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TUL coae MOLT ce eto ery ELA mec rot hoe entre des na Europa, na Africana América do Norte edo Sul. EU ete orc e Oe N aces eararten da urbanizagio no Terceito Mundo e a teoria © a metodologia geogrifica, temas sobre os quais publicou Se ea oe econ ae ee cés, espanhol, inglés e japonés, Atualmente ¢ professor Cnc Recos CMM M MO oat) LC TOSS cnet CEO o.com oa arr Rec MUMe None deen ee iter) Universidade Federal da Bahia (1987), eda Universida- Cte once e EDITORA HUGHTEG ne ey Milton Santos pA eS (© 1993 de Milton Santos, Direitos de publicagao reservados pela Editora de Humanismo, Ciéncia © Tecnologia HUCITEC Ltda., Rua Gil Eanes, 712 - 04601-049 So Paulo, Brasil. Tel.: (011)580-9208 e 543.0653. Fac- simile: (011)535-4187. ISBN 85.271.0230-7 Foi feito 0 depésito legal. ere nese 10. u. 12. 13. SUMARIO Proficio/Introdusaio A urbanizagao pretérita A evolueao recente da populagao urbana, agricola e rural O meio téenico-cientifico A nova urbanizagao: diversificagao © complexidade A diversidade regional Brasil urbane e Brasil agricola e nfo apenas Brasil urbano e Brasil rural Urbanizagao concentrada e metropolizasio ‘Tendéncia & metropolizagéo A “dissolugac” da metropole A organizagao interna das cidades: a cidade castica A urbanizagdo ¢ a cidade corporativas ‘Tendéncias da urbanizagio brasileira no fim do século XX Bibliografia Anexo estatistico Indice dos autores citados 7 127 135 155 1 PREFACIO/INTRODUCAO Como se define, hoje, a urbanizagao brasileira? Alean- camos, neste século, a urbanizagao da sociedade e a urbanizagao do territério, depois de longo periodo de urbanizagao social e ter- ritorialmente seletiva. Depois de ser litoranea (antes e mesmo depois da mecanizagao do territorio), a urbanizagdo brasileira se tornou praticamente generalizada a partir do terceiro tergo do século XX, evolugo quase contemporanea da fase atual de ma- crourbanizagao e metropolizagao. O turbilhao demogréfico e a ter- ciarizagéo sao fatos notaveis. A urbanizagao se avoluma e a re- sidéncia dos trabalhadoresagricolas é cada vez mais urbana, Mais que a separagdo tradicional entre um Brasil urbano e um Brasil rural, ha, hoje, no Pais, uma verdadeira distingao entre um Brasil urbano (incluindo éreas agricolas) e um Brasil agricola (incluindo reas urbanas). No primeiro os nexos essenciais devem-se sobre- tudo a atividades de relagdo complexas e no segundo a atividades mais diretamente produtivas Registra-se, todavia, uma atenuagio relativa das macrocefa- lias, pois além das cidades miliondrias desenvolvem-se cidades intermedidrias ao lado de cidades locais, todas, porém, adotando um modelo geogrfico de erescimento espraiado, com um tamanho desmesurado que é causa e é efeito da especulagao. Pode-se, desse modo, falar de uma metropolizagao contemporanea da “desme- tropolizagao”, fendmenos que se dao simultaneamente. O perfil urbano se torna complexo, com a tendéncia a onipresenga da me- trépole, através de multiplos fluxos de informacao que se sobre- pdem aos fluxos de matéria e sao 0 novo arcabouco dos sistemas urbanos, Mas ha, também, paralelamente, uma certa “involugao” ‘metropolitana, o creseimento econdmico das grandes cidades sen- do menor que o das regides agricolas dinamicas e respectivas ¢i- dades regionais. O novo perfil industrial tem muito a ver com esse resultado. Por isso, a grande cidade, mais do que antes, 6 10 PREPACIOANTRODUGAO um pélo da pobreza (a periferia no pélo...), 0 lugar com mais forga e capacidade de atrair e manter gente pobre, ainda que muitas vezes em condigées sub-humanas. A grande cidade se torna 0 lugar de todos os capitais e de todos os trabalhos, isto é, 0 teatro de numerosas atividades “marginais” do ponto de vista teenol6- gico, organizacional, financeiro, previdencirio e fiscal. Um gasto piiblico crescentemente orientado A renovagao ¢ a reviabilizagao urbana e que sobretudo interessa aos agentes socioeconémicos hegeménicos, engendra a crise fiscal da cidade; e 0 fato de que ‘a populagao nao tem acesso aos empregos necessarios, nem aos bens e servigos essenciais, fomenta a expansao da crise urbana. ‘Algumas atividades continuam a erescer, a0 passo que @ popu- lagéio se empobrece e observa a degradacao de suas condigbes de existéncia. ‘A cidade em si, como relagao social e como materialidade, tor- na-se criadora de pobreza, tanto pelo modelo socioeconémico d que ¢ 0 suporte como por sua estrutura fisica, que faz dos habi tantes das periferias (e dos cortigos) pessoas ainda mais pobres, ‘A pobreza nao é apenas 0 fato do modelo socioeconémico vigente, mas, também, do modelo espacial. Como, nas cidades, vive a maioria dos brasileiros? Quais as suas condigdes de trabalho e ndo-trabalho? Qual a sua renda? Que acesso tém aos beneficios da modernidade? Quais as suas caréncias principais? Como se distribuem, na cidade, as pessoas, segundo as clas- ses e 0s niveis de renda? Quais as conseqiiéncias da margina- lizagao e da segregagio? Quais os problemas da habitagao e da mobilidade, da educagao e da satide, do lazer e da seguridade social? Como definir os lugares sociais na cidade, o centro e a periferia, a deterioragdo crescente das condigses ¢ existéncia? ‘Ao longo do século, mas sobretudo nok periodos mais recentes, © processo brasileiro de urbanizagao revela uma crescente asso- ciagdo com o da pobreza, cujo locus passa a ser, cada vez mais, a cidade, sobretudo a grande cidade. O eampo brasileiro moderno repele os pobres, e os trabalhadores da agricultura capitalizada vivem cada vez mais nos espagos urbanos. A industria se de volve com a criagdo de pequeno ntimero de empregos e 0 tercidrio associa formas modernas a formas primitivas que remuneram mal e ndo garantem a ocupacao. PREFACIOANTRODUGAO 11 A cidade, onde tantas necessidades emergentes nao podem ter resposta, esta desse modo fadada a ser tanto 0 teatro de conflitos crescentes como o lugar geografico e politico da possibilidade de solugdes. Estas, para se tornarem efetivas, supdem atengéo a uma problematica mais ampla, pois 0 fato urbano, seu testemunho elogiiente, é apenas um aspecto. Dai a necessidade de circuns- crever o fenémene, identificar sua especificidade, mensurar sua problematica, mas sobretudo busear uma interpretaco abran- gente. Desse modo, deve ser tentada uma pequena teoria da urbani- zagao brasileira como processo, como forma e como contetido dessa forma. O nivel da urbanizagio, 0 desenho urbano, as manifesta- ges das caréncias da populagao sao realidade a ser analisada & luz dos subprocessos econémicos, politicos e socioculturais, assim com das realizagées técnicas e das modalidades de uso do terri- t6rio nos diversos momentos histéricos. Os nexos que esses fatores mantém em cada fase histérica devem permitir um primeiro es- forgo de periodizagao que deve iluminar o entendimento do pro- cesso. O periodo presente sera estudado como um resultado da evolug&o assim descrita e seré dada énfase as suas principais carateristicas. O estado da arte E sintomatico que a urbanizagao brasileira nao haja merecido muitos estudos de conjunto, seja pela abrangéncia interdisciplinar ‘ou mesmo por uma visao do territério tomado como um todo. En- quanto estudos sobre aspectos particulares do fendmeno so mui to numerosos, as ambigées mais gerais fazem falta. Sem contar as anélises histéricas de Nestor Goulart Reis Filho (1968) e Aroldo de Azevedo (1956) a respeito do passado urbano, um primeiro esforeo de entendimento global do fenémeno recente é 0 estudo 4 classico de Pedro Geiger, Muitos anos depois, Milton Santos (1968) publica um artigo com a mesma ambigao, mas sem a mes- ma amplitude. Esforgo parecido 6, em seguida, empreendido por Vilmar Faria (1976) e por Fany Davidovitch (1978). Mais recentemente, esforgos bem-sucedidos nessa mesma di- rego foram feitos por Fany Davidovitch (1981 e 