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EDIT@RA. UAC? [eer HISTORIAS LOCAIS / PROJETOS GLOBAIS Colonialidade, saberes subalternos Cea Com Tuli us Walter D. Mignolo Hh POM rec lclmrc er eclicatircetecte) de saberes desqualificados flcleltelgelecwrorae (heel ei ra-le en este livro preenche uma lacuna CURE as meme can end trabalhos indispensaveis ao a ae Eel MEU eRe lee cea Es y er ‘ sna culturais e pds-coloniais, em r + S Ee eo Uneaten As afinidades entre o autor, ferare Uomo eM CeCe nos EUA, e outros tedricos da Nueces OM Meee} a mais para recomendar o texto ao leitor brasileiro. Sea 4 Se Linx. \ Ask dx SIO ‘ ; UFRGS/8C/ESCSH a i Hore. Ross As Pouf Empeahero ¢ & : sis Proaaly gp ; i VV doe AE SG. LE BRIO Pate T poy ‘ =. fracitwiaduewot LRy mil PREFACIO E AGRADECIMENTOS INTRODUGAO A GNOSE E O IMAGINARIO DO SISTEMA MUNDIAL COLOMAL/MODERNO e A PROCURA DE UMA OUTRA LOGICA PENSAMENTO LIMINAR E DIFERENGA COLONIAL E SOU O QUE PENSO A GHOPOLITICA DO CONHIECIMENTO BAS DIFERENGAS COLONIIS spire icAs CAPITULO Il A RAZAO POS-OCIDENTAL ‘A-CHISE DO OCIDENTAUISMO F A EMERGENCIA DO PENSAMENTO LIMINAR CAPITULO III COMPREENSAO HUMANA E INTERESSES LOCAIS © OCIDENTALISMO £ O ARGUMENTO (LATINO-)AMERICANO CAPITULO IV OS ESTUDOS SUBALTERNOS SAO POS-MODERNOS OU POS-COLONIAIS? ‘AS POLITICAS fe SENSTBILIDADES DOS LUGARES GFOISTORICOS > $ PARTE SUBALTERNIDADE E DIFERENGA COLONIAL oJ LINGUAS, LITERATURAS E SARERES CAPITULO V “UMA OUTRA LINGUA" MAPAS DA LINGOISTICA, GEOGRAFAS LITERARIAS, PAISAGENS CULTURAIS CAPITULO VI CAPITULO VIL BILINGUAJANDO O AMOR PENSANDO ENTRE LINGLIAS GLOBALIZACAO, “MUNDIALIZACION" PROCESSOS CIVILIZADORES EA RECOLOCAGAO DE LINGUS F SABERES POSFACIO UMA OUTRA LINGUA, UM OUTRO PENSAMENTO, UMA OUTRA LOGICA BIBLIOGRAFIA INDICE REMISSIVO 340 376 421 455 497 PREFACIO £ AGRADECIMENTOS Meu ponto de partida sao os influentes e controvertidos estudos de Immanuel Wallerstein (1974, 1980, 1989) e meu ponto de chegada, a diferenga colonial, nio contemplada no projeto de Wallerstein. Um corolario e conseqiiéncia disso constituem o segundo tépico, a emergéncia das Américas e sua localizacio e transformagio na ordem mundial colonial/ moderna, de 1500 até o fim do século 20. O mundo moderno vem sendo descrito e teorizado de dentro do sistema, enquanto a variedade das experiéncias histGricas e coloniais lhe vem sendo simplesmente anexada e contemplada a partir do interior do sistema. Apesar dessa limitagio, 0 conceito de sistema mundial moderno leva vantagem sobre a cronologia que adotei em The Darker Side of the Renaissance (Mignolo, 1995a: 2) acompanhando a periodizagio do inicio do periodo moderno, até o moderno e o moderno tardio. Ea vantagem € a dimensio espacial encaixada no sistema mundial moderno, mas que falta 4 concepgio linear da moderna histéria oci- dental. A dimensao espacial do sistema permite a reflexao a partir de suas margens externas, onde a diferenga colonial era e continua sendo exaurida. Até o meio do século 20 a dife- renca colonial respeitava a distingdo classica entre centros € periferias. Na segunda metade do século 20, a emergéncia do colonialismo global, gerenciado pelas corporagoées trans- nacionais, apagou a distingao que era valida para as formas iniciais de colonialismo e a colonialidade do poder. No passaclo a diferenga colonial situava-se 14 fora, distante do centro. Hoje emerge em toda parte, nas periferias dos centros e nos centros da periferia. A diferenga colonial é 0 espago onde emerge a colonia- lidade do poder. A diferenga colonial é 0 espago onde as histérias locais que estao inventando e implementando os projetos globais encontram aquelas histérias locais que os recebem; € 0 espaco onde os projetos globais sao forgados a adaptar-se, integrar-se ou onde sao adotados, rejeitados ou ignorados. A diferenga colonial é, finalmente, o local ao mesmo tempo fisico e imaginario onde atua a colonialidade do poder, no confronto de duas