Você está na página 1de 26
‘Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, (1): 23-48, 1.sem. 1990 ESPACO PUBLICO E ESPAGO PRIVADO NA CONSTITUIGAO DO SOCIAL: notas sobre o pensamento de Hannah Arendt Vera da Silva Telles* RESUMO: Este artigo trata da nogio de espaco pablico no pensamento de Hannah Arendt. Para a reconstrugéo de suas categorias, parte-se das reflexdes da autora sobre © fendmero totalitério na medida em que elas esclarecem essa nogéo central em seu pen= samento. Partindo do problema posto pelo horror da 2* Guerra no qual os critérios de dis- cernimento entre o bem e 0 mal, a verdade e a mentira foram aniquilados, a nogéo de es- paco ptiblico se determina por referéncia a uma experiéncia na qual os homens perderam 0 “mundo humano” como medida de suas vidas, na qual predominava a soliddo e impoténcia de existéncias privatizadas e na qual, ainda, se dissolveu a nogdo de liberdade ptiblica, en- quanto forma de sociabilidade politica soldada no reconbecimento do direito do outro a opinido ed acao. UNITERMOS: espaco péblico, espaco privado, esfera pablica, esfera privada, mo- deridade, totalitarismo, tradico, convivéncia humana, civilidade, democracia, cidadania, igualdade, diferenca, direitos. ‘As reflexes de Hannah Arendt sobre os acontecimentos que envolveram a 2° Guerra Mundial so pertubadoras, por aquilo que ela conta, pelas questdes que sua nar- rac&o suscita pela interpretacio que propée para sua elucidacéo, Para as notas que + Professora do Departamento de Sociologia da FFLCH-USP. 24 TELLES, Vera da Silva. Espaco pliblico e espaco privado na constituigo do social: notas sobre o pensa- ‘mento de Hannah Arendt. ‘Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 21): 23-48, I.sem. 1990. se seguem, tomaria como ponto de partida o que Hannah Arendt nos apresenta como uma experiéncia radical, na qual os critérios que permitiam aos homens distinguir no mundo a verdade da mentira e o bem do mal, foram subvertidos. E no limite, aniquila- dos. E se essa questio importa € porque pée em foco o que ela chama de “‘fragilidade dos negécios humanos”’. Fragilidade que é inerente, diz Hannah Arendt, a prdpria con- dicéo humana, mas que ganhou significacio politica a partir do século XIX. Nesse caso, a fragilidade dos negécios humanos explicita a experiéncia de uma sociedade que fez sua entrada na modernidade. Uma sociedade na qual os homens sao obrigados a enfrentar os problemas da convivéncia humana sem as garantias que, antes, a religifo a tradicdo podiam oferecer. Se ambas perderam sua credibilidade no mundo moderno, isso acarretou ao mesmo tempo, diz Hannah Arendt, a perda da autoridade que 0 passado tinha para os homens ¢ na gual estes se apoiaram, sempre, para se guiar entre as coisas inevitavelmente instAveis ¢ mutantes do mundo. E por isso que, no mun- do moderno, os homens terdo que se confrontar com os problemas elementares da con- vivéncia humana “‘sem a confianca religiosa em um comeco sagrado e sem a protegdo de padrées de conduta tradicionais e, portanto, auto-evidentes” (Arendt, 1979, p. 187). Mas se isso constitui um problema € porque, frente ao inusitado dos acontecimentos que rompem os automatismos da vida cotidiana, os homens encontram-se sem critérios segu- Tos para sua compreensio, compreensdo que ela entende como “‘capacidade de tornar 0 mundo familiar”. Da mesma forma como encontram-se sem critérios seguros para 0 seu julgamento, entendido este enquanto capacidade de “‘discernimento entre qualidades”. E isto significa dizer que os homens encontram-se sem garantias para “‘se orientar no mundo”. Nesta perspectiva, a perda da religido, das tradig6es e da autoridade do passa- do “é equivalente & perda do fundamento do mundo”, mundo que comecou a mudar de tal maneira que “todas as coisas, a qualquer momento, podem se tornar praticamente qualquer outra coisa” (Ibidem, p. 131). Se esses critérios perderam seus pontos de apoio tradicionais, passam a depender inteiramente da contingéncia da convivéncia humana. E, sobretudo, da capacidade de os homens construirem, na e através dessa convivéncia, critérios e referéncias que tenham uma validade intersubjetiva geradora de um senso comum. Mas € precisamente isto — este senso comum — que parece ter sido posto em questo. No século XIX, diz ela, se ainda havia uma capacidade de compreensao e julgamento, esta “era j4 inapta para dar azo de suas categorias e critérios, quando estes eram seriamente postos em questo” (1980, p. 73). Para Hannah Arendt, entre os elementos que definem esta capacidade de orienta go no mundo — vinculada @ compreensao ¢ ao julgamento — esté a faculdade de discer- nimento entre a verdade e a mentira e, também, entre o bem € o mal. Isto significa dizer que estas nao so categorias que se possa derivar do conhecimento teérico e especulati- TELLES, Vera da Silva. Espaco péblico ¢ espaco privado na constituicéo do social: notas sobre o pensa- 25 ‘mento de Hannah Arendt. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 21): 23-48, I.sem. 1990. Vo ~ nio se trata, portanto, das chamadas verdades da razo. Tampouco podem ser de- rivadas de valores supremos dados pela cultura, pela tradicfo ou pela religiao e nos quais se tentou tradicionalmente fundar toda moralidade — no se trata portanto de valo- res situados fora da esfera mundana da propria sociedade. Os critérios de verdade, de justica e de legitimidade so construfdos na experiéncia intersubjetiva que os homens fazem da realidade do mundo. E por isso que dependem do senso comum, que ela de- fine como um “‘sexto sentido” que permite a cada um comunicar-se com todos os de- mais ¢ fazer a experiéncia da pluralidade humana, a partir da qual opinio e julgamento se constituem. Daf 0 aspecto pertubador de suas reflexdes sobre a 2 Guerra. Pois 0 que ela propée € uma indagagao acerca da experiéncia de uma época que foi capaz de pro- duzir o fenémeno totalitério e de uma sociedade que foi, de alguma forma, conivente ou, no mfnimo indiferente & perseguic&o e morte de 6 milhées de judeus. A final, o tota- litarismo néo nasceu do nada e “‘a experiéncia bésica sobre a qual descansa deve ser humana ¢ conhecida dos homens”, quando menos porque 0 corpo politico no qual se configurou “foi concebido por homens e de alguma forma responde as necessidades dos homens” (1974a, p. 560). Esta 6 uma reflexio que emerge do relato que faz do julgamento de Eichmann em Israel em 1961. Mas as questées aqui nfo sio derivadas de uma anélise da realidade hist6rico-social da sociedade alema, A radicalidade do problema vai se desenhando na forma mesmo como tenta definir a natureza do crime cometido ¢ pelo qual Eichmann foi julgado e condenado. Na sua descrigéo, 0 que se explicita € a impoténcia das categorias tradicionais de pensamento diante de um acontecimento que abalava todos 0 pontos fi- X08 nos quais esse pensamento sempre se ancorou para avaliar e julgar as coisas do mundo. Daf a dificuldade até mesmo de tipificar juridicamente 0 crime cometido. Pois niio se tratava de um delito passf{vel de ser qualificado por referéncia ao Estado, a lei ou a alguma norma consensual estabelecida. Eichmann atuava rigorosamente de acordo com a legalidade ~ é verdade que uma ins6lita ¢ inusitada legalidade, apoiada na pala- vra ¢ na vontade do Fiihrer ~ mas que nem por isso poderia ser desconsiderada en- quanto tal, na medida em que fundava uma ordem qual se exigia obediéncia e que en- contrava ressonfincia no que se convencionou chamar de opinio piiblica. Nesse caso, 0 que se punha em cheque era a identificacio, propria do positivismo juridico, entre a le~ galidade e a justica. Mas se os fatos que estavam sendo julgados abalavam a conviccao de que o Estado poderia ser a sede segura de uma racionalidade capaz de garantir um sentido de justia e de moralidade no mundo, também se desmoronava a conviccao de que este sentido poderia se ancorar na forca da consciéncia de cada homem. E estava 26 TELLES, Vera da Silva. Espago pdblico e espaco privado na constituico do social: notas sobre o pensa- ‘mento de Hannah Arendt. ‘Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 2(1): 23-48, I.sem, 1990. nisto o lado mais aterrador da histéria. Pois Eichmann tinha clara consciéncia do que fazia, nio apresentou, em momento algum, diivida ou hesitacdo na realizacdo de sua ta- refa. Nao havia sequer a sombra de algum sentimento de culpa, e arrependimento era algo inteiramente ausente de seus depoimentos — ‘‘s6 as criangas se arrependem do que fazem’, disse ele em algum momento. Aqui, o que se volatilizava era a crenca cristd de que, no fundo da alma de todos os homens, h de residir um sentimento universal de humanidade. E se isto soava aterrador, era porque estava em concordiincia com 0 que a Prética juridica convencionou definir como “‘bom senso’’. Como diz Hannah Arendt, “a boa sociedade alema havia sucumbido a Hitler e a m4xima da religido — no matarés — que guia as consciéncias, havia desaparecido” (1966, p. 322). Mas € na descricdo da figura sinistra de Eichmann que toda a radicalidade da ‘questo se explicita. Pois nfo era uma figura sinistra porque fosse movido por algum impulso perverso ou porque fosse portador de uma personalidade cindida por alguma patologia psicolégica. Nem mesmo havia sinais de fanatismo ou de convicgées ideolé- gicas s6lidas. Era, portanto, uma figura sinistra na sua dimenséo absolutamente banal: “‘os atos eram monstruosos, mas 0 responsével era comum, como todo mundo, nem de- monfaco, nem monstruoso”. E a isso que Hannah Arendt se refere quando fala da ba- nalidade do mal. Um mal que nfo tem nem profundidade, nem dimensdo demoniaca. E um mal que “‘pode invadir e destruir todo o mundo precisamente porque se propaga co- ‘mo um fungo na superficie” (Apud Lafer, 1988, p. 179). E, se seu poder de destruico € to grande, € porque est4 vinculado ao que Hannah Arendt iré definir como “‘incapa- cidade de pensamento”, enquanto incapacidade de lidar, vivenciar e enfrentar os fatos € acontecimentos do mundo, encontrando nessa experiéncia os princfpios de discerni- mento de que depende o julgamento. ! E essa incapacidade que parece ter tomado conta da sociedade alemé da época. Uma sociedade que acreditara em Hitler e na propaganda nazista ¢ que estava conven- cida de serem os judeus inimigos que deveriam ser eliminados para que a Alemanha pu- desse realizar seu destino enquanto nacio. Portanto, além da questo do discernimento entre o bem ¢ o mal, havia também a questéo da capacidade de discemimento entre a verdade € a mentira. O problema, diz Hannah Arendt, no € tanto que alguém ou um grupo de pessoas possa se empenhar na mentira organizada. O problema é quando as pessoas passam a acreditar na mentira. E isso é grave porque é sinal de “um processo de destruigéo do sentido pelo qual nos orientamos no mundo real" (1979, p. 318). 