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IL NOVAS REFLEXOES SOBRE A GEOPOLITICA DA INTIMIDADE CULTURAL Reflexdes Revisionistas Quando surgiu @ primeira edigio de Intimidade Cultural, alimentei 0 que a posteriori parece uma ambigéo razoavelmente modesta para 0 livro: esperei que ele pudesse ajudar a enquadrar certas questdes com que me deparera a0 trabalhar na antropologia a Europa. O final dos anos 90 foi um perfodo importante para a antropologia, porque o impulso & reflexividade coincidiu com um interesse intensificado ¢ critico na etnografia e, em especial, com a etnografia das sociedades ocidentais (na Europa e na América do Norte). Os perigos do comprazimento no remorso davam assim lugar a uma reflexéo mais calma sobre a relevancia da etnografia europeista ¢ norte-americana para o desenvolvimento da teoria _=, Antropolégica, Esse novo foco regional ainda est4 para se encontrar ‘com a teoria pés-colonial em qualquer grau significante, um passo recessério se os dois campos de estudo quiserem fugir ao tipo de { Provincianismo que s6 € possivel em regides poderosas e t6picos ‘imensos; pode-se considerar uma reavaliagdo substancial do lonialismo, por exemplo, logo que se torne mais claro com o que Parece esse ptocesso visto dos “degraus de baixo” — os degraus 8 conquistadores e nio dos Sbvios subalternos. Mas o facto de Besmo assim ter surgido uma antropologia da Europa ajudou a por sinergia em andamento, a0 tornar a reflexividade uma tarefa is pritica e ompitica. Durante 0 processo ela fez muito para Mfrequecer aquelas oposigdes profundamente tolas ~ por dema- a stipe Cutrumat, Patrica Soctal. NO EsTAnO-NAGAU siado tempo sustentadas para fins de politica acedémica entre ‘0 pOs-moderno e 0 positivist, o textual ¢ 0 social, 0 simbstico ¢ © material, e mesmo “eles” e “nds” tout court. O meu apelo @ um campo intermédio militante tornava-se assim ‘pompensadoramente redundante. 7 ‘Ao mesmo tempo, numerosos autores fizerasr. uso do conceito 12 intimidade culturel. Alguns,criticos, atacerar-no; outros volta- ram-se para certas ideias associadas, como a nostalgia estrutural ¢ @ poética social, Em alguns casos, essas alusties tem sido adapiagoes ‘a casos etnograficos particulares: noutros, um compromisso mais critico ajudou a desenvolver a estrutura. Nesta conjuntura, uns sete ‘anos depois da primeira edigo de Intimidade Cultural, a tentaca0 Ge reposicionat us ineus argumentoc e reagir a esses melhoramentos iteis revelou-se impossivel de resistir. (0 capttulo presente € 0 que pode com mais familiaridade ser conhecido pelos leitores franceses ou italianos como uma “inter- ‘vengio". Concebo-o como uma intervengfo, nfo, 56 em debates que possa ter ajudado a iniciar, mas também no decorrer deste Livro. E por isso que este capitulo surge depois do primeiro capitulo do original. Nao tanto por eu estar satisfeito com esse salva de sbertura, ‘como por ser importante manter 2 nogo de ema discussio em curso. Se a principio pensei apresentar os conceitos bisicos nesse primeiro capitulo, agora jé me parece, mais cbviameate com 2 passagem dos anos, que expus 0s seus defeltos ¢ pontas soltas. Para {quem nfo leu a versao original, 0 capitulo inicial servisé ainda a sua prevista fongdo de apresentacio; para outros leitores, pode servi ais como uma adverténcia para problemas no resolvidos. Neste capitulo, contudo, aio é minha intengdo tratar essas fraquezes cexaustiva e conclusivamente - decerto um objective vao. Tenciono antes ajudara situar historicamente os argumentos; basear-me cons- irutivamente nas sugest6es (e incompreensbes ocasionais) de outros para clatificar o argumento, ¢ torné-lo mais flexivel; e tomar o tra- patho em geral mais acessivel a quem possa nio ter um interesse directo nos casos etnogréficos pasticulares em que o meu penst- ‘mento original assentou. Se pelo caminho esses leitores comegarem > 6 Novas Renwexdes sown: GEOOLITICA Da INTIMIDADK CULTURAL 2 apreciar o significado desses casos pera a antropologia como um todo ~ € particularmente a posigdo peculiar da etnografia da Europa para um reposicionamento dos debates sobre a posicao p6s-colonial = ficarei bastante satisfeito. Para que ainda seja mais acessfvel, ampliei também o wltimo capftulo, ¢ fiz. algumas mudangas substanciais no final do capitulo sobre @ nostalgia estrutural, numa tentative de lembrar ao leitor 0 pensamento evolucionista nostélgico que parece ressurgir a cade geragto de antropélogos, a despeito dos seus melhores esforcos para livrar-se dele ~ uma forma de nostalgia estrutural em si, cuja pre- senga disseminada no nosso proprio pensamento pode ajudar a explicar porqué achamos tao dificil detectar 0 fenémeno no terreno, ‘A minha esperanca € que 0 conjunto flua agora mais cam mais facilidade, se articule melhor com os desenvolvimentos recentes na cetnografia dos estados-nacdes (como os trabalhos de James C. Scott (998, e rfl 0s meus préprios interesses etnogréficos em expansdo e 0s efeitos jé ai sp Tuto 2s ts observaveis que a nogao de intimidade E também uma oportunidade para alargar a discussdo, & qual regresso no fim do livro, sobre a ética da etnografia na era do que ‘vamos aprendendo a reconhecer como “cultura de auditoria”(!). Se 4 etnografie implica investigar os segredos intimos da vida social dos outros, néo nos devemos surpreender se — especialmente numa altura em que a reflexividade faz furor ~ 0s outros quiserem inspec- cionar os espagos internos da nossa ética e priticas. Ao mesmo = fempo, algumes das preocupaces expressas nos questionéri rotineiros que os comités de ética levam a efeito nio siio adequadas 80 trabalho antropol6gico; a maioria dos nossos informadores, por _eremplo, fearia eseandalizada com a simples ideia de 0s nosos 4 #tdos ~ a dédiva que nos fizeram - terem de ser destruidos no fim ‘ a periodo de investigagio. Logo, € importante que ponderemos fom muita claeza os nossosprprios compromisosétcos. Muitos ngs esto empenhados em formas de activismo comunitério wwe proporcionam uma resposta clara a esses preocupacdes. Mas ndo se trata de ética, também h4 certamente alguma roupa suja 5 lbempape Cutrurat. PofTica SOCIAL NO EsTADO-NACAD no armério antropolégico. Uma ética completamente reflexiva implica perguntarmo-nos se estamos a defender uma posiglo ética ou 2 ser defensivos — por outras palavras, se estamos a participar num debate pablico produtivo para ampliar o conbecimento da ética numa era multicultural ov, de forma inaceitével para os nossos padrSes (como firmemente creio), a defender a nossa propria “inti- midade profissional” da curiosidade legitima de colegas bem-inten- cionados. Orientagées Instaveis Duas outras mudangas muito especificas e contextuais ocorre- ram desde que a primeira edigo surgiu. A primeira cue, apés suits anos de investigago na Grécia, resolvi alargar a minha pes- quisa de campo, de inicio & Itdli, e mais tarde também & Tailandia Algumas das razbes para estas deslocagdes devem tomar-se apa- rentes no presente capitulo; por agora, basta cbservar que embora @ primeira edigao estrangeira de Intimidade Cultural tenha safdo em Italiano, colegas que trabalhavam na Teiléndia também estiveram entre os primeiros @ experimentar as ideias af expressas no ensino e 1a investigagio(2), Isso dava a entender que um modelo inicial- mente baseado na Europa tinha alguma relevancia noutros lugares, apesar da circunsténcia histérice cada vez mais evidente de que esses modelos derivam do dominio surpreendentemente :ndestru- tivel da Europa como padrao cultural de exceléncia. E dtl pensar especificamente porqué um modelo desenvolvido na Grésia pode ressoar especialmente bem nestes dois paises. A resposta comega a surgir de uma reflexdo sobre 0 contexto caltural das nossas préprias préticas ¢ hist6ria disciplinares.O modo como coleges trataram a mudanga pare Itélia como de cera forma natural, mas a mudanga para a Tailéndia como muito esquisita, ser- vviu para realgar a que ponto continuamos constrangidos, nfo tanto por assungGes sobre éreas de cultura, como pelas limitacdes mortais do nosso préprio tempo para o trabalho activo, © 2s limitagées 66 Novas REFLEXOES soBRe a GEOPOL{TICa D4 INTMIDADE CULTURAL conceptuais dessa divisdo aparentemente jnelutavel do mundo em Ocidente e o Resto. Os dois factores sio formas de contingéncia que participam de modo importante no que eu entendo por intimidade cultural, As relagdes exc&ntricas respectivas da Grécia, Itélia € ‘Tuilandia com esse entidade que imaginamos como “o Ocidente” fomecem um Sngulo de visio, especialmente dada a natureza social- ‘mente baseada da etnografia, que nfo € facilmente acessivel a partir das éreas mais convencionais dos Estudos Buropens. Elas forgam- nos a compreender que @ ideia do Ocidente nao pode ser percabida independentemente das stias ramificagCes, internas e externas, em lutas globais pelo domfnio cultural e politico, ou de uma historio- grafia que reconheca a mutabilidade e a mortalidade, nfo s6 dos