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CIDADES COLONIAIS BRASILEIRAS E ESPANHOLAS NA AMERICA: UMA ABORDAGEM COMPARATIVA Flavio Ferreira Introdugao Usualmente se afirma que a cidade colonial espanhola na América, em tragado xadrez, planejada, “racional”, © que este plano é baseado na Lei das Indias de Felipe Il; e que as cidades coloniais brasileiras so ndo-planejadas, “espontaneas’, “irregulares”, “organicas’, para nao dizer “irracionais". A racionalidade humana seria demasiado restrita e acanhada se a sua traduco urbanistica se restringisse a um mero tragado xadrez e regular de ruas compondo uma cidade. Ao contrario, a racionalidade pode abranger configuracdes mais complexas ¢ intrincadas. Neste trabalho, que se restringe a cidades longe do mar, mostramos que estas questées nao s40 portanto tao simples. ‘As Leis das Indias foram escritas em 1570 por Palacios, erudito da Universidade de Salamance, depois que grande parte das cidades coloniais espanholas ja haviam sido fundadas no Novo Mundo. Nao ‘encontramos, em boas bibliotecas, nenhum vestigio de que haveriam leis urbanisticas espanholas anteriores 8 escritas por Palacios. ‘Assim as Leis das Indias explicitam padres urbanisticos e pollticas urbanas jé existentes, em Cidades j4 existentes e muito provavelmente foram elaboradas do mesmo modo que Christopher Alexander elabora seus Pattems: por observacao inteligante de obra jé construida. Portanto a cidade colonial espanhola, nao se basela nas Leis das Indias. E o contrério: as Leis das Indias é que se baseiam em parte nas cidades coloniais espanholas jd construidas. Neste trabalho cito diversas vezes essas leis, mas sempre com esse entendimento. : Do lado brasileiro também existe padrdes urbanisticos bem definidos, mas que néo foram ‘explicitados como do lado espanhol. Neste trabalho hd uma primeira tentativa de explicitar esses padroes. ‘Accrenga de serem as cidades brasileiras “espontaneas’, ndo-planejadas, deve- se ao restrito ‘entendimento que usuaimente temos do que ¢ uma cidade planejada. Para nés urbanistas, uma cidade & planejada somente quando seu plano é definido previamente em desenhos e textos, executado por profissionais, e construfdo por um poder formal quase que instantaneamente. Entretanto nada se consir6i gine o que onstrui Essa Imaginagao, essa imagem, surgida da interagao de um conjunto de pessoas que ccompartiham alguns valores culturais, implementada pouco a pouco no terreno e por isso modificada ao longo do tempo, 6 cificilmente entendida como um plano se nao tiver 0s quesitos formais acima mencionados, mas pode ter todos os elementos principais de um plano: o preciso entendimento do sitio, os padres de localizagao de ruas e pragas, as relagdes claras entre espagos livres e construldos e entre espacos publicos privados, a imagem prévia da cidade quando construida. E 0 caso das cidades coloniais brasileiras longe do mar, que vistas desta maneira so to planejadas quanto as espanholas. ‘Assim as grandes diferencas entre a cidade colonial espanhola ¢ a brasileira ndo se devem a de que uma é ‘planejada’ e a outra 6 “esponténea”. Quais s4o entdo as causas destas diferencas? Este trabalho propée hipoteses para as causas que geraram padroes urbanisticos tao diversos: {a) as diferengas nas metrépoles; (b) as diversas paisagens naturais e humanas na América; (c) os diferentes procassos de colonizagdo © os papéis das cidades nestes processos resultando épocas de fundagdo ritmos de construcao diferentes; (d) os critérios de localizagdo das cidades e (e) 0 uso dos campos circundantes. Estas diterengas definiram cidades com padres urbanisticos diversos. As diferencas espaciais estudadas sao: as pragas e as ruas, 05 lotes, as casas, a densidade e a textura do tecido urbano (as éreas publicas e privadas, as areas livres e construldas), a paisagem dos campos circundantes e a imagem urbana. Portugal e Espanha E curioso que as cidades italianas, vanguarda do Renascimento, onde a bisssola fol inventada, as primeiras cidades que tomaram conhecimento da pélvora no