadrinhar com mais sobriedade, de apreciar mais amorosamente, a nossa propria cultura Em razo do problema particular que nos propusemos a responder, essa histéria de outro modo de vida interessa-se principalmente pela ecucacZo, pelo processo mediante o qual o bebé, que chega despzovido de cultura a cena humana, torna- se um consumado membro adulto de sua sociedade. A luz ‘mais forte incidiré sobre as maneiras pelas quais a educagio samoana, em seu sentido mais amplo, difere da nossa. A partir desse contraste seremos capazes de passar, tendo nos imbuido de nova e vivida autocansciéncia e autocritica, a julgar de nova maneira ¢ talvez moldar de forma diversa a educaco que da- ‘mos ais nossas criancas. Aadolescéncia em Samoa » Nossos problemas educacionais a luz dos contrastes samoanos* ‘Ao longo de muitos capitulos, acompanhamos a vida de meni- znas samoanas, vimos como se transformam de bebés em amas, aprendem a acender o forno e a tecer belas esteiras, abando- nam a vida do grupo de criancas para se tornar membros mais ativos do lar, adiam 0 casamento pelo maior nimero possivel de anos pontilhados por relagdes sexuais casuais, por fim se casam ¢ comecam a criar filhos que repetirio o mesmo ciclo. [Até onde nosso material nos permitiu, realizou-se um experi- mento para descobrir como era o processo de desenvolvimento numa sociedade muito diferente da nossa. Como a extensio da vida humana e a complexidade de nossa sociedade nao nos permitiram fazer nosso experimento aqui, escolher um grupo de bebés do sexo feminino e levé-los até a maturidade sob con: digdes criadas para o experimento, foi necessario ir para outro pais, onde a historia armou o palco para nés. Ali encontramos criangas do sexo feminino que passavam pelo mesmo processo de desenvolvimento fisico por que pas- sam nossas meninas, ganhavam seus primeiros dentes ¢ per diam-nos, ganhavam a segunda dentigio, ficavam altas ¢ de- sajeitadas, chegavam a puberdade com a primeira menstruacio, alcangavam pouco a pouco a maturidade fisica e se viam pron- tas para produzir a geracdo seguinte. Foi possivel dizer: aqui esto as condigdes adequadas para um experimento; a menina em desenvolvimento é um fator constante nos Estados Unidos * Capinulo 12 de Coming of Age in Samo, 3 Cultura e personatidade € em Samoa; a civilizacdo dos Estados Unidos ea civilizagio de Samoa sio diferentes. No curso do desenvolvimento ~o processo de crescimento pelo qual a menina se torna uma mulher adulta -, as stibitas e evidentes mudangas fisicas que tém lugar na puberdade sio acompanhadas por um desenvolvimento espasmédico, emo- cionalmente catregado, ¢ também pelo despertar de um senti ‘mento religioso, um florescer de idealismo, um grande desejo de autoafirmagio contra a autoridade — ou nao? A adolescéncia € um perfodo de sofrimento mental ¢ emocional para a menina que se desenvolve, tZo inevitavelmente quanto a denticao éum periodo de tormento para o bebezinho? Podemos pensar na adolescéncia como uma etapa na historia de vida de toda me- nina, que carrega consigo seus sintomas de conflito e tensio, Go seguramente quanto implica uma mudanga em seu corpo? Seguindo as meninas samoanas através de todos os aspectos de suas vidas, tentamos responder a essa questo e descobri- mos em toda parte que tinhamos de respondé-la com uma negativa. A menina adolescente em Samoa diferia de sua irma que ainda no chegara a puberdade em um aspecto principal: na menina mais velha estavam presentes certas mudancas fisi cas ausentes na mais nova. Nao havia nenhuma outra grande diferenca para distinguir 0 grupo que atravessava a adoles- céncia daquele que entraria nessa fase dentro de dois anos, ou daquele que nela ingressara dois anos antes, Se uma menina jé piibere for menor, ao passo que sua prima éaltae uma diferenga entre elas em razo da dotacio fisica, que sera ipaz de realizar trabalho mais pesado, havera muito maior que aquela atribuida 4 puberdade. A menina alta e robusta seri isolada de suas companheiras, obrigada a Aadolescéncia em Samoa Fa fazer tarefas mais longas, mais adultas, passaré a se mostrar reservada, por forca de uma mudanga de indumentéria, a0 passo que a prima, que demora a se desenvolver fisicamente, continuard a ser tratada como uma crianga e sé tera de resol- ver os problemas ligeiramente mais reduzidos da infancia. 