espécies de histérias locais visiveis em diferentes espagos e tempos do planeta. Se a cosmologia ocidental é um ponto de refer€ncia historicamente inevitavel, as miltiplas confrontagdes de dois tipos de histGrias locais desafiam dicotomias. A cosmologia cristae a dos indios norte- americanos; a cristd e a amerindia; a crista e a islimica; a crista e a confuciana, entre outras, apenas encenam dicotomias quando consideradas uma a uma, nio quando comparadas dentro dos limites geoistéricos do sistema colonial/moderno. A diferenga colonial no/do mundo colonial/moderno também o lugar onde se articulou o “ocidentalismo”, como. imaginario dominante do mundo colonial/moderno. Posterior- mente o Orientalismo e, mais recentemente, os estudos de area, sdo aspectos complementares desse imagindrio sobre- pujante. O fim da Guerra Fria e, conseqtientemente, a faléncia dos estudos de 4rea correspondem ao momento no qual uma nova forma de colonialismo, um colonialismo global, continua reproduzindo a diferenga colonial em escala mundial, embora sem localizar-se em um determinado estado-nagio. O colonia- lismo global revela a diferenga colonial em escala mundial quando o “ocidentalismo” se defronta com o Oriente como precisamente sua prépria condigao de possibilidade — da mesma forma que, paradoxalmente, nos séculos 18 e 19, 0 Ocidentalismo foi a condi¢&o da possibilidade do Orientalismo. O pensamento liminar (ou a “gnose liminar” como logo explicarei) € uma conseqiiéncia I6gica da diferenga colonial. Poderia ser rastreado até © momento inicial do colonialismo espanhol nos Andes e na Mesoamérica. Nos Andes, existe um notavel exemplo de pensamento liminar, a narrativa critica, em imagens, agora classica, Nueva cronica y buen gubierno, do amerindio Guaman Poma (Waman Puma) na virada do século 16 e inicio do 17 (Murra e Adorno, 1980). Conforme minha andlise em The Darker Side of the Renaissance (1995a: 10 247-256; 303-311), visto da perspectiva subalterna, o lécus fraturado da enunciagao define o pensamento liminar como uma reagao a diferenga colonial. “Nepantla”, palavra cunhada por um falante de Nahuatl na segunda metade do século 16, € outro exemplo do pensamento liminar. “Estar ou sentir-se entre”, como se poderia traduzir a palavra, péde sair da boca de um amerindio, nao de um espanhol (cf. Mignolo, 1995b). A diferenga colonial cria condigdes para situagdes dialdgicas nas quais se encena, do ponto de vista subalterno, uma enunciagao fraturada, como reagao ao discurso e a perspectiva hegem6nica. Assim, © pensamento liminar é mais do que uma enunciagao hibrida. E uma enunciagio fraturada em situagdes dialdgicas com a cosmologia territorial e hegemGnica (isto é, ideologia, perspectiva). No século 16, o pensamento liminar permaneceu sob 0 controle dos discursos coloniais hegeménicos. E por isso que a narrativa de Waman Puma s6 foi publicada em 1936, ao asso que os discursos coloniais hegeménicos (mesmo quando criticos da hegemonia espanhola, como Bartolomé de las Casas) foram publicados, traduzidos e amplamente divul- gados, aproveitando a emergéncia da imprensa. Ao fim do século 20 0 pensamento liminar j4 nao pode ser controlado. Oferece novos horizontes criticos em face das limitagdes as criticas internas as cosmologias hegeménicas (tais como marxismo, desconstrucionismo pdés-moderno, ou anilise de sistemas mundiais). A decisao de situar meu argumento dentro do modelo do mundo colonial/moderno e nao de acordo com a cronologia linear que vai do moderno precoce ao moderno € ao moderno tardio prende-se a necessidade de ultrapassar a linearidade no mapeamento geoistérico da modernidade ocidental. A densidade geoistérica do sistema mundial colonial/moderno, suas fronteiras internas (conflitos entre impérios) e externas (conflitos entre cosmologias) nao podem ser apreendidas e teorizadas de uma perspectiva inerente a propria modernidade (como ocorre com a andlise do sistema mundial, a