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INTRODUCAO 1, LITERATURA COMO SISTEMA 2. UMA LITERATURA EMPENHADA 3. PRESSUPOSTOS. 4. 0 TERRENO E AS ATITUDES CRITICAS 5. OS ELEMENTOS DE COMPREENSAO 6. CONCEITOS 1 LITERATURA COMO SISTEMA" Este livro procura estudar a formacao da literatura brasileira como sintese de tendéncias universalistas e particularistas, Embora elas ndo ocorram isoladas, mas se combinem de modo vario a cada passo desde as primeiras manifestagdes, aquelas parecem dominar nas concepgdes neoclassicas, estas nas roménticas, — 0 que convida, além de motivos expostos abaixo, a dar realce aos respectivos periodos. Muitos leitores achardo que o pracesso formativo, assim considerado, acaba tarde demais, em desacordo com o que ensinam os livros de historia literéria. Sem querer contesté-los, — pois nessa matéria tudo depende do ponto de vista, — espero mostrar a viabilidade do meu. Para compreender em que sentido € tomada a palavra formagio, e porque se qualificam de decisivos os momentos estudados, convém principiar distinguindo mané- festagées literdrias, de literatura propriamente dita, considerada aqui um sistema de obras ligadas por denominadores comuns, que permitem reconhecer as notas dominan- tes duma fase. Estes denominadores so, além das caracteristicas internas, (lingua, temas, imagens), certos elementos de natureza social e psiquica, embora literariamente organizados, que se manifestam historicamente e fazem da literatura aspecto organico da civilizagéo. Entre eles se distinguem: a existéncia de um conjunto de produtores literdrios, mais ou menos conscientes do seu papel; um conjunto de receptores, formando os diferentes tipos de publico, sem os quais a obra nao vive; um mecanismo transmissor, (de modo geral, uma linguagem, traduzida em estilos), que liga uns a outros. © conjunto dos trés elementos da lugar a um tipo de comunicagdo inte-humana, a literatura, que aparece sob este angulo como sistema simbélico, por meio do qual as veleidades mais profundas do individuo se transformam em elementos de contacto entre os homens, e de interpretacao das diferentes esferas da realidade. * Alleitura desta “Introdugio" € dispensavel a quem ndo se interesse por questdes de orientacio critica, Podendo o Iivro set abordado diretamente pelo Capitulo 1, 23 Quando a atividade dos escritores de um dado periodo se integra em tal sistema, ocorre outro elemento decisivo: a formacdo da continuidade literdria, — espécie de transmissdo da tocha entre corredores, que assegura no tempo o movimento conjunto, definindo os lineamentos de um todo. £ uma tradi¢do, no sentido completo do termo, isto é, transmissao de algo entre os homens, e 0 conjunto de elementos transmitidos, formando padrées que se impéem ao pensamento ou ao comportamento, e aos quais, somos obrigados a nos referir, para aceitar ou rejeitar. Sem esta tradicéo nao hd literatura, como fendmeno de civilizacao, Em um livro de critica, mas escrito do ponto de vista histérico, como este, as obras nao podem aparecer em si, na autonomia que manifestam, quando abstrafmos as circunstincias enumeradas; aparecem, por forca da perspectiva escolhida, integrando em dado momento um sistema articulado e, ao influir sobre a elaboragio de outras, formando, no tempo, uma tradigao. Em fases iniciais, é freqdente ndo encontrarmos esta organiza¢do, dada a imaturidade do meio, que dificulta a formagao dos grupos, a elaboracdo de uma linguagem prépria € 0 interesse pelas obras. Isto nao impede que surjam obras de valor, ~ seja por forca da inspiracao individual, seja pela influéncia de outras literaturas. Mas elas ndo sio representativas de um sistema, significando quando muito 0 seu esbogo. Séo mani- festagébes literérias, como as que encontramos, no Brasil, em graus varidveis de isolamento e articulagdo, no periodo formativo inicial que vai das origens, no século XVI, com os autos e cantos de Anchieta, as Academias do século XVIII. Periodo importante e do maior interesse, onde se prendem as rafzes da nossa vida