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PARTE II~NOTAS CRITICAS Homenagem a Mozart Dan Giovanni: uma histéria exemplar A hist6ria exemplar de Don Giovanni, «o dissoluto punido», comeca antes da abertura da 6pera, Bis o que ¢ explicitado na encenagao de Achim Freyer, agora levada ao paleo do S. Car- los: Don Giovanni recebe do criado, Leporello, uma mascara, e entregahe, por sta vez, 0 seu. inconfundivel chapéu com plumas brancas. Completado o disfarce, desaparece atrés da cor tina. E 0 sinal para 0 maestro dar inicio @ abertura. Agora, 0 paleo é 0 «espaco vazio» (empty space ) de que fala Peter Brook: um circulo que faz lembrar um relégio, com o xit (ntimeros romanos) no topo e um elemento decorativo a debruar a base ~ um elemento que ostenta as formas ambiguas de um objecto erdtico e que, a partir da cena do cemitério, se transforma hum objecto macabro. O que vai seguirse é o slivro de horas» de Don Giovanni. Travamos conhecimento com ele ao dar da meianoite, mas as mudangas de luz, no decurso da abertura, indicamnos que outras meias-noites houve como esta e que uma meia-noite vira que sera a sua hora suprema — como se a abertura substituisse a interpelacao directa do piblico por um dos actores: «Vinde ver e ouvir, meus senhores, a hist6ria das tmpias faganhas do burlador de Sevilha, o célebre Don Juan, ¢ de como ele mereceu na fogueira a justa expiacdo dos seus exi- mes..» Tal 6 0 registo da encenagao: o do teatro de feira, ora remetendo para a Espanha de Tirso de Molina (ou para a Espanha da Inquisicio), ora para a veneriana commedia dellarte, ra para o teatro de marionetas do século xv. ‘Uma tosca cortina de correr é quanto basta para articular 0 espaco cénico. E ela que, aca bada a abertura, e novamente corrida, delimita o «interior» (a cémara de Dona Ana) do cexte rior», onde Leporello, vigilante, se lamenta da que leva e ~ enfiando na cabeca 0 chapéu de Don Giovanni ~ nos revela o seu desejo secreto de gozar os privilégios da fidalguia... E ela que, a0 longo do espectaculo, vai ser «a portay, para o pibico), assim como on Giovanni podia ser um dos dois amos que aquele servia na comédia de Goldoni. E por que se trata de mascaras,e se elebra o teatro dentre do teatro, ¢ se expoe o artificio (a oft ina), ¢ se corta com a tradigao do teatro ilusionista e se procura redescobrir Mozart para além da sua recepsao romantica ou naturalista (esta ltima cristalizada no filme de Losey), pulveriza-se igualmente a «quarta parede». As lzes da sala aoendemse ¢ os espectadores sto directamente interpelados: ou por Leporello, no final da aria do catélogo (sv6s sabeis o que cle Ihes faz», a elas, as mulheres..., ou por Don Giovanni, que, na chamada «aria do cham pagner, se dirige as espectadoras («56 esta noite, deverei acrescentar mais dex & minha Tista..»}, e, na cena do banquete, atira rebucados para a plateia, ete. Dentro da mesma orien tacio antislusionista, o desenho de luzes ¢ bastante dinamico e geometrizadlo, com mudancas Druscas frequentes (fragmentacao, descontinuidade, montagem}. De Mozart a Brecht ‘A autoreflexividade do teatro acompanha toda a representagao: os actores no representam ime diatamente as personagens, representam os actores de uma companhia ambulante. Esses sim, s40 «quem nos conta a historia de Don Juan. Quando, por =xemplo, precedendo 0 inicio do segundo acto, Leporello varre a cena, nao &0criado Leporello que ali esta impar os aposentos do seu amo, apéso stim; 6, sim, o actor do teatro defera, «Arlecchino», que dispoeo estrado para se retomar a tepresentagao. A queda pretensamente acdental de um projector durante o festim (aliés, muito bem aproveitada como mais um elemento de desconstrucao da «quarta pareder, num contexto de esordem} e a sua ereparacao> patodistica, precedendo igualmente o inicio do segundo acto, valem também como exemplos desse jogo entre diferentes planos da representagio. ‘A coeréncia da concepcio implica, naturalmente, que nao haja sendo «gestos citéveis» na {nteracgdo cénica~ gestos que, em certos casos, ndo resultam apenas da sua pertenga a da obra, £ 0 caso do sinal de V, semelhante ao V da vitéria, repetido por Don Ottavio em todas as situagdes em que se alude expressamente a vendetta ou vinganca da morte do comendador. £ 0 caso do gesto de mdas pastas, que comeca por ter funcao de tornar explicto o earacter de prece 4a intervengao das «trés mascaras» (Donna Anna, Donna Elvira, Don Ottavio, disfarcados) antes do Viva fa Liberté, que reaparece no final, envolvendo as mesmas, Zerlina e Masetto. £ ainda «0 caso do dedo indicacior levantado, em atitude de reprovagao ou tutela moral ~ gesto (partithado por algumnas destas personagens e pelo comendador) que adquite particular relevo na cena da ‘morte de Don Giovanni, quando aparece reproduzido numa enorme mao de pedra colocada sobre o estrado, ao mesmo tempo que decorre o didlogo entre ambos («Arrependet, celeradol»; «Nao, velho infatuado!»). 0 eixo conceptual de toda a encenacio recondu-se a articulagao destes Inés gestos:o gesto de tutela moral é denunciado como gesto de vinganca, enquanto 0 de prece o € como justificagao ideologica da punicao de D. Juan num autode- Com tudo isto, Freyer mostra, afinal, que Mozart poderd estar muito mais proximo de Brecht/Weill do que de Wagner ou Verdi, ¢, sem dlivida, incomparavelmente mais préximo de Brecht/Weill do que do Beethoven do Fidelio. Torna-se evidente que no Don Giovanni nao ha herois positivos ¢ que, Mozart, como compositor, nao esta em empatia com nenhuma daquelas personagens: nem com 0 protagonista, nem com Leporello, nem com Don Ottavio, nem com Donna Anna, nem com Donna Elvira nem com Zerlina, nem com Masetto, nem com 0s valores que qualquer deles representa Trata-as, de facto, como mascaras, olha distan ciado para elas, desvela a cada passo 0 que nelas existe precisamente de artificio. ‘A moralidade final surge, assim, mais do que nunca como uma convengao: uma conven- cao que Mozart toma enquanto tal para por em evidéncia o que ha de convengdo na moral triunfante, Cinco personagens léem num missal sa antiquissima cancao» que celebra a sjusta punigao dos impios». Mas essas cinco personagens estao todas ligadas a Don Giovanni por relagdes de amor édio que permitem supor nao se tratar de moral, mas sim de vinganca. Por isso, elas aparecem na cena anterior, encapucadas, como se fossem os proprios algozes que consumam a tortura € morte (por desmembramento) de Don Giovanni num auto-de,fé da Inquisicao (para isso serviu também a Inquisigao como instrumento de vingangas pessoas.) 239 OPERA COMO TEATRO smtretento prem, Leporelo, um poueo& parte, embora cante com elas (9 mest texto), ndo a vam mga, nas sim no catlogo das conquistas de Don Giovanni» 629 $A de cena, com sans salts de Azlecchino, sob chapéu olante ¢ «mascara de Don Juan denos logo a on cander qual 60 género de epatrao que vai procurar 2 estalager.-? Problematizar a obra ‘Achim Freyer procurou, pis, uma aproximagao a obra que a Nberaste dda autoridade conserva: dora de uma tradigao que a canonizou em abrapprma e que, 30 canonizé-la, acabou por liquidar o que neta haveria de mais inovador ou inconformists Dat a sua tentativa de empreender wm “salto de tgee para 0 passador, no sentido de Walter Benji iS 6, nao como «restauracaor ‘ou historicizacio» museol6gica da obra, mas sim com> tentaiva de surpreender nela energias, ddimensoes, momentos, de uma «moderndade» esquecida, {nterrompida, reprimida pelo acade- ‘nkmo da cultura instalada, Ao procurar dar com a obra como se ni & conhecesse (como se spunea a tivesse visto ou ouvido),Freyer cumprit assim, © «Prime rmandamento> de Felsens teins ehegar ao conceito sem spréconecitor,encenar antes de wade com ‘base no estudo da part: tuna, Esse esforgo hermenéutico ~ hoje ei dia requarido a qvalduer cencenador digno dese ‘nome - conduz, porém, inevitavelmente, a uma problematizagaoy ‘qual, por sua vez, poe em paras ideas feitas dos intérpetes, dos especaorese dos eticos, uals