1 Ver especialmente a “IntroducSo” de La vie de Fesprit (1981b). TELLES, Vera da Silva. Espaco ptiblico e espaco privado na constituigo do social: notas sobre o pensa- 27 ‘mento de Hannah Arendt. Tempe Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 2(1): 23-48, sem. 1990. Ao longo de sua argumentago, a autora desenha o retrato de uma €poca em que todos os valores foram subvertidos. E a idéia de uma ruptura com a tradicgo € um dos fios articuladores de seu pensamento. £ nesse retrato que se explicita o significado da “‘fragilidade dos negécios humanos” num mundo em que “‘as coisas podem se transfor- mar em qualquer outra coisa” e em que as fronteiras que separam a civilizagdo da bar- bérie mostram-se frdgeis, incertas e sem garantias. A questio que Hannah Arendt pro- poe € a de saber em que, num mundo inteiramente secularizado e desencantado, como diria Weber, pode se apoiar essa capacidade de discernimento sem a qual néo poderia existir uma vida civilizada. Se € verdade que a questo surge de forma radical nos anos da guerra, em que “a corrente subterrénea da historia ocidental chegou finalmente & su- perficie e usurpou a dignidade de nossa tradic4o” (1974a, p. 11), 6, a rigor, constitutiva de nossa propria modernidade. E é precisamente isto que coloca a exigéncia de se pen- sar os dilemas da convivéncia humana a partir de seus proprios termos. Essa é uma perspectiva possivel para a leitura de seu pensamento. ‘Apesar da clareza de sua exposicao € do modo sistemstico como constréi suas ca- tegorias, as questées que dio movimento ao pensamento de Hannah Arendt nem sempre aparecem de modo evidente. E isso, talvez, seja respons4vel por uma certa dificuldade que sua reflexdo apresenta. A comecar pelo lugar que nela ocupa a referencia & expe- rigncia grega, questo que tem levado seus criticos a acusar, em seu pensamento, uma utopia politica que no se sustenta politicamente, teoricamente, filosoficamente. Mas ¢, ‘a meu ver, pela sua intengdo de pensamento que sua obra se esclarece. E se esclarece na sua dimensio propriamente politica. Neste caso tem razéo Lefort, para quem, “em sua grande parte, a obra de Hannah Arendt esté ligada a sua experiéncia e sua interpreta- do do fenémeno totalitério”. Dessa forma, a pélis grega, tio discutida por ela, teria que ser vista ndo como a nostalgia de um modelo de vida em sociedade que o mundo moderno eliminou, mas como referéncia a partir da qual sua concepgdo de politica se determina, enquanto esforgo, como diz Lefort, por inverter a imagem do totalitarismo (Lefort, 1986, p. 61-62). A referéncia aqui A experiéncia do totalitarismo no é um recurso exterior a0 mo- vimento de seu pensamento. E ela mesma quem enfatiza a relacdo entre pensamento ¢ experiéncia: “‘o pensamento nasce da experiéncia” e deve permanecer a ela ligada como © circulo ao seu centro. E isto significa enfrentar-se com 08 acontecimentos que irrom- 28 TELLES, Vera da Silva. Espaco ptiblico e espaco privado na constituigio do social: notas sobre 0 pensa- ‘mento de Hannah Arendt. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 2(1): 23-48, 1.sem. 1990, pem no presente, sem procurar uma verdade fora dos significados que se armam no tempo de seu proprio aparecimento e, sobretudo, sem dissolvé-lo num princfpio de cau- salidade ou determinacdo que anularia o impacto de sua novidade (1980, p. 75). O pen- samento depende sobretudo da compreensio, esta capacidade especificamente humana de se reconciliar com o mundo, encontrando um sentido para aquilo que acontece, sem que isto queira dizer sua aceitacdo passiva, nem tampouco uma tentativa de domestica 0 do acontecimento, reduzindo-o ao jé familiar e desde sempre conhecido. Ao contré- tio, compreender um acontecimento equivale a “examinar ¢ suportar conscientemente a carga que nosso século colocou sobre nés ¢ nfo negar sua existéncia, nem se submeter mansamente a seu peso. A compreensio, em suma, significa um atento e nao premedita- do enfrentamento com a realidade ...” (1974a, p. 10). Daf Lefort pode dizer que “‘nin- guém melhor descobriu no desconhecido, no inesperado, naquilo que faz irrupgdo em nossas crencas, no universo que partilhamos com nossos préximos, o lugar mesmo do mascimento do pensamento...’’, sendo “toda sua atitude orientada no sentido de fazer face ao desconhecic Por isso, € dificil entender os conceitos que nos apresenta sem elucidar as ques- t6es que esto inscritas em sua formulagdo. Dessa forma, me parece plausfvel tentar uma aproximacio de seu pensamento a partir de trés registros que, a meu ver, nucleiam sua interpretacdo do fenémeno totalitério. Trés registros que, na verdade, equivalem a trés dimens6es implicadas na experiéncia da sociedade moderna e por onde Hannah Arendt tematiza questdes especificas, que se articulam em torno de uma nogdo de espa- 0 piiblico enquanto espaco significativo no qual a aco e 0 discurso de cada um podem ganhar sentido na construcdo de um “mundo comum”. A histéria do mundo moderno, diz ela, poderia ser descrita como a histéria da dis- solugo do espaco ptiblico, por onde se expressava “um sentido cidadao de participa- do” e através do qual os homens podiam se reconhecer compartilhando de um destino comum. Nesta formulacao, ela est4, claramente, tematizando a sociedade modema — es- sa sociedade que foi capaz de engendrar o fenémeno toaliério —, construindo as figuras de uma sociedade despolitizada, marcada pela indiferenca em relacho as questées publi- cas, pelo individualismo e atomizacao, pela competic&o e por uma instrumentalizacao de tudo o que diz respeito ao mundo, de tal forma que nele nada permanece como valor, ‘como limite para uma ago que transforma tudo em meros fins para seus objetivos. Nao ‘se trata, no entanto, de postular uma continuidade necess4ria e inelutvel entre 0 ad- vento do mundo moderno e a aventura totalitéria. As questdes — todas as questées — precisam ser qualificadas e diferenciadas, o que significa dizer, repensadas a partir de ‘seus proprios termos, tentando através delas elucidar as experiéncias vinculadas aos acontecimentos de nosso tempo. Antes de mais nada, a dissolucéo desse espago piiblico significa a perda de um “mundo comum” que articula os homens numa trama visfvel feita por fatos e eventos TELLES, Vera da Silva. Espaco piiblico e espaco privado na constituico do social: notas sobre o pensa- 29 mento de Hannah Arendt. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 2(1): 23-48, L.sem. 1990. tangfveis no seu acontecimento e que se materializa na comunicacdo intersubjetiva, através da qual as opinides se formam e os julgamentos se constituem. Nesse caso, a dissolucao do espaco piiblico significa mais do que a perda de um espaco comum entre 0s homens. Pois essa perda significa também a dissolugdo do “senso comum”, com- prometendo esta capacidade de discernimento que a compreensio e o julgamento exi- gem, enquanto “maneira especificamente humana” de se fazer a experiéncia da realida- de. A figura hist6rica que sintetiza essa perda, explicitando a0 mesmo tempo seu senti- do politico, séo as massas que acreditaram e se deixaram mobilizar pela propaganda to- talitéria, Seu exemplo extremo —e patético é a figura de Eichman que, expressando-se © tempo todo por clichés, esterestipos, tautologias e frases feitas, revelava uma incapa- cidade de pensamento que equivale a essa incapacidade de “‘experienciar” 0 mundo, como realidade e valor. Um segundo registro se dé na esfera da experiéncia social e diz respeito 20 isolamento, enquanto forma de existéncia radicalmente privatizada. Neste caso, a perda do espaco pilblico significa a privago de um mundo compartilhado de significagées a partir do qual a agdo e a palavra de cada um podem ser reconhecidas como algo dotado de sentido ¢ eficécia na construcao de uma hist6ria comum. Suas fi- guras hist6ricas so, primeiro, os judeus, enquanto périas da sociedade, e, depois, além deles, todos os que viveram 0 jugo do “‘anel de ferro” que os regimes totalitérios cons- truiram em torno de suas vidas. Finalmente, a perda do espaco piiblico significa, agora ‘num registro explicitamente politico, a perda de um espaco reconhecido de aco e opi- nido, o que significa dizer, a perda da liberdade que exige, para sua efetivacdo, um es- paco politicamente organizado. Suas figuras histéricas so 0s apétridas e todos os que perderam, nos anos da guerra e do pés-guerra, os direitos de cidadania. E a partir desses trés registros que uma noco de espaco piiblico se determina. Em primeiro lugar, 0 espaco piiblico é o espaco do aparecimento ¢ da visibilidade — “‘tudo 0 que vem a publico pode ser visto ¢ ouvido por todos” ~ e, se isso importa, 6 porque es- sa visibilidade publica € que constr6i a realidade. Nas palavras de Hannah Arendt , “... a aparéncia ~ aquilo que € visto ¢ ouvido pelos outros ¢ por nés mesmos — constitui a realidade. Em comparacio com a realidade que decorre do fato de que algo € visto e escutado, até mesmo as maiores forcas da vida fntima ... vivem uma espécie de vida incerta e obscura, a no ser que, ¢ até que, sejam transformadas, desprivatizadas e desindividualizadas, por assim dizer, de modo a tornar-se ade- quadas & aparicdo publica” (1981a, p. 59-60). 