1987), Olga Buar- que Fredrich (1978 e 1982), Frangois E, J. de Bremaeker (1986), Antonio de Ponte Jardim (1988), Candido Malta Filho (1989), Ge- 12 PREFACIOANTRODUGAO, raldo Serra (1991). A publicagao organizada por Fernando Lopes de Almeida (1978), ainda que consagrada & América Latina como um todo, tem grande interesse para o caso brasileiro. Alguns es- tudos, feitos sem a intengao especifica de apresentar um quadro geral da urbanizagao brasileira, se aproximam no entanto desse objetivo, gragas ao enfoque contextual adotado. E 0 caso dos tra- balhos de Manuel Diégues Jtinior (1964), de Paul Singer (1968) ou o trabalho de Ablas e Fava (1985). ‘Nao ser, todavia, por falta de listagens bibliograficas, algumas das quais comentadas e criticas, que estudos de sintese deixaram de ser feitos. Ainda no anos 50, M. Santos e Dorcas Chagas apre- sentaram uma bibliografia dos estudos recentes de geografia ur- bana, e nos anos 60 é a vez de Nice Lecocq Muller (1968) e Roberto Lobato Corréa (1968). Dez anos depois (1978), quando do Encon- tro da Associagao de Geégrafos Brasileiros, Roberto Lobato Cor- réa, Olga Buarque Fredrich, Armen Mamigonian e Pedro Geiger apresentam uma listagem e uma critica dos estudos urbanos no Brasil. ‘Mais recentemente ainda, e acompanhando o desenvolvimento dos programas de pés-graduagao e a expansao e diversificagao da pesquisa urbana, novos esforgos foram empreendidos para uso nacional e internacional. Entre os mais conhecidos, estdo os de Licia Valladares (1988, 1989, 1991), Roberto Lobato Corréa (1989), Mauricio A. Abreu (1990), Maria Flora Goncalves (1988). Esforgos bibliogrsificos sao, por natureza, raramente completos. De um lado, a area de estudos urbanos desenvolveu-se e diver- sificou enormemente, incluindo aspectos insuspeitados de andlise que escapam as taxonomias cldssicas. Mas, também, tais pesqui- sas séio, hoje, feitas em diversos lugares e tém diversas origens e finalidades, de modo que muitos resultados acabam por nao ultrapassar circulos restritos, Acrescente-se, igualmente, a supe- rexposigao de que se prevalecem alguns foucos centros de pes- quisa no Pais, para entender por que, de um modo geral, as listas organizadas néo podem abarcar todo 0 universo da pesquisa real- mente realizada, apesar dos esforgos que sao feitos para remediar essa falha. As preocupagies estatisticas também prejudicam 0 estabelecimento de uma bibliografia critica que também seja uma histéria comentada dos pontos de vista, gerados com base em uma realidade que fornece os elementos da andlise, mas também tributaria das idéias mais gerais, idéias locais ou extralocais, que PREPACIOANTRODUGAO 13 inspiram 0 método, Seja como for, o fato de que as bibliografias existam ajuda o pesquisador desejoso de fazer uma sintese, mas 0 fato de que sejam incompletas desencoraja a produgao de es- tudos interpretativos mais gerais. O fato de que este tema de estudos seja muito sensivel as modas é, certamente, uma das razées do carater repetitive dos temas abordados e da dificuldade para encontrar esquemas de trabalho adaptados & realidade e capazes de autorizar um enfoque abran- gente. Area muito aberta a contatos internacionais — as vezes decisivos em termos de carreira — é freqiiente a adogao apressada ea utilizapdo canhestra de fragmentos de idéias colhidos em con- gressos ou tomados precigitadamente em pedagos de livros e ar- tigos, Como esses aleijées ocupam o lugar de um paradigma, gra- gas A autoridade ou notoriedade dos autores, a preocupagao com a formulagao de uma teoria menor, adequada a realidade brasi- leira, deixa de ser fundamental Esse deslocamento em relagao a histéria concreta e ao presente atual da formacdo social — melhor ainda, da formagao socioes- pacial — brasileira é bem visivel nas aplicagées praticas da re- flexao urbana ou nos estudos prévios a essas aplicagdes praticas. Referimo-nos ao planejamento urbano, mais especificamente aos \chamados Planos Diretores./A idéia de que a cidade é uma tota- lidade menor, dependente, ao mesmo tempo, de uma légica local, de uma légica nacional e de uma légica mundial, foi raramente utilizada com base em uma metodologia conseqiiente. \Houve, nos casos mais flagrantes, confusio entre impossibilidade de tratar, de uma vez, toda a problematica a necessidade de conhecé-la, até mesmo para poder partir de hierarquias solidamente estabe- lecidas. Pelo contrério, os fragmentos do todo tomados como mo- tivo de andlise foram escolhidos com base em um conhecimento historicamente envelhecido ou derivado de um modismo sem re- lagaio com a estrutura dos fatos sob exame, Problemas deste livro Este livro surge no quadro dessa realidade e retira dai alguns de seus prineipais escolhos. Pretendendo ser obra de sintese, pa- dece de trés principais defieiéncias. \ A primeira vem do fato de que toda obra de sintese 6, forgo- ‘samente, uma obra critica. E nao ha obra de sintese ou de critica 14 PREFACIOANTRODUCAO que possa contentar-se de achados unicamente originais, sem a base de andlises que a precedam com idénticas intengées, mesmo que se refiram a épocas passadas. ‘A segunda deriva de que o Autor, ainda que desejando incor- porar A sua visio multiplicidade dos fenémenos sociais, 6, con- fessadamente, 0 especialista de um aspecto da sociedade — um ge6grafo; por maiores que sejam sua ambigao, seu atrevimento, seu esforgo e curiosidade em relagao ao que produzem outros especialistas, seu entendimento é forgosamente orientado. E, como judiciosamente escreveu J. R. Amaral Lapa (1980), “nao 6 esta ou aquela ciéncia que nos ofereceré a ‘representativida- de’ mais completa do conhecimento de uma realidade mais to- talizante, ou melhor, o préprio conhecimento da realidade ima- nente a ela, mas o conjunto das ciéncias que poderd dar conta dos nfveis econémicos, sociais, politicos, culturais e mentais da- quela realidade”, ‘Aterceira razao é que a posigao do autor dentro do seu proprio campo de estudo — como explicitado em trabalhos teéricos e de método anteriores: Por uma geografia nova (1978), espaco e mé- todo (1985) e outros — leva-o a certas preferéncias, certos partidos e escolhas, certas formas de busca de um entendimento global que outros autores ndo apenas nao adotam, como, igualmente, podem nao aceitar. Desse modo, este livro nasce, como tantos outros, com uma marca nitidamente pessoal. Isso ndo exclui, todavia, a preocupa- ¢40 com a coeréncia do argumento e a busca de interpretagdo da realidade com base nos fatos. Como em outros casos, este livro é tributario de imimeras for- mas de encorajamento e de numerosas contribuigdes. A primeira 6, sem divida, 0 proprio trabalho de outros autores, cujas idéias ou dados nos serviram de inspiragao ou arrimo. A ajuda, préxima ou passada, de agéneias de fomento a pebquisa foi, igualmente, inestimdvel, como, por exemplo, a colaboragao da FAPESP para ‘omeu primeiro livro sobre Sao Paulo, a da FINEP para os estudos que fiz com meus colegas do Departamento de Geografia da Uni- versidade Federal do Rio de Janeiro, a do CNPq pela concessio de auxilios e de uma bolsa de pesquisa. As reflexdes conjuntas com meus orientandos na UFRJ e na USP, assim como as ind: gagdes dos meus estudantes, também me chamaram a atengdo para muitos aspectos da problematica PREFACIOANTRODUGAO 15. Em 1989, um convite de Darcy Ribeiro levou-me a trabalhar com esse amigo, num projeto patrocinado pelo INEP e do qual faziam parte outros pesquisadores. O objetivo era fornecer um conjunto de estudos sobre a realidade brasileira, conforme a preo- cupagio do entao diretor daquele organismo, o dr. Marcos For- miga. Caber-me-ia, nesse elenco, a produgao de um livro que, a prevalecer o alvitre de Darcy, se deveria chamar A urbanizagao caética. O projeto comegou bem, com algumas reunides de traba- Iho no Rio de Janeiro, chegou a progredir, mas aparentemente no teve o final