funcionérios do colonialismo, mas também das ideias grandiosas € valores culturais pelos quais foram recrutados para impor 20 mundo. A Grécia emergiu das sombras do colonialismo, e nas suas margens geogrificas © polfticas, como uma terra aperentemente “oriental” que também era o “hugar de nascimento do Ocidente”. A lila, localizada com seguranca na parte ocidental do continente, Juta com uma relacgo complexa com uma “Africa” igualmente nebulosa, enquanto 20 mesmo tempo se agita de tensbes entre as suas culturas ¢ dialectos regionais, por um lado, e a visto ui6pica de uma cultura nacional por outro. Quanto & Tailéncia, sem ambi- uidade um pais asidtico ao sentido geogréfico, a histéria do sew envolvimento com as poténcias ocidentais — em muitos aspectos aralela & da Grécia ~ reflecte-se na longa sequéncia de compro- issos ¢ adaptagGes culturais que continuam até hoje. Cada um estes lugares reconhece diferentes refracgdes da ideia do Ocidente, Permanéncia imperiosa deste Essas s2o indictgées de uma mortalidade colectiva, a supressio = do que Benedict Anderson (1983: 18) apontou como um objectivo = sonho de conseguir a racionalidade absolute. Quer como scade- 4nismo (Tambiah 1990), quer como pritica administrativa (Herefeld 19922; Rabinow 1989), uma racionalidade exernamente Vilida & um o i CULTURAL, Politica SactAL No Esrano-Nacih sonho que s¢ evapora no duro teste da experiénc’a prética, com as suas constantes lembrangas no $6 da mortalidade, mas também da sua imprevisibilidade — sendo esta 0 rosto interme do que poder ‘mos chamar intimidade epistemol6gica. O rosto exterior, piblico, precisamente aquela drea de enorme poder onde a administragao ea cigncia unem forgas para negar a relevéncia da contingéncia no domntnio do Ocidente e pretender uma ética intemporal e, por fim, 0 dominio eterno do mundo. Os protestos do fildsofo do século xvi Giambattista Vico contra esta arrogancia universalista baseiam.se precisamente no seu reconhecimento de que a ideia de pura ebstrac- ‘do era uma ilusto nascida da ideia de poder absoluto; a raridade ‘com que Vico é hoje lido € 0 indicador mais claro do enorme poder contra o qual ele ousou verbalizar essas ideias corrosivas. A pers- pectiva de Vico implicitamente reconhece o que eu chamo intimi- dade cultural; € 0 reconhecimento desse profundo sentido de uma fatalidade pactihada, algo que deve ser acarinhado precisamente porque é a0 mesmo tempo efémero e privado, o que parece comum a praticamente toda a intimidade, Assungdes sobre 0 que se deve esconder cos outras paises decorrem de assungdes anteriores sobre o valor cultural ~ sobre 0 que € apropriado, justo, e elegante, Até nos Estados Unidos a obses- so com 0 estilo “europeu” trai um olhar para trés obsessivamente subalterno de um pats que por sua vez jé se tornou talvez a poténcia colonial mais poderosa da histéria da humanidade, Ha uma sensa- go desconfortdvel de que "tipos decentes” nfo deviam andar a ivertir-se exuberantemente sob o olhar trocista de europeus desde- hosos como Gerhard Schroeder ou Jacques Chirac, mas que a Sinica maneira de reclamar algum grau de conforto em intimidade ‘cultural ¢ boicotar os vinhos franceses ¢ celebrar as “Liberty fries” — lum acto de resistencia que pode servir apenas ara confirmar a fordem cultural que se deseja contestar. Por extensfo, e de forma ainda mais convincente, pafses mais fracos que trabalheram longa © duramente para obter o estatuto “europeu” ~ Roménia, Turquia, Rssia — ou para imitar os ornamentos da sua autoproclamada alta cultura ~ aqui ocorrem especialmente o Japfio e a Tailandia — defi- 6 Novas Retentis som Growo.inica va Livtttbaby CULTURAL nem as suas prioridades culturais em relagdo & “Europa, Embora = alguns. como Singapura, possam alternativamente optar por acentuar os “valores asidticos”, esta estratégia defensiva algo Sbvia de mais também cheira a “desconforto cultural”. como o chamam com propriedade os australianos. Logo, a minha decislo de traba- thar em Itélia (um pais obviamente “europeu”, mas cuja capital € vista com algum desdém pelo resto do tervitsrio) e na Tailéndia (um pais claramente asiético com um envolvimento longo e por vezes hhumilhante com 0 Ocidente, que ndo o impediu de conseguir uma hist6ria muito admirada de iniciativa bem-sucedida e auto-apre- sentago estética), ampliow a minha erescente percepgao dessas implicagdes maiores, ela propria alimentada pelo trabalho que eu fizera no tratamento da “tradic@o” artesanal na Grécia. A outta mudanga notével no contexto em que escrevo é um compromisso particular com o préprio conceito de intimidade cultu- ral. Um livro sobre intimidade cultural mediag40 de massa, edi- tado por Andrew Shryock (2004), apareceu pouco antes da publica- {plo desta edicao de Intimidade Cultural, Embora eu s6 possa aqui aludir rapidamemte 20 excelente trabalito ai contido (reagi detalha- damente no préprio fivro), a emergéncia desse esforgo colaborante acrescentou enorme entusiasmo 20 tépico, ao dilatar os seus hori- zontes, geograficamente e pela ampliagao do palco pilblico sob os meios de comunicago de massa. A ideia de intimidade cultural nasceu da minha consciéncia anterior e algo desconfortével de que aintimidade social que os bons etndgrafos conseguem no terreno, 5 vvezes em encontros de escala muito pequens, eseancara preocupa- bes politicamente sensiveis e culturalmente nevrélgicas de paises inteiros (e, acrescentaria agora, também de outras entidades circun- dantes). O livo de Shryock proporciona uma amplificagio muito necesséria dessa questio crucial: 20 mostrar como o intimo se infil- tra em esferas puiblicas elas proprias ampliadas pelas tecnologias de massificago dos meios de comunicagao, os autores na sua colec- ténea fomecem uma explicagdo especifica, material e absoluta- mente essencial de como as ideologias da pertengae os descontentes que elas (assim parece) inevitavelmente engendram se espatheram, 0 Ineranpane CULTURAL, Postica Social No EsT4D0-NAgko ermearam 0s intessticios da vida quotidiana,¢ enredaram os corpos humanos ainda mais inextricavelmente nas tenses entre 03 muitos niveis nos quais as pessoas gerem a nogo de distingto entre elas e os outros, Complicando os Conceitos © objectivo principal deste capitulo € aproveitar algum do novo trabalho sobre a intimidade cultural. Recorrendo a esta obra, proponho-me mostrar como alguns argumentos mat desenvolvidos da minha parte, independentermente de achar que as minhas inten- ges foram interpretadas de forma correcta, podem ser usados de maneira produtiva para fortalecer 0 modelo original e torné-lo mais Stil. Essas extensdes tomam ts formas principais: histérica (0 modelo original era simplesmente estético de mais); institucional {o modelo original estava centrado demasiado estritamente no estado-nagio, que no que toca & intimidade cultural acaba por ser uum exemplo forte, mas de forma alguma o tinico relevanteis e geo- srdfica (no € 36 aplicavel a paises na periferia da Europa). Aqui, uma tentagio é aumentar © mimero de “tipos” reconheciveis de intimidade. Algo do género j4 scontecen com a nostalgia: temos a “nostalgia imperialista” (Rosaldo 1989: 68-87), a “nostalzia pré tica” Battaglia 1995), a minha propria formulacéo de nostalgia estrutural, © a muito observada “nostalgia folclérica’, para nomear alguns casos Sbvios a propésito. Evidentemente, pode-se fazer 0 ‘mesmo para a intimidade cultural. Richard Maddox (2004), por exemplo, enumera varias modalidades (céptica, comunitarista, € exclusionista). Mas todas elas so espectos da intimidade cultural, que ganham visibilidade pelas politicas voléteis do momento: & hospitalidade aos estranhos, € 2 sua exclusio do conherimento iniciado n&o so incompativeis, por exemplo, ¢ ambos encaixam bem com o cepticismo quanto & visbilidade de instituigdes de grupo. Logo, a classificagao de Maddox no é um exemplo do que Edmund Leach (1962) celebremente chamou “coleccionismo de borboletas” 70 [Novas REPLEXOES SOBRE a GEOFOLITICA D& INTIMIDADE CULTURAL (@ classificagao pele classificaglo). Mas facilmente poderia ser lido assim, ¢ isso minaria a sua flexibilidade heuristica. Em vez disso, a sua obra deve encorajar perguntas sobre as condigées em que a intimidade cultural adguire cada uma dessas énfases ~ pois é isso que elas so, ¢ ndo tipos mutuamente exclusives. e Existe contudo uma séria tentagao de permitir que a classifica- 0 da intimidade cultural prolifere fora de controlo. A razlo reside provavelmente, pelo menos de um ponto de vista histérico, na crescente antipatia, quer dos antropélogos quer dos seus criticos, pelo género de binarismo simplista que caracterizou a época dou- Tada do pensamento estruturalista. De facto, a minha propria passagem da dissemi para a intimidade cultural foi motivada, como Jd observei, por um desejo de resistir a essa espécie de reducionismo —evitar a tentagao de multiplicar as refracg6es do binarismo, em vez de desafiar 0 seu fascinio fazendo perguntas