30 TELLES, Vera da Silva, Espaco piblico e espaco privado na constituicio do social: notas sobre o pensa- ‘mento de Hannah Afendt. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 21): 23-48, I.sem. 1990. “A realidade da esfera publica conta com a presenca simulinea de intimeros as- pectos e perspectivas nos quais 0 mundo comum se apresenta e para os quais ne- nhuma medida ou denomindor comum pode jamais ser inventado” ... “Ser visto e ouvido por outros é importante pelo fato de que todos véem e ouvem de éngulos diferentes. este o significado da vida publica, em comparacéo com a qual até mesmo a mais fecunda e satisfat6ria vida familiar pode oferecer somente 0 prolon- gamento ou a multiplicagdo de cada individu, com seus respectivos aspectos € perspectivas. A subjetividade da privacidade pode prolongar-se e multiplicar-se na familia; pode até mesmo tornar-se tio forte que o seu peso € sentido na esfera pti- blica; mas esse mundo familiar jamais pode substituir a realidade resultante da soma total de aspectos apresentados por um objeto a uma multidio de espectado- res” (1981a, p. 67). Essa realidade, construfda na forma de seu aparecimento, € 0 que constitui um mundo comum que articula os individuos em toro daquilo que para eles se configura como interesses comuns. Esse mundo comum, portanto, ndo se refere a uma esfere cul- tural dada ou ao mundo da vida definido pela fenomenologia. Tampouco € um sistema de instituigdes, valores, regras e normas que a sociologia tradicional chama de realidade objetiva, & qual o individuo se integra pelas vias da socializacao. Esse mundo comum é uma construc ~ um “artefato humano”, diz Hannah Arendt — que depende dessa for- ma especifica de sociabilidade que s6 0 espaco piblico pode instituir. Forma de socia- bilidade que € regida pela pluralidade humana, essa mesma pluralidade da qual depende a existéncia da propria realidade. Como diz Hannah Arendt , a realidade do mundo 86 pode se manifestar “de maneira real ¢ fidedigna” quando as coisas podem ser vistas por muitas pessoas, numa variedade de aspectos, sem mudar de identidade, de sorte que os que esto A sua volta sabem que véem a mesma coisa, na mais completa diversidade. Portanto, nio existe uma verdade fora daquilo que aparece enquanto visibilidade ¢ apa- réncia: “ser e aparecer coincidem”, diz ela, e isto significa reconhecer que “nada do que existe, na medida em que esta coisa aparece, pode existir no singular” (1981b, p. 34). Daf a recusa de uma verdade transcendente e daf também a sua critica as verdades racionais da ciéncia, que sempre busca a unidade oculta por trés do espetéculo da diver- sidade pela qual a realidade se apresenta aos homens. Na perspectiva daqueles que fazem a experiéncia da sociedade, 6 a pluralidade dos pontos de vista que confere certeza ao que existe, sem que essa certeza se desdobre numa identidade que anularia as diferencas sob o signo de uma tinica opinio. Essa plu- ralidade, portanto, faz apelo ao senso comum. Enquanto condi¢go da comunicacéo in- tersubjetiva, constréi as referencias e as evidéncias a partir das quais as experiéncias pessoais ¢ subjetivas podem ser confirmadas na sua validade, retirando-as dessa ‘‘vida incerta e obscura” que o encapsulamento numa vida exclusivamente privada acarreta: TELLES, Vera da Silva. Espaco piiblico e espago privado na constituico do social: notas sobre o pensa- 31 ‘mento de Hannah Arendt. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 2(1): 23-48, L.sem. 1990. “O tinico atributo do mundo que nos permite avaliar sua realidade € o fato de ser ‘comum a todos nés; se 0 senso comum tem posigdo to alta na hierarquia das qua- lidades politicas, ¢ que € 0 Unico fator que ajusta & realidade global os nossos cin- co sentidos estritamente individuais e os dados rigorosamente particulares que cles registram. Gracas ao senso comum, é possfvel saber que as outras percepgGes sen- soriais mostram a realidade e nfo so meras irritagdes de nossos nervos, nem sen- sagées de reagao de nosso corpo. Em qualquer comunidade, portanto, o declinio perceptivel do senso comum ¢ o visivel recrudescimento da supersticao ¢ da cre- dulidade constituem sinais inconfundiveis de alienagao em relaco ao mundo” (198 1a, p. 211). , portanto, apenas na experiéncia da pluralidade, que exige um espaco para que possa emergir, que 0 mundo pode se constituir como medida que transcende a vida pes- soal de cada um. E € isso que exige o que para Kant é definido como capacidade de julgamento ¢ que, na interpretacaéo de Hannah Arendt, constitui uma faculdade especifi- camente politica, pois, na medida em que implica a capacidade de ver as coisas no apenas do proprio ponto de vista, permite aos homens se orientar no dominio piblico. ‘Ao mesmo tempo, é 0 que exige essa forma peculiar de comunicacao humana que é a opinido, que tem um critério de validade heterogéneo as chamadas ‘‘verdades da ra- 280", pois depende da persuasao e dissuasio, vale dizer, de um acordo ¢ consentimento ptblico, para ser reconhecida na sua verdade. Como diz ela, “a verdade, desde que enunciada, € imediatamente transformada em uma opinido entre outras, contestada, re- formulada, reduzida a ndo ser mais que um objeto de conversacao entre outros” (1974b, p. 37). E é nessa interacdo comunicativa entre os homens que um mundo plenamente humano pode se constituir: “O didlogo (diferentemente das conversagées {ntimas nas quais almas individuais falam de si mesmas) ... se preocupa com o mundo comum que permanece inumano num sentido muito literal, enquanto os homens néo fazem dele um objeto perma- nente de debate. Pois o mundo no € humano por ter sido feito pelos homens ¢ ele no se torna humano porque a voz humana af ressoa, mas somente quando se toma objeto de didlogo. Por mais intensamente que as coisas no mundo nos afetem, por mais profundamente que elas possam nos emocionar € nos estimular, elas $6 se tornam humanas para n6s quando podemos debaté-las com nossos semelhantes” (1974b, p. 34-35). Enfim, se 0 espaco piiblico constréi um mundo comum entre os homens, este mundo tem que ser pensado nao apenas como aquilo que € comum, mas como aquilo que é comunicdvel e que, portanto, se diferencia das experiéncias estritamente subjeti- vas e pessoais que podem ter validade na dimensdo privada da vida social, mas que “‘ndo séo adequadas para ingressar em praca piiblica e perdem toda validade no dominio 32 TELLES, Vera da Silva. Espaco pulblico e espaco privado na constituicio do social: notas sobre o pensa- mento de Hannah Arendt. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 211): 23-48, 1.sem, 1990. ptiblico” (1981a, p. 275). Nao se trata, no entanto, de uma comunicabilidade geral ¢ genérica. E isso que nos sugere Hannah Arendt quando diz que a “esfera publica sé tolera 0 que é tido como relevante, digno de ser visto ou ouvido, de sorte que 0 irrele- vante tora-se automaticamente assunto privado”, 0 que nao quer dizer que no seja importante, indicando ‘tao somente formas distintas de existéncia social” (198 la, p. 60). Portanto, a esfera do comunicdvel traz em si inscrito um principio de discrimina- go, enquanto critério de relevancia, importincia e pertinéneia. Principio que constréi as fronteiras de um “piiblico universal”, locus de “todas as opinides possfveis" e que é constituido por aqueles que sao capazes de julgamento. Trama intersubjetiva ancorada no senso comum, a construcéo do mundo comum tem, portanto, uma dimensdo cognitiva e valorativa, inscrita nos critérios através dos quais se toma possivel discemnir o relevante do irrelevante, o legitimo do ilegitimo, 0 justo do injusto, assim como a verdade da mentira, 0 fato da ficgao. Enquanto critérios de discernimento, sao referéncias a partir dos quais os homens podem se orientar num mundo caracterizado pela pluralidade dos agentes, pela contingéncia dos acontecimen- tos e pela imprevisibilidade dos efeitos da aco que cada qual realiza. E € isso que se esvai & medida que o espaco piiblico se dissolve. A perda do espaco ptiblico significaré a perda dessa relacao objetiva com os outros homens e, com isso, a perda mesma de uma nocdo de realidade. E isso tem conseqiiéncias. Com a perda do senso comum, através do qual os ho- mens podem fazer uma experiéncia significativa com a realidade, é a prépria capacidade de pensamento que se vé comprometida. Sem a referéncia a uma realidade que se pée como evidéncia e critério