descons- truco e as diferentes perspectivas pés-modernas). Por outro lado, a atual produgao intelectual que se autodenomina teoria critica ou estudos “pds-coloniais” inicia-se no século 18, descartando um momento crucial e formador da modernidade/ colonialidade, que foi o século 16. A principal pesquisa para este livro foram conversas — conversas de varios tipos, com estudantes dentro e fora da ul sala de aula, com colegas e estudantes na América Latina e nos Estados Unidos, estudantes da graduagio, colegas e estu- dantes da p6s-graduacio dentro e fora da Universidade de Duke, e com todo tipo de pessoas estranhas 4 academia, desde motoristas de taxi até médicos, de empregadas domésticas na Bolivia até executivos de pequenas indtstrias, todos os que tém algo a dizer sobre suas experiéncias com histérias locais € sua percep¢ao de projetos globais. Nao foram “entrevistas”, apenas conversas, conversas informais. Embora inicialmente nao planejasse que essa pesquisa resultasse num livro, eu pretendia, sim, escrever artigos sobre uma série de questdes que, como explico na Introdugio, vieram a tona por volta de 1992. Tomei a decisio de adotar as conversas como método de pesquisa no primeiro semestre de 1994. Eu havia terminado © manuscrito de The Darker Side of the Renaissance no verao de 1993 € nao estava disposto a iniciar outro longo e complexo projeto de pesquisa, nem tinha uma idéia clara do que queria fazer em seguida. Ademais, fui nomeado chefe do Departa- mento de Estudos Rominicos, e, como todos sabemos, 0 trabalho administrativo nao inspira projetos de pesquisa. Resolvi entao que nos préximos trés ou quatro anos iria dedicar-me a conversar e escrever sobre questdes ligadas 4 colonialidade e & globalizagdo, partindo do século 16, primeiro perfodo da globalizagao, até os séculos 19 e 20, Quando falo de conversas, nao me refiro a declaragdes que possam ser gravadas, transcritas e usadas como documentos. Geral- mente as conversas mais significativas foram comentarios ocasionais, feitos de passagem, sobre um acontecimento, um livro, uma idéia, uma pessoa. Sio documentos que nao podem. ser transcritos, conhecimento que vem e vai, mas permanece na mente e altera um determinado argumento. Essas conversas me permitiram executar duas tarefas paralelas: didlogos com intelectuais da América Latina, especialmente nos Andes e no México; € a integracao de docéncia e pesquisa, pois o que se ler4 neste livro foi inicialmente apresentado e discutido em semindrios de pds-graduagio na Universidade de Duke e na América Latina. O livro segue o trajeto dessas conversas € sou agradecido principalmente as pessoas que, com sua sabe- doria, guiaram meu pensamento, embora nao possa citar o que disseram, de que talvez elas nem se lembrem. Um sussutro andénimo constitui os “daclos” deste livro, além, evidentemente, 12 da bibliografia citada no fim. Mas trata-se também de um dia- logo indireto com Immanuel Wallerstein e Samuel Huntington. No caso do primeiro, trabalho com seus conceitos de sistema mundial moderno (1974) e com sua geopolitica e geocultura (1991a). No segundo, Samuel Huntington (1996), com seus conceitos de civilizagio, choque de civilizagao (para o qual o pensamento liminar é uma saida) e, sobretudo, de “civilizagao latino-americana”. Contesto a ambos, com base na historia espacial do mundo colonial/moderno e das relagdes entre a América Latina e os Estados Unidos depois de 1848. Em resumo, minha conversa com os dois autores diverge da perspectiva das humanidades em dliélogo com as ciéncias sociais. Indire- tamente, este livro foi escrito com a convicgAo de que as huma- nicades perderam terreno depois da Segunda Guerra Mundial e nao reagiram diante da crescente influéncia das ciéncias sociais e naturais. Os “Estudos Culturais” preencheram o hiato de forma dispersa, como nos estudos étnicos ou de género. © “affair Sokal”, que apareceu em Social Text, foi possivel precisamente