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SEMIOTICA E CANCAO: DESVENDANDO OS SENTIDOS DO TEXTO Renata C. Mancini” José Roberto do Carmo Jr.” TATIT, Luiz. Andlise semidtica através das letras. Sio Paulo, Atelié Editorial, 2001. Quem de nds nao dedicou algum momento de seu tempo para refletir sobre o que fala uma cangdo que nos é especial por alguma raz4o? As cangdes da MPB, com 0 viés poético que caracteriza suas letras e com sua forga como expressao da cultura brasileira serao sempre objetos passiveis de interesse analitico. E esse interesse que Luiz Tatit teve a sensibilidade de explorar no livro Andlise semistica através das letras, em que apresenta de forma gradual os passos do exercicio analitico propostos pela teoria semiética de linha francesa, a partir das letras de cangdes consagradas da MPB. Ao abordar letras de cangdes como Saudosa maloca, Asa Branca, Travessia, Alegria Alegria, Oceano, Paciéncia, entre outras, Tatit nao s6 apresenta uma importante metodo- logia de andlise de textos a quem tem na misica popular seu objeto de estudo, mas também permite que aqueles que estejam buscando familiarizar-se com os conceitos da semiética possam partir de um corpus “facilitador”, uma vez que a cangao popular faz parte da vida das pessoas e, desse modo, sua escolha elimina qualquer etapa prévia de compreensao do texto. O autor acredita que a “metalinguagem descritiva tende a tornar-se mais clara e justificada, na medida em que surge de um contexto familiar de manifestagdo”. Vale ressaltar que esse nao é um livro que trata de cangdes ~ entendidas como textos compostos por melodia e letra —, uma vez que trabalha apenas com o plano do contetido das ietras, cuja escolha visa, como jé dissemos, a criagao de um contexto familiar para 0 leitor. O autor coloca claramente sua intengao de discutir apenas o plano do contetido desses textos € explica que “‘questdes de ordem poética ou artistica (...) desvirtuariam a finalidade do trabalho”. Proj. Historia, SGo Paulo, (26), jun. 2003 311 A idéia € deixar as andlises demonstrarem a pertinéncia da metalinguagem semistica. “Tudo ocorre como se as nogGes técnicas surgissem das entranhas do corpus, atravessas- sem seus estratos de sentido e se projetassem a um quadro teérico que vai se constituindo gradativamente”. A semi6tica parte do pressuposto de que os textos verbais ou nao verbais possuem uma ldgica geral subjacente, o que quer dizer que, independentemente das caracteristicas que individualizam um texto, hé esquemas de organizacio comuns a todos eles. Esses conceitos so usados pelo semioticista como base de suas andlises para que as diferentes estratégias utilizadas na construgdo de um texto sejam explicitadas. Em outras palavras, so as maneiras como esses conceitos se relacionam em um determinado texto que garan- tem sua individualidade, sua eficdcia e € isso 0 que a andlise semidtica procura explicitar. Sabemos que em certos setores no meio académico das ciéncias humanas a andlise textual baseada em metodologias cientificas formalizadas é vista com reservas. E bem conhecida a polémica em torno do estruturalismo, e a semidtica greimasiana, herdeira direta das concepgées estruturais, é por vezes tida como um procedimento excessivamente empobrecedor daquela riqueza do texto captada intuitivamente no ato de leitura. Na medi- da em que se baseia em recortes especificos ditados pelos modelos teéricos, toda andlise textual que se pretenda cientifica pode ser considerada um procedimento redutor. No en- tanto, e apesar desse cardter redutor, nao se pode negar que 0 status cientifico postulado pela semiética possibilita andlises que, por seguirem uma metodologia especifica, sao mais isentas de uma leitura eminentemente subjetiva. Ao identificar elementos comuns aos tex- tos, a semiotica cria um elenco de conceitos aplic4veis, em principio, a qualquer texto e, dessa forma, o foco da andlise passa a ser como o texto constréi aquilo