desejado, ainda que os participantes nao houves- sem desanimado e prosseguissem, cada qual para 0 seu lado, na tarefa encetada. O desenvolvimento da pesquisa, na qual pude contar com a colaboragao da geégrafa Denise S. Elias, levou-nos para caminhos diferentes. Nossa intengdo era produzir uma visio da urbanizagao brasileira ao longo de um século e nesse sentido Denise Elias conseguiu empreender um trabalho exaustivo, co- brindo o periodo 1872-1980, ao mesmo tempo em que, sobre 0 setor servicos da economia um outro estudo, a base das estatis- ticas disponiveis, foi realizado pela arquiteta Cilene Gomes. Am- bos esses estudos permanecem inéditos. Quanto ao nosso projeto original, logo verifiquei que a abor- dagem desse assunto — A Urbanizagao Cadtica — sobretudo por- que no sabiamos muito aonde nos levaria o talento fogoso de Darey, nem conhecfamos ¢s objetivos finais de cada membro da equipe — ficava distante da minha prépria proposta mais geral de estudos geograficos. Dai a mudanga de rumos e a decisdo, tomada pouco a pouco, de prosseguir o estudo com uma visto propria. Na realidade, ha muito que desejo empreender dois estudos de sintese, um mais alentado, sobre a evolugao do territério brasileiro (sobre- tudo em sua fase mais recente) e outro, mais sintético, sobre a ur- banizagao, Este, de fato, seria a retomada de um artigo publicado, nos anos 60, nos Annales de Géographie, sobre a urbanizagao bra- sileira. Esse artigo foi traduzido para a nossa lingua e publicado na Revista Brasileira de Gecgrafia, mas parece nao haver sido muito ido ou muito apreciado. Como disse antes, havia, desde muito, to- mado a deciséo de retomar o assunto, e ja vinha trabalhando no tema quando Darey Ribeiro teve a gentileza de me convocar. Este livro 6, pois, 0 resultado de um antigo projeto. A proposta de Darcy Ribeiro nao foi abandonada, apenas se reduziu a um capitulo desta pequena obra, incluindo-se numa proposta mais 16 PREFACIOANTRODUCAO ampla. A urbanizagdo castica 6, na realidade, um aspecto da ur- banizagdo corporativa e uma resposta a constituigdo, no territério, de um meio téenico-cientifico eujo outro, no campo social, é a for- magao de uma sociedade cada vez mais dual. (0 atraso na realizagao do Recenseamento Geral do Brasil e a indisponibilidade de dados mais numerosos sobre a urbanizagao e as cidades constituiu, para nés, uma dificuldade, apenas mino- rada pelo fato de que desde o inicio haviamos tomado partido por um discurso mais qualitative, onde os processos comparecem como a peca central da explicagao. O fato, porém, do envelheci- mento do Censo de 1980 pela mudanga da dinamica social e ter- ritorial e a proposta, por nés, de novas categorias de andlise que foram objeto de poucos estudos empiricos e de magra discussio tedrica, faz de nosso empreendimento tarefa arriscada. Espera- mos que a nossa decisdo de enfrenté-la ndo seja tomada como arrogancia, mas apenas como a vontade de testar, luz da his- toria, a coeréncia das hipéteses. A URBANIZACAO PRETERITA Durante séculos o Brasil como um todo é um pais agrério, um pais “essencialmente agricola”, para retomar a célebre ex- pressao do Conde Afonso Celso. O Recdneavo da Bahia e a Zona da Mata do Nordeste ensaiaram, antes do restante do territorio, um proceso entao notavel de urbanizagao e, de Salvador pode-se, ‘mesmo, dizer que comandou a primeira rede urbana das Améri- cas, formada, junto com a capital baiana, por Cachoeira, Santo Amaro e Nazaré, centros de culturas comerciais promissoras no estudrio dos rios do Recdacavo.\ No dizer de Oliveira Vianna (1956, p. 56), “..) O urbanismo 6 condi¢ao modernissima da nossa evolugao social. Toda a nossa historia 6 a historia de um povo agricola, é a historia de uma sociedade de lavradores € pastores. E no campo que se forma a nossa raga e se elaboram as forgas intimas de nossa civilizagao. O dinamismo da nossa histéria, no periodo colonial, vem do eam- po. Do campo, as bases em que se assenta a estabilidade admi- rével da nossa sociedade no periodo imperial”. No comego, a “cidade” era bem mais uma emanagdo do poder Tonginquo, uma vontade de marcar presenga num pais distante. Mas ¢ temerario dizer, como o fea B. Hoselitz (1960) para toda a América Latina, que a cidade creseeu aqui “como flor exética”, pois sua evolugio vai depender da conjungao de fatores politicos © econémicos, ¢ 0 préprio desenho urbano, importado da Europa, vai ser modificado. Referindo-se aos primérdios da urbanizagao!, Nestor Goulart Reis (1968) estuda o periodo entre 1500 ¢ 1720, em que destaca trés principais etapas de organizagao do territ6rio brasileiro. A 1 Os primérdios da constituizio da rede urbana brasileira vim indicados em P. Deffontaines (1944). Uma reconstituigao da genealogia das cidades e vilas do Brasil colonial ¢ oferecida por Aroldo de Azevedo (1956) que desereve o estado da urbanizagao em cada século do periodo anterior & Independéncia. i 18 A URBANIZAGAO PRETERITA primeira fase, “entre 1530 e 1570 (...) eujo ponto de maior inten- sidade estaria compreendido entre os anos de 1530 a 1540”, Entre 1a fundagao do Rio de Janeiro em 1567 e a de Filipéia da Paraiba em 1585, ha um intervalo em que apenas ocorre a instalacao de Iguape. O segundo periodo fica “entre 1580 e 1640, anos de do- ‘minago espanhola, com dois pontos de maior intensidade: 08 anos entre 1610 e 1620, com a fundagao de uma vila e trés cidades entre 1630 e 1640, com a fundagao de nove vilas, (..) com a exis- téncia de uma urbanizagao sistematica na costa norte, em diresdo a Amazénia’ (p. 79). Num terceiro momento, “entre 1650 ¢ 1720, foram fandadas trinta e cinco vilas, elevando-se duas delas A ca- tegoria de cidades: Olinda e Sao Paulo. Ao fimn do perfodo, a rede urbana estava constituida por respeitavel conjunto de sessenta ¢ trés vilas e oito cidades”. N. Goulart Reis (1968) inclui, como elementos explicativos da urbanizagdio no que chama de “o sistema social da Coldnia” os seguintes elementos: a organizagao politico-administrativa, con sideradas, de um lado, as capitanias e o governo-geral e de outro a organizagao municipal; as atividades econdmicas rurais (agri- cultura de exportacao e de subsisténcia) e as camadas sociais correspondentes, a comegar pelos proprietérios rurais; as ativi- dades econémicas urbanas e seus atores (comércio, oficios meca- nicos, funcionalismo, mineragao)* VILAS E CIDADES (CRIADAS) ‘Séeulo XVI até 1720 Rio Grande do Norte 1 Paratba 1 Pernambuco 2 1 1 Sergipe 1 Vo Bahia 4 5 2 *Os centros urbanos apresentavam entdo uma vida que pode ser caracteri- zada como intermitente. Cessado 0 movimento decorrente do afluxo de senhores Je terra, tinham uma aparéneia de abandono e desolagao (..).” (N. Goulart Reis, 1968, p. 97) "X’ propésito da intermiténcia da vida urbana ver, para Salvador, Thales de ‘Azovello e Theodore Sampaio. Quanto a dependéncia da vida rural ver Sérgio Buarque de Holanda (1956, p. 117) ou Caio Prado Jr. (1958), A URBANIZAGAO PRETERITA 19 ‘Séeulo ‘Séeulo ‘Séeulo XVIII XVI XVII 720. Espirito Santo 2 1 Guanabara 1 ‘Sa Paulo 6 10 1 Para 4 Maranhao 2 i Alagoas 3 Rio de Janeiro 6 Parand 2 Santa Catarina 1 1 Piaut 1 oar 1 Minas Gerai 8 ‘Tirado de Nestor Goulart Reis, 1968, p. 84 a 68. De modo geral, porém, é a partir do século XVII que a urba- nizagéo se desenvolve e “a casa da cidade torna-se a residéncia mais importante do fazendeiro ou do senhor de engenho, que s6 vai & sua propriedade rural no momento do corte e da moenda da cana” (R. Bastide, 1978, p. 56)°. Mas foi necessdrio ainda mais um século para que a urbanizagao atingisse sua maturidade, no século XIX, e ainda mais um século para adquirir as caracteris- tieas com as quais a conhecemos hoje. O processo pretérito de criagdo urbana esté documentado em alguns outros estudos de sintese, como o de M. Marx (1991). Tra- 3 “Nao se creia que esta civilizagdo do agécar permaneceu imutavel através dos séculos. Modificou-se pelo menos duas vezes, conservando, todavia, sob estas transformagies, sous tragos caracterfsticos: latifiindio ¢ monocaltura, A primeira revolugdo, a éa urbanizacio, inicia-se no século XVIII, mas 86 aatinge sua plena expansao no século XIX. A casa da cidade torna-se a residéncia mais importante do fazendeim ou do senhor de engenho que s6 vai @ sua pro- priedade rural no momento do corte e da moenda da cana. co A segunda revolugao foi técnica, Em 1815, surge na Bahia a primeira maquina a vapor, em 1834, j4 sio encoatradas 64. O antigo engenho de agua ou de tracio ‘animal desaparece. (..) @ méquina a vapor nio modifica subitamente a estrutura da sociedade, que continua fundada na famflia patriareal, nem o modo de produgio, que é sempre a escravidiio, (..) uma reviravolta considerdvel (..) a partir de 1872: ft passagem de engenho para a sina. (..) O maquinismo, mais custoso mais centifico (oy concedia a primazia ao capital financeiro sobre o capital representado pela terras” (it. Bastide, Brasil, terra de contrastes, Difel, Sao Paulo, 1978, p. 86-57). 