em razio da falta de uma forte filosofia que congregasse as humanidades no “confronto” com as ciéncias naturais e as ciéncias sociais (“duras”), Se a razdo alicergava a universidade kantiana, a humboldtiana baseava-se na cultura, ea universidade neoliberal na exceléncia e no conhecimento especializado, ha que se contemplar uma universidade futura (ou pés-hist6rica; Readings, 1996: 119-134) na qual as huma- nidades se rearticulem em fungaio de uma critica do conheci- mento e das praticas culturais. E dessa perspectiva, da pers- pectiva das humanidades, que me engajo no didlogo indireto com as ciéncias sociais através de Wallerstein e Huntington. Mas faco-o também da perspectiva do pensamento latino- americano, através de Anibal Quijano, Enrique Dussel, Silvia Rivera Cusicanqui, Salazar Bondy, Rodolfo Kusch e Nelly Richard, entre outros. O diélogo também resulta das contri- buigdes de latino-americanos/as nos Estados Unidos, como as de Gloria Anzaldtia, Norma Alarc6én, Frances Aparicio, José Saldivar, David Montejano, Rosaura Sanchez, José Limon e Gustavo Pérez-Firmat, entre outros. Finalmente, entro nesse dialogo com uma dupla perspectiva; da estrutura do conheci- mento (humanidades e ciéncias sociais) e das sensibilidades de determinados locais geoistéricos na formagio e transfor- magio do mundo colonial/moderno, 13, Minha primeira experiéncia nesse sentido foi um seminario de duas semanas que coordenei no Instituto de Pesquisas Sociais na Universidade de Puebla, México, no verao de 1994. O tema foi “a razao pés-colonial”, embriao do que € agora o Capitulo II. Fui convidado por Ratil Dorra, Luisa Moreno, e Marisa Filinich, que dirigiam uma oficina dentro do Instituto de Pesquisas Sociais. Meus primeiros agradecimentos dirigem-se, pois, a eles a Alonso Vélez Pliego, diretor do Instituto. Enrique Dussel proferiu uma das palestras do semin4rio sobre a colo- nizagdo ¢€ o sistema mundial, uma das primeiras vers6es de um artigo recentemente publicado com o titulo “Beyond Eurocentrism: The World System and the Limits of Modernity” (Dussel, 1998a). Nao apenas temos mantido contato desde esse encontro como também minhas préprias reflexces — como 0 leitor logo observara — foram muito influenciadas pelas de Dussel, no que diz respeito a articulagao de moder- nidade, colonialidade e do sistema mundial. O texto iniciador das mediagdes que resultaram neste livro foi “The Postcolonial Reason: Colonial Legacies and Postcolonial Theories”, inicialmente redigido para o congresso sobre Globalizacao e Culturas, organizado por Fred Jameson, Masao Miyhosi, et al., realizado na Universidade de Duke em novembro de 1994. Reescrito em espanhol, o artigo foi publi- cado no Brasil (Mignolo, 1996a), na Alemanha (Mignolo, 1997c), e na Venezuela (Mignolo, 1998). Menciono essas reimpress6es por se relacionarem com a subalternizagao do conhecimento. Se a publicagao for em inglés, ha menos necessidade de reimpressio por causa da circulagao mais ampla. Quando se publica em espanhol, as publicagdes geralmente nao ultrapassam o circuito local. Reescrito em inglés mais uma vez, o texto passou a ser “The Post-Occidental Reason” € € agora o Capitulo II deste livro, O semindrio em Puebla foi o primeiro de uma longa série de palestras e seminarios que fiz na América Latina (Argentina, Brasil, Bolivia, Colémbia). A lista de pessoas a quem devo agradecimentos é demasiado extensa. Limito-me a agradecer primeiro aos participantes de todos aqueles seminarios, estu- dantes da pds-graduacaio e colegas. Em segundo lugar, gostaria de agradecer pessoalmente aos que me convidaram e com quem mantive conversas mais longas e continuadas. Na Argentina, Enrique Tandeter e Noé Jitrik, da Universidade Nacional de 14 Buenos Aires; Laura e Ménica Scarano e Lisa Bradford, dz Universidade de Mar del Plata; Mirta Antonelli, da Universi- dade de Cérdoba; e David Lagmanovich e Carmen Pirilli, da Universidade de Tucumén. Na