que diz. Assim, 0 viés cientffico apresenta uma beleza inusitada, reduzindo 0 teor opinativo das andlises e permitindo que a mensagem do texto se mostre a despeito da opinido do analista. Ao se propor como um projeto cientifico, com conceitos e métodos explicitamente formulados, a semi6tica de linha francesa alcanga um rigor e uma isengdio que ampliam as possibilidades da atividade analitica, nao mais restrita a um fazer interpretativo ou parafrastico. Na introdugao de Andlise semidtica através das letras 0 autor apresenta um breve hist6rico do desenvolvimento da teoria semidtica greimasiana para que 0 leitor nao fami- liarizado tenha uma visao geral do universo teérico empregado nas andlises. Mostra que a teoria semistica baseia-se na idéia de um percurso gerativo formado por extratos de dife- rentes niveis de abstracéo respons4veis pela formag&o de sentido do texto. Descreve a evolug&o da teoria desde os seus primérdios: primeiro como projeto de uma sintaxe narra- tiva, passando pela discussao do universo passional que, mais recentemente, vem sendo tratado pela dtica da semidtica tensiva. Como explica Tatit, a semitica francesa “tomou a 312 Proj. Historia, Sao Paulo, (26), jun. 2003 forma de estratos gerativos de sentido, partiu do nticleo da aco para o da paix4o, adotou a tensividade como parametro para a andlise do universo sensivel e reuniu os primeiros critérios consistentes para uma descri¢ao estética”. Andlise semiética através das letras tem o grande mérito de se propor como uma obra intermediaria entre a reflex4o teérica e a aplicagao pratica dos conceitos estabelecidos pela semidtica. O autor reconhece que um dos motivos para uma teoria tio consistente de andlise textual nao ter o espago merecido nas discuss6es académicas é a escassez de bibliografia que vise a sua aplicagdo, 0 que faz com que alunos ou pessoas interessadas, em um primeiro momento, em utiliz4-la como ferramenta de trabalho se vejam desencora- Jjados pela grande lacuna existente entre a discussao teérica, fartamente contemplada pela literatura da drea, e sua aplicacao pratica. “Apesar de toda [a] pujanga no terreno cientifico e epistemol6gico, a semitica continua distante da pratica descritiva dos estudantes inte- tessados em andlise de textos, sejam estes verbais ou nao-verbais... faltam obras “‘inter- mediarias” que estabelegam uma ponte entre andlises especificas de textos e reflexdo teérica”. Abreviar essa lacuna é a linha-mestra desse livro de Tatit. Até mesmo quando apresen- ta os procedimentos descritivos gerais, o autor se baseia na letra da cangao Roda Viva, de Chico Buarque, para nos mostrar que o que se apresenta na superficie do texto, na verdade, Pressupde um arranjo complexo “de fungoes sintaticas que sustenta esses efeitos de sen- tido terminais”. E um livro agile instrutivo, escrito por um dos grandes nomes da anélise semistica de linha francesa no pafs. Além de seu trajeto como compositor e intérprete, Luiz Tatit desem- penha um papel inegavelmente importante no desenvolvimento de um tratamento mais rigoroso das discussdes académicas sobre a cangao brasileira. E o autor de importantes obras como O cancionista, Musicando a semiética e Semi ica da cangdo, em que desen- volve uma teoria para a andlise da cang4o que contempla paralelamente melodia e letra. Para aqueles que se interessam pela cangio, talvez a incursdo por essas outras leituras parecerd natural, apds a leitura desse livro. De qualquer forma, para todos os interessados em andlise textual ou para aqueles que jé tiveram contato com a teoria semiética e nao dominam ainda a sua pratica, Andlise semidtica através das letras é uma leitura essencial. Notas * Doutoranda em Semiética e Lingiiistica Geral pela FFLCH-USP e bolsista do CNPq. “* Doutorando em Semistica ¢ Lingiiistica Geral pela FFLCH-USP ¢ bolsista da Capes. Proj. Historia, Sao Paulo, (26), jun. 2003 313

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