20 A URBANIZACAO PRETERITA tava-se muito mais da gerapao de cidades, que mesmo de um proceso de urbanizacao. Subordinado a uma economia natural, as relagées entre lugares eram fracas, inconstantes, num pais com tao grandes dimensoes territoriais. Mesmo assim, a expansao da agricultura comercial e a exploragao mineral foram a base de um povoamento e uma criagao de riquezas redundando na am- pliagao da vida de relagdes e no surgimento de cidades no litoral e no interior. A mecanizagao da produgao (no caso da cana-de- agicar) e do territério (nao apenas no caso da cana) vém trazer novo impulso e nova légica ao processo. No fim do periodo colonial, as cidades, entre as quais avultaram Sao Luis do Maranhao, Recife, Salvador, Rio de Janeiro e Sao Paulo, somavam perto de 5,7% da populagao total do Pais, onde viviam, entdo, 2.850.000 habitantes (Caio Prado Jr., 1953, p. 21). Basta lembrar que na passagem do século XVII para o século XVIII, Salvador ja reunia 100.000 moradores, enquanto nos Es- tados Unidos nenhuma aglomeragao tinha mais de 30.000 (M. Santos, 1959). 4 As estimativas da populagao urbana e da populagdo total brasileira nos pri- meiros séeulos ndo sd0 condizentes entre si, como mostram os exemplos seguintes: a Riplogio urban 1872 59% 1890 6.8% 1900 94% 1920 10,7% 1940 31,24% 1950 36,16% 1960 45,08% 1970 56,00% 1980 65,10% Ruben George Oliven, Urbanizagio mudanga social no Brasil, Voves, Petrépolis, 1980, p. 69, tabela 1 Populagao total e urbana do Brasit (em milhées de habitantes) Pop. total urbana foal Pop. a 1872 99 mais de 0,9 mais de 10% 1890 43 mais de 1,3, mais de 10% 1920 30,6 mais de 3,0 mais de 10% 1940 412 13,1 31,8% 1950 51,9 188, 36.2% Pedro Geiger, 1963, p. 20. AURBANIZAGAO PRETERITA 21 Em 1872, apenas trés capitais brasileiras contavam com mais de 100.000 habitantes: Rio de Janeiro (274.972), Salvador (129.109) e Recife (116.671). Somente Belém (61.997) contava mais de 50.000 residentes. Sao Paulo, entao, tinha uma populagao de 31.385 pessoas. Em 1890, eram trés ascidades com mais de 100.000 moradores: Rio de Janeiro com 522,651, Salvador com 174.412 e Recife com 111.556. Trés outras cidades passavam da casa dos 50.000 (Sao Paulo: 64.934; Porto Alegre: 52.421; Belém: 50.064). Em 1900, havia quatro cidades com mais de cem mil vizinhos e uma beirava essa cifra. de Janeiro — 691.565 Sao Pulo — 239,820 Salvador — 205.813 Recife - 113.106 Belém — 96.560 Com mais de 50.000 residentes ou perto disso estavam cinco capitais: Porto Alegre: 73.674; Niterdi: 53.433; Manaus: 50.300; Curitiba: 49.755: Fortaleza: 48.369 (Ministério da Agricultura, Industria e Comércio, Anudrio estattstico do Brasil de 1912, Rio, 1916). E, todavia, no fim do século XIX que se conhece a primeira aceleragio do fenémeno: sao 5,9% de urbanos em 1872, mas em 1900 eles ja somam 9,4% (liven, 1980, p. 69). Para Pedro Geiger (1983, p. 20) jé em 1872 a populagao urbana brasileira repre- sentava cerca de 10% do total, indice que iria manter-se (quase) em 1900, Mas, enquanto naquele ano os urbanos eram cerca de 900.000, em 1900 seu nimero ultrapassava 1.200.000. O fato 6 que a populagao brasileira subira de 9,9 milhdes para 14,3 mi- Thoes, crescendo mais de 40% em apenas quinze anos. Todos esses dados, porém, devem ser tomados com cautela, j4 que somente apés Populagao total 1872 10.112.061 1890 14.333.915. 1900 18,200,000 1920 7.500.000 1940 41.252.944 Fonte: Giorgio Mortara, “O aumento da populagao do Brasil entre 1872 e 1940", om Estudos de estatistiea tedrica e aplicada, Estat{sticas Demogréticas n.° 13, IBGE, Rio, 1951. Tirado de Villela e Suzigan, 1978, p. 90, tabela II-6, 22 A URBANIZAGAO PRETERITA 1940 as contagens separavam a populagio das cidades e das vilas da populagao rural do mesmo municipio (Juarez R. Brandao Lopes, 1976, p. 13; Naney Alessio, 1970, p. 109; Pedro Geiger, 1963, p. 20. Se o indice de urbanizagio pouco se alterou entre o fim do perfodo colonial até o final do século 19 e cresceu menos de quatro pontos nos trinta anos entre 1890 e 1920 (passando de 6,8% a 10,7%), foram necessdrios apenas vinte anos, entre 1920 e 1940, para que essa taxa triplicasse passando a 31,24%. A populagao concentrada em cidades passa de 4.552.000 pessoas em 1920 para 6.208.699 em 1940 (Villela e Suzigan, 1973, p. 199)°. Nesse pe- 5 quanto as diversas contagens da populagao an longo da historia brasileira, M, L, Mario (1972) refoyose a tres eras-0 periodn préetatistin (do info da col Fiangto ats‘ motade Jo sculo 18), 0 perioda potaestatstic (que termina com 0 Frinziro recenseamento geral do Brasil, em 1872), © perio extatistico que af Ehmuga, Quanto a urbanizaga, aera protestatistca seria mais prolongada, porgve a fase propriamente estatistica 20 iia comogar com 0 recenscamento do 1940 “sa Pedro Geiger (1963, p. 20) afirma que" difdl apurar a participaréo da ‘Magan urbane para perfodos anteriores 1940, pos os cansos,antigamente, Pap destacavam essa caracterfstica,Existom dados paras capitals dos Estados, atigns Provinciar do peri, bem como para o Distrito Federal, Municipio New tro. ‘no Tmpere, Com os dadie destas edades, apenas, « porcentagem sobre & populagdo total brasileira era de 10%, mais ou menos, entre 1972 e 1020". rEmutr estudioso da questa, Temes o seguine: "no quad TIT apresontam se dados sib o grav de urbanizagéo no Brasil, de 1872 2 1960, medio, em cada se fale numero de eidades com mats de einguenta mi, com mile melo milks Gevhatitantes ¢ pela popolagio que ex habitava. Uma adverténcia far-se desde itge ecessia, os das do conso de 1920 e anteriores nao so, a rigor, compa ‘Miva mow de 1940-1 1960, Somente a partir de 1940 se comogoa u separar 4 Fopulagto das cdades¢ vlas (quadros urbano e suburbano) da rural do'mesmo wepnitpio Assim, fomos obrigados a nos utilizar, para s quatro primeiros censos Cigrd #1920), das poputagtes totais dos muniipion com cingdente mail habitantes tut mats, enquanto para on trés kins (1940 1960) tomamos os dados mais txaton, que excluem'a populagio rural do maniepio.O err € maior, ¢ claro, para ts cdades menores (aftando mais, portant, «coluna des de cinqdenta mil ha- hattes ou mals) pols para as maiores a parccia gral € proporconalmente bem wenn GR Brandao Lopes, Dewevoloimento e maSlanga soc, 1976, p. 18 6 Cidacles de mais de 20,000 habitantes. Crescimento entre 1920-40 Populagao Crescimento 1920 1940 ‘1920 1940 % Norte 3 2 223.775 284.527 35 Nordeste 20 16 1.198.105 1.268.019 14 Leste _ 18 u 1.319.624 2.127.430 62,0 Sao Paulo 20 16 1,839,587 1.915.876 43,0 Sul 2 10 515.618 642.793, 24,7 Contro-Oeste 1 1 21.360 28.054 79 A URBANIZAGAO PRETERITA 23 riodo, a populagao ocupada em servigos cresce mais depressa que © total da populagdio economicamente ativa, Enquanto esta au- menta pouco mais de 60%, passando