ANG ‘que gozam o prazer da repticio(crsigindo os pas sempre que ets alerayh mu) pormenor 0 cinone do onto de fadas que se habituaram a ouvir), todos eles proferem: & partida, encontrar na obra agquilo que conhecem ou ulgam conhece... novo conceto choca com o pré-conceitoque cada tim leva para o especticulo,e,mormente no caso de uma tradiqao com 9 do Sa0 Carlos ~ que ser vca favorece a formacio de intérpretes © eceptoves actvos, produrores de sentido -, no amir que haja muito boa gente que desista de pensar o que esta aver ¢ OTE (ou, por outras paves, que renuncie desde logo 20 exergy de desir reduza tudo a um mero juizo de gosto. Ea propria ideologia estética, cura instal, ve pode vedar aos seus portadores uma stitude receptiva, 20 contriio do que aconteceriacem um publi considerado ignorante ~ um pilblico popular~ que se divertiria com 0 espectécu, assimilando‘o 2 sua maneira. 240 PARTE I -NOTAS CRITICAS Em encenagoes como esta, que assentam na coeréneia do todo, deseja-se que nao haja vede- tas, mas sim gente de teatro, que mostre, também no plano da interpretacdo vocal, 0 teatro que se contém na misica, Natale de Carolis (Don Giovanni, José Fardilha (Leporello), Alexandrina Pendatschanska (Donna Anna], Conal Coad (Comendador), Yan Beuron (Don Ottavio}, Barbara Fritoli (Donna Elvira), Ana Ferraz (Zerlina) e Luis Rodrigues (Masetto) constituiram um elenco dirse-ia perfeito. As mascaras e 0 estilo de direceao cénica contribuiram, als, para salientar ainda mais as virtualidades dos intérpretes, para valorizar a construcao da sua dupla persona gem, evitando a tendéncia, que se nota frequentemente (mesino nos melhores cantores), para repetir clichés que sio a sua marca pessoal e que os torna em cena mais eles proprios do que as personagens que interpretam, Mas José Fardilha, que se tornou um actor-cantor de excep¢io, ou ‘Ana Ferraz, ou Luis Rodrigues, para mencionar apenas os portugueses que me foi dado pre- senciar (primeira e terceira récitas), formariam igualmente um elenco equilibrado com os res tantes portugueses que vao participar nas iltimas récitas: Jorge Vaz de Carvalho (Don Gio: vanni), Silvia Mateus (Donna Anna) ¢ Elisabete Matos (Donna Elvira. Isto significa que, com. tum pouco mais de esforco e de vontade politic, teriamos conseguido um elenco de caracteris ticas /ocais e, por isso, mais apto a responder A previsivel procura do paiblico, em Lisboa e nou tas cidades, aumentando-se 0 nlimero das representagées ¢ a rentabilidade cultural do orca- ‘mento do S. Carlos. Ainda ha bem pouco tempo, um grupo de cantores e masicos portugueses levou a cena um Don Giovannt notavel, desde a encenacao (Pesiro Wilson) ~ que nasceu de uma atitude semelhante de redescoberta da partitura,e por isso conduziu a uma outra feitura da obra, nao menos legitima do que a de Achim Freyer ~até a interpretacio vocal-cénica, cuja vivacidade «cujo dinamismo nao ficavam atrés dos desta producao do 8. Carlos. 0 que faltou aqui (na pro: dugio do S. Carlos), e nao por deficiéncia da concepgao ou da encenagao, foi essa interaccao intensa que s6 pode ser produto de um trabalho de criacio e amadurecimento colectivos e do entusiasmo ligado a0 sentimento de identidade de grupo. Neste sentido, € nao obstante a sua direcgao vigorosa (mormente no primeiro espec.éculo), Ivor Bolton pareceu induzir menos ener- gia mésicoteatral do que aquela que, na tal produgao de uma companhia ad hoe portuguesa, ‘um simples quinteto (cordas e piano), sem maestro, logrou desencadear. Primera publicacto in: Vrtce, 88 1990}: 8680. 241 |AMBARE® ~ Ideas no Papel, S.A. ua Manuel Pinto de Azevedo, 363 ~ 4100-321 Porto “Teel, 226 151 400~ Fax 226 171 407 Delegacto em Lisboa: ua da Guiné, 66 A ~ 2685:334 Prior Velho TTelef 21 949 S140 ~ Fax 21 941 5257 liveas@ambarpt Dizetos reservados de acordo coms legislagao em vigor Coleco Ambar Referénca, n° 7 1 2005, Mario Vieira de Carvalho © 2005, AMBAR® ~Idelas no Papel, S.A. 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