incémodas acerca da Sua politica e implicagées hist6ricas. Manifestamente, essa tentativa nio foi completamente bem-sucedida. Alguns leitores censuraram- “me pela dicotomizagdo desnecesséria, ow tomaram eles mesmos esse caminho, Embora eu partilhe a suspeigio geral pelas assungées estrutu- ralistas quanto & organizagio binaria do pensamento ¢ da cultura, ‘nfo podemos ignorar 0 facto de que no Ocidente - a presenga cultural que domina 0 mundo, seja qual for a maneira como o deli- eamos — costuma-se conceptualizar a sociedade humana em termos Aistintemente bindries. Mesmo hoje, por exemplo, oposigdes rigida- _, Mente simplistas entre as nagbes em desenvolvimento e desenvolvi- == 8s taduzem a diseriminacio antes-e-depois do evolucionismo na politica e na pritica, Pois o evolucionismo, mascarado de histéria, _ oferecia apenas um plano inclinado, no topo do qual se encontravam sp) saveles de quem se'podia dizer que tinham “sempre-ja" chegado Tivesse eu explorado a persisténeia do evolucionismo no pensa- HO antropolégico de forma 120 abrangente como Johannes fabian cm Time and the Other (1983), © entéo talvez pucesse ter do mais répido a detectara sue persisténcia notivel na fala quoti- '4 pelo mundo inteiro, ¢ logo a identificar o que mais recente- € i i : n ia eal ae ici ees L. Pottica Social. so Estapo-Nacse mente vim a chamar“a hierarquia global do valor" de que adiante terei mais a dizer. No ponto em que as coisas estavam, a ideia encontrava-se dispontvel: a Grécia, um pafs que interiorizou a um Ponto surpreendente a visao binéria que o Oxidente tem do mundo, € também conspicuamente (como tantas vezts comentei) um pais que exibe um sentido dual da sua identidade, com nomes historica- mente diferentes para 0 seu povo quando ele conversa entre si, € quando the pedem que mostte a sua cultura na arena interna: clonal @). ‘Tratei desta questdo no capitulo precedente, mas levento-a novamente aqui para sublinhar que alguns resquicios de binarismo io provaveimente inevitiveis: por muito que tenhamos éxito a libertar-nos das peias dos modos colonialistas de pensar, eles con- ‘unuam a ser uma presenga histérica significative e, como tal, uma influencia nas configuragdes geopoliticas da actualidade. Assim, a intimidade cultural sempre fard eco desse binatismo residual; de facto, a propria ideia de um espaco cultural privado protegido da visto erftica dos poderosos, é inerentemente binéria ¢ uma expres- sto explicita de hierarquia ressentida mas, ipso facto, reconhecida. Paradoxalmente, como pode parecer a alguns, uma apreciagZ0 ais historica do modelo tomou possivel evitar deitar fora o bebé 0 contexto histérico com a gua da banheica do binarismo- enquanto-absoluto: podemos ver como ¢ onde o binatismo se infil- trou nos nossos discursos colectivos. Os dois factores interdepen- dentes que possibilitam esse ajustamento conceptual sZ0 0 tempo ¢ 2 agéncia. Além disso, o princfpio transformativo & 0 da poética social. Aqui a postica social permite-nos analisar empregos estra- tégicos ou préticos de tipos ideais - esteredtipos, leis e regals- ‘mentos, representagées da cultura, folclore nosti‘gico, indicadores de classe como a fala € 0 vestuétio ~ para que possamos compreen- der a intimidade cultural como um processo complexo, e nfo um tipo estético de pertenca a um grupo, caracterizado por uma estru- ture institucional (especialmente como um estado-naggo), uma Jinguagem de representagdo (na qual o embarago é0 nico modo de reacgio as revelages do seu contesdo), e uma orientagéo (espe- ? n Novas Rituintits soke a Gearucinies pa Ivnaipape Cur cificamente para “o Ocidente”). Ao reapresentar essas pretensdes & etemidade em termos temporais © empiricos, podemos pergunter porqué pareceu estado-nagio 0 local mais 6bvio para a operacéo de intimidade cultural, porqué certas caracteristicas so tidas como embaragosas em momentos hist6ricos particulares, e porqué “o Ocidente” mantém-se, se no 0 nico referente extemo, um refe- sente dominante por enquanto, Chamar 2 stencfo para modificagées nas minhas préprias circunstincias © interesses desde antes da publicag4o original da primeira edigdo nao uma tentativa de reclamar algum tipo de patente intelectual, mas de contribuir para esse processo de fazer historia, O paradoxo da histéria escrita em qualquer pessoa que nao a primeira do singular — nm estilo que muitos historiadores aboui= ‘nam como impréprio de um estudioso — encontra-se precisamente uma curiosa negaco de agéncia e responsabilidade por percepdes que se baseiam, no fim de contas, na observagéo e experiéncia pessoais. Suspeito que @ maioria dos historiadores, ao ler 0 que acabo de escrever, negariam estar a evitar embaragos, antes recla~ mando para a sua disciplina uma linguagem de modesto decoro. 4 dissecgdo antropolégica da intimidade cultural, porém, baseada (como tem de ser) em encontros etnogréficos fntimos, mio nos Permite logicamente a mesma parra gramatical. Como argumentarei mais adiante no livro, algo do que escrevemos tem consequéncias rmateriais, ¢ temos de estar preparados para nos responsabilizarmos Por estas. Fazé-o implica reconhecer 0 envolvimento da nossa agén- cia pessoal num processo temporal, e parece sensato assinalé-lo na maneira como escrevemos. Mas as assuncdes de intimidade também nio devem tornar-se base para uma complacéncia beata, Num raciocfaio reminiscente do meu apelo a um “campo intermédio militante”, ¢ reconhecendo fambém a reificagéo como um aspecto da vida social, Keane (2003: 238-41) adverte que “nés” nao constitui uma categoria claremente definida © no deve resguardar-se por trés de redugSes simplistas de agéncia 20 ntvel do “senso comum”, um senso comum que no é ‘menos culturalmente especifico ou historicamente contingente do B Iymiipane CULTURAL. POsrica SOCAL NO ESTADO-NAGKO que 0 de cientistas sociais mais positivistas, Isso pareceria apoiar uum estilo gramatical que mantém a tensio entre © que Keane designa a intimidade e distanciamento simulténeos do encontro etnografico. Sendo esse 0 caso, seria melhor manter 0 inoémodo de desmanchar as pretensdes académicas que a idiossincrasia sintéctica da primeira pessoa do singular gera para os leitores & margem da disciptina Isto € um exefnplo do que chamei “desconforto prodativo” (Herzfeld 19922: 16). A prética do trabalho de campo sempre colo- cou desafios as complacéncias dos antropélogos; mas, na mesma Jinha, as vezes também parece crid-las. O retrato ir6nico do “antro- p6logo como herdi” (Sontag 1970), por exemplo, costuma repe- tirse em celebrago do sofrimento, embarago, até estupidez einograficos, convertendo os efeitos secundérios de afirmar-se conhecedor fntimo do estranho em caracteristicas essencisis da persona profissional. Este € um exemplo da actuago dos esteresti os, que descreverei mais tarde: de facto, também reiterei que o pr6prio acto de escrever os nossos estudos etnogréficas 6, de ‘maneira similar, uma actuagdo (Herzfeld 1992b). Visto nesses ter- ‘mos, 0 nosso modo de producto deve ser examinado pelos efeitos, voluntérios ou nfo, que despoleta, no campo e no ambito mais vasto do nosso universo profissional Estas consideragdes so insepardveis de questdes de ética. Varios ensaios no livro de Shryock lidam frontalments com a ques- ‘Go, concentrando-se na politica do envolvimento, mas acho que também podemos falar sobre @ questo numa direcgo mais técnica. Tal como Keane, vejo a auto-reificago do antropSlogo — aquilo que Keane, num exame da materialidade da linguagem, a partir da sua cuidadosa disseecdo da prética ritual na Indonésia (Keane 1997: 9-14) designa proveitosamente como “objectificagao” — como um aspecto em grande parte nfo examinado das pretenses, agora em voga, de uma postura reflexiva (*), Chamar moda a esses pretenses € em si problemitico (e provavelmente um acto de estereotipagem © portanto de objectificacio). Embora muitos possam encaré-la como uma critica nevessariamente pejorativa, sO pretendo chamar a " nice eenen [NOVAS REFLEXOES SOBRE A GEOPOLITICA DA INTIMIDADE CULTURAL atencdo para a integracdo dessas auto-estereotipagens nas particula- ridades dos momentos culturais e hist6ricos dos préprios antro- pélogos, ¢ como um meio de tomar nosso desconforto ainda mais produtivo, © meu trabalho na Grécia levou-me a aveliar numa primeira fase que as imagens supostamente intimas da cultara nacional que os criticos opunham & retérica dos nacionalistas eramn elas mesmas, em igual medida, reificagbes, estereétipos, objectificagSes no sen- tido de’ Keane. Estudiosos literérios tinham comegado a fazer obser- vagées muito semelhantes, ¢ a situar esses essencialismos nos seus contextos hist6ricos (Tziovas 1986). & especialmente impor- tante no ceder & tentagio — que por todo o género de razdes pro- fissionais pode ser muito fascinante) de olhar o retrato de intimidade que emerge em tais confrontos como o lugar de uma espécie de agéncia, também facilmente equipardvel a ideias tio imprecisas ¢ deolbgicas