de 9.150.000 para 14.61.00, os ativos do tercidrio mais que dobram, crescendo quase 130%, pois eram 1.509.000 em 1920 e sdo 3.412.000 em 1940 (Villela e Suzigan, 1973, p. 94)’. Segundo dados encontrados em R. G. Oliven (1980, p. 71), entre 1925 e 1940, a participayao dos setores primario e secundério na populagdo ativa teria diminuido, ao passo que a do setor tercidrio estaria em aumento’, 7 Populagéo Economicamente Ativa, 1920-1940 jem mithares de pessoas) _ 0 1940 Agricultura 6377 9.782 Indistria 1.264 1517 Servigos 1.509 BAl2 Total 9.150 14.661, Fonte: IBGE, Recenseamentos Gerais. Tirados de Villela e Suzigan, 1978, p. 94, tabela IL9, ‘Segundo os mesmos autores ¢ com a divisio censitéria de entao, tinhamos, em 1920, 0 Nordeste e Sao Peulo com a maior quantidade de nicleos com mais de 20.000 habitantes, cada qual com vinte cidades; segue-se 0 Leste com dezoito, © Sul com doze, enquanto o Norte ficava apenas com duas e o Centro-Oeste com ‘uma. As vinte cidades de Sto Paulo somavam a maior populagdo, 1.839.587 ha- bitantes, a comparar com os 1.518.624 das do Leste eos 1.138.105 das do Nordeste. So considerarmos a divisa> regional atual (Norte, Nordeste, Sudeste, Sul e Contro-Ooste) para 1940, 1965, 4% do total da populagao das cidades com mais do 20.000 habitantes encontra-se na Regiao Sudeste, com o Estado de S80 Paulo reunindo, Sozinho, 31% dessa populacao, isto é, mais do que toda a Regido Norte (8,7%), Nordeste (20,15), Sul (10,3%) e Centro-Oeste (0,3%) somados, 8 Estrutura ocupacional do Brasil (om termos porcentuajs ¢ absolutes, em milhares) ‘Setor 1925 1940 1950 1960 1970 Primério 68% 64% 59,0% 58,7% 44,69 7011 9.496 10.253 12.164 18.188 Secundério 12% 10,1% 14.2% 13,1% 18% 1.237 1.491 2481 2.697 5.320 ‘Tercisrio 20% 25,9% 25,0% 83,2% 31,4% 2.062 3.823 4483 7520 11.054 Tota 10310___14.759_ 7.792.651 29.557 Ruben George Oliven, Op. cit, p. 71, tabela 4. 24 A URBANIZAGAO PRETERITA ae 0 ‘Setor primério 64% Setor seeundario 10,1% Setor torcidrio_ 25,9% No Estado de Sao Paulo, a expansao da urbanizagdo nesse pe- rfodo 6 marcante, com um crescimento de populagao urbana da ordem de 43%, Segundo Rosa E. Rossini (1988, p. 74, tese), “no final da década de 1920 (...) a urbanizagao do interior, evoluindo de forma acelerada e atomizada, foi reforgada pelo movimento de capitais mercantis locais propiciando investimentos de origem privada de companhias de energia, de telefone, de meios de trans- porte, baneos, instituigdes de ensino ete, Acrescente-se ainda 0 surgimento de postos de gasolina, armazéns para venda de im- plementos agricolas e sementes, que reforgavam o setor urbano, acelerando a prestagao de servigo”. ‘A urbanizagao brasileira conhece, nitidamente, dois grandes regimes, ao longo das diferentes periodizagdes que se proponham. Apés os anos 40-50, os nexos econémicos ganham enorme relevo, e se impdem as dinamicas urbanas na totalidade do territério, conforme veremos depois com mais detalhe; e, antes desse mo- mento, 0 papel das fungdes administrativas tem, na maior parte dos estados, uma significagao preponderante. Outro dado que nos permite também falar em dois regimes. Nos tiltimos decénios do século XIX e nos primeiros do século XX, a evolugéio demografica das capitais estava, em muitos casos, sujeita a oscilagées (ou conhecia crescimento relativamente lento) em determinados periodos intercensais, ao passo que a partir do fim da segunda guerra mundial dé-se um ereseimento sustentado em todas elas. \ CAPITAIS DE ESTADOS ESCOLHIDAS: EVOLUCAO DEMOGRAFICA 1872-1940 1872 1890 1900 1920 1940 Belém 61.997 50.064 96.560 286.406 164.673 Cuiabs 35.987 17815 «34.898 83.678 . Manaus 29.934 38.720 50.800 75.701 «66.854. Vitoria 16.157__16.887___11.850__—21.886_42.098 A URBANIZAGAO PRETERITA 25, 1872 18901900 1920 1940 Salvador 129.103 174.412 205.818 283.422 290.448 Florianépolis 25.709 © 30.687 82.228 «41.338 25.014 Teresina 21.692 91.528 45.816 57.500 34.695, Joao Pessoa 24714 18.645 28.793 52.990 71.158 Pode-se grosseiramente admitir que a base econémica da maio- ria das capitais de estado brasileiras era, até o fim da segunda guerra mundial, fundada na agricultura que se realizava em sua zona de influéncia e nas fungdes administrativas ptiblicas e pri- vadas, mas, sobretudo, miblicas. E 0 que explica as oscilagées acima indicadas ou uma relativa estagnagao do crescimento po- pulacional, mediante influéncias diretas ou indiretas do que se passava nas dreas ndo-urbanas. O creseimento e, depois, 0 de- crescimento de Manaus e Belém é 0 exemplo mais classico desses impactos diretos, a partir da decadéncia da extragao e do comércio da borracha. Ja 0 caso de Salvador, cuja populagao praticamente nao eresce entre 1920 ¢ 1940, deve-se A abertura de uma frente pioneira interna, com o desbravamento e a conquista da zona do cacau, que atrai grande nimero de pessoas deslocadas pelas secas, e por uma estrutura agrédria extremamente inigualitaria, deixan- do, por conseguinte, de engrossar as correntes do éxodo rural para a capital baiana, Até a segunda guerra mundial, o peso das capitais no proceso urbano e na populacao urbana sobreleva, tanto do ponto de vista quantitative como qualitative. E nos estados em que a atividade extrativa € predominante que a parcela da populagao vivendo nas capitais 6 maior. E um fenmeno tipico das Regides Norte e Cen- tro-Oeste, 0 caso de Goids sendo atipico. PARTE DA CAPITAL NA POPULACAO DOS RESPECTIVOS ESTADOS, 1872 1890 1900 1920 Manaus 50.92% 26,17% 0, 14% 10, 85% Belém 25.52% 24,98 ——«20,14% © 20,85% n 59.56% __19,19% 19.14% ___13,66% Em 1872, nenhuma outra capital ultrapassava 14% da popu- lagdo estadual e mais de metade nao atingia os 10%; em 1890, nenhuma capital, afora as trés acima enumeradas ultrapassava 26 A URBANIZACAO PRETERITA os 12% da populagao dos respectivos estados, e 12 nao chegavam sequer aos 10%; em 1900, apenas quatro capitais, além de Cuiabé, Belém e Manaus, ultrapassavam os 10% do total demogréfico es- tadual (¢ treze das capitais nao aleangavam os 10%); ainda em 1920, apenas quatro capitais, além das trés mencionadas no qua- dro anterior, ultrapassavam os 10% da populagao estadual®, ‘Tais porcentuais somente podem ser mais bem avaliados em comparagiio com o volume de populagéio dessas cidades-capitais Nenhuma cidade do Norte e do Centro-Oeste ultrapassava os efe- tivos de Belém (61.997 em 1872; 50.064 em 1890; 96.560 em 1900 e 236.402 em 1920). Brasil foi, durante muitos séculos, um grande arquipélago, formado por subespagos que evolufam segundo légicas préprias, ditadas em grande parte por suas relagdes.com o mundo exterior. Havia, sem diivida, para cada um desses subespagos, pélos dina- micos internos. Estes, porém, tinham entre si escassa relagao, nao sendo interdependentes. Esse quadro é relativamente quebrado a partir da segunda metade do século XIX, quando, a partir da produgao de café, 0 Estado de Sao Paulo'se torna o pélo dinamico de vasta area que abrange os estados mais ao sul e vai incluir, ainda que de modo incompleto, 0 Rio de Janeiro e Minas Gerais. Ainda aqui, a ex- plicagéio pode ser buscada nas mudangas ocorridas tanto nos sis- temas de engenharia (materialidade), quanto no sistema social De um lado, a implantagao de estradas de ferro, a melhoria dos portos, a criagsio de meios de comunicagao atribuem uma nova fluidez potencial a essa parte do territério brasileiro. \De outro 910 peso das cidades capitais de estado sobre a populacao total do Pafs man- teve-se praticamente modesto e estvel até 1940-1950, conhecendo entao uma evolugao sem saltos que acompanha os indices de ubanizagao, 1872 — 10,09% 1890 — 9,55% 1900 — 11,07% 1920 — 11,84% 1940 — 13,70% 1950 — 15,88% 1960 — 18,69% 1970 — 21,58% 1980 — 24,02% A URBANIZACAO PRETERITA 27 lado, é af também onde se instalam sob os influxos do comércio internacional, formas capitalistas de