0 preceito dos educadores daqui, que recomendariam titicas especiais no tratamento de meninas adolescentes traduzido em termos samoanos, seria: meninas altas sfo diferentes de meninas baixas da mesma idade; devemos adotar um método diferente de educé-las. Mas depois que respondemos a pergunta que nos impuse: mos ainda néo chegamos ao fim do problema, Outra ques: tao se apresenta. Se for provado que a adolescéncia no necessariamente um periodo de especial dificuldade na vida de uma menina ~e ele estard provado se pudermos encon- trar qualquer sociedade em que isso ocorra -, que explica a presenga do transtorno ¢ da tensio entre as adolescentes americanas? Em primeiro lugar, podemos dizer muito sim- plesmente que deve haver alguma coisa nas duas civilizagées para explicar a diferenca. Se o mesmo processo assume uma forma diferente em dois ambientes diversos, ndo podemos dar nenhuma explicagdo em termos do processo, pois ele €0 mesmo nos dois casos. Mas 0 ambiente social é muito diferente, e é para ele que devemos nos voltar em busca de explicagdo. © que existe em Samoa ¢ esté ausente nos Estados Unidos, 0 que existe nos Estados Unidos e est ausente em ‘Samoa para explicar a diferenca? ssa questo tem enormes implicagbes, e qualquer tentativa de respondé-la estar sujeita a muitas possibilidades de erro. No entanto, se estreitarmos nossa questo ao modo segundo 2 Cultura e personatidade © qual aspectos da vida de Samoa que afetam irremediavel- ‘mente a vida da menina adolescente diferem das forgas que influenciam nossas meninas em desenvolvimento, é possivel tentar responcé-la, O cenatio dessas diferencas ¢ amplo ¢ tem dois componen- tes importantes; um se deve a caracterfsticas propriamente samoanas, 0 outro a caracteristicas que so primitivas. O cenatio semoano que torna o desenvolvimento uma ques- ‘Go tdo facil, tao simples, é a informalidade geral de toda a sociedade. Samoa é um lugar onde ninguém faz apostas muito altas, ninguém paga pregos muito elevados, ninguém sofre em razio de suas conviccSes nem luta até a morte por fins especifi- cos. Discérdias entre pai filho sio resolvidas com a mudanga do filho para a casa em frente, entre um homem e sua aldeia, ‘com a mudanga do homem para a aldeia vizinha, entre um ma- ido eo sedutor de sua mulher, mediante algumas belas estei- ras, Nem pobreza nem grandes desastres ameacam as pessoas para fazé-las apegar-se imensamente a propria vida e tremer de medo de vé-lainterrompida. Nenhum deus implacével, irasc- vel e severo em seus castigos perturba o padrao invariavel dos dias. Guerras e canibalismo extinguiram-se ha muito, e agora ‘a maior causa de lagrimas, afora a propria morte, éa viagem de ‘um parente para outra ilha. Ninguém se apressa na vida nem & punido com rigor por desenvolver-se devagar. Em vez. disso, os talentosos, os precoces, sio contidos até que os mais lentos os tenham alcancado. Nas relagoes pessoais, 0 afeto ¢ igualmente superficial. Amor ¢ édio, citime e vinganca, sofrimento e luto sdo questdes de semanas, Desde os primeiros meses de vida, ‘quando a criansa é passada de maneira descuidada das maos de ‘uma mulher para as de outra, aprende-se a licio de nao gostar A adolescéncia em Samoa B demais de uma pessoa, de nao alimentar grandes esperancas diante de nenhum relacionamento. Assim como sentimos que o Ocidente pune aqueles infelizes que nasceram na civilizagao ocidental com um gosto pela me- ditago e uma completa aversio pela atividade, podemos dizer que Samoa € benévola com os que aprenderam a ligéo de ndo «se apegar e cruel com os poucos individuos que nio a