Ocidente, as primeiras onde se fabricaram WW Senmanio De HisTORA DA ClADe © 00 URBASUO 357 canhées e que tinham vasta tradigéo de navegagéo maritima no Mediterraneo, nao articularam esses recursos para descobrir um novo caminho para as Indias apés a tomada de Constantinopla pelos turcos. Poder-se-ia argumentar que a Ita nao era unificada aquela época e que cada uma de suas cidades nao tinha recursos para tdo gigantesca empreitada. Entretanto apenas tres navios tocaram a ‘América Central em 1492, Vasco da Gama descobriu 0 novo caminho pata as Indias em 1497 apenas com quatro navios, Pedro Alvares Cabral chegou a Porto Seguro em 1500 com treze navios e também pouces navios portugueses chegaram a Corte Real, agora Nova Escécia, no mesmo ano. Alguns mercadores de \Veneza tinham frotas maiores. Este tipo de empreitada era provavelmente vista como irrelevante pela a refinada burocracia das cidades-estado italianas. Mesmo Maquiavel ndo reconheceu a potencial importancia das descobertas maritimas.” Na mesma ordem de idgias ¢ também curioso que a China nao tenha atravessado 0 Oceano Pacifico e chegado & América. Essas tarefas herdicas foram assumidas pelos entéo novos estados territoriais daquele tempo, (© combate aos drabes, que dominavam o sul da Peninsula Ibérica, levou a uniticagao de pequenos reinos cristdos e deu as novas nagées 0 espirito épico necessario para enfrentar o oceano e descobrir um novo ‘mundo. ‘A expansio portuguesa e espanhola além do Attantico pode ser vista como uma continuagao dda oxpansao anterior destas nacdes dentro da Peninsula Ibérica sobre os territérios arabes. ‘Os mouros foram 05 catalizadores da unificagao de pequenos reinos do norte da peninsula rica: a necessidade de combaté-los levou-os & unificagao. Castela hesitou em se unir a Portugal ou a Aragio. Sua decisao final de se unir a Aragdo dividiu a peninsula em um Portugal sem acess ao Mediterraneo, pequeno, entéo com um milhao de habitantes, tonge do contexto europeu e consequentemente com tendéncias a ser “arcaico’, e uma Espanha ‘grande, entéo com oito mithdes de habitantes, ligada tanto ao Allantico quanto ao Mediterraneo, portanto ‘uma nagao importante no contexto europeu e consequentemente tendendo a ser “moderna”, Como exemplo podemos comparar os grandes livros das duas nagoes: Os Lusiadas e D.Quixote de La Mancha. Embora Cervantes seja apenas cerca de 22 anos mais jovem que Camées, seus livros parecem distantes de séculos. Portugal nao teré El Griecos, Goyas ou Picassos. Os espanhéis estavam muito familiarizados com 0 processo de construgao de sistemas de novas cidades em seu préprio pais, antes da colonizagéo da América. Proporcionalmente os arabes invadiram uma érea maior e subjugaram uma populagéo maior na Espanha que em Portugal. A presenga rape na Espanha (711-1492) fol também maior que em Portugal (711-1279). Esta maior presenga arabe ina Espanha ocasionou duas geragoes de novas cidades cristés. Primeiro quando os Arabes invadiram 0 sul do pals, muita da populagao crista ali residente fugiu em diregao ao norte. Salamanca, Avila, Segovia, Burgos cresceram muito em um curto periodo de tempo. Esta primeira geracao de novas cidades fol fundada ao longo do Caminho de Santiago de Compostela: Puente de la Reina, Santo Domingo, Castro, Leriz, Savoia. Em Castela foram fundadas Briviesca e Fonseca, em Vascongaz: Durango, Tolosa, Salvatierra, Bilbao, Marquina e Guernica. ‘A outra geragao de cidades novas surgi quando os espanhois invadiram os arabes ao sul, como parte de sua esiratégia militar de conquista, como Puerto Real (1483) em frente a Cadiz e Santa Fé (1490) em frente a Granada, construida em 80 dias. ‘Acampamentos militares eram estabelecidos adjacentes a cidade assediada, onde seus reis (Fernando e Isabel} e a corte viviam e dali manejavam todos os negécios de estado; isto é especialmente verdadeiro na iltima parte da Reconquista, como no caso de Granada. ‘0 resultado deste tipo de controle territorial é uma rede de cidades servindo como postos defensivos ao longo das linhas de comunicagao e suprimento. Cada cidade tinha uma area de influéncia para agricultura e expansao. Este sistema fol particularmente exitoso onde os teritérios eram desconhecidos € a populagdo possivelmente hosti. Esta estratégia permitiu um controle gradual, conectando cada nova cidade a uma jé existente © assim o suprimento através destas linhas de comunicagao eram possiveis.