Bolivia, tenho uma grande divida Para com Javier Sanjinés, por me ter apresentado a muitos grandes pensadores bolivianos para os quais a colonialidade, longe de ser algo confinado ao passado, continua viva € vigo- rosa nos Andes hoje. Também na Bolivia, Guillermo Mariacca e Ricardo Kaliman convidaram-me Para as primeiras Jornadas de Literatura Latino-Americana (em 1993) e para proferir uma conferéncia na Faculdade de Humanidades da Universidade de San Andrés. Essa visita a La Paz na verdade orientou grande parte deste livro. Na Colémbia Carlos Rincén e Hugo Nifio facultaram-me experiéncias pessoais € conversas com colegas € estudantes da pés-graduagao em Bogota e Cartagena de Indias, No Brasil devo a Jorge Schwartz ¢ Ligia Chiapini 0 convite para, por duas vezes, participar de oficinas e conferéncias no centro Angel Rama e no Instituto de Estudos Avangados da Universidade de Sao Paulo; a Ana Lucia Gazzola, a organi- zacao de um “tour” pelo Rio de Janeiro, Bahia, Minas Gerais € Sao Paulo, em maio de 1995; a Juan Carlos Olea e Rebecca Barriga, o convite para dirigir um seminrio em El Colegio de México, em maio de 1997, De todos esses seminarios com colegas e estudantes de p6s-graduagao aprendi, antes de tudo, a avaliar histérias locais dentro de projetos globais: a pesar histérias locais e inte- resses na América Latina e nos Estados Unidos — a Prosseguir refletindo sobre meu proprio lugar como latino-americano (hispanico) e como especialista em estudos latino-americanos nos Estados Unidos (Mignolo, 1991); a avaliar até que ponto o fim da Guerra Fria estava influindo sobre os “Estudos Latino- Americanos”, um projeto académico entranhado em projetos globais (isto é, estudos de rea); a avaliar como “pensamentos latino-americanos” (um empreendimento filos6fico voltado sobretudo para.a definicio e recolocagao de uma identidade que, paralelamente a construgado nacional latino-americana, estava sendo alocada pelos novos impérios coloniais) também estavam mudando, com o fim da Guerra Fria, Conseqiien- temente aprendi também que as disciplinas das “ciéncias humanas” ja nao podem permanecer como 4rbitro intelectual de projetos globais desvinculados das histérias locais. Aprendi, 15 finalmente, que a globalizagao estava criando condigdes para a construgio de saberes que se desviam da for¢a latente dos saberes que tinham sido eliminados nas histérias locais; 0 quanto tal construcao, enfrentando a inevitavel difusio da epistemologia moderna e ocidental, teve, para obter éxito, de atuar nas margens, pois a fronteira divis6ria e a afirmacado de “autenticidade” contribuiriam para a supressao do saber nas fronteiras internas e externas do sistema mundial moderno. O que essa experiéncia também me ensinou foi uma suspeita, sobretudo no Cone Austral e na Colémbia, sobre a colonialidade e a pés-colonialidade. A suspeita ligava-se geralmente 4 confianga em conceitos e teorias de pensadores europeus. O fato de que a independéncia da maioria dos paises latino-americanos foi conquistada no inicio do século 19 significava que o foco da discussio passava a ser a moder- nidade, e nao a colonialidade; a pdés-modernidade e nao a p6s-colonialidade. Esforcei-me, neste livro, por compreender por que as coisas sio como sao e por distinguir 0 “periodo colonial” (expressio referente sobretudo a colonizagio espa- nhola € portuguesa) da “colonialidade do poder” que hoje continua viva e saudavel sob a nova forma da “colonialidade global”. Também adquiri a suspeita, em diversos lugares, de que os estudos culturais e a pés-colonialidade eram modas imperiais que estavam sendo importadas para a América Latina. O que me chamou a ateng¢Ao, entretanto, foram os entusids- ticos partidaérios e mediadores do pensamento da Europa Ocidental, Derrida, Lacan, Foucault, da Escola de Frankfurt, de Raymond Williams. Isso pareceu-me um exemplo muito sugestivo para a compreensio da colonialidade do poder e do