literdria e surgem, sem falar dos cronistas, homens do porte de Antonio Vieira e Gregério de Matos, = que poderd, alids, servir de exemplo do que pretendo dizer. Com efeito, embora tenha permanecido na tradigdo local da Bahia, ele nao existiu literariamente (em perspectiva histérica) até 0 Romantismo, q:1ando foi redescoberto, sobretudo gracas a Varnhagen; @ 56 depois de 1882 e da edigéo Vale Cabral péde ser devidamente avaliado. Antes disso, nao influiu, nao contribuiu para formar o nosso sistema literdrio, e tio obscuro Permaneceu sob 0s seus manuscritos, que Barbosa Machado, o minucioso erudito da Biblioteca Lusitana (1741-1758), ignora-o completamente, embora registre quanto Joao de Brito e Lima péde alcangar. Se desejarmos focalizar os momentos em que se discerne a formacao de um sistema, € preferivel nos limitarmos aos seus artifices imediatos, mais os que se vao enquadrando como herdeiros nas suas diretrizes, ou simplesmente no seu exemplo. Tratase entio, (para dar realce as linhas), de averiguar quando e como se definiu uma continuidade ininterrupta de obras e autores, cientes quase sempre de integrarem um processo de formacio literdria. Salvo melhor jutzo, sempre provavel em tais casos, isto ocorre a partir dos meados do século XVII, adquirindo plena nitidez na primeira metade do século XIX. Sem desconhecer grupos ou linhas tematicas anteriores, nem influéncias como as de Rocha Pita e Itaparica, é com os chamados arcades mineiros, as tiltimas academias e certos intelectuais ilustrados, que surgem homens de letras formando conjuntos 24 organicos e manifestando em graus varidveis a vontade de fazer literatura brasileira. Tais homens foram considerados fundadores pelos que os sucederam, estabelecendo-se deste modo uma tradicéo continua de estilos, temas, formas ou preocupacées. J que é preciso um comeco, tomei como ponto de partida as Academias dos Seletos e dos Renascidos e os primeiros trabalhos de Claudio Manuel da Costa, arredondando, para facilitar, a data de 1750, na verdade puramente convencional. 0 leitor perceberd que me coloquei deliberadamente no angulo dos nossos primeiros romanticos e dos criticos estrangeiros que, antes deles, localizaram na fase arcddica o inicio da nossa verdadeira literatura, gracas a manifestag3o de temas, notadamente o Indianismo, que dominardo a produgio oitocentista. Esses criticos conceberam a literatura do Brasil como expressio da realidade local e, ao mesmo tempo, elemento positivo na construgo nacional. Achei interessante estudar o sentido e a validade histérica dessa velha concep¢io cheia de equivocos, que forma ponto de partida de toda a nossa critica, revendoa na perspectiva atual. Sob este aspecto, poderseia dizer que o presente livro constitu (adaptando o titulo do conhecido estudo de Benda) uma “histéria dos brasileiros no seu desejo de ter uma literatura”. E um critério valido para quem adota orientacao histérica, sensivel as articulacdes e & dindmica das obras no tempo, mas de modo algum importa no exclusivismo de afirmar que sé assim é possivel estudélas. 25 2 UMA LITERATURA EMPENHADA Este ponto de vista, alids, é quase imposto pelo cardter da nossa literatura, sobretudo nos momentos estudados; se atentarmos bem, veremos que poucas tém sido tio conscientes da sua fungio histérica, em sentido amplo. Os escritores neoclassicos sio quase todos animados do desejo de construir uma literatura como prova de que os brasileiros eram tio capazes quanto os europeus; mesmo quando procuram exprimir uma realidade puramente individual, segundo os moldes universalistas do momento, esto visando este aspecto. E expressivo o fato de que mesmo os residentes em Portugal, incorporados a sua vida, timbravam em qualificar-se como brasileiros, sendo que os mais voltados para temas e sentimentos nossos foram, justamente, os que mais viveram [4, como Durio, Basilio ou Caldas Barbosa. Depois da Independéncia o pendor se acentuou, levando a considerar a atividade literdria como parte do esforco de construcao do pais livre, em