como a liberdade de escolha ¢ 0 individualismo. O pré- Prio individualismo € produto de um desenvolvimento histérico muito peculiar, baseado em nogdes de propriedade individual ¢ portanto fundamental para ideias nascentes de nagdo, heranga © tradicdo (v. Askew 1996; Handler 1985). A agéncia no menos problemética; a nogGo de agéncia resvala muito facilmente para ogSes romanceadas de liberdade de escolha, individualismo, ¢ & apoteose da intimidade, ¢ assim reproduz, quer queire quer no, © Persistente evolucionismo que nos junta a um passado intelectual Positivista e colonialista que muitos antropélogos de hoje preferi- Flam esquecer. Tal como os actores sociais pintam o retrato “intimo” ___ 44 Grécia como 0 abandono, a Zorba, da responsabilidade formal & _ da convencao social, de passagem reduzindo-o muitas vezes a uma actuagio muitissimo previstvel de espontaneidade, também, de ‘todo geral, temoswie nos precaver contra duas falécias. A primeira € ver representagbes pliblicas de intimidade modemista como um = Hovo afrouxamento de grilhetas ideol6gicas; elas representam antes, #28 palavras de Keane, uma objectificagdo das relacdes sociais Xontingentes em termos que combinam bem com o modemismo, alvez 6 através da ironia os individuos se possam lbertar dos 75 xo Estapo-Nagho constrangimentos do poder que os rodeia, mas, quando o fazem, também se arriscam a confirmar os préprios estereétipos ~ sobre- tudo 0 do tradicionalismo grosseiro — que os encerra na sua posigio subalterna. A segunda faldcia consiste em confundir a representago pablica da nagdo como familia como expresédo em si da “intimi- dade cultural”, Ele €, pelo contrério, 0 oposto da intimidade culta- rel: uma tentativa de controlar reiagtes domésticas para fins de representacdo publica, Como tal, ela oculta 0 segredo sujo de que, por exemplo, algumas mulheres ¢ homens mantém-se mutuamente distantes. e até hostis, no lar, agarrando-se a un tradicionalismo patriarcal que © estado pretende ter abolido; ou que alguns pais ainda tentam que os filhos aprendam quantidades enormes de factos decorando-os, ainda que as escolas insistam que isso é mau para cles(®). Também oculta o facto ainda mais embaragoso de que nem todas as familias vivem felizes e em harmonia Nuvens e Sombras de Intimidade ‘Uma caracteristica essenciel da intimidade cultural'é a de que o seu conteddo & necessariamente inconstante. Ela representa as alter nativas as vis6es oficiais do momento, que a despeito de todas as suas pretensbes de verdade etema, stio comprovadamente instévei Como reacg6es ao estado ou outras formas de reificagao, a intimi- dade cultural nfo é menos um espaco-de reificagio. Porque é tam- bém uum espago em que as pessoas se sentem fivres da interferéncia oficial — onde a sua recusa definidora das normas oficiais concede essa sensagto de seguranga interna — pode também causar 0 efeito paradoxal de mobilizar apoio, ou pelo menos enfraquecer a resis- téncia, as importunidades oficiais. E provavel que estados-nagdes como a Grécia ou os Estados Unidos, a sair de um proceso de libertago que foi também um processo de autodefinigao colectiva, nao tivessem podido consolidar o seu poder sobre popalagSes por vezes relutantes sem 0 refiigio, nio reconhecido, proporcionado por cessas reas culturalmente fntimas, Néo quero dizer que os arquitec- 6 Novas Rentuxies soe a Georotuica ts INtisipAbE CoLTURAt tos dessas identidades nacionais tenhem deliberadamente procurado conseguir esse efeito: mas muitos deles ter-se-&o apercebido da possibilidade. e talvez por isso tenham tentado evitar confrontar o que, de outra mancira, pareceriam atitudes rebeldes intolerdveis (5), E aessa luz que respondo a uma das mais interessantes reacgbes critieas 20 modelo original até agora aparecidas. A discussdo de Aleksandar Kiossev (2002) sobre a “intimidade sombria, na qual 0 estudioso bélgaro sugere existizem muitas variedades de intimidade colectiva nos paises pés-socialistas dos Balciis, poderia facilmente, como a andlise de Madéox, ser mal interpretada como um exerescio de coleccionismo de borboletas, A sua descrigko de “uma espécie de regressio voluntétia a uma ‘vizinhanga’ baleénica grande, escan- dalosa, Jonge da Europa ¢ das irvitantes patrias oficinis” (Kiossev 2002: 185), soa nitidamente como a variedade grega, Numa ampla nota final, porém, ele sugere que a intimidade cultural nao s6 resulta de uma reacgao & presenca do estado, como também se ramifica numa pletora de teacgdes a0 poder analogamente concebidas: “reliquias de identidades pré-modernas questionam ainda o poder das ‘altas’ cultures nacionais, enquanto as altas culturas nacionais rejeitam apaixonsdamente as aparentes similaridades balcanicas (caltivando balcanismos simultaneamente nascentes). Essas altas cculturas esto ainda comprometidas ~ cada ume por si ~ numa luta VA contra a arrogancia do balcanismo ocidemtal. Por sua vez, 0 baleanismo, como vatiante de um discurso colonial, tem de lidar com 0s novos discursos no poder: globslismo cultural, pés-colo- nialismo, e multiculturalismo” (Kiossev 2002: 190 an. 45). Kiossev tem sem divida razio a0 reconhecer uma gama mais vasta desses contrastes do que sugeria a minha forte atencao original a0 estado-nago. Todas as estruturas institucionais sto capazes de gerar as suas préprias intimidades peculiares; todas as entidades culturais abrangentes (como as didsporas, algumas das quais so Rotoriamente “defensivas") podem as vezes exibir a mesma relu- tincia caracteristica em admitir forasteiros metedicos. Os meios académicos no sto excepgao; a0 escrever sobre as priticas de cién- cia social nas instituigdes académicas de Taiwan, por exemplo, n [iernmbaps CULTURAL, Potmicn Social NO EstAD0-NAchO Novas REPLaxOES souRs A Gzoroutrica oa Ivrmwipape CULTURAL Allen Chun (2000: 590) documentou tod uma série de procedi- tmentos locais — inclusive a emergéncia de “uma indtistria menor {...] em que académicos necessitados e frustrados acquirem recibos de vendedores coniventes [...] pare comprar itens nfo aprovados, como computadores pessoais, sob a rubrica de artigos diversos”. s proponentes da cultura local de anditoria que subscreve tais pré- tices com certeza negariam a sua importancia na ordem das coisas, tal como o fariam os académicos; mas a verdade é que isso € um conluio necessério se se quiser fazer qualquer pesquisa, num sis- tema que adoptou largamente os adornos de umn modelo de respon- sabilizagio derivado do ocidental; ¢ que todavia, 20 mesmo tempo, assenta firmemente em praticas sociais de linhagem muito mais antiga localmente do que as genealogias intelectuais que essas préticas permitiram que os estudiosos construfssem. Os Baleas, como rea de alteridade interna A geografia europeia, proporcionam um espectéculo muito comparivel. Tanto 0 discurso do estado-nagdo como 0s outros discursos institucionais que Kiossev menciona sfo produtos da mesma hierarquia glcbal em ‘grande parte dominada pelo Ocidente. Nesse contexto, 0 caso grego fomnece pontos de contraste esclarecedores devido ao seu papel especial de antepassado europeu respeitado que agora vive tempos Giffceis, mas ndo deve servir como critério para decidir “quanta” intimidade cultural possui outro pais ou regio. Geograficamente um estado balednico sucessor do Império Otomano como todos os ‘outros, a Grécia nfo obstante teve uma trajectoria politica, cultural ¢ linguistica radicelmente divergente; por consequéacia, o espaco interior que defende difere no menos radicalmente do da Bulgaria ou da Albania. A razdo do modelo nfo é aplainar as diferengas mas, pelo contrério, servir como um dispositive heuristico para identi- ficé-las € mostrar como afectam a negocie¢o e conteido da inti+ migade cultural. Nesse sentido, a preocupagéo de Kiossev de que intimidade soa talvez de modo demasiado deticado ¢ afectuaso para albergar as implicages por vezes hostis das accGes transgressivas & inteiramente razodvel. mas prefiro conservar um sentido transgres- sor da prépria palavra. Desta maneira, espero que ela provoque um 8 oneayny _flierencas historicamente contingentes na organizagdo ¢ di _ ica politica. E assim também com 0 Norte balctinico da Grécia desconforto suficientemente produtivo para incitar mais pesquisas a0 que acontece entre as paredes da auto-representacto oficial Poderia acrescentar que as relagdes intimas nem sempre so calmas ¢ tranquitizedoras! Logo, também, na comparagdo entre a Grécia e a Itélia, o ‘modelo pode servir para realgar as diferengas nos modos como uma dindenica de forte auto-identificagSo nacional contrasia com uma situagZo em que as pessoas se preocupam com a identidade local & regional. (Seré possivel especular que isso também se relaciona com a diferenga entre as tendéncias atenienses de construir relacées sociais em moldes de réplica e desafio, e @ complacéncia romana de “deixar estar as coisas” [lass std]? Na Grécia a fragmentagio é ‘mais social que cultural; na Ilia ha uma forte tendéncia