de objetividade, o pensamento tenderd a se reduzir a uma ope- racdo légica, em que cada coisa pode ser deduzida da outra a partir de alguma premissa que “pode se prevalecer de uma fiabilidade independente do mundo e do outro” (1980, p. 74). Sendo uma forma de pensamento que prescinde de toda experiéncia, desdobra-se em trufsmos e tautologias que encontram plausibilidade apenas na Iégica em que as idéias se articulam. E isso € grave, pelos riscos politicos que contém, pois “‘nesse nivel as diferencas reais no sio mais levadas em conta, nem mesmo a diferenca qualitativa entre as esséncias divinas ¢ humanas” (Ibid, p. 75). E nisso que se aloja a “‘banalidade do mal”. Por outro lado, perante uma experiéncia que se toma incerta porque privada dessa confirmagdo que apenas a pluralidade pode garantir, os homens, diré Hannah Arendt, s6 poderao fiar-se na sua propria subjetividade, sempre “‘instdvel ¢ traigoeira”, e tenderio a fazer de seus interesses e sentimentos privados a medida de todas as coisas. Aqui, € preciso deixar claro que a vida privada, para Hannah Arendt néo tem necessariamente um sentido negativo. Equivale a ter um lugar no mundo, “lugar tangivel possuido na terra por uma pessoa” no qual cada um pode se proteger “contra a luz da publicida- de”. Sua discussio néo é travada no sentido de desqualificar a vida privada, mas de TELLES, Vera da Silva. Espago piblico e espago privado na constituico do social: notas sobre o pensa- 33 ‘mento de Hannah Arendt. Tempo Social; Rey. Sociol. USP, S. Paulo, 21): 23-48, L.sem. 1990. estabelecer 0 seu lugar e definir as fronteiras entre duas formas distintas de existéncia social e que se poderia interpretar como duas formas diferentes de se fazer a experién- cia da sociedade. So essas fronteiras que se dilu‘ram no mundo modemno. E isso signi- fica a perda dos critérios de diferenciagao entre aquilo que tem como medida a vida de cada um e aquilo que tem 0 mundo como medida. Nesse caso, os homens tenderéo a tomar sua propria subjetividade como referéncia exclusiva de verdade ¢ julgamento. Nessa discusséo, © ponto em questo para Hannah Arendt e por onde se esclarece seu pensamento, € a identificagao dos riscos politicos envolvidos na experiéncia moderna do mundo. De um lado, a perda do mundo comum constréi a figura do individuo desinteres- sado e desprovido de responsabilidade perante 0 mundo, Para esse individuo, 0 outro pouco importa ¢ pouco conta, sua existéncia ou néo existéncia ndo faz a menor diferen- a. Equivale & experiéncia de individuos que se tornaram supérfluos no mundo. E foi isso justamente que foi levado ao nfvel do paroxismo pelo terror totalitério. Por outro lado, nesse retraimento para a subjetividade, Hannah Arendt localiza o perigo de uma projecdo na esfera piblica de critérios que s6 podem ter validade na experiéncia priva- da. Nesse caso, 0 risco o de comprometimento do jufzo piblico, pois é a propria vera- cidade e objetividade dos fatos e da realidade que se encontra comprometida, por conta de uma subjetivagdo que dissolve a diferenca entre 0 piiblico e o privado, na medida ‘mesmo em que a sociedade passa a existir apenas em suas manifestagées interiores >. E mais: por se tratar da projegio de critérios de validade que nao fazem referéncia a uma esfera compartilhada de valores e significacdes, os homens tenderao, para impé-los no mundo, a fazer uso da violéncia. Isto ocorre quando necessidades, interesses ¢ vivén- cias privadas séo pensadas como um absoluto que, tal como o antigo principio da ver- dade revelada, aparece como fonte exclusiva e soberana de todo poder, de toda autori- dade e de todo saber. Nesse caso, transformam-se em virtude e qualificacao politica que reivindicam um direito a se impor na sociedade, direito que no faz referéncia a uma es- fera piblica de pertencimento, mas a um principio auto-evidente de legitimidade. Esta € a Iégica da violéncia que, na interpretacdo de Hannah Arendt, destréi a esfera da inte- raco humana 3, 2 Este é um dos temas tratados por Hannah Arendt em Rake! Varnhagen: la vie d'une juive alle- ‘mande & époque du romantisme (Paris, Tierce, 1986). Sobre esta questo do comprometimento do jutzo piiblico, ver Lafer (1988, p. 252-271). 3 Este é um tema especificamente tratado por Hannah Arendt quando discute a questo social na Revolugio Francesa em seu Essai sur la Révolution (Paris, Gallimard, 1967), esp. cap. 2. 34 TELLES, Vera da Silva. Espago piblico c espaco privado na constituicéo do social: notas sobre o pensa~ ‘mento de Hannah Arendt. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 2(1): 23-48, 1.sem. 1990, Se a perda do espaco piiblico significa a dissolucdo do senso comum, tem também conseqiiéncias radicais do ponto de vista da experiéncia que as pessoas fazem da vida em sociedade. Isolamento € o termo que explicita essa perda de um espaco que articula 0s homens num mundo compartilhado de significados. Reduzidos & dimensfo privada da vida social, esta agora se qualifica rigorosamente como privacio. Os homens tornam- se seres inteiramente privados do ser visto e ouvido. Tomam-se, por isso mesmo, “‘pri- sioneiros da subjetividade de sua prépria existéncia singular”, fragmentada e sem signi- ficagdo para o mundo dos homens. Com a perda da esfera ptiblica, “os homens tomam-se seres inteiramente privados, isto , privados de ver e ouvir 0s outros e privados de ser vistos e ouvidos por eles. Sao todos prisioneiros da subjetividade de sua propria existéncia singular, que continua a ser singular ainda que a mesma experiéncia seja multiplicada imimeras vezes. O mundo comum aca~ ba quando € visto somente sob um aspecto e s6 Ihe permite uma perspectiva” (...) “A privacdo da privatividade reside na auséncia dos outros; para estes, 0 homem privado nao se dé a conhecer e, portanto, € como se ele nao existisse. O que quer que ele faca permanece sem importincia ou conseqiiéncia para os outros © 0 que tem importincia para ele desprovido de interesse para os outros” (198la, p. 67-68). Nessa formulagio, 0 que se esclarece é uma segunda determinacéo da nogao de espaco puiblico que Hannah Arendt nos apresenta. Enquanto lugar da visibilidade e do aparecimento, € 0 espaco no qual a singularidade de cada um € reconhecfvel, pode ser reconhecida ~ “o mundo € aquilo que surge entre os homens, onde o que cada um traz por nascimento pode se tomar audfvel e vis(vel” (1981b, p. 19). Mas trata-se aqui de uma singularidade que ndo é a mera projecdo das diferencas particulares que existem na esfera privada, pessoal ¢ subjetiva. Trata-se de uma singularidade construfda através da ago ¢ do discurso — é através da aco e da palavra, diz Hannah Arendt , que os homens se deixam ver e reconhecer na sua individualidade. Aqui se chega, em termos concei- tuais, ao nticleo mesmo da nogao de espaco piiblico de Hannah Arendt. Pois, para cla, 0 que € definidor do espaco pubblico é 0 fato de ser um espaco que s6 pode ser construfdo pela acéo e pelo discurso. Ago e discurso que esto vinculados & pluralidade humana — “se nao fossem diferentes, se cada ser humano nao diferisse de todos os que existiram, existem ou virdo a existir, os homens nio precisariam do discurso e da aco para se fa- zerem entender", bastando “simples sinais e sons” para comunicar “‘suas necessidades imediatas ¢ idénticas” (198 1a, p. 188). TELLES, Vera da Silva. Espaco pliblico e espaco privado na constituigo do social: notas sobre o pensa- 35 ‘mento de Hannah Arendt. ‘Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 2(1): 23-48, 1.sem. 1990. E pela ago que cada homem confirma sua singularidade, pois na sua “‘capacidade de realizar o infinitamente improvavel’’, a acdo significa, antes de tudo, “‘dar inicio a um novo comego”’. Mas a aco exige um espaco de aparecimento para que se torne tan- givel na sua capacidade de produzir fatos e eventos. Precisa, portanto, do testemunho dos outros para que ganhe significado na construgo de um mundo plenamente humano —“o espaco public € o lugar que preserva a acdo do esquecimento”, diz ela. E € por isso que a aco exige a palavra para que sua obra se complete no mundo. Enquanto forma de comunicac4o, a palavra se determina como discurso através do qual eventos, fatos ¢ acontecimentos podem ser registrados, narrados, transmitidos e, por essa via, transformados em uma hist6ria comum — “todas as coisas no comunicadas € incomuni- céveis, que nao foram nunca confiadas a ninguém”, deixam de existir, pois “‘ndo hé pa- ra elas um lugar permanente na realidade’’ (1986, p. 105). Sem essa espécie de acaba- mento que a palavra realiza, ¢ sem a articulagdo realizada pela meméria, simplesmente nao existiria nenhuma histéria a ser contada. E esse acabamento dado pela palavra que funda uma tradigo que nao ¢, portanto, simplesmente a continuidade do passado no presente, mas a criacéio — sempre instével na medida mesma em que depende da contin- géncia da convivéncia humana — dos signos, registros, sinais, através dos quais uma so- ciedade pode se reconhecer na sua identidade e na legitimidade de sua existéncia *. Por af se poderia entender a importincia que Hannah Arendt confere & narragdo que, para ela, esté vinculada a meméria. A narragao significa uma espécie de reificagao através da qual os acontecimentos ganham significado e, por essa via, 0 estatuto de “uma coisa entre as coisas do mundo existente”’ (1974b, p. 31). Por outro lado, essa reificagao por que passa tudo o que pode ser contado, narrado, trasmitido, equivale a construgdo de uma nogdo de permanéncia e durabilidade do mundo, aquilo que transcende a vida indi- vidual de cada um € o tempo de existéncia de uma geragdo. Constitui propriamente fa- lando as fronteiras e os limites além dos quais a aco, na sua capacidade de realizacéo, néo pode prosseguir sem ameacar a integridade desse artefato humano que ela chama de mundo comum. E isso que nos permite qualificar os riscos que Hannah Arendt identifica no mundo modemno, palco de experiéncias ameacadas de ficarem mudas, na ausén- 4 Além do ensaio “Que € autoridade”, no livro Entre 0 passado e 0 futuro (1979), ver também a discusséo de Hannah Arendt sobre a questéo da Constituicao nas revolugdes modernas, como problema que diz. respeito a um ato fundador, em seu Essai sur la Revolution (1967), esp. caps. 4 eS. 36 TELLES, Vera da Silva. Espaco pblico e espaco privado na constituicao do social: notas sobre o pensa- ‘mento de Hannah Arendt. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 2(1): 23-48, 1.sem. 1990, cia de referéncias e parametros através dos quais possam ser elaboradas como experién- cias significativas. Em outros termos, a dissolugao do espaco piiblico significa a impos- sibilidade de uma tradigéo ser criada ou refundada. E, se isso € grave, € porque sem uma tradicdo, o pensamento fica sem balizas para pensar 0 proprio acontecimento que, como diz ela, sem esse acabamento dado pela palavra e pela meméria, se fragmenta e se volatiliza num tempo continuo, homogéneo, sem significacao propriamente humana. Mas, com isso, € 0 préprio mundo dos homens que € dissolvido nessa dimenséo de per- manéncia ¢ durabilidade de que os homens necessitam “por serem mortais"”. Mundo que 6 transfigurado em cenério plenamente objetivado de uma aco que, sem a referéncia a0 outro ¢ sem o “artefato humano” como medida e valor, sé pode ser regida pela Iégica da racionalidade instrumental. Do ponto de vista desta, ndo existem fronteiras ou limi- tes. O “tudo € possivel” implicado na prética e na ideologia totalitéria, de alguma for- ma, encontra af seus fundamentos. Enquanto lugar em que a aco se torna reconhecivel na sua capacidade de “‘iniciar um novo comeco” ¢ enquanto lugar que “preserva a aco do esquecimento”” e que fun- da uma tradigao, € que o espago piblico deixa revelar sua dimensao propriamente poli- tica. DimensGo politica que, para Hannah Arendt, est4 vinculada a idéia de uma poten- cialidade intrinseca & ago e ao discurso — potencialidade que existe pelo fato de os homens agirem em conjunto. E isso o que ela chama de poder e que depende “do acor- do fragil e temporério de muitas vontades e intengdes” (198 1a, p. 212). Nesse caso, 0 espaco piiblico € 0 espaco de efetivacao desse poder e, por isso mesmo, s6 pode existir enquanto potencialidade, pois depende da aco e do discurso para sobreviver e existir: “Sem a aco para pér em movimento no mundo 0 novo comeco de que cada ho- mem € capaz por haver nascido, nfo hé nada que seja novo debaixo do sol; sem 0 discurso para materializar e celebrar, ainda que provisoriamente, as coisas novas que surgem e resplandecem, néo hé mem@ria; sem a permanéncia duradoura do attificio humano, nfo haveré recordaco das coisas que tém de suceder depois de nés € sem 0 poder, o espaco da aparéncia produzido pela agao e pelo discurso de- sapareceré tao rapidamente quanto o ato ¢ a palavra viva’ (198 1a, p. 216). Se a virtualidade propria da aco é o estabelecimento de relagGes entre os homens, © poder que por essa via se constitui nao pode, portanto, prescindir da palavra e do didlogo entre homens que buscam se pér de acordo em torno das questées ¢ decisées que dizem respeito a todos. Para sermos mais rigorosos, hé uma isomorfia entre a pala- vra € 0 poder. Na sua realizacdo enquanto didlogo, € ela que revela as questées piiblicas ao olhos de todos. Como enfatiza Enegren, a linguagem constitui o essencial da intera- 0 politica, ndo apenas por ser discurso e comunicaco eficaz, mas sobretudo porque TELLES, Vera da Silva. Espaco ptblico e espaco privado na constituico do social: notas sobre o pensa- 37 ‘mento de Hannah Arendt. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 2(1): 23-48, I.sem. 1990, apenas 0 “logos”” é capaz de trazer & luz, ao mesmo tempo, 0 mundo e o ator para 0 qual a palavra significa também assumir uma identidade (Enegren, 1984, p. 58). Por is so mesmo, na interpretacéo de Hannah Arendt, 0 poder no € exterior & ago € ao dis- curso. Surge da associac&o entre os homens e da troca de opinides. E sobretudo e antes de mais nada uma forma de interagéo que instaura suas préprias leis. E sua expresso é a interlocugao. Neste registro, 0 espaco piblico se qualifica como espaco da delibera- 40 conjunta, através da qual os homens, na medida em que capazes de aco e opiniao, tornam-se interessados e responséveis pelas questées que dizem respeito a um destino comum 5. Daf a dimensao politica inscrita na experiéncia da privatizagao a que se fez refe- réncia anteriormente. A perda de um mundo compartilhado de significagées, no qual a ago ¢ a palavra de cada um podem aparecer como algo que importa para a condugdo dos negécios humanos, é acompanhada pela experiéncia da impoténcia, Traduz especi- ficamente a perda de um espago no qual a acao € a palavra podem se manifestar en- quanto poder. Impoténcia que € ainda acompanhada da incapacidade de elaboragao de uma histéria comum. E seré nesse duplo registro que a privatizacdo se desdobraré numa forma de existéncia que parece inteiramente submetida aos automatismos da vida coti- diana. E que, portanto, s6 pode ser vivida sob o signo do destino e da fatalidade. Nesse caso, a experiéncia da impoténcia equivale A perda da propria noco de liberdade. Na interpretacéo de Hannah Arendt, liberdade é um atributo definidor da ago, enquanto capacidade de “interromper os automatismos dos processos vitais”. Por isso, a liberdade se contrapde & necessidade e é esta diferenca que se dissolveu na experién- cia moderna do mundo — “‘jé no se percebe a diferenga objetiva ¢ tangfvel entre ser li- vre e ser forcado pela necessidade” (1981a, p. 80). Da mesma forma, perde-se a nocdo da diferenca entre a tirania politica e a liberdade piiblica, pois do ponto de vista da se- guranca privada, dos assuntos domésticos e da estabilidade da vida familiar, essa dife- renca deixa de ser importante. Por isso também, a liberdade no se confunde com 0 que se convencionou chamar de liberdade interior que ndo tem manifestacdes exteriores, 5 Hannah Arendt explicita sua nogéo de poder sobretudo em seu ensaio Da Violéncia (Brastlia, Editora da UnB, 1985). Para uma critica da nogéo de poder em Hannah Arendt, ver Habermas, J., *O conceito de poder em Hannah Arendt”, in Freitag, B. ¢ Rouanet, J.P., orgs., Habermas (Séo Paulo, Atica, 1980). Para uma comparagdo entre Habermas ¢ Hannah Arendt, ver Ferry, J.M., Habermas critique de Hannah Arendt, Esprit n® 42, 1980, p. 109-124, 38 TELLES, Vera da Silva. Espaco paiblico ¢ espaco privado na constituicéo do social: notas sobre o pensa- sato de Hannah Arendt, Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 2(1): 23-48, l.sem. 1990, que nada tem a ver com a acao e que é, por isso mesmo, antipolitica. E essa dimensao politica da liberdade que se perdeu no mundo modemo. Nesse caso, a identificagéo da liberdade com a interioridade € evidéncia de um estranhamento do mundo ¢ de um re- traimento das expriéncias mundanas para um espago fntimo ao qual ninguém tem aces- so. “CO campo em que a liberdade sempre foi conhecida”, diz Hannah Arendt, “nao como problema, mas como fato da vida cotidiana, é 0 ambito da politica’’ (1979, p. 192). A liberdade, portanto, expressa a dimensdo propriamente politica da aco. Por is- so, ela exige um espaco politicamente organizado para aparecer como “algo tangfvel em palavras qu podemos escutar, em feitos que podem ser vistos ¢ em eventos que podem ser comentados, relembrados ¢ transformados em est6rias antes de serem incorporados, por fim, ao grande livro da histéria humana” (1979, p. 201). Em outras palavres, a li- berdade 86 pode se efetivar quando se manifesta na sua visibilidade, como uma realida- de concreta ¢ tangivel. E isso depende da aco (e do discurso) “‘criar seu proprio espago concreto onde possa, por assim dizer, sair de seu esconderijo ¢ fazer sua aparicio"’. ‘Sem esse espago, a liberdade permanece como capacidade oculta, como uma virtualida- de, que apenas atesta a qualidade especificamemte humana de interromper os processos autométicos da vida, “Onde os homens convivem, mas no constituem um organismo politico ... 