produgdo, trabalho, inter- cambio, consumo, que vao tornar efetiva aquela fluidez. Trata-se, porém, de uma integragao limitada, do espago ¢ do mercado, de que apenas participa uma parcela do territério nacional. A divisao do trabalho que se opera dentro dessa area é um fator de cres- cimento para todos os seus subespagos envolvidos no processo e constitui um elemento de sua crescente diferenciagao em relagao ao resto do territério brasileiro. B com base nessa nova dinamica que 0 proceso de industrializagéo se desenvolve, atribuindo a dianteira a essa regido, e sobretudo ao seu pélo dinamico, o Estado de Sao Paulo. Esta ai a semente de uma situagao de polarizagao que iria prosseguir ao longo do tempo, ainda que em cada periodo se apresente segundo uma forma particular, Esse primeiro momento duraré até a década de 30, quando novas condigées politicas e organizacionais permitem que a in- dustrializagdo conhega, de um lado, uma nova impulsio, vinda do poder publico e, de oatro, comece a permitir que 0 mercado interno ganhe um papel, que se mostrar crescente, na elabora- 40, para o Pais, de uma nova logica econémica e territorial A partir dos anos 1940-1950, é essa légica da industrializagao que prevalece: o termo industrializagdo nao pode ser tomado, aqui, em seu sentido estrito, isto é, como criagao de atividades industriais nos lugares, mas em sua mais ampla significagao, como processo social complexo, que tanto inclui a formagao de um mercado nacional, quanto os esforgos de equipamento do ter- rit6rio para torné-lo integrado, como a expansdo do consumo em formas diversas, o que impulsiona a vida de relagées (leia-se ter- ciarizagao) e ativa 0 préprio processo de urbanizagao. Essa nova base econémica ultrapassa o nivel regional, para situar-se na es- cala do Pass; por isso a partir dai uma urbanizagao cada vez mais envolvente e mais presente no territério dé-se com o crescimento demogréfico sustentado das cidades médias e maiores, incluidas, naturalmente, as capitais de estados. | A EVOLUGAO RECENTE DA POPULACAO URBANA, AGRICOLA E RURAL Entre 1940 e 1980, dé-se verdadeira inversdo quanto ao lugar de residéncia da populago brasileira. Ha meio século atras (1940), a taxa de urbanizagao era de 26,35%, em 1980 alana / 68,86%!, Nesses quarenta anos, triplica a populugao total do Bra- sil, ao passo que a populagao urbana se multiplica por sete vezes e meia. Hoje, a populagao urbana brasileira passa dos 77%, fi- cando quase igual & populagdo total de 1980". BRASIL Populecio Populagao indice de total urbana urbanizagao 1940 1.826.000 10.891.000 26,35 10950 51,944,000, 18.788.000 36,16 1960 0.191.000, 31.956.000 45,52 1970 93.139.000, 52,905,000 56,80 1980 119,099,000 82.018.000 68,86 1991 150.400.000 115.700.000 713 Agg1_150.400.000_115.700.000_77,13_ Entre 1960 e 1980, a populagdo vivendo nas cidades conhece au- mento espetacular: cerca de novos cingtienta milhdes de habitantes, isto 6, um miimero quase igual A populagao total do Pais em 1950. Somente entre 1970 e 1980, ineorpora-se ao contingente demogréfico 1 Basa evolugao 6 compardvel a que se verifica entre 1941 ¢ 1978, na Iugoslavia, onde a taxa de urbanizagdo passa de 26,6% a 69,7%. Mas essa evoluao envolve ‘um mimero de pessoas bem menor, pois a populacdo urbana passa de 4.350.000 para 15.312.000 pessoas, nesse periodo (Ostojic, Stipetic, Trickovic, 1980). J4 na Bélgica, uma evolugéo comparével A brasileira em mimeros relativos toma mais de um século: 31% de urbanos em 1846, 49% em 1900 e 61% em 1970 (C. Vaan- dermotton, 1985, p. 11D. 2 Entre 1950 ¢ 1991, a populagao total também triplica, ao passo que a populagao ‘urbana, representando 77% da total, tem seu volume multiplicado por 6,15. 2 30 A EVOLUCAO RECENTE DA POPULACAO, urbano uma massa de gente comparavel ao que era a populagao total urbana de 1960. Ja entre 1980 e 1990, enquanto a populagao total tera crescido 26%, a populagao urbana deve haver aumen- tado em mais de 40%, isto 6, perto de trinta milhdes de pessoas. VARIACAO DA POPULAGAO TOTAL DO BRASIL em mil habitantes 10618 18.247 2.948 25.960, T1873 VARIAGAO DA POPULAGAO URBANA DO BRASIL em mil habitantes 40-50 7.802 72.46% 50.60 13.178 70,13% 60-70 20.949 65,55% 70-80 29.108 35,01% 40-80 285 8,08% Os anos 60 marcam um significative ponto de inflexao, Tanto no decénio entre 1940 e 1950, quanto entre 1950 e 1960, 0 au- mento anual da populagéo urbana era, em ntimeros absolutos, menor que 0 da populagao total do Pais. Nos anos 60-70 os dois, miimeros se aproximavam, E na década 70-80, o creseimento nu- mérico da populacao urbana j4 era maior que o da populacdo total. O processo de urbanizagao conhece uma aceleragao e ganha novo patamar, consolidado na década seguinte AUMENTO ANUAL MEDIO APROXIMADO DA POPULAGAO TOTAL EDA POPULAGAO URBANA ‘Aumento médio ‘Aumento médio ‘anual da populagéo anual da populagio BA - al (A) urbana (B) 1940-50, 1.060.000 800.000 7547 1950-60 1.820.000 1.820.000 72,52 1960-70 2.800.000 2.100.000 91,80 1970-80 2.600.000 2.900.000 111,53 1980.91 8.180.000 3,970,000 107,66 A EVOLUGAO RECENTE DA POPULACAO 31 A evolugdo da populagao agricola ‘O forte movimento de urbanizagéo que se verifica a partir do fim da segunda guerra mundial é contemporaneo de um forte crescimento demogréfico, resultado de uma natalidade elevada e de uma mortalidade em descenso, cnjas causas essenciais sao os progressos sanitarios, a melhoria relativa nos padrées de vida e a propria urbanizacao. ° Rosa Ester Rossini (1985) descreve esse fendmeno, mostrando como e por que a sociedade brasileira conhece esse fendmeno de “explostio demografica”. Entre 1940 e 1950, a uma taxa bruta de mortalidade de 20,6%, correspondia uma taxa bruta de natalidade de 44,4%. Entre 1950 e 1960, esses indices ja eram de 13,4% e 43,3%. E nesse contexto que a populagao agricola cresce entre 1960 e 1970 e, outra vez, entre 1970 e 1980. Como, porém, a vida de relagées se intensifica, e se afirma a vocago a aglomeragao, a populagao rural cresce entre 1960 e 1970, mas diminui entre 1970 e 1980. Neste ultimo ano, os mimeros sao bem préximos dos de 1960. BRASIL Pooulacéo agricola Populagéo rural 1960 18.454.526 8.418.798 1970 17.581.964 41,054,053, 1980 21.163.729) 38.566.297, O fenémeno nao se dé de maneira homogénea, uma vez que sao diferentes os graus de desenvolvimento e de ocupagao prévia das diversas regides, pois estas sao diferentemente alcancadas pela expansio da fronteira agricola e pelas migragées inter-re- gionais. POPULAGAO AGRICOLA Centro Norte Nordeste Sudeste ‘Sul eur Brasil 1960 544.028 6.659.178 4.868872 3.194.031 688.420 15.454.526 1970 934.024 7.568.810 9.959.975 4.191.785 927.970 17.581.964 1980___1.781.611 9.833.166 4.812.211 4.391.819 1.344.980 21.168.729 82 A EVOLUCAO RECENTE DA POPULAGAO POPULAGAO RURAL Centro oad __ Oeste 1960 1.604.064 14.665.380 12.821.206 7.392.884 1.935.764 38.418.798 1970 1.977.260 16.858.950 10.888.897 "9.193.066 2.685.880 41.581.053 1980 __2.843.118 17.245.514 8.894.044 7.153.428 2.480.198 8.566.297 Norte Nordeste Sudeste Sul Brasil A populagao agricola cresce em todas as regiées, entre 1960, 1970 e 1980, exeeto no Sudeste onde, apés haver diminuido entre 1960 e 1970, obtém, em 1980, um volume quase semelhante, mas ainda inferior, ao de 1960, Tomado o periodo 1960-1980, a populagao rural apenas cresce nas Regides Norte e Nordeste. A baixa somente é continua, isto é, abrangendo os periodos 1960-1970 e 1970-1980, para a Regiéio Sudeste. Quanto as Regides Sul e Centro-Oeste, que’ obtiveram ganhos entre 1960 e 1970, perdem-nos entre 1970 e 1980 pesadamente; na Regido Sul as perdas sio grandes e a populagao rural em 1980 é bem inferior & de 1960. Quanto a Regido Centro- Oeste, ela perde mais de 200.000 rurais, entre 1970 e 1980. Sao os seguintes os onze estados onde o crescimento da popu- lagao agricola é mais importante entre 1960 e 1980: Bahia ............... 