de sentido ‘posto, ainda que longe de absoluta)(), Na Grécia é a nago que nega oficialmente a sua divida para com o passedo otomano, mas imeramente reconhece-a; 20 mesmo tempo, a capital em Atenas & © centro incontestado do poder cultural, assim como do politico. Em Itilia, “a Africa comega em Roma”, segundo os habitantes do Norte; os romanos afirmam que “a Africa comega’” mais a sul e 20 mesmo tempo acentuam 0 carécter sulista da sua propria cultura local, com © seu dialecto e tradicdes distintas — um jufzo que outros italianos, A maioria com desdém, de boa vontade corroborara. Em Espana, lum estado com outra estrutura politica, é a Andaluia - cultural € __ Ninguisticamente mais préxime do castelhanismo elitista de Madrid <éo que da msioria das regi6es indusrializadas do Norte ~ que repre- senta internamente a “Africa”. Nos wés casos, expressdes de pena- Jizado embaraco sublinham o contetido no europeu da alteridade ‘dentro do corpo politico, distribuindo-o diversamente consoante \ romanitd que Mussolini desejava aos romanos sofre da associa InvriMioabe CULTURAL, POBNICA SOCIAL NO BSIAD0-NACAO ainda do Ocidente pela sua histéria do séculc xx sob controlo russo(), Portanto, ndo precisemos de multiplicar as categorias de intimi- dade cultural para avaliar que ela €, coma, mostra Kiossev, um produto do dominio dos modelos ocidentais, assim como de mode- Jos concebidos em reacgao 2 estes, Devemos master em toda 2 sua simplicidade a ideia bésica de uma zona de cultura intima, conce- bida em oposicéo a imagens poderosas de um Ocidente idealizado (ou em teoria algum outro polo politico), € conseguir um refiigio dessas formalidades imponentes. O que a critica de Kiossev sugere muito proveitosamente, Jonge de qualquer encorajamento de proti- feragio terminolégica, é a necessidade de sublinhar a abertura do modelo, no qual na verdade o estado-nagéo figura como um nivel de identiticago importante mas de forma alguma tinico, onde séo negociadas distingdes entre os rostos da identidade publica e intima Isso aumenta, quando muito, a sensagio de uma estrutuca global for temente predominante de autoridade cultural e poder. Mais inves- tigagbes etnograficas, além do mais, poderiam revelar as formas em gue modelos espectficos de intimidade cultural alimentam a sua reprodugdo em novos contextos. A complexidade da regio bal- Anica & rapider com que 0 mapa geopolitico mudou oferecem ‘uma oportuniade tnica para documentar esses processos ¢ mostrar quto instivel, na prética, é a realia do discursc oficial e da inti- rmidade cultural. Kiossev sugere que na “intimidade sombria” dos Bales, mais do que apropriar-se do discurso oficial para os seus prdptios fins, as pessoas opGem-se a todo 0 discurso oficial por meio de uma recusa ineverente de qualquer espécie de ordem. Iss0, sugiro eu, nfo é menos verdade para a Grécia do que pars os paises que ele esté a considerar: 6 revelador que Kiossev siga a convengiio politica de nfo tratar a Grécia como um pais balcdnico quando sublinha o sea acesso pessoal & intimidade da Bulgétia (hé um contraste implicito no que ele diz, entre uma Grécia caracterizada pelo que ele vé como ‘omen entendimento da intimidade cultural “os Balc&s” em geral). Por outro lado, se respeitarmos a definigao minimalista de intimi- ; 80 Navas RELENGES stunk A Gronouintea pa muinanr CuLALRAL dade cultural que acabei de propor, em nada importa se uma estra- tégia de lidar com o discurso do estado for exproprié-lo; a irreverén- cia ¢ a subversdo podem decerto envolver imitagéo e ironia, mas também podem tomar a forma de rejeicio total e troga. Na Grécia, € verdade. 0s actores locais as vezes expropriam mesmo 0 discurso 4a oficialidade para os seus préprios fins; mas Kiossev néo defende que na Bulgétia © na Sé:via eles nfo 0 fazer. Quando os ladrées de gado cretenses reivindicam 0 manto dos guerrilheires revolucio- nirios da Guerra da Independéncia nacional, estio certamente a contestar a historiografia oficial. Mas em qualquer caso, essas expropriagdes do discurso oficial no devem tornar-se a caracterfs tica definidora da intimidade cultural. Ao invés, a intimidade cultural tem a ver com discursos alternatives — ou ao nivel da semntica (como no caso da expropriagdo) ou da expresso extema (como no caso da ret6rica oposicionista). E a esse respeito Gréciae Bulgéris, para ndo falar de todos os outros paises da peninsula Balednica, perecem estupendamente bem equipadas (também pode- mos aqui lembrar 0 exernplo geograficamente distante, mencionado no capitulo anterior, dos Wekuénai, cuja incorporagéo de tiés estados-nagdes no seu sistema de parentesco local supera tudo que encontrei no contexto europeu). Nos espacos intimos, os préprios funcionérios oscilam entte 0 capricho e a conivéncia com 05 que, com desprezo equivalente pela formalidade, operam nas margens cextremas da lei (v, p. ex., Konstantinov 1996). Kiossev observa, mais especificamente, que “a agéncia no poder” multiplica-se para além da de uma simples oposigdo entre 0 estado € os seus cidaddos, porque @ intimidade de que ele escreve “escandaliza as linguagens oficiais {...] em vez de usé-las e apro- priar-se delas” (2002: 190 n. 45). Ele sugere (loc. ct.) que esse tipo Ge actividade “é 56 uma forma de protesto andrquico contra qual- quer espécie de identidade e qualquer espécie de ordem simbélica” Eu até iria mais longe que Kiossev, e defenderia que a expropriaggo do discurso oficial é apenas uma variedade do “escindalo” que ele desereve; € uma forma de jogo semantico, irénica no efeito e as vezes tamibém na intengao, que corr6i a autoridade da mente literal 81 Inemmaps CutTuRat, Patrica Socta. No Estab0-Nagao dos burocratas. Consideremos, especialmente, os Jadrées de Creta ‘que primeiro insistem em convidar a policia local para uma refeigo sumptuosa e depois informam que acabsram de comer as provas Juntos (Herzfeld 1985a: 220-22): ov os seus compatriotas intelec- tuais em Atenas que, informados pelos ditadores militares da altura que os livros s6 poderiam ser editados se tivessem titulos descritivos exactes, publicam um conjunto cfustico de sétiras designado Dezoito Texios (Van-Dyck 1997: 19). A greve de zelo, & qual Scott (1998: 256, 310-11) concede muita reflexdo no seu relato de como os trabalhadores mantém a dignidade dentro dos constrangimentos de regras por vezes opressivas, é talvez uma subversio mais roti neira, mais dificil de controlar pelo estado, por transformar aberta- mente uma postura irénica de conformismo em verdadeira malicia, Os funcionérios do estado podem também eles subverter & cordem oficial da mesma maneira; funcionérios publicos em gieve de zelo podem vergar uma na¢o com notével rapidez. Para eles, tal acgGo representa uma de vérias escolhas de como exercita: a sua agéncia; talvez 0 caso mais familiar seja 0 das interpretagSes da lei em proveito pessoal por parte do funcionério singular, & custa de algum cidadio infeliz em vez de & custa do estado como un todo. Funciondtios verdadeiramente habeis, porém, podem fazer as duas coisas. Quando 0s burocratas contestam as interpretagées lorais de linguagem legal ou historia, por exemplo, costumam afinmar-se “escandalizados", mas cles também participam assiduamente nessas leituras subversivas ~ as vezes de maneiras que levam a ser che- mados “corruptos” (0s académicos de Taiwan que Chun menciona, desesperadamente descarados, obedecem a um guifio que pode ser familiar, em diversas formas, em todo 0 mundo). Com igual fre- ‘quéncia, os proprios funciondrios participam em actividades que nunca admitiriam abertamente, Os ladrdes de gado de Creta insistiam que precisamente aqueles politicos que declaravam nunca ir aceitar 0 voto de um ladrdo, ¢ que activamente promoviam legis- lagio anti-roubo de gado no parlamento nacional, ne pritica eram, de todos os politicos, os mais completamente enredados em redes de patrocinio em nada menos que roubo de animais: isso pelas cportu- 82 Novas RERLEXOES SOBRE A G2OFOLITICA Dx INTIMADADE CULTURAL nidades proporcionadas para intervir no processo legal em troca de volos. Aqui estd um exemplo por exceléncia de como o escéndalo pode unir a populagdo aos seus lideres, inteiramente ciimplices ‘numa actividade que estes, pelo menos, condenariam como “nfo -europeia”(®), Nao tenho a certeza de que essa intimidade seja particularmente sinistra para os envolvidos; muitas vezes parecem aché-la enormemente engracada. Mas & decerto intima © préprio estado pode praticar alguma forma de intimidade cultural’dentro de érbitas de poder mais vastas. Nao costuma ser tanto 0 uso do discurso oficial — 0 que Bourdieu (1977: 40) reco- hece como “estratégias oficializadoras” ~ mas a rejeiclo delibe- rada das linguagens de ordem derivadas do exterior aguilo que empresta a intimidade cultural um papel nacional importante, depois de um dominio internacional como a hegemonia colonial, Tal como observa Robert J. Foster, escrevendo da Papua-Nova Guiné, “as profissdes de marginalidade ~ de inferioridade deveras, ‘moral, material e intelectual, relativamente aos brancos — desem- penham frequentemente [...