* Em Portugal nao houve tamanha mobilizagao de populagGes. A estratégia portuguesa de ‘combate aos rabes também nao envolvia a fundagao de cidades. Portugal, por pequeno, teria que concentrar esforgos para conquistar 0 oceano: Henrique © Navegador (1394-1460), que conquistou para Portugal o primeiro territério além-mar (Ceuta, 1416), tundou a Escola de Sagres financiado pelos banqueiros do Porto e de Lisboa, juntando gedégrafos, navegadores & IV SEWNARIO DE FISTORIA DA COADE EDO URGANISNO 358 rojetistas de barcos de todo o mundo ocidental. Com os conhecimentos desenvolvidos nesta escola Portugal foi o primeiro pals europeu a descobrir terras no oceano (Agores, Candrias, Cabo Verde) e a treinar navegadores que se tornaram grandes descobridores, como Vasco da Gama. Américo Vespuci Fernando de Magalhdes e muito provavelmente Cristovao Colombo. 0 territério americano: povos e paisagens (0 Tratado de Tordesilhas (1494), assinado por Portugal e Espanha nas vistas do papa espanhol Alexandre VI (0 pai de Cesar Borgia), que definiy as dreas de infiuéncia de Portugal e Espanha no planeta, dividiu a Amética de tal forma que todas as éreas mais civilzadas e densamente povoadas, como a dos Incas e Astecas, estavam do lado espanhol, ficando para Portugal dreas pouco povoadas, e percebidas pelos portugueses como vazias, com nativos em estégios mais primitivos de civilizacao. Estima-se que 0 México, no tempo da colonizagdo espanhola tinha cerca de 25 milhées de habitantes @ que o império inca reunia mais ou menos 17 milhdes de habitantes. A paisagem mexicana e andina é de grande escala. Nos Andes, geologicamente novo, grandes montanhas grandes vales de fundo plano com tengo! fredtico raso ¢ terreno férti, no México, grandes platos. OBrasil, na mesma época, teria cerca de 2 milhdes de indios, e sua parte a leste do meridiano de Tordesihas teria mais ou menos 400 mit habitantes. O territério brasileiro, geologicamente antigo, tom Luma topogratia peculiar. Uma cadeia de montanhas ao longo do mar, com vales estreitos e ingremes, coberta de florestas, deixa poucas planicies entro ela © o mar. Existem terras férteis, com boa topogratia, entéo ‘cobertas por densas florestas, mas com excegao das montanhas da costa, da floresta amazénica, e dos pampas, a maioria das terras & arenosa, pouco féri, com lengol freético gradativamente mais profundo, do talvegue ao topo das colinas. A paisagem ¢ de pequena escaia, na sua maioria composta de pequenas ‘colinas de forma convexa, com topos menos inclinados do que 0s vales, chelos de insetas e sujeitoa inundagoes. Controle e exploragao do territério Sendo 0 objetivo dos dois lados do Meridiano das Tordesithas controlar, explorar e depois expandir 0 territério da colénia, as politicas para atingir estes objetivos eram bem diversas. A colonizagao do lado espanhol pode ser vista como uma conquista de nages. Estas nagdes se localizavam no interior do continente, longe do mar, no planalto mexicano e nos Andes. Por que estas ages ai se localizaram e ndo nas planicies mais préximas do mar? Femand Braudel , descrevendo uma situag&o européia nos ajuda a entender esta localizagao: "Por que era assim? Talvez por causa da variada distribuigao dos recursos nas montanhas, ¢ também porque as planicies eram originalmente uma terra de Aguas estagnadas e malaria, ou zonas através das quais 0s instdveis leltos dos rios passavam. As ‘densamente povoadas planicies que hoje so a imagem da prosperidade so a culminagdo de séculos de doloroso esférco coletivo.”