conhecimento na América Latina, onde a Europa ainda mantém sua posi¢&o epistemoldégica hegeménica, ao passo que os Estados Unidos, especialmente depois de 1898, trans- formaram-se no “outro imperial”. Tive também outra surpresa no Brasil. Em contraste com minha experiéncia em paises latino-americanos, encontrei uma tendéncia critica, mas também mais generosa, para receber e avaliar teorias “estran- geiras”, sejam da Europa ou dos Estados Unidos. Talvez a figura dominante de Milton Santos tenha tido algo a ver com 0 tipo de conversas em que me envolvi. Nao foi por acaso que, na Bahia, depois de uma de minhas conferéncias, chamaram minha atencgaio para o nome desse arquiteto, ambientalista e 16 te6rico da globalizagao. Suas opinides, bem como as de outros participantes em conferéncias e livros organizados por ele, influiram sobre os Capitulos II e VII. Na Universidade de Duke, as principais conversas que se mostraram decisivas para a construgao deste livro ocorreram em seminarios de pds-graduagio e graduagio, e em duas oficinas internacionais e interdisciplinares, “Globalizagao e Cultura" (novembro de 1994) e “Recolocagao de Linguas e Culturas” (maio de 1997). A primeira oficina, organizada por Fredric Jameson e Masao Miyoshi, com a colaboragao de Ariel Dorfman, Alberto Moreiras e minha, muito influiu sobre a concepgio geral do livro. O Capitulo VII é a versio de um paper que li naquela conferéncia. E uma versio inicial, mimeografada, do Capitulo II apareceu no “Workshop Reader”. A segunda oficina, organizada por mim com a participagio de um grande comité dirigente composto por colegas e estudantes da graduacio e pés-graduagio, foi igualmente importante para tudo que tenho a dizer neste livro, sobre lingua, transnacionalismo e globalizagao (Capitulos V, VI € VIL). Os colegas ¢ estudantes da pés-graduacio e da graduagdo, com quem discuti os problemas relacionados com os temas da conferéncia, sio Miriam Cooke, Leo Ching, Eric Zakim, Mohadey Apte, Catherine Ewin, Teresa Vilarés, Lynn James, Helmi Balig, Alejandra Vidal, Gregory P. Meyjes, Jean Jonassaint, Chris Chia, Ifeoma Nwankwo, Meredith Parker, Benjamin B. Au e Roberto Gonzalez. O Capi- tulo V é uma versio ampliada de um artigo que escrevi antes, que foi a plataforma da segunda oficina. Entre o segundo semestre de 1994 e o primeiro semestre de 1997 ocorreram duas experiéncias docentes paralelas. Primeiramente, Bruce Lawrence, que dirigiu “Globalizagio e Mudangas Culturais”, uma das unidades de Focus (programa interdisciplinar destinado aos estudantes de primeiro ano no semestre inicial na Universidade de Duke) transferiu a diregao para mim. Dirigi o programa, lecionando nele, de 1994 a 1997. Como cada unidade de Focus compée-se de quatro seminarios — e, portanto, de quatro professores, um assistente, estu- dante da pés-graduagdo, e um estudante da pés-graduacio encarregado da disciplina Composigao em Inglés — e como © programa se constitui de um constante fluxo de conversas interativas entre os estudantes e os assistentes, tirei enorme proveito dessa experiéncia. Nao apenas porque adquiri mais 17 “conhecimento” mas sobretudo porque discutir problemas da globalizagao com os estudantes recém-saidos do curso secun- dario foi um bom aprendizado. Meus agradecimentos, portanto, aos colegas e estudantes da pés-graduacio que participaram dessa experiéncia; Bruce Lawrence, Marcy Little, Miriam Cooke, Bai Gao, Orin Starn, Michael Hardt, Sybille Fischer, Silvia Tendeciarz, Freya Schiwy e Pramod Mishra. Em 1994, Miriam Cooke e eu organizamos um seminario de trés anos sobre o legado colonial e a teorizagaio pés-colonial. Miriam encarregou-se principalmente da Africa do Norte e do Oriente Médio e eu da América Latina, incluindo o Caribe ea questao latino/a nos Estados Unidos. Além dessa configuragio geoistérica, resolvemos concentrar o primeiro semindrio na lingua, o segundo no espaco, € 0 terceiro na meméria. Infeliz- mente, Miriam