} ‘intimidade cultural’; disfargam nfo somente a agéncia, mas também 0 optimismo ¢ até uma certa con- fianga moral” (Foster 2002: 132-33). Ou, como Hirokazu Miyazaki (2000: 42-43) assinala, bascendo-se no mesmo conjunto de ideias, a _ Regardo da agéncia € ainda em si uma forma de agéncia — nfo Aactuabilidade actuante, em alguns contextos (para novos exemplos, _.Yer Askew 2002: 5; Malaby 2003: 21). Logo, a alegre anarquia de sias, ou greges, ou papuas, ou tailandesas) que justifica os seus prios momentosemais repressivos; € contudo, tal permite-Ihe #lo menos dao a aparéncia de uma desordem consoladora. ‘A imagem do Ocidente invocada em conjungio com a ordem bém uma inversio da tradi¢do, Por terem usado muito 0 folclore 83 A (AM RR RMR RRR REEMA RMB RR Ixnupape Cevrurae, Boss 4 SOCIAL NO BsrabONAGKO as REBUN soit a Crorauincs ta INtiseonot CeLtRaL para construir um sentido de identidade nacional. os paises bal cos foram sempre associados a um alto grau de tradicionalismo: e & tradico, da perspectiva do projecto modemista de construg#o de estados, pode ser a antitese da ordem. Na sua representagio “pito- resca” parece uma viva rejeigdo da modernidéde intrusiva; na dura realidade, ela pode, no menos, servir para limitar o desempenho da agéncia local ou pessoal. O tradicionalismo é assim capaz. de fun- cionar dos dois modos: parece elevar os seus adeptos a um papel glorioso; todavia, como veremas, pode também ser uma razio para marginalizd-los. As suas ironias sto terreno fértil para o jogo da intimidade cultural por trés das fachadas da cultura nacional Isso pode nem sempre ser dbvio, até porque € um aspecto da realidade politica que as ideologias oficiais se esforgam considera- vvelmente por ocultar. Embora Susan Reed, na sua discussio sobre as dangarinas do Sri Lanka, generosamente recorhega essa dimen- so da intimidade cultural na minha formulagao original (2002: 253), por exemplo, as observagdes de Kiossev mostram que isso no precisa de ser explicado mais claramente, para que nflo assumamos {ue a proliferacio desenfreada de formas de agéncia em situagdes 1p6s-coloniais ¢ criptocoloniais significa necessariamente a emanci- pacdo efectiva dos membros fracos da sociedade, Bla pode causar precisamente 0 cftito contrério. Este é, de facio, um problema classico, que também confundiu discussbes sobre a “resisténcia”, ¢ std subjacente aos paradoxos do tradicionalismo que brotam da presenga persistente da hierarquia global de valor(!0). A discussao de Kiossev também mostra que 0 que muda nao é 1 dicotomia bésica entre iniciados e estranhos, ou ideia de que os segredos daqueles devem ser protegidos destes. &, antes, o contetido especifico ~ 0 que Fredrik Barth (1969), noutra discusséo seme- Thante —hé muito apetidara, incisivamente, a “sutstncia cultural”, neste caso, da rea fntima(). Os embaragos de cntem so a orgu- Thosa ostentagio de hoje —razZo de um enorme leque de etnénimos ‘outrora pejorativos, como “Pretos” ou “Turcos”, se terem tormado istintivos de honra. A cisto da Guerra Fria herdou o simbolismo ‘geogrifico Leste-Oeste de uma hegemonia cultural anterior, com 0 84 ual veio a coexistir de forma muito eonfortével até praticamente o fim do século xx: 0 ruidoso crescimento da “Jugo-nostalg (Halpern ¢ Kideckel 2000: 18) ¢ da Ostaigie (Berdah! 1999: 176) mostra que, onde dantes o desejo de riqueza pessoal representava a zona de nostalgia cultural nos pafses socialistas, hoje a dnsia pela seguranca do controlo estatal pode estar bem posicionada para substitule. A intimidade cultural oferece assim os lampejos de uma explicagao da mudanca politica. O que na aparéncia ndéo muda facilmente é a nostalgieestrutural - a conviego que cada época tem de que as coisas jé nfo sf0 0 que eram © caso da Alemenha, com a sua histéria dual, é aqui espe- cialmente instrutivo ('2). O paradoxo estrutural de uta Grécia que combinava atributos estereotipados de Oriente ¢ Ocidente. ou do relato de Kiossev de uma identidade anérquica voluntariamente consttuida nos Bales, desenrola-se na forma de uma dicotomia politica estruturada no caso das duas Alemanhas. Estes estados mutuamente hostis mas culturalmente insepardveis trocavam ofi rides negativas um do outro, cada qual provendo os insultos ideo- logicamente apropriados a partir de um lote de esterestipos pejo- rativos acerca dos alemaes em geral, como demonstrou Dominic Boyer (2000: 479). Neste caso o contexto € crucial; a autodepre- ciagio fomece as armas para atacar um outro ideolégico, com quem © parentesco cultural € no obstante reconhecido, pelo menos tacitamente. Nao € 0 “narvisismo das pequenas diferengas” que ‘Anton Blok encontra nas tensGes entre etnias culturalmente seme- Jhantes (2001: 115-35), embora seja um fenémeno relacionado. uma “piada privada” amarga, a qual permite um reconhecimento desafiador do tereno comum sob a forma de uma pretensto, cléssica entre grupos étnicos que partilham fronteiras comuns, de ‘que “sabemos como eles sio pela nossa experincia préxima”, mas com a peculiaridade acrescentada de tal nfo poder atrbuirse direc- tamente ao racismo (!3), Ibetnuoave CULTURAL, POETICA SOCIAL NO ESTADO-NAG? Historiando a Intimidade Cultural O contetido da intimidade cultural ¢ pois altamente instivel. Ele muda com os ventos ideol6gicos da histéria, as vezes de maneiras totalmente imprevistas. Essas mudangas desmentem a propria ideia de valores sociais imorredouros. Assim, por exemplo, modelos mais antigos, patriarcais, que constitufam o niicleo das identidades imaginadas de varios paises — particularmente a Grécia, Espanha, Portugel, Turquia e alguns estados do Médio Oriente — sio agora uuma fonte de embarago. O que outrora se considerou vergonioso, pelo contrério, em especial hébitos mais livres para as mulheres dessas sociedades, torou-se agora o sinal de uma emancipagéo culbural bern-sucedida; € 0 residuo perdurdvel do patriarcado que tem de ser varrido para baixo do tapete, mas ele proporciona um sentido de identificagio social duradoura pelo menos para o seg- ‘mento masculino das populagbes desses paises. Assim, Esra Ozytirek (2004: 105-108), no livro de Shryock, ‘raga habilmente os reveses na sorte do patriarcado turco, mostrando ‘como a forma antes dominante de moralidade pessoal e social retira -se agora envergonhada. O que mudou nao fol a realidade do desejo oficial de defender os espagos da intimidade cultural, mas 0 género de intimidade social que agora serve como uma metéfora cceitével para 0 espago doméstico ideal — jé ndo um lugar de hierarquie patriar- cal, mas um espago determinadamente modemnista e “europeu”, de ‘facto aberto € igualitério. Nem um nem outro modelo foi na sua €poca uma representagio perfeitamente exacta da experiéncia social contempordnea; essa experiéncia na qual as relagées familiares afectuosas perturbavam 0 patriarcado ideal-tipico de maneira tio persistente & época como hoje @ masculinidade agressivamente dominadora perturba a modernidade igualmente ideal-tip.ca pro- Jectada pelos idedlogos do nacionalismo estatal turco. © que per- siste € a circunstancia de que ha sempre algo a defender: um espago de prazer sub-repticio, essencial para manter um sentido ce afini- dade cultural, justamente porque desafia as generalizagdes inade- quadas ¢ ut6picas do estado. 86 Novas Rertinces soars « Gaoroutica Da IemmIpAs CULTURAL A intimidade invocada por Giddens (1992) como a imagem de marca da modemidade é um exemplo do tipo ideal emulado pelos ide6logos; Giddens, nfo menos que Mauss, € um evolucionista aprés la letire, ambos excelentes exemplos etnogréficos de uma forma de pensamento disseminada entre os intelectuais ocidentais ¢ 6s seus imitadores. F essa intimidade personalizada, individualista, ue 05 ideSiogos turcos invocam; entre as elites turcas deliberada- mente europeizadas de hoje, & a rejeigdo de tal intimidade social que cconstitui a realidade inconveniente mas localmente familiar na qual devemos procurar as caracterfsticas da intimidade cultural (4) termo-chave aqui, embora niio enunciado, é “atraso”; estes ‘modelos apoiam-se em fundamentos de evolucionismo. Um exemplo dramético chega da minoria Miao ao Sudoeste da China, ‘um grupo caracterizado por “relagbes coloniais internas” com a ‘minoria dominante Han (Schein 1999: 364), Parece que quanto mais fas mulheres desta minoria étnica tentam nas suas actuagdes de tradigdes étnicas reclamar-se ao mesmo tempo de uma modernidade sancionada pelo estado, mais parecem seguir as assungbes da maioria cireundante sobre a base feminina do seu tradicionalismo (Schein 1999: 385-86). Aqui esté, entfo, um exemplo extra-curopeu da armaditha hegeménica que identifiquei pera a Grécia, embora ‘hos interroguemos sobre até que ponto o modelo dominante de modemidade procura superar uma relag4o analogamente desigual com “o Ocidente”. Seja como