* Explorar 0 terrt6rio na América espanhola significava se apropriar de ouro e prata jé nas, ‘mos dos nativos ou em minas jé descobertas por eles. Agricultura era também uma atividade bastante dosenvoivida na América espannola antes da conquista. No lado brasileiro, ao contrario, essas atividades tinham que ser desenvolvidas do comego, com 0 controle das portas do territério, percebido como vazic Essas portas estavam a beira-mar e eram os poucos portos naturais, em baias @ canais. ‘Assim no lado espanhol controlar territério significava controlar os grandes povos nativos, © no lado brasileiro significava_ controlar um espago percabido como vazio. Estas duas tarefas, uma complexa, a outra simples mas érdua, tinham que ser cumpridas: a primeira pela moderna, grande e populosa Espanha e a ultima pelo pequeno e desabitado Portugal. Além disso Portugal estava ao mesmo tempo profundamente envolvide no comércio com as Indias, explorando a rota descoberta por Vasco da Gama e estabelecendo colénias no Oriente. Disto resuttou diferentes politicas e diferentes ritmos de colonizagao. Porisso diferentes eritérios de localizar e projetar as cidades foram adotados. Consequentemente ha um intervaio de séeulos entre as cidades brasileiras e espanholas Jonge do mar: as primeiras cidades espanholas no interior foram fundadas no século XVI @ a maioria das cidades brasileiras coloniais do interior do pals foram fundadas no sdculo XVIll Politicas de colonizagao, critérios de localizagao das cidades, prazos de construgao, forma e imagem urbana. WWSEMINARIO DEHISTORA OA CIADEE DO URBANO grandiosa. Os espanhdis escolheram A CIDADE, cuja construgao é uma iniclativa da coroa, como instrumento de triplo propésito: controlar, explorar e expandir seus terrtérios na América. ‘Além de governo, atividades de comércio e de servigos, as cidades espanholas no Novo ‘Mundo também eram destinadas a abrigar toda a populagao envolvida na atividade agricola, desenvolvida na sua periferia: “ 0 resto da terra deve ser designado como Area agricola, de tal forma que deve haver tantos lotes agricolas quantos lotes urbanos existentes na cidade..." (Lei das indias, item 130) Esta politica de concentrar os colonos em pontos densos 6 coerente com um territério j& ‘ocupado. As cidades, para controlar os nativos, oram localizadas perto ou em cima das areas mais, ‘densamente povoadas: “Tendo escolhido um sitio onde a cidade deve ser construlda, onde deverd haver..um povo nativo.” (Lei das indias, item 111) Também muito importante, em territério possivelmente host, era que @ construgao da cidade fosse répida: ‘Os fiéis executores e arquitetos e pessoas encarregadas pelo govemador deve ser muito cuidadosos na performance. Eles devem se apressar no trabalho e na construgao para que a cidade seja construida em tempo curto." (Lei das indias, item 135) © tragado em quadricula é um meio simples ¢ rdpido de marcar a cidade no terreno, sendo ele plano, como no fundo dos grandes vales andinos e no planalto mexicano. Tragados em quadricula foram o so usados muitas vezes, quando a rapidez ¢ necesséria: nas cidades da colonizagao romana frente aos barbaros; nas mais de 400 bastides no Sul da Franga, na Idade Média, construldas por tranceses € ingleses durante a Guerra dos Cem Anos; na Espanha frente aos arabes, como ja vimos; e até hoje, nas invasbes urbanas da América Latina frente a policia. ‘Além disso as cidades tinham que ter uma imagem grandiosa para impressionar e cooptar os nrativos: “Os indios nao devem adentrar os precintos da cidade antes que ela seja conciuida e colocada em condigdes de defesa, @ as casas construidas, de maneira que quando os indios a verem, eles devern se ‘maravilhar @ entender que os espanhéis se estabeleceram para sempre, nao somente para o momento, € ‘assim eles o temardo tanto que desejarao a sua amizade.” (Lei das Indias, item 137) ‘As quadras tinham aproximadamente 90 metros de lado e as casas ocupavam quase todo 0 lote, com patios internos. As cidades eram pequenas em area, quando fundadas: a érea urbana de Caracas ‘abrangia um quadrado com cinco quadras de lado, isto 6, cerca de 500 metros, pertazendo 24 quadras e ma praga central. Portanto toda a cidade tinha cerca de % de quilometro