entrou em licen¢a sabatica e eu tive de conduzir sozinho o segundo semindrio, sobre o espago. Contudo, a experiéncia de conceber mentalmente o seminario e de dividir as aulas em dois deles, nao apenas ensinou-me muito sobre areas do mundo sobre as quais pouco sabia, mas também estabeleceu um didlogo frutifero cujas conseqiiéncias sio evidentes em todo o livro. Agradego novamente a Miriam Cooke por organizar uma oficina sobre Estudos Mediterraneos, na Tunisia. O convite que me fez para participar da oficina deu-me, durante trés dias, a oportunidade de ouvir as apresentagoes de intelectuais tunisianos e de conversar com eles fora da sala de conferéncias. Findo 0 semindrio de trés anos, dividi com Irene Silverblatt, no segundo semestre de 1997 € no primeiro de 1998, a coorde- nagio de um semindrio de graduagio e um de pds-graduagio sobre modernidade, colonialidade e a América Latina. Além de todas as atragdes desses semindrios, para os quais os estu- dantes contribuiram amplamente, a experiéncia mais marcante para mim foi a diferenca de tratamento do mesmo tépico na pos-graduagao e na graduacao (principalmente do terceiro e quarto anos), pois o seminirio versou exatamente sobre o mesmo tema mas em niveis diferentes. Ademais, ambos os seminarios integravam o programa sobre estudos culturais latino-americanos. Finalmente, no primeiro semestre de 1998, Enrique Dussel e eu dividimos a orientagdo de um semindrio sobre formas 18, alternativas de racionalidade. Esse semindrio, mais as longas conversas antes das aulas e em ambientes diferentes, foi real- mente uma experiéncia crucial para a formulagio do “pensa- mento liminar” neste livro, bem como para confirmar minhas duvidas e divergéncias anteriores, com a enorme contribuigao intelectual de Dussel para diversas das questées discutidas neste livro. Esse seminario foi decisivo para as mudangas que introduzi no Capitulo III, anteriormente publicado como artigo (Mignolo, 1995c). Elizabeth Mudimbe-Boyi (que infelizmente deixou Duke no outono de 1994) e depois Jean Jonassaint aproximaram /a Francophonie da universidade e de meus proprios interesses. A aproximagao feita por Jonassaint foi literal, pois, nos Ultimos trés anos, trouxe a Duke lideres da intelligentsia franc6fona e caribenha. Em todos esses anos, a participagio ativa dos estudantes da pds-gradua¢ao foi na verdade tao proveitosa como 0 didlogo com meus préprios colegas. Nao € possivel mencionar os nomes de todos os estudantes que participaram dos quatro semi- narios, mas gostaria de lhes agradecer coletivamente. Gostaria de mencionar, entretanto, os nomes dos estudantes cujas disser- tagdes se relacionaram intimamente com os problemas discutidos neste livro e que influenciaram minhas préprias perspectivas. Cronologicamente, Juan Poblete mostrou-me um novo pano- rama sobre a politica do Chile relativa a lingua e a literatura no século 19. Com Verénica Felii aprendi a avaliar melhor as dificuldades de escrever “daqui” “sobre pessoas” de lA, especialmente porque Verénica, que participou da agao poli- tica de mulheres chilenas no fim dos anos 80, escreveu uma dissertagao a respeito do assunto em meados dos anos 90. José Mufioz, que ja estava terminando o curso de pés- graduacao quando cheguei a Duke, trouxe-me uma nova pers- pectiva sobre as politicas de identidade, com suas reflexdes sobre desidentificagaéo étnica e sexual. Ifeoma Nwankwo trouxe sua perspectiva de jamaicana nos Estados Unidos e ensinou-me a.refletir sobre as diferengas entre os afro-cari- benhos e afro-americanos. Chris Chia mostrou-me a importancia de Gloria Anzaldia para um estudante chinés de pés-graduagio chegando a Duke no inicio dos anos 90, e mostrou-me como escrever sobre a histéria cultural norte-americana da perspectiva de “alguém de fora”. Com Zilkia Janer aprencli a pensar mais detalhadamente sobre o colonialismo nacional 19

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