for, a questio estrutural mantém-se vilida; até as reivindicagGes mais autoglorificantes a uma identi- dade tradicional limitam o grau a que a agéncia, associada com os espagos intimos de uma identidade nacional ou regional, pode de + facto ultrapassar a impressio de atraso ou outra qualquer deficiéncia inextirpavel, = _ Talvez isso nosipossa ajudar a refinar a relagao delicada entre 5 azéncia e eficacia, Para compreender os efeitos préticos da agéncia, Jemos de abordar as implicagBes do seu tradicionalismo ~ tanto = desenfreadamente anirquico como decorosamente folclérico ~ na g_Atena mais vasta, Para obtertranscondéncia, os aciores socials devem Ser ndo tanto modernos como modernistas, Eles 18m de dissociar as sone re ory ce —o — 87 a am. AAR EER « . « © ee a cI 7 ™ rt oT Pi rt « € < « € Iarawmpape Pounca Socint No Bsraborh acho. Novas Retuixdes soma Guarorsnica ba INrnioape Cu at suas personas de um passado colectivo, geralmente folel6rico; este torna-se sua propriedade eulwural ~ a colectiva ou, como Ihe chamo aqui, “iconicidade” — e nao a reali- dade social das suas relagses sociais comreates. Esse € 0 essen- cialismo estratégico da etnogénese, ele préptio amide uma res- posta & repressio e violéncia do estado (ver Jackson 1995). Como ‘Andrew Orta (2002), baseando-se em parte na minha discussdo da iconicidade, demonstra com 0 advento da solidariedade étnica Aymara, essas estratégias redutoras so ferramentas importantes na produgo de acgio politica eficaz. $6 a nostalgie nfo chega: para ganhar (ugar no mundo modernista, € preciso sontro-lé-to © a0 mesmo tempo distanciar-se dele em termos temporais e com um delicado sentido da ironia da modernidade fundamental do tradicio- talismo. A nostalgia nfo tem apenas de ser idealizada; tem de ser Vista para ser idealizada. A prépria pretensGo & agéncia € uma parte essencial do projecto modemnista, ¢ ai de quem nao compreende esse importante prinetpio. Assim, numa demonstragio significativa dese ponto, Jane Collier (1997) mostrou claramente como a comercializacio da tradigdo na Andaluzia conduz a uma rejeicéo muito decisiva das modas antiquadas de vestuério e costumes pela elite modemizadora, ansiosa por ganhar o seu lugar 20 sol luminoso e neoliberal de Espanha, Esses andaluzes modemnistas nfo tér; dificuldade em afirmar o folelore como parte do seu passado; mas, como parte do presente, deve ser deliberadamente enquadraco. Como Fabian (1983) tdo bem demonstrou, representar alguma coisa como perten- ccente a0 pasado € colocé-la numa categoria inferior ~ uma nitida ‘expressio de hierarquia cultural e politica. No caso do sicilianismo discutido pelos Schneiders, por exemplo, o discurso oficial do estado italiano representa os valores da mafia coro retrégrados; 0 sicilianismo correspond @ uma tentativa de inverter esta hierarquia, muito & semelhanga de como alguns islamitas turcos gostariam de restaurar os valores patriarcais em ética oficial, e nfo ética emba- ragada. O atraso também € associado & tradico. Entre os artestios gregos que estudei, por exemplo, a reprodugdo de caracteristicas ds sua semelhanga 3 88 pessouis do género “diamante em bruto” ~ para adopter a refor- mulagio acertada deste aypecto por Jon Mitchell (2002: 140) ~ torna-se num meio de em simulténeo glorificar as suas contribui- {gdes para a tradicao nacional ¢ local ¢ deplorar os seus, maus modos (Herzfeld 20042), A I6gica da hegemonia é tal que alguém que adopte 0 tradicio~ nalismo esté a dar, quase sempre, a vantagem aos seus adversérios modernistas. Os informadores malteses de Mitchell, por exemplo, cenalteciam, desde 2 sua destruigdo, a solidariedade comunitéria de tum bairro outrora de mé fama, como assente nos valores da familia da ajuda métua: mas também recordavam a sua violéncia, dureza € comportamentos grosseiros (Mitchell 2002: 138-41). Também sublinhavam que a comunidade constituta, pelo menos imaginaria- mente, uma “tinica famtilia®. Essas, porém, foram precisamente as caracteristicas que levaram os modemistas a ir para a frente com a demoligao da area. O estado tem pouco interesse em conservar centidades familistas entre 0s niveis do lar ¢ do préprio estado, dado que essas entidades colocam desafios a sua legitimidade. Aquela gente da classe trabathadora maltese nZo conseguira suprimir a natureza indicadora das relagdes que entre ela subsistiam, e que Thes ava ~ como tanto acontece em comunidades politicamente mar- ginalizadas — uma forte consciéncia do que os separava da elite les ndo se ajustavam & autoprodugso icénica do estado burgués de Malta, mas ameagavam a sua harmonia com actos ~ ironicamente, actos icGaicos — de subversdo social. Também perturbavam, literal € rmaterialmente, a imagem de uma nage harmoniose. O afecto com ue eram lembrados depois do despejo e da demolig&o mostra como 08 valores representados por eles continuavam a ser uma parte relevante dos sentimentos colectivos associados A identidade nacional, Esses valores permanecem centrais & intimidade cultural do estado-nacdo maltés, Mas @ esséncia da intimidade cultural é que ela constitui um segredo discretamente preservado ~ e nééo uma fonte agressiva de Gbvia perturbagéo piblica. A discricéo € realmente 0 que conta: os que conseguem geri os aspectos mal reputados da intimidade cultural com os seus fatimos 89 Inmmnpaps CuLtuRat. Potrica Social No Estaoo-Nacho Jocais enquanto 20 mesmo tempo apresentam aos estrankos uma imagem de unidade colectiva facil so os cidadios mais eficazes, capazes de negociar com igual facilidade as suas relagées sociais uotidianas e os seus compromnissos com a burocracia. Que: 0 reco- hegam ou nfo, os burocratas e legisladores dependem da persistén- cia dessa sociabilidade intima mesmo quando Ihe condenam as formas. Por tris da teleologia do estado encontra-se outra espécie de teleologia, a nogio de que essa intimidade desontosa serve um pro- POsito util; & lz do argumento de Boyer, é inteiramente coucebivel ‘que 0 regime leste-alemo tenha desabado em parte por os seus funcionérios serem to literais na sua recusa de tolerar a minima nédoa na icputayiiu soctalista. Mesmo onde o estado rejeiia qual- ‘quer compromisso, existem muitos casos de sociedades que conse- guiram suportar catéstrofes promovidas por ele, precisamente porque 05 seus membros eran capazes de contar com o conheci- mento particular que 0 préptio estado condenava como arasado, impréprio, ou imoral. Este ponto, um aspecto importante do argu- mento de Scott em Seeing Like a State (Scott 1998: 331, 352), nfo explica s6 a razéo de as piores intervengées do estado néo terem conseguido, na maioria dos casos, destmuir todo 0 sentido de comu- nidade. Também nos ajuda a perceber uma questao que ele nfo trata directamente nessa obra: porque tantos detractores ferozes de estado podem nfo obstante reclamar-se profundamente petriotas — de forma nem sempre benévola, como a génese das milicias locais nos Estados Unidos demonstra, mas &s vezes com o tipo de fanfarronice despreocupada que provoca a admiragao até dos burocratas de quem eles fazem pouco. O eclipse da comunidade local, portento, no significe que tenham desaparecido os valores que ela representava, mas que estes passaram a formar um segmento submerso do auto-reconhecimento da entidade mais vasta. Revelados 20 piblico errado, logo serviriam como representagiio dramitica de felta de autoridade. Na verdade, algumas sociedades parecem ter emergido como entidades diseretas muito explicitamente através da gestdo hébil de segredos coectivos (p. ex. Rohatynskyj 1997). Na Europa, corpos como 0s Carbonari 90 Novas RERLEXOES sosRe A GEOPOLITICA DA INTIMIDADE CULTURAL do Risorgimento italiano e as “escolas secretas” que alegadamente prepararam 0 terreno para a revolugiio de 1821 aprenderam a distin- guir entre 0 oitos € © demos num estédio muito inicial das suas ‘evolugSes respectivas. Os corpos revolucionétios costumarn manter 2 fidelidade dos seus membros pela prestago de um juramento feroz, no qual o proprio elo entre “irmios” deve estar envolto em segredo; a magonaria € outro exemplo dessa técnica. Até nos apa- rentemente brandos comedores do poder da Unio Europeia, a inca- pacidade dos burocratas britanicos de se adaptar 20 personalismo dos seus colegas é vista, nf como uma admirével defesa de prin- gestio politica (Shore 2000: 82). O contraste entre os pronuncia- mentos oficiais e o reconhecimento de como as coisas funciona yerdadeiramente no diminuix com a mudanca da prética buro- crética de nacional para pan-europeia, mas adiscrico continua a ser fundamental para a manutencdo do equilforio, Etnégrafos conscien- tes conseguem obter enirevistes com burocratas da Unitio Buropeia. que podem niio ser menos surpreendentes a esse respeito do que 0 = = = que se podia ouvir antigamente, também em privado, de politicos © = locais e suas clientelas (Shore 2000: 119). | Assim se torna claro que, se a identidade colectiva & exprimida pela semethanga miitua, os seus