0 fator que rege suas acdes € sua conduta nao é a liberdade, mas as necessidades da vida © a preocupacao com sua preservacio. Além disso, sempre que o mundo artificial no se toma palco para a aco e o discurso ... a liberdade no possui realidade concreta. Sem um ambito piblico politicamente assegurado, falta & liberdade o es- ago concreto onde aparecer ... A liberdade como fato demonstrével e a politica coincidem e esto relacionadas uma outra como dois lados da mesma matéria” (1979, p. 194-195). E aqui, portanto, que se tem um terceiro registro, no qual a nogdo de espaco pt- blico se determina enquanto “comunidade politicamente organizada”. Enquanto tal, faz referéncia a uma interaco politica mediada pela lei. No entanto, Hannah Arendt iré re- velar uma nogdo muito particular acerca do marco legal. A lei, para ela, nao tem o sen- tido de prescrigo ou mandamento. Tampouco € pensada como regulamentaco publica de interesses privados. As leis existem, diz ela, para “erigir fronteiras ¢ estabelecer ca- nais de comunicagao entre os homens’’. E essas fronteiras “sao para a existéncia politi- ca do homem 0 que a meméria para a existéncia hist6rica: garantem a preexisténcia de um mundo comum, a realidade de uma continuidade que transcende 0 espaco da vida individual de cada geracio ...”” (1974a, p. 565). A lei, portanto, ndo se confunde com 0 poder, pois este s6 existe na associagao entre os homens através da aco ¢ da opiniao. TELLES, Vera da Silva. Espaco ptblico e espaco privado na constituigo do social: notas sobreo pensa- 39 ‘mento de Hannah Arendt, Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S, Paulo, 2(1): 23-48, L.sem. 1990. Tampouco € sede da autoridade que, na interpretagao de Hannah Arendt, diz respeito a um prinefpio de legitimidade ancorado numa tradico rememorada ¢ reatualizada a cada momento enquanto nticleo de significacdo. Enquanto fronteiras para a ago, so as leis que delimitam 0 espaco no qual a interagao politica se dé e pode se realizar. A lei, o marco legal, se configura portanto como referéncia, ponto de ancoragem a partir do qual cada um pode reconhecer 0 outro na legitimidade de sua aco e de sua opiniao. E isso significa, rigorosamente, “reconhecer 0 outro como seu semelhante”’, sem que para isso se tenha que apelar para uma noco genérica de ser humano ou a alguma no- 40 crist de humanidade. E € isso que constr6i, para Hannah Arendt, as condicées da igualdade, entendida enquanto isonomia, ¢ que se qualifica no direito comum & ago € & opinio, o que significa dizer, no reconhecimento do direito de cada um e de todos & participacdo na vida publica. Daf a peculiar nocd de direitos que Hannah Arendt elabora. Nao diz respeito as necessidades, interesses ou demandas individuais. Faz referéncia, antes de tudo, a uma forma de sociabilidade politica e, nesse caso, 0 direito s6 pode existir no exercicio efe- tivo de direitos. Exercicio que estabelece relagdes e que constréi, a0 mesmo tempo em que supée, princfpios compartilhados de legitimidade ©, Portanto, para Hannah Arendt, a questo dos direitos no se qualifica por referéncia ao Estado. Qualifica-se, sobretu- do, enquanto forma de sociedade e, mais ainda, enquanto modo especifico de se fazer a experiéncia da vida em sociedade. I essa dimensdo que se explicitou com o surgimento dos apétridas. O que ficava patente, diz ela, com a situagdo ins6lita vivida por eles, era a inviabilidade da existéncia de direitos individuais independentemente de um corpo politico constitufdo, entendido este enquanto espago de existéncia cidada 7. O proble- ma, diz Hannah Arendt, nfo estava na garantia do trabalho, da residéncia ou mesmo da vida, pois tudo isso poderia ser resolyido fora dos marcos legais por conta da caridade de uns, da solidariedade de outros ou mesmo da condescendéncia das instituig6es. O problema € ter acesso as condigdes de lutar por tudo isso, escapando, portanto, da con- tingéncia de circunstancias sobre as quais nfo se pode ter 0 controle. O problema, tam- pouco, diz respeito & liberdade de pensamento, pois sem um espaco que tome 6 Sobre a nogdo de direitos em Hannah Arendt, ver Lafer (1988). 7 Ver “La decadencia de la Naci6n-Estado y el final de los derechos del hombre”, em Los orfgenes del totalitarismo (1974a, p. 368-381). 40 TELLES, Vera da Silva. Espago pilblico e espaco privade na constituicéo do social: notas sobre o pensa- ‘mento de Hannah Atendt. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 2(1): 23-48, 1.sem. 1990. significativas as opiniGes de cada um, essa liberdade é equivalente a “‘liberdade do lou- 0, porque nada do que pense pode importar a alguém”. No caso dos apdtridas, “a privacdo fundamental dos direitos humanos se manifesta primeiro € sobretudo na privacdo de um lugar no mundo que torne significativas as opinides e efetivas as agées (...). Tornam-se privados, no do direito & liberdade, mas do direito & ago; nao do direito a pensar o que queiram, mas do direito a opiniao. O privilégio em alguns casos, as injusticas na maioria deles, os acontecimentos favordveis ¢ desfavordveis, Ihes sobrevém como acidentes sem nenhuma relacdo com 0 que fa- am, fizeram ou possam fazer” (1974a, p. 375). Ter direitos significa, portanto, no dizer de Hannah Arendt, pertencer a uma co- munidade politica na qual as agées ¢ opinides de cada um encontram lugar na conducéo dos negécios humanos. E isso 0 que ela quer dizer quando afirma a exigéncia de um espaco no qual cada um pode ser julgado por suas agdes € opinides, e no pelo que so, enquanto classe, origem ou raga. ‘“Ter direitos a ter direitos” € a expresso que sintetiza a questo proposta por Hannah Arendt. Para ela, a perda do espaco piblico significa a perda dessa condicao de igualdade que apenas a liberdade piblica pode construir. Exclufdos ou privados desse espago, os homens ficam fixados nas suas diferengas, enquanto forma de existéncia “outorgada”” pela natureza. E 0 risco, nisso, est na conversao dessa diferenca em critério politico e norma legal. E nessa conversdo que sdo construfdas as figuras do “estrangeiro” ou “bérbaro” que, por sua diferenca radical, é exclufdo da vida civilizada e que, por ameacar a “pélis”, deve ser mantido & distancia e, no limite, eliminado. E isso o que acontece quando a esfera piiblica € dissolvida ou entao invadida pelos critérios que re- gem a esfera privada. Nesse caso, as pessoas serdo vistas e julgadas nfo por suas aces € opinides, mas pelo que so, em funcdo dos azares da vida, tal como atributos defini- dores de seu lugar no mundo. E 0 que ocorreu com os judeus nas sociedades européias. Qu entéo com os negros, na América. Em grande parte, € 0 que aconteceu com aqueles que, perdendo seu acesso a cidadania, perderam “todas as qualidades politicas distinti- vas € se converteram em seres humanos nada mais que seres humanos””: “o ser humano que perdeu seu lugar em uma comunidade, seu status politico na luta de sua época e a personalidade legal que faz de suas agées e de parte de seu destino um conjunto consistente, fica abandonado com aquelas qualidades que normalmente s6 podem destacar-se na esfera da vida privada e que devem perma- necer indiferenciadas, simplesmente cxistentes, em todas as questées de carfter publico ... Toda essa esfera do simplesmente outorgado, relegada a vida privada TELLES, Vera da Silva. Espago piblico ¢ espaco privado na constituicSo do social: notas sobre o pensa- 41 ‘mento de Hannah Arendt. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 2(1): 23-48, l.sem. 1990. na sociedade civilizada, constitui uma ameaga permanente para a esfera piblica, porque a esfera publica esté tio conseqiientemente baseada na lei da igualdade, como a esfera privada esté baseada na lei da diferenca ¢ da diferenciacdo univer- sais. A igualdade, ao contrério de tudo o que est4 implicado na simples existéncia, nao nos € outorgada, mas € o resultado da organizacdo humana, na medida em que resulta guiada pelo principio da justica. Néo nascemos iguais, nos tornamos iguais, como membros de um grupo, por forca de nossa decisio de nos conceder- ‘mos mutuamente direitos iguais” (1974a, p. 380). “O paradoxo implicado na perda dos direitos humanos que semelhante perda coincide com o instante em que uma pessoa se converte em ser humano em geral — sem uma profissio, sem uma nacionalidade, sem uma opinido, sem um fato pelo qual possa identificar-se — e diferente em geral, representando sua propria indivi- dualidade absolutamente vinica que, privada de expresso dentro de um mundo comum, e de aco sobre este, perde todo o seu significado” (Ibid., p. 381). Igualdade e diferenca, eis af um par dicotémico que esclarece o pensamento de Hannah Arendt nos seus pressupostos ¢ fundamentos. Tem, para ela, uma dimensio ontolégica e est4 associado a todas as dicotomias que tanto caracterizam seu pensa- mento: ago ¢ trabalho, poder e violéncia, politico e econémico, liberdade e necessida- de, pluralidade ¢ uniformidade. Todos esses pares encontram sua traduco na diferenca entre 0 ptiblico e o privado, enquanto lugares necessérios de sua manifestacdo, sendo que, em todos eles, 0 segundo termo sempre faz referéncia as necessidades da vida ¢ 0s constrangimentos que esta nos impde. Como enfatiza Enegren, a idéia de vida é “o outro nome, para Arendt, do inexordvel que limita de todas as partes o perimetro do agir”’, submetendo os homens as forcas imperativas da natureza (Enegren, 1984). E nes- se terreno sombrio que Hannah Arendt aloja “o trabalho” ¢ 0 “labor” que, ao lado da “‘acdo”, referida sempre ao primeiro pélo, constituem o que ela chama de “‘atividades da vida ativa”. E nisso precisamente que se explicita uma antropologia pela qual o pen- samento de Hannah Arendt deixa revelar uma forma de ontologia. E esse certamente 0 seu limite e que € responsdvel pela fraqueza de seu argumento quando tenta nos con- vercer dessa autonomia do politico que ela reivindica a todo momento e que, para ela, encontra seu paradigma na polis grega. Acao, trabalho ¢ labor so, para Hannah Arendt, dimensées transcendentais da condicgo humana. Dessa forma, o privilégio dado & agio no significa negar as duas outras qualquer relevancia e pertinéncia. Mas isso supée que cada uma des- 42 TELLES, Vera da Silva. Espaco pblico e espaco privado na constituigio do social: nots sobre o pensa- ‘mento de Hannah Arendt. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 211): 23-48, I sem. 1990. sas atividades se realize no lugar que lhe é préprio no mundo para que possa, cada qual no seu limite e em sua propria esfera, convergir na construgéo do mundo dos homens. O problema, diz ela, € que esses lugares se embaralharam, as fronteiras se dissolveram, as hierarquias que deveriam articular seus espacos foram subvertidas e € isso, especifica- mente, que define o problema das sociedades modemas. O moderno primado do traba- Iho significa que os imperativos da necessidade invadiram a esfera publica de tal forma, que esta terminou por se desfigurar, transformando-se numa vasta administraco técnica © burocrética que existe apenas em fungéo da economia. E a isso que ela se refere quando discute 0 que define como “‘ascensao do social”, responsdvel pela uniformidade € conformismo que caracterizam as sociedades de massa. Trata-se de uma sociedade na qual todos 0s seus membros consideram tudo 0 que fazem “primordialmente como mo- do de garantir a vida". © problema todo é que, do ponto de vista das necessidades, os homens nao séo iguais, mas rigorosamente idénticos. E as atividades que em torno delas so realizadas prescindem dessa sociabilidade especificamente politica, dada pela aco € pelo discurso. Sao atividades que apenas relacionam 0 homem consigo mesmo nessa espécie de metabolismo com a natureza, por onde a sobrevivencia se realiza enquanto consumo (labor) ¢ por conta de uma instrumentalizacao de tudo, como meios para se atingir objetivos que tém como medida exclusiva as necessidades de cada um (trabalho). E nesse ponto que o pensamento de Hannah Arendt recebe as criticas mais con- tundentes. Se no terreno da filosofia se acusa o tributo que paga a metafisica cléssica a0 definir a condigao humana por referéncia a qualidades essenciais e universais, é em tor- no de sua nogdo de politica que as criticas se concentram. Mais especificamente, em tomo da nog&o de uma politica autonomizada por uma aco e por um discurso desvin- culados dos interesses ¢ dos conflitos. Uma aco e um disicurso que teriam, por defini- a0, uma vocacao igualitéria que exclui a dominagdo, a violéncia ¢ a desigualdade de poderes. De fato, no pensamento de Hannah Arendt, interesses ¢ luta por interesses, violéncia, dominago e subordinacdo, na medida em que fazem referéncia aos imperati- vos da sobrevivéncia que, para ela, sio definidores da economia, nao tém lugar ¢ nem poderiam ter lugar na construgéo dese mundo comum que articula os homens € que € sinénimo de vida civilizada. Neste ponto, as criticas so precisas. Ao enfatizar 0 equi- voco de uma interpretacéo da experiéncia moderna (mas no apenas moderna) que nega todas as evidéncias da inviabilidade de uma tal separagao entre 0 econdmico e o politi- co, © que se critica, sobretudo, é a sua recusa em conferir qualquer dignidade politica aos interesses que movem os homens em suas vidas privadas, a sua recusa em reconhe- TELLES, Vera da Silva. Espaco pblico e espaco privado na constituicio do social: notas sobre o pensa- 43, ‘mento de Hannah Arendt. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S, Paulo, 2(1): 23-48, 1.sem, 1990, cer na “p6lis” a existéncia do conflito, como uma dimenséo que lhe € constitutiva e, ainda, a sua recusa em reconhecer no trabalho um potencial de sociabilidade capaz de ‘gerar uma esfera interativa entre os homens 8, No entanto, se for possfvel interpretar Hannah Arendt para além dela, desvenci- Ihando-se dessa ontologia que atravessa seu pensamento, nao h4 como nao reconhecer que essas dicotomias dio 0 que pensar. Se € verdade que a separaco entre economia ¢ politica nao se sustenta, também € verdade que Hannah Arendt nos ajuda a pensar que hd, nessa relacio, uma questio a ser elucidada, desde que se recuse a idéia de uma tras- paréncia de uma a outra, ou de que uma seria a expressio da outra, caindo, neste caso, na armadilha que ela tanto denuncia de uma funcionalizacio de todos os conceitos, de tal forma que as questées neles inscritas se diluiriam e se perderiam de uma vez por to- das. Na verdade, Hannah Arendt subverte os termos tais como foram colocados pela teoria politica classica, ao afirmar a inviabilidade de se constituir uma esfera publica a partir dos interesses privados. Nada mais distante de seu pensamento do que a idéia de um pacto social. E nada mais avesso as suas preocupacées tedricas € politicas do que 1a identificago do ptblico com o Estado, por referéncia ao qual os interesses privados encontrariam 0s limites e as referéncias para o seu agenciamento na esfera da economia. E possivel argumentar que, a rigor, nao se trata de uma subversao, mas talvez apenas de uma inverséo dos termos cléssicos, na medida em que ela se fixa no econémico e no politico, no privado e no ptiblico, como instancias positivamente definidas ¢ delimita- das. De toda forma, € por aquilo mesmo que faz sua originalidade que a questio do econémico ¢ do politico poderia ser repensada. Originalidade que diz respeito & possi- bilidade de se pensar a politica como algo que nao se define exclusivamente por refe- réncia ao Estado, que se qualifica como forma de sociabilidade e que, por isso mesmo, depende da forma como a sociedade se institui enquanto espaco que cria suas préprias hormas, suas préprias regras, seus prOprios critérios, a partir dos quais os aconteci- mentos € os constrangimentos da vida em sociedade podem se fazer visiveis e inteligi- veis para os que dela participam. [5 0 que ela sugere quando enfatiza a questo da per- 8 Para criticas a Hannah Arendt ver Lebrun, Gérard, “A liberdade segundo Hannah Arendt” “Hannah Arendt: um testamento socratico”, in: Passeios ao Iéu (Sao Paulo, Brasiliense, 1983, p. 52-66); Lefort, Claude, “Hannah Arendt et la question du politique”, in: Essais sur le politique: XIX-XXe sidcles (Paris, Seuil, 1986, p. 59-72), Habermas, Jurgen, “O conceito de poder em Hannah Arendt”, in Freitag, B. ¢ Rouanet, S.P., orgs., Habermas (Sao Paulo, Atica, 1980, p. 100-118). Ver também o nimero especial da revista Esprit (n® 42, 1980) dedicado a Hannah Arendt 44 TELLES, Vera da Silva, Espaco plblico e espaco privado na constituicdo do social: notas sobre o pensa- ‘mento de Hannah Arendt. ‘Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 21): 23-48, L.sem, 1990, manéncia em que a palavra, a meméria ¢ a tradicao se articulam na construgao de um mundo plenamente humano nas suas significag6es. Na verdade, o termo que parece fa- zer falta na elaboragao de Hannah Arendt é 0 de representagdo, por onde se poderia pensar a dimensdo simbélica implicada na construgdo do “mundo comum” °. Questio que Hannah Arendt nos sugere na medida mesma em que enfatiza, 0 tempo todo, 0 po- der da palavra e do discurso, mas que ela parece recusar ao se fixar numa nogdo de acdo como algo transparente, que contém em si mesma seu prdprio principio de inteligi- bilidade quando alcanga essa visibilidade, sem mediagées, que ela identifica no espago puiblico. E dificil imaginar uma ago politica que nao esteja vinculada a interesses. E é ficil imaginar uma interagdo politica que no dependa do jogo dos conflitos ¢ oposigées que atravessam 0 espago social. Mas se isso pode aparecer como algo diferente da sim- ples defesa corporativa de interesses ou, ainda, se pode aparecer como algo diferente de uma fragmentacdo da vida social, depende da articulacdo de uma linguagem através da qual interesses ¢ razGes privadas podem ser, para usar uma expresso de Hannah Aren- dt, desprivatizadas e reconhecidas publicamente na sua legitimidade. Talvez nisto se possa identificar a eficdcia propriamente simbélica dos direitos. E Lefort, sobretudo, quem enfatiza esta dimensio e € a leitura de seus textos que nos leva a pensar os direi- tos enquanto linguagem politica que articula préticas individuais e coletivas num espaco comum de pertencimento. Mais ou menos explicitadas, formalizada ou codificada, é na linguagem dos direi tos que a defesa de interesses se faz audfvel ¢ reconhecfvel na dimenso publica da vida social. E, neste sentido, € através dela que as diferencas sao elaboradas, interpretadas e codificadas. Pois a forma como uma sociedade define aquilo que € considerado como direitos, a forma como se assumem, se atribuem ou se negam direitos a uns ¢ outros, traz nela inscrita uma certa nogdo de justica, o que significa dizer que traz nela inscrito um principio de discernimento entre o legitimo ¢ o ilegitimo e que € sempre solidéria, como diz Lefort, com um conjunto de critérios pelos quais se faz a distingdo entre 0 certo e 0 errado, 0 possfvel e o imposstvel, a razio e a desrazio, 0 permitido e o proibi- do. Categorias muitas vezes implicitas, mas presentes nas formas de percepcio, nas crengas, nas conviccées, nos cédigos de comunicagéo e também nas regras informais que regem as relacées entre classes, grupos e individuos (Lefort, 1986, p. 31-58). 