quadrado. A igrejas e prédios oficiais sao grandes, muito maiores e mais elaborados do que do lado brasileiro, superdimensionados para o tamanho e a populagao das cidades. ( resultado ¢ uma cidade pequena, compacta ¢ densa, sem arvores e com pouca vegetacao, com editicios publicos grandiosos e circundada por urn campo cultivado. Os portugueses escolheram instrumentos diversos para controlar, explorar e expandir 0 territério. Para controlar 9 territério vazio, cidades e fortalezas foram construldas nas suas entradas, os portos naturais: uma bala em Salvador e Rio de Janeiro; um canal entre uma ilha e a costa em Vil6ria e Floriandpolis. Para explorar o territério foi escolhida a grande propriedade rural, a sesmaria, doada cada uma a uma pessoa, que deveria exploré-la com seus prdprios recursos. Esta politica de doar grandes terras a individuos € coerente com uma metrépole com pouca populagao € pouces recursos, ‘A maioria das cidades foram consequéncia desse tipo de exploragdo, que as precederam em ‘cada regido. Somente as cidades onde havia mineragdo de outo surgiram sem o apoio das sesmarias. A maioria das sesmarias se estabeleceu em terras dridas, jé que as terras férteis com densas florestas eram Jiffceis de serem exploradas, por falta de mao de obra e instrumentos para pd-las abaixo, Por isso as regides de terras férteis, como partes do interior de Sao Paulo e do Norte do Parana, foram colonizadas apenas no século XX. ‘A fundagao das cidades era, na sua maioria, iniciativa dos sesmeiros e fazendeiros, que necessitavam de apoio de comércio e de servigos préximos, e talvez de espacos alternatives de morar para graduar a populago em suas terras. IW SeumAnIO Of HISTORIA DA CIDADE © DO URBANTSHO, 560 As cidades eram portanto destinadas a abrigar uma populagao nao ligada diretamente as atividades agricolas. Saint-Hilaire, o cientista trancés que viajou pelo Brasil por volta de 1820 observou. que “em todas as regides do Brasil as atividades agricolas so longe umas das outras’, isto é, nos nuicleos centrals das sesmarias, e descrevendo como exce¢ao Porto Alegre, afirma que “nesta regiao, a0 contratrio, as terras cultivadas toca umas as outras, como na Europa, e nos anuncia que ha uma ‘cidade por perto.”* Mas sendo grandes as sesmarias ¢ fazendas e tendo as cidades de se localizar entre elas & portanto distante de seus nicleos mais cultivados, a cidade tinha que produzir parte de seus alimentos, principalmente aqueles que nao podem esperar um longo tempo gasto em transporte para serem Consumidos, como frutas, vegetais © cares. ‘Como deveria ser entdo 0 plano de uma cidade Ionge dos niicleos cultivados das sesmarias; ‘em terreno acidentado, convexo e de pequena escala; com fengol tredtico gradativamente profundo & medida que a terra fica mais plana nos topos das colinas, tomando dificil o abastecimento da aqua para a populagao; com vales inclinados e sujeitos a enchentes; @ ainda tendo que produzir alimentos dentro de si mesma? A cidade nao tinha que ser grandiosa, j4 que nao tinhamos nativos que construiram cidades como Cuzco, Tehotipuacan e Tenochticlan para com eles competir. Também nao necessitava ter um plano simples para ser marcado no terreno, jé que os prazos nao eram importantes. ‘A cidade colonial brasileira resolve, com inteligéncia e clareza, este problema dificil AAs ruas (@ as casas que as margeiam) sao localizadas em uma curva de nivel, a meia encosta, e so portanto curvas; longe o suficiente do talvegue para evitar insetos e enchentes, mas ‘sobre um lengol fedtico ainda raso. Assim os pocos de 4gua podem ser menos protundos, diminuindo um trabalho gigantesco, hoje dificil de ser avaliado: retirar 4gua do pogo a mao todos os dias para todas as necessidades domésticas. Os lotes se estabelecem da rua para baixo até o talvegue ¢ da rua para cima até.o topo do. morro. Consequentemente, cada lote além da casa tem uma grande area livre, o quintal, onde é.produzida parte importante dos alimentos: vegetais, frutas, came de pequenos animais. ‘A praga principal se desenvolve a