assimn- Jaram, Lola, Mala e a pequena Siva, irma de Lola, eram todas, ‘meninas mais emotivas que suas companheiras. Lola e Mala, desejando afeicao de modo apaixonado e extravasando sobre a comunidade, de forma excessivamente violenta, a decepgéo por nao a possuirem, eram ambas delinquentes, infelizes desa- justadas numa sociedade que reservava todas as recompensas aos que nao levavam a derrota muito a sério e se voltavam para alguma outra meta com um sortiso nos labios. Nessa atitude despreocupada em relacdo & vida, nessa evi- taco do conflito, de situacées pungentes, Samoa contrasta fortemente nao s6 com os Estados Uniclos, mas com a maioria das civilizagdes primitivas. Por mais que possamos deplorar essa atitude e pressentir que as personalidades importantes e que a arte digna de nota no nascem numa sociedade tio rasa, devemios reconhecer que aqui est um forte aspecto do desenvolvimento indolor da infincia para a maturidade. Pois ali, onde ninguém tem sentimentos muito fortes, o adolescente nao sera torturado por situacdes pungentes. Nao existem es- colhas desastrosas como aquelas com que se confrontavam jo: vens que sentiam que o servico de Deus exigia que renegassem © mundo para sempre, como na Idade Média, ou cortassem fora o proprio dedo como oferenda religiosa, como entre os {ndios das planicies. Assim, no alto de nossa lista de explica- “ (Cultura e personalidade ses devemos colocar a falta de sentimentos profundos, que os samoanos convencionalizaram, até transformé-la na propria estrutura de todas as suas atitudes perante a vida Em seguida vem a maneira extremamente impressionante pela qual todas as civilizacGes primitivas isoladas € muitas ci vilizagdes modernas diferem da nossa no nimero de escothas permitidas a cada individuo. Nossas criancas crescem para en- contrar um mundo de escolhas que ofuscam seus olhos no acostumados. Em religizo, elas podem ser catélicas, protestan- tes, cientistas cristios, espiritualistas, agnsticas, ateias ou até niio prestar nenhuma atencio a religido. Essa é uma situacio impensével em qualquer sociedade primitiva nao exposta a influéncia estrangeira. Hé um tinico conjunto de deuses, uma pratica religiosa aceita, e se um homem nio cré, seu tinico recurso é cret menos que seus semelhantes; ele pode zombar, ‘mas no hé nenhuma nova fé para a qual se voltar. © povo das, ithas Manu‘a dos dias atuais aproxima-se dessa condigao; todos sao cristdos da mesma seita. Nao h4 conflito em matéria de crenca, embora haja uma diferenca de pratica entre os que per- tencem € os que nao pertencem a Igreja. Observou-se que, no caso de varias das meninas em desenvolvimento, a necessidade de escolher entre essas duas praticas pode um dia produzir conflito, Mas hoje em dia a Igreja oferece muito pouco a jovens solteiros para forcar o adolescente a tomar qualquer decisio. De maneira semelhante, nossas criangas se defrontam com meia dizia de padroes de moralidade: um duplo padrao sexual para homens e mulheres, um tinico padro para homens e mu- Iheres, grupos que defendem que 0 padrio tinico deveria sera liberdade, a0 passo que outros propugnam que ele deveria ser a monogamia absoluta. Casamento experimental, casamento ‘A adolescéncia em Samoa 3 por compaixao, contrato de casamento — todas essas solugdes para um impasse social so expostas as criangas em desenvol- vyimento, enquanto as condigdes reais em suas proprias comu- nidades ¢ os filmes e revistas as informam de grande néimero de violacdes de cada cédigo, violagdes que nao marcham sob nenhuma bandeira de reforma social ‘Actianga samoana nao enfrenta nenhum dilema desse tipo. Sexo € uma coisa natural, agradavel; a liberdade com que ele pode ser desfrutado é limitada por uma tinica consideracio: status social. permitir nenhum experimento extraconjugal. Adultos respon- has de chefes e esposas de chefes nao devem se siveis, chefes de familia e maes de familia devem ter muitos as

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