843.123 Maranhao. «720.884 Paré . 682.290 Parand... 523.128 Piauf.... « 431,993 Rio Grande do Sul .... 413.191 Mato Grosso . 362.850 ‘Amazonas. =. 293.611 Goids ... «281.542 Cearé ... sees 267.766 Santa Catarina....... 261.461 Um exame mais detalhado das estatisticas, separando’o que ocorreu no decénio 1960-1970 do que aconteceu no seguinte de- cénio, nos mostrar4, porém, que a populagao agricola diminui em quatro estados, entre 1960 ¢ 1970 (Pernambuco, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Séo Paulo). Nestes dois tltimos estados, o des- censo 6, pois, continuado, Quanto a populagao rural, ela baixa em quatro estados entre 1960 e 1970 (Minas Gerais, Rio de Janeiro, Sao Paulo e Distrito Federal) e em onze estados entre 1970 e 1980 (Ceara, Rio Grande A EVOLUGAO RECENTE DA POPULAGAO 33 do Norte, Paraiba, Minas Gerais, Espirito Santo, Rio de Janeiro, Sao Paulo, Parand, Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Goids, isto 6, todos os estados do Sudeste e do Sul e mais trés do Nordeste e um do Centro-Oeste). ‘As perdas mais importantes de populagao rural, entre 1970 ¢ 1980, verificam-se nos Estados do Parana (menos 1.268.659), Mi- nas Gerais (menos 1,030,696), So Paulo (menos 1.268.659), Rio Grande do Sul (menos 588.988), Note-se que Séo Paulo e Minas Gerais jé haviam visto baixar sua populagao rural respectiva- mente de 1.293.779 ¢ 405.374 pessoas entre 1960 e 1970. ‘A maior perda relativa de populagdo agricola dé-se em Sao Paulo, com uma baixa de 17,79% entre 1960 e 1970 e de 20,31% entre 1960 e 1980 (3,08% de baixa entre 1970 e 1980), Outra perda considerdvel entre 1960 e 1970 ¢ a de Pernambuco (10,68%) e do Parana (8,76%) entre 1970 e 1980. Examinemos, mais uma vez esse fenémeno, agora com base na verificagao do porcentual que cabe A populagao agricola e A populagdo rural em relagio A populagdo total do Pais, em 1960, 1970 e 1980. Em termos proporcionais, reduz-se a importancia tanto da populagao agricola quanto da populagdo rural nos dois periodos intercensitsrios, Note-se, todavia, que a queda relativa da populagdo rural é mais acentuada que a da populagao agricola. Brasil moderno 6 um pais onde a populagdo agricola eresce mais depressa que a populagao rural. Entre 1960 e 1980, a po- pulagao agricola passa dos 15.454.526 para 21.163.729, ao passo que a populagdo rural fica praticamente estacionéria: 38.418.798 em 1960, 38,566.297 em 1980 (em 1970, sao 41.054.054). ‘A populagfio agricola torna-se maior que a rural exatamente porque uma parte da populagao agricola formada por trabalha- dores do campo estacionais (os béias-frias) (J. Graziano da Silva, 1989) 6 urbana pela sua residéncia. Um complicador a mais para nossos velhos esquemas cidade-campo. POPULAGAO AGRICOLA em relagao populacao total ‘Norte Nordeste Sudeste Sul Centro-Ocste 1960 2124 3002 14,44 27,18 «23,89 1970 25.92 2692 9,93 25,41 18,29 0. 3026.8 5, 1, 34 A BVOLUGAO RECENTE DA POPULAGAO POPULAGAO RURAL ‘em relagao & populagdo total Norte Nordeste Sudleste Sul __Centro-Oeste___Brasi 1960 6261 66,1242, 90 65,77 55,83 1970 5486 58192 55,73 81,96 44,08 1980 48,35 4954 17,19 37,59 32,21 32,41 O MEIO TECNICO-CIENTIFICO ‘A fase atual, do ponto de vista que aqui nos interessa, 6 0 momento no qual se constitui, sobre territérios cada vez mais vastos, ‘co que estamos chamando de meio técnico-cientifico, isto é, o momento histérico no qual a construgdo ou reconstrugdo do espago se dard com tum crescente contetido de ciéncia, de técnicas e de informagao!. O meio natural era aquela fase da histéria na qual o homem escolhia da natureza aquilo que considerava fundamental a0 exer- cicio da vida e valorizava diferentemente essas condigées natu- rais, as quais, sem grande modificagéo, constituiam a base ma- terial da existéncia do grupo. fim do século XVIII e, sobretudo, o século XIX véem a mecanizacao do territério: o territério se mecaniza.\Podemos dizer, junto com Max. Sorre (1948) e André Siegfried (1955), que esse é o momento da criagao do meio técnico, que substitui o meio natural. Ja, hoje, é insuficiente ficar com esta ultima categoria, e é preciso falar de meio técnico-cientifico, que tende a se superpor, em todos os lugares, ainda que de modo desigual, ao chamado meio geogréfico. (Esse meio técnico-cientifico (melhor sera chamé-lo de meio téc- nico-eientifico-informacional) 6 marcado pela presenga da ciéncia e da técnica nos processos de remodelagao do terri i 1 Vimos tratando desse tema desde 1980, quando apresentamos uma comu- nicagao a0 Encontro Nacional dos Gedgrafos, promovido pela A.G.B, em Porto Alegre. Esse trabalho foi depois reproduzide em nosso livrinho Espago e método. Levamos, também, uma comunicacao a um simpésio da OBA (Washington, 1986) — “0 perfodo téenico-cientifico e os estudos geogréticos”. Outras contribuigies Toram apresentadas em reunises cientffieas ¢ publicadas em diversas revistas: Boletim Pautista de Geografia (1989), Espago ¢ Debates (1988), Cahiers de Géographie du Québec (1988), Resgate (1991), Caderno Prudentino de Geografia (1923), Terra Livre (1992) ete, Esse tema também tem sido objeto de disser- tages de mestrado, ja defendidas na Universidade de Sao Paulo como as de Wilson Santos, Sergio Gertel ¢ Denise S. Elias e na Universidade Federal do Rio de Janeiro, como as de Margareth Pimenta, Luiz Pimenta e Maria Ceeflia Linardi. % ab 36 0 MEIO TECNICO.CIENTIFICO as produgdes hegeménicas, que necessitam desse novo meio geo- grafico para sua realizagao. A informagao, em todas as suas for- mas, € 0 motor fundamental do processo social e 0 territério 6, também, equipado para facilitar a sua circulagao, Isso nos obriga a distinguir dois periodos anteriores a fase atual da organizagao do territério, Num espago de tempo relativamente curto, 0 Brasil acelera a mecanizagao do territério e enfrenta uma nova tarefa, isto é, a constituigao, sobre areas cada vez mais vas- tas, dese meio téenico-cientifico-informacional. E apenas apés a segunda guerra mundial que a integragao do territério se torna vidvel, quando as estradas de ferro até entaéo desconectadas na maior parte do Pafs, sio interligadas, cons- troem-se estradas de rodagem, pondo em contato as diversas re- gides entre elas e com a regido polar do Pais, empreende-se um ousado programa de investimentos em infra-estruturas. Ainda uma vez, uma nova materialidade superpée novos sistemas de engenharia aos ja existentes, oferecendo as condigdes técnicas ge- rais que iriam viabilizar o proceso de substituigo de importagdes para o qual todo um arsenal financeiro, fiscal, monetério, serviria como base das novas relagGes sociais (incluido o consumo aumen- tado) que iriam permitir mais uma decolagem. Esse periodo duraria até fins dos anos 60. O golpe de Estado de 1964 todavia aparece como um marco, pois foi o movimento militar que criou as condigdes de uma répida integragao do Pais a um movimento de internacionalizagdo que aparecia como irre- sistivel, em escala mundial. A economia se desenvolve, seja para atender a um mercado consumidor em célere expansio, seja para responder a uma demanda exterior. © Pais se torna grande ex- portador tanto de produtos agricolas nao tradicionais (soja, eftri- cos) parcialmente beneficiados antes de se dirigirem ao estran- geiro, quanto de produtos industrializados. A modernizagao agri- cola, alids, atinge, também produgdes tradicionais como 0 café, 0 cacau, 0 algodao; aleanga produtos como o trigo, cujo volume plan- tado e colhido se multiplica; implanta-se em muitos outros setores e se beneficia da expansio da classe média e das novas equagoes de um consumo popular intermitente, com 0 desenvolvimento da produgdo de frutas, verduras e hortaligas. A popula¢io aumen- tada, a classe média ampliada, a sedugéo dos pobres por um con- sumo diversificado e ajudado por sistemas extensivos de crédito, servem como impulsdo & expansao industrial. 