segredos fntimos so uma questo de relaydes ~ aspectos relacionais de identidade comunitéria que muitas vezes também perturbam 2 sua superficie suave a partir de dentro. © Quando esses aspectos relacionais se tomam demasiado evidentes | ~ e especialmente quando as entidades locals opdem abertamente 2s =, Suas préprias alternatives ao familismo do estado ~ a tens pode tomar-se intolerdvel. O familismo local dificulta 0 projecto moder- nista-cvolucionista, celebrado como a ascensio de um e6digo de ‘manciras por Norbetj Elias (1978), de fixer uma autoridade final _(e sobretudo a arbitragem da moralidade interaceéo social) 20 nivel am AAAS EEE EM BO Instat CULTURAL, PURCA SORIAL Nt ESTaDO-NAGAO tas por uma ordem estatal inteiramente legivel como se descrevesse uma versdo especialmente reveladora do simbolisma da pureza e conspurcagio. Os padrinhos da Méfia simbolizam falhanco do estado; 0 nepotismo é 0 equivalente politica do incesto(!5). Nao nos devemos surpreender por vé-lo associade nd imaginacdo oficial & violéncia, crime, e mau comportamento simples. E no desaparece facilmente. Na verdade, pode ser também um entre muitos aspectos do contuio, que a um nfvel pragmético, permite a0 estado conseguir maior controlo sobre a populacio — um conluio que se apoia, como Tanya Li (1999: 295) explicitamente declara na sua andlise de planos de realojamento indonésios, nas vantagens praticas do compromisso assentes no fntimo conhecimento miituo, A Cultura contra a Sociedade Esse conluio, no entanto, nao deve ser visto de fora do proprio quadro institucional. Mais uma vez, € uma questio de discrigéo. O estado indonésio, conforme o estudo de Li, par exemple, dificil- ‘mente reconheceria o grau de improviso que possibilitou tanto 20 estado como aos cidadios proclamar certos plano: de realojamento tum sucesso. De modo mais geral, nenhum estado pode permiti-se admitir que as redes familiares continuam @ fomecer os meios de integragio prética, quotidiana. Nas comunidades das terras altas, de Creta onde trabalhei, eram exactamente aqueles politicos que se declaravam categoricamente contra aceitar os votos dos ladrdes de gado quem, insistiam muitos aldedes, criara as mais eficazes liga- ges de patrocinio, fundada no parentesco, com esses mesmos celerados. © problema é que 2 intimidade de familia & também a imagem que o estado afirma como espago da sta idealizacio de harmonia social. O familismo pode ainda constituir 0 segredo sujo que os politicos partilham com as populagées locais, mas comuni. dades locais que insistem na coesto interna dos lagos de parentesco io as autoridades nacionais e até municipais encarregadas da sua gesttio motivos para profunda preocupacio. , 92 [owas REFLEXOES susie a Guoros.tica in Isistibt: CULTURAL Escrevo estas palavras no rescaldo do trabalho de campo na Tailandia, onde passei muito do meu tempo numa comunidade em Banguecoque, num lugar chamado Pom Mahaken, que tinha a ppouea sorte de ocupar um espaco cobigado pelas autoridades muni- cipais para um parque pablico, © qual faaia parte de um plano para transformar a zona mais antiga da cidade na Patis do Oriente, Os residentes tinham orgulho de ser “uma familia”, desse modo rejeitando a constante negacdo pelas autoridades que eles fossem de todo uma comunidade (com a justificagdo altamente duvidosa de que possufam miltiplas origens). Eles queriam convencer as autori- dades de que se tinham modemizado nos seus préprios termos, conservando muitas das tradigdes associadas & cultura nacional. (O seu familismo ret6rico uma determinaco de resistir & mnseifi- cago desafiava a prdpria base do poder oficial A retGrica evolucionista do estado € imensamente, sedutora, Os proprios residentes de Pom Mahakan usam termos como Aaanpathanaa, “desenvolvimento”, sobre o proceso que tentam apoiar, enquanto lutam por permanecer no seu espago, Os dois lados querem ter tudo: ambos desejam reivindicar 0 controlo sobre a “tradig&o", fazendo ao mesmo tempo reclamagées igualmente per- sistentes de “modernidade”. Neste sentido, a pripria tradicao é uma ideia peculiarmente modemista. As suas implicagSes politicas, con- tudo, sé se tomar claras quando percebemos 0 quéo facilmente ela fica associada a uma imagem de rudeza; ¢ aqui a ligago com a intimidade cultural torna-se manifesta, As relagdes sociais entre membros da familia esifo mais obviamente sujeitas & corroséo do tempo do que as semelhangas Putativamente essenciais que reconhecemos como o terreno comum cultural dos cidadaos; quando toda a nagio é concebida como uma ‘inica, grande familia, a mera complexidade de relagGes integradas na experiéncia social através do tempo cede a uma branda presungao de homogeneidade intemporal. 0 verdadeiro parentesco é incon- Yeniente, ¢ os funcionérios estatais procuram superé-lo acentuando @ semelhanga em vez das relagGes: tais processos acompanham a construgdo do poder colectivo, ¢ podem &s vezes ser imitados 80 8 Iyrimipabe Cucrurat. PosTICA SOCIAL NO BsTADO-NACKD nivel da comunidade (Orta 2002). A propria realidade da genealogia nao s6 pressupde @ fuso daqueles que reconhecem o seu parentesco comum, um aspecto que 0 estado tem todo o interesse em subordi- nar, mas também a fisso daqueles que o recusam. O caminho que leva da genealogia e das relagdes sociais & presumida unidade verdade eterna € uma trajectéria de auto-ocultacdo. As entidades familistas que sobrevivem no meio de projectos municipsis, regio- nais ov nacionais sZo lembrangas inconvenientes do que foi ocul- tado, ¢ uma representagao demasiado visfvel do que se encontra na zona da intimidade cultural O embarago de uma década também pode vir a ser 0 orgulho a alegria de outra. Isso & muitas vezes evidente em projectos de econstrugo histsrica, onde a seleccdo dos edificios a restaurar pode obedecer a diferentes prinefpios em épocas diversas — um comentario revelador sobre a intenco subjacente de fixar a historia para sempre. O estudo de Ozytirek (2004) acerca dos velores em mudanga no estado turco secular é especialmente dtil a esse res- peito; relembremos ¢ radical mudanca no estatuto da autoridade patriarcal, de norma piblica a fonte de embaraco latente. Pode-se facilmente multiplicer os exemplos dessas alteracbes. Richard Maddox (2004) mostra como 0 autoritarismo espanol “langou-se” analogamente no que ele designa “liberalismo cosmopolita”, uma tolerdincia da diversidade que agore rejeita como um embacago ane. erénico os modelos piiblicos antes dominantes de pureza nacional. ‘Manifestamente 0 tempo pertence & esséncia; o caixote de lixo da histéria esta precisamente onde deverfamos procurar os destrogos reconfortantes de que é feta a base material da intimidade cultural Além do mais, estes nZo so processos irreversiveis. Os islamitas na Turquia € 08 franquistes em Espanha esperam revogar os efeitos da grande mudanga social. Devemos ter cuidado para nfo ver essas movimentagdes como simples retrocesso: ao fazé-lo, também nés estarfamos a render-nos 20 fascfnio da nostalgia de uma época imaginada que se nos escapa entre os dedos. Para qualquer pats, inclusive 2 Grécia, 0 contettdo da zona intima que pode originar embarago em contextos globais mais abrangentes Novks REFLSXOES SOBRE A GEOFOLITICA 54 INTIMIDADE CULTURAL € passfvel de mudar. A Gnica forma de prever a direcpdo da mudanga 6 examinar a distribuigao global do poder. Mas seria temerério assumir que essa distribuigdo é ela propria imune & mudanga, Essa 6 ailusto a que se dirige grande parte do seu labor simbélico — uma clara indicagéo de que por tris da fachada esconde-se a percepgio de afinal a histéria nfo poder ser tomada como cesta Os exemplos de Itélia e Espanha mostram como o localismo pode ser um defensor to forte de zonas Sntimas como naciow nalismo, que por vezes parece subverter pela manutencéo de priti- cas julgadas impréprias para um estado-nacdo: o furto de animais em Creta ¢ na Sardenha, as priticas e organizagdes conhecidas como mafia na Sicflia ¢ ‘ndrangheta na Calébria, masculinidade agressiva na Andaluzia e outros locais em Espana. Nalguns casos essas versbes localistas da intimidade cultural revelam-se mais envolventes que as representagdes nacionais, particularmente quando 0 estado-nagéo € fraco (como na Tilia); noutras partes, -. Como nos Balcds, um sentido colectivo de identidade regional pode analogamente oferecer refiigio intimo e orgulho feroz na sua defesa, ttanscendendo 0 uso pelo estado-nagio destas fungées. © estado-nagio no € 0 tinico paleo de tenséo entre a auto- ~epresentagdo oficial (para a qual pode nem sempre haver uma base _ institucional como a do aparelho estatal) e 0 reconhecimento da = Sntimidade cultural. E um ponto que algumas das eritices mais bem ag =» fundamentades da intimidade cultural ajudaram a determinar com Z__Taisclareza, Assim, por exemplo, Broccolini (1992: 2) observa que — fem Itélia, um pais onde a autoridade moral da entidade nacional €

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