9 Esta questéo € discutida por Mongin, Olivier, no artigo Du politique a Vesthetique, Esprit, n® 42, 1980, p. 98-108. TELLES, Vera da Silva. Espago psiblico e espago privado na constituigo do social: notas sobre o pensa- 45 ‘mento de Hannah Arendt. Tempo Social; Rey. Sociol. USP, S. Paulo, 2(1): 23-48, sem. 1990. E nesse ancoramento dos direitos na dinimica da sociedade que se esclarece a afirmagéo de Lefort de que o reconhecimento dos direitos nao depende da simples con- cordincia com a legalidade formal constituida. Tampouco depende da simples sango do Estado. Para que uma demanda de direitos ganhe inscrigao juridica, diz Lefort, nao é suficiente “que tal ou qual reivindicagdo encontre os ouvidos complacentes do Estado, é preciso que ela se beneficie antes ... do acordo mais ou menos tAcito de uma impor- tante fracéo da opiniao publica, enfim, que ela se inscreva nisso que chamamos de es- paco ptiblico”. Espago indeterminado que nao se cristaliza enquanto ordenamento ins- titucional, na medida em que sua existéncia depende “‘daqueles que nele se reconhecem e lhe dio sentido” (Ibid, p. 55). Mas, se isso néo independe do conflito, este exige um espago no qual possa aparecer como algo reconhecivel ¢ legitimado no seu aconteci- mento. E desse ponto de vista que o espaco ptiblico se determina como espaco politico que “‘tem por efeito instituir uma cena na qual o conflito se apresenta aos olhos de to- dos (desde que a cidadania nao seja mais reservada a um pequeno nimero) como neces- sério, irredutivel ¢ legitimo”, de tal forma que “todas as divisdes de fato se transportam € se transfiguram sobre a cena em que a divisio aparece como diviséo de direito” (Ibid., p. 267). E isto significa reconhecer que esse espago puiblico é regido por uma di- namica em que 0 préprio direito € sujeito a uma constante reinterpretacdo, enquanto de- bate sempre reaberto sobre 0 justo € 0 injusto, o legitimo ¢ o ilegitimo. Debate sem ga- rantias, enfatiza Lefort, porque nas sociedades modernas, sociedades nas quais foi eli- minado todo referente que daria garantia & prépria lei, ninguém pode ocupar o lugar do grande juiz, de modo que o debate sobre a justica fica inteiramente na dependéncia des- se conflito que, ao se apresentar ¢ se fazer representar no espaco puiblico, implica a abertura da sociedade a um permanente questionamento sobre seus préprios fundamen- tos. Mas isto também significa — e este é um dos aspectos mais instigantes da proposta de Lefort — que a existéncia formal de direitos ndo garante a existéncia de um espago pUblico e dessa sociabilidade politica que a pritica regida pela nocdo de direitos é ca- paz de criar. Esse espaco ptiblico desmoronaria, diz Lefort, se a posigéo cada vez mais forte do Estado enquanto garantidor de direitos econémicos, sociais ¢ culturais fizesse reduzir a legitimidade de novos direitos & sangdo do Estado. E se, por outro lado, as opinides tendessem a encontrar um denominador comum, apesar de emanarem de cate- gorias diversas, numa espera dessa sanco, tornando-se virtualmente legitimadas na me- dida em que dispdem da fora do mimero. Daf Lefort dizer que € a existéncia de um es- aco piblico atravessado por essa “‘consciéncia do direito a ter direitos” que Ihe é constitutiva, que faz toda diferenca entre uma forma democritica de sociedade ¢ os re- gimes totalidrios: “a apreensio democritica do direito implica a afirmagio de uma pala- vra ... que, sem encontrar garantias nas leis estabelecidas ou na promessa do monarca, 46 TELLES, Vera da Silva, Expaco ptblico e espaco privado na constituisio do social: notas sobre 0 pensa- ‘mento de Hannah Arendt.Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 2{1): 23-48, 1.sem. 1990. faz valer sua autoridade, na espera de uma confirmacéo publica, em razio de um apelo a consciéncia publica”. Daf no ser essa palavra a mesma coisa que uma demanda diri- gida a0 Estado. Daf também a diferenca entre a assisténcia que o Estado pode garantir em nome dos direitos e aquilo que um Estado totalitério pode efetivamente realizar a titulo de protecio ao bem estar de seus cidadios. Nesse caso, no se pode falar pro- priamente de direitos pois “‘o discurso do poder é suficiente, ele ignora toda palavra que esteja fora de sua érbita”. Dessa forma, esse direito se transforma na outorga de um po- der que, sempre arbitrério, “nfo cessa de fazer a triagem entre aqueles aos quais ele concede os beneficios de suas leis ¢ aqueles que so exclufdos dela”. Enquanto outor- £28, 0s direitos criam stiditos e no cidadaos, pois, “‘maquiados em direitos, no so mais que fornecimentos que os individuos recebem, tratados que eles se véem como depen- dentes e nao como cidadios" (Ibid., p. 50). Mas nem por isso se poderia considerar esse espaco puiblico como algo, por defi- nico, igualitério. Se € verdade que a garantia formal dos direitos no significa sempre € necessariamente um reconhecimento piiblico da legitimidade das razées e vontades, interesses ¢ demandas de individuos ou grupos sociais, também é preciso reconhecer que 0s critérios publicamente estabelecidos de reconhecimento e legitimidade contém, em si mesmos, um princfpio de discriminago que constréi a figura daqueles que, em fungo de sua condigdo de classe ou de vida, de sexo ou idade, de origem ou de cor, so como que descredenciados enquanto sujeitos reconhectveis e reconhecidos no espa- 0 pilblico. Trata-se daqueles que vivem sua condicdo como diferenga que os exclui da dimensio piiblica da vida social. Esses, para usar os termos de Hannah Arendt, s80 0s péirias da sociedade e a eles corresponde essa figura de um individuo privatizado do qual ela nos fala. E nessa figura que se pode, talvez, identificar os signos da domina- cdo, questo que est4 ausente do pensamento de Hannah Arendt, mas para a qual ela certamente fornece elementos para uma reflexio. Dominagao que, no entanto, nunca chega a se objetivar plenamente no espaco social, desde que a sociedade se abra a esse questionamento sobre o legitimo € 0 ilegitimo, 0 justo e o injusto, de forma que o “di- reito a ter direitos” possa significar, para muitos, como diz Lefort, um “recuo a obe- digncia cega &s normas estabelecidas”. Disso, certamente, dio testemunho os movimentos sociais cuja existéncia publica desenha uma trama vis{vel que pée em cena, junto com os (ou através dos) interesses, razées e vontades que alimentam o conflito, na materialidade daquilo que € reivindica- do, uma luta simbélica em que se questionam as representagées e imagens instituidas re~ feridas & condico de classe, de sexo, de idade, de cor, de trabalho, de moradia. Sua aceitagéo puiblica néo se faz sem resisténcia e ambigitidades de todos os tipos, mas, se ‘TELLES, Vera da Silva. Espago piblico e espaco privado na constiti¢So do social: notas sobre o pensa- 47 mento de Hannah Arendt. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 21): 23-48, 1.sem. 1990. ela chega a se impér, no é tanto pela ““forca do ntimero” ou pela idéia convencional de correlagio de forcas, mas porque o acontecimento mobiliza em tomo dele uma nogéo de legitimidade e justica que no se fixa num critério tinico, na medida mesma em que se abre a uma muiltipla, tensa, mas sempre reaberta reinterpretacio. Recebido para publicagéo em agosto/1989 ‘TELLES, Vera da Silva, Private space and public space in the constitution of the social: notes on the thoutht of Hannah Arendt. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, (1): 23-48, 1.sem. 1990. ABSTRACT: This article discusses the notion of public space in Hannah Arendt's thought. In order to reconstruct its categories, the starting point of this article is Arendt's thinking concerning totalitarianism, a central notion in her work. Starting from the problem raised by I World War horror, in which the criterias of judgment between good and evil, true or false, were annihilated, the notion of public space refers to an experience in which men lost the “human world” as reference to their lives, in which the solitude and impotence of privatized lives predominated, and in which the sense of public freedom as a form of political sociability based upon the recognition of the other's right to action and opinion was dissolved. UNITERMS: public space, private space, public sphere, private sphere, modernity, totalitarianism, tradition, civility, democracy, citizenship, equality, difference, rights. REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS ARENDT, Hannah. Eichmann @ Jérusalem: rapport sur la banalié du mal. Paris, Gallimard 1966. .. Essai sur la Révolution. Paris, Gallimard, 1966b. —————. Crises da Repiiblica. S80 Paulo, Perspectiva, 1973. —————. Los orlgenes del totalitarismo. Madrid, Taurus, 19748. ——————. Ves politiques. Paris, Gallimard, 1974b. —_.. Entre 0 passado e 0 futuro. S80 Paulo, Perspectiva, 1979. 48 TELLES, Vera da Silva. Espaco piblico e espaco privado na constituiglo do social: notas sobre o pensa- mento de Hannah Arendt. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 2(1): 23-48, 1.sem. 1990. . Comprehension et politique. Esprit, n® 42, 1980, + A condicdo humana, Rio de Janeiro, Forense, 198 1a. . Lavie de lesprit, vol. 1. Patis, PUF, 1981b. Rahel Varnhagen: la vie d une juive allemande a Cepoque du romantisme. Pa- tis, Tierce, 1986, ENEGREN, André. La pensée politique de Hannah Arendt. Paris, PUF, 1984. FERRY, Jean Marc. Habermas, critique de Hannah Arendt, Esprit, n° 42, 1980. HABERMAS, Jiirgen. © conceito de poder em Hannah Arendt. In: FREITAG, B.e ROUA- NET, S.P., orgs. Habermas. Sao Paulo, Atica, 1980. LAFER, Celso. A reconstrucdo dos direitos humanos: um didlogo com o pensamento de Hannah Arendt. S80 Paulo, Companhia das Letras, 1988. LEBRUN, Gérard. A liberdade segundo Hannah Arendt. In: ‘Sao Paulo, Brasiliense, 1983. Passeios ao léu. - Hannah Arendt: um testamento socratico. In: Idem, ibidem. LEFORT, Claude. Hannah Arendt et la question du politique. In: ——._Essais sur le po- litique: XIX-XXe siécles. Paris, Seuil, 1986. + Les droits de l'homme et Etat Providence. In: Idem, ibidem. MONGIN, Olivier. Du politique a l'esthétique. Esprit, n° 42, 1980.

Você também pode gostar