0 MEIO TRCNICO-CIENTIFICO 37 ‘As primeiras fases do processo de integragdo foram concentra- doras das atividades modernas e dinamicas, tanto do ponto de vista econémico quanto geograficamente. na tiltima fase, quando jé exis- te um capitalismo maduro, que vamos testemunhar a possibilidade de uma difusdo da modernizagao, nao s6 presente quanto aos capi- tais, como quanto a tecnologia e as formas de organizagao. Afirma-se, entdo, a tendéncia a generalizagao do meio técni- co-cientifieo. Desse modo, as remodelagdes que se impdem, tanto no meio rural quanto nc meio urbano, nao se fazem de forma indiferente quanto Aqueles trés dados: ciéncia, tecnologia e infor- magdo (M. Santos, 1980 e 1988). Em conseqiiéncia, aparecem mu- dangas importantes, de um lado, na composigao téenica do terri- torio pelos aportes maciges de investimentos em infra-estruturas, e, de outro lado, na composigao organica do territério, gragas A cibernética, as biotecnologias, as novas quimicas, & informatica e a eletrénica. Isso se di de forma paralela cientifizagio do trabalho. Este se torna cada vez mais trabalho cientifico e sua presenga se da em paralelo a uma informatizagio também cres- cente do territério, Pode-se dizer, mesmo, que o territério se in- formatiza mais, e mais depressa, que a economia ou que a socie- dade. Sem diivida, tudo se informatiza, mas no territério esse fenémeno ¢ ainda mais notavel uma vez que o trato do territério supe 0 uso da informagao, que esta presente também nos objetos. (Hd, de um lado, mais conhecimento sobre o territério, gragas As novas possibilidadés de teledeteccao (veja-se, no Brasil, o trabalho do Projeto Radam) e aos progressos obtidos na previsiio meteorolé- gica (0 caso do radar meteorolégico de Bauru é exemplar); por outro lado, os objetos geogréficos, cujo conjunto nos dé a configuragio ter- ritorial e nos define 0 préprio territério, sdo, cada dia que passa, mais carregados de informago} E a diferenciagao entre eles é tanto a da informagao necessaria a trabalhé-los?, mas também a diferen- 2 Um estudo de Scheneider, Frohlich e Feldens (1991, p. 60-73) mostra a intima relagdo entre informagio ¢ adocao de praticas cientfficas ¢ tecno- légicas em érea de agricultura modernizada. A compra de sementes, racbes, adubos, defensivos, maquinas e implementos, mas também a venda dos re- sultados do trabalho agricole sao fortemente influenciadas pelas diversas formas de informagao ao alcance do produtor; de um lado, radio, televisao, Jornais; de outros, conselhos de vizinhos, eomerciantes e Uéenicas agricolas. ‘A incidéncia varia, segundo os casos, mas 0 uso da informagdo 6 pratica generalizada e indispens4vel ndo apenas A inovacio tecnoldgica, mas ao pré- prio cotidiano do agricultor. 38 0 MEIO TECNICO-CIENTIFICO ciagao da informagio que eles préprios contém, em virtude de sua propria realidade fisica. Pode-se, alids, dizer, com mais propriedade, que o territério se informacionaliza, a informatizagao no sendo mais que um ins- trumento e um aspecto desse fendmeno mais abrangente Foi o periodo téenico-cientifico da humanidade (R. Richta, 1974), isto é, a possibilidade de inventar a natureza, de criar sementes como se elas fossem naturais, isto 6, 0 progresso da bioteenologia, que permitiu, no espago de duas geragdes, que o que parecia um deserto, como o cerrado, na Regio Centro-Oeste e na Bahia, se transformasse num vergel formado por um caleidoseépio de produ- gées, a comegar pela soja. O papel da pesquisa, empreendida na Embrapa e em outras instituigdes, foi fundamental nessa evolugao. Neste perfodo, no caso brasileiro, alguns fatos tém que ser res- saltados: 1.°) Hé um desenvolvimento muito grande da configuragao ter- ritorial. A configuragdo territorial é formada pelo conjunto de sis- temas de engenharia que o homem vai superpondo & natureza, verdadeiras préteses, de maneira a permitir que se criem as con- digdes de trabalho préprias de cada época. O desenvolvimento da configuragao territorial na fase atual vem com um desenvolvi- mento exponencial do sistema de transportes e do sistema de telecomunicagdes e da produgao de energia. 2.°) Outro aspecto importante a levar em conta é 0 enorme desen- volvimento da produgdo material. A produgao material brasileira, in- dustrial e agricola, muda de estrutura; a estrutura da circulagao e da distribuigéo muda; a do consumo muda exponencialmente; todos esses dados da vida material conhecem transformagao extraordinéria, a0 mesmo tempo em que hé disseminagao no territério dessas novas formas produtivas. A parte do territdrio alcangada pelas formas pro- dutivas modernas nao é apenas a regio polarizada da definigao de Jacques Boudeville (1964), nem o Brasil litordneo descrito por Jacques Lambert (1959) mas praticamente o Pais inteiro, ainda que as éreas anteriormente privilegiadas adquiram novos privilégios. (3.°) Outro dado importante a considerar é o desenvolvimento de novas formas econmicas: nao apenas hé um desenvolvimento das formas de produgao material, hé também uma grande expansaio das formas de produgao nio-material: da satide, da educagao, do lazer, da informagao ¢ até mesmo das esperangas. Sao formas de consumo néo-material que se disseminam sobre 0 territério. » q 0 MEIO TECNICO-CIENTIFICO 39 consumo de energia passa dos 24.000 megawatts em 1965, para 160,000 em 1984. A partir de 1960, constroem-se estradas de rodagem de primeira ordem. O Brasil passa a ser cruzado por um grande ntimero de rodovias de boa qualidade, entre as quais um bom porcentual de autopistas. Por outro lado, em muitas re- gides, observa-se uma tendéncia a eriagao de uma rede vicinal, sobretudo nas areas mais desenvolvidas. De quase 5.000.000 de passageiros transportados por meio de rodovias em 1970, alcan- gamos mais de 11,000,000 em 1980, Eram 3.800.000 automéveis, circulando em 1973, sao 10.500.000 em 1981. Modernizam-se os Correios (Gertel, 1991) ¢ cria-se um moderno sistema de telecomunicagses, através de ondas e, depois, dos sa- télites; difunde-se o telefone, implanta-se o telex e novas formas de transmissio de mensagens, tornando maiores as possibilidades de movimento de valores, de dinheiro, de capitais, de ordens, mensa- gens ete, Em 1974, os Correios transportaram cerca de um bilhao de objetos, enquanto em 1982 sao mais de quatro bilhdes. Em 1961, havia 1. 100,000 telefones instalados, em 1971 ainda eram 1.760.000, mas em 1987 0 Pais jd conta com 1.600.000 aparelhos instalados. (E assim que, além da integragao do territério que j4 se esbogava no perfodo anterior, agora também se constroem as bases de uma verdadeira fluidez do territ6rio. © espago torna-se fluido, permi- tindo que os fatores de produgao, o trabalho, os produtos, as mer- cadorias, 0 capital, passem a ter uma grande mobilidade:, Podemos dizer que no Brasil é, ja agora, exemplar a presenga desse meio cientifico-téenico, cujo retrato tentamos esbogar de for- ma certamente incompleta. Nesta ordem de idéias, a expressao meio cientifico-técnico poderia ser utilizada em substituigao Aque- Ta (que hé alguns anos cunhamos juntamente com Ana Clara Tor- res Ribeiro) de regido concentrada, Desse modo, ¢ dificil prosse- guir falando de uma situagao de pélo-periferia, onde o pélo seria uma area circunscrita confundida com a propria extensao da prin- cipal aglomeragao € sua regiao de influéncia imediata como na proposta de Boudeville (1968) ou na de Friedmann (1971). Hoje, (pode-se falar de uma regiéo concentrada que abrange, grosso ‘modo, 0s estados do Sul (Parana, Santa Catarina, Rio Grande do Sul) além de So Paulo e Rio de Janeiro e parcelas consideraveis do Mato Grosso do Sul, Goids e Espirito Santo} Trata-se de uma rea continua onde uma divisio do trabalho mais intensa que no resto do Pais garante a presenga conjunta das varidveis mais mo-

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