montante desta rua a meia encosta, e a igreja é colocada 16 seu lado mais atto. Em um segundo estagio, outras ras se desenvolvem da mesma maneira, em encostas proximas. Estas ruas sao ligadas umas as outras por becos, apenas para circulagao, descendo as encostas ‘nas pendentes, ¢ cruzando os taivegues em pequenas pontes e pinguelas, Em um terceiro estagio, outras pragas com igreja S40 construidas no topo dos morros, @ seus acessos sao gradativamente transformados também em ruas com moradias, com abastecimento de agua mais trabalhoso. Eventualmente, melhor conhecido © saneado 0 sitio, alguns dos becos que ligam.as ruas a mela encosta se transformam em ruas com moradias, € alguns largos @ igrejas so construidos mais préximos do talvegue, resultado uma cidade enorme @ pouco densa se comparada a cidade colonial espanhola. ‘Mas esta pouca densidade néo é percebida por quem caminha pelas ruas, ladeadas de casas construidas de divisa a divisa do lote, que € perteitamente perceptive! para quem a olha do alto. Do allo se observa uma cidade verde devido as drvores dos quintais, que somam muito mais drea do que a das construgdes. A cidade 6 circundada por um campo néo cuttivado, arido, na maioria das vezes com menos drvores do ‘que @ propria cidade. E importante observar que 0 que esta acima do escrito 6 um modelo, com todas as simplificagées da modelagem, e n&o urna cidade colonial real, que embora siga este modelo é acompanhada de diversas excegdes que o transgridem. Entretanto, esta consciéncia do grande tamanho da cidade, da ‘sua conformagao a uma topografia peculiar e a importancia dos quintals pode ser observada em um dos poucos documentos prescritivos sobre planos de cidades na época: “a area urbana terd meia légua quadrada (9 quilémetros quadrados) ea demarcacao desta area deve ser feita de acordo ‘com a topogratia, nao sendo necessario definir uma rea quadrada, O importante é que esta drea soja a acima mencionada. No sitio sera destinado um quadrado para a praga, tendo 500 palmos (110 metros) cada lado, e em um lado deve ser localizada uma igreja. As ruas, tém que ter no minimo 40 palmos (8,80 metros) de largura. Nas ruas e na praga devem ser construidas casas em boa ordem. O funde das casas deve ter suficiente espago para os quintais.”* ————————— IV SEMNARIO DE HISTORIA DA CIDADE FDO URBANSNO 361 Conclusées Das diferencas qualitativas e quantitativas de suas metrépoles, das diferentes tradigbes urbanisticas na Espanha ¢ em Portugal, das diferengas demograticas e culturais nos dois lados do continente americano, das diferentes paisagens e sitios, resultaram politicas diversas de colonizagao, com diferentes papéis para as cidades. Deste conjunto de diferencas resultaram formas urbanas diversas de cada lado da Amética Latina. ‘Ao contrério do que usualmente se cré, as cidades coloniais brasileiras tm padroes urbanisticos t&o bem definidos e planos urbanos tao “racionais” quanto as cidades espanholas. © que est faltando é a clara explicitagao destes planos e padrées urbanisticos em textos e desenhos, tarela a ser realizada por nés urbanistas da forma como Palécios explicitou os planos das cidades espanholas nas Leis das Indias em 1570. O presente trabalho € uma primeira tentativa desta explcitagao. Creio que estamos um pouco atrasados. Notas 1 = Braudel, Fernand - The Mediterranean and the Mediterranean World of Philip I, Harper&Row Publichers Ino, Nova lorque, 1976, Vol 1, p. 671 2-- Frontado, Guilerm - has Leyes do Indias: observation of is invance on the sincture of he physical space inthe Latin ‘Ameccan cies. Tese, MT. Cambridge, 1860. p. 94 3 Braudel, Femand’- The Mediterranean and he Mediterranean World of Philip i. Harper&Rlow Publishers Inc. Nove Torque, 1976. Vol. 1, p. 52. 4- Saint-Hilaie, Auguste - Viagem ao Rio Grande do Sul. Esitora ltatala, USP, SAo Paulo, 1974. p. 28. '5- Fortes, Gen Jodo Borges - Os casais acoranas. Martns Livreiro editores. Porto Alegre, 1978. p 92. W'SEVINAMO DE FISTOSIA Da CIDADE € DO URBANISO 562

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