cumprimento a um programa, bem cedo estabelecido, que visava a diferenciagio e particularizagao dos temas e modos de exprimilos, Isto explica a importancia atribuida, neste livro, & “tomada de consciéncia” dos autores quanto ao seu papel, € 4 inteng4o mais ou menos declarada de escrever para a sua terra, mesmo quando nao a descreviam. & este um dos fios condutores escolhidos, no ressuposto que, sob tal aspecto, os refinados madrigais de Silva Alvarenga, ou os sonetos camonianos de Claudio, eram tio nativistas quanto o Caramuru, Esta disposigao de espirito, historicamente do maior proveito, exprime certa encar- nacio literdria do espirito nacional, redundando muitas vezes nos escritores em prejuizo e desnorteio, sob 0 aspecto estético. Ela continha realmente um elemento ambiguo de pragmatismo, que se foi acentuando até alcancar o maximo em certos momentos, como a fase joanina e os primeiros tempos da Independéncia, a ponto de sermos por vezes obrigados, para acompanhar até o limite as suas manifestagdes, a abandonar o terreno especifico das belasletras. Como nao hé literatura sem fuga ao real, e tentativas de transcendélo pela imaginacdo, os escritores se sentiram freqdentemente tolhidos no vo, prejudicados no exercicio da fantasia pelo peso do sentimento de missio, que acarretava a obrigacio tacita de descrever a realidade imediata, ou exprimir determinados sentimentos de alcance geral. Este nacionalismo infuso contribuiu para certa rentncia 4 imaginacdo ou 26 certa incapacidade de aplicé-la devidamente a representacao do real, resolvendo-se por vezes na coexisténcia de realismo e fantasia, documento e devaneio, na obra de um mesmo autor, como José de Alencar. Por outro lado favoreceu a expresso de um contetido humano, bem significativo dos estados de espfrito duma sociedade que se estruturava em bases modernas. . Alids o nacionalismo artistico nao pode ser condenado ou louvado em abstrato, pois. é fruto de condigées histéricas, ~ quase imposico nos momentos em que o Estado se forma e adquire fisionomia nos povos antes desprovidos de autonomia ou unidade. Aparece no mundo contemporaneo como elemento de autoconsciéncia, nos povos velhos ou novos que adquirem ambas, ou nos que penetram de repente no ciclo da civilizagao ocidental, esposando as suas formas de organizacao politica. Este processo leva a requerer em todos os setores da vida mental e artistica um esforco de glorificacdo dos valores locais, que revitaliza a expressio, dando lastro e significado a formas polidas, mas incaracteristicas. Ao mesmo tempo compromete a universalidade da obra, fixandoa No pitoresco e no material bruto da experiéncia, além de queré-la, como vimos, empenhada, capaz de servir aos padrdes do grupo. Para nés, foi auspicioso que 0 proceso de sistematizacao literdria se acentuasse na fase neoclassica, beneficiando da concepgao universal, rigor de forma, contensdo emocional que a caracterizam. Gracas a isto, persistiu mais consciéncia estética do que seria de esperar do atraso do meio e da indisciplina romantica. Doutro lado, a fase neoclassica estd indissoluvelmente ligada A Tlustracdo, ao filosofismo do século XVIII; e isto contribuiu para incutir e acentuar a vocacao aplicada dos nossos escritores, por vezes ver Jadeiros delegados da realidade junto a literatura. Se nfo decorreu daf realismo no alto sentido, decorreu certo imediatismo, que nao raro confunde as letras com 0 padrao jonalistico; uma bateria de fogo rasante, cortando baixo as flores mais espigadas da imaginagdo. Nao espanta que 0s autores brasileiros tenham pouco da gratuidade que da asas & obra de arte; ¢, a0 contrario, muito da fidelidade documentaria ou sentimental, que vincula a experiéncia bruta. Alids, a coragem ou espontaneidade do gratuito é prova de amadurecimento, no individuo e na civilizagao; aos povos jovens e aos mogos, parece traigdo e fraqueza. ‘Ao mesmo tempo, esta imaturidade, por vezes provinciana, deu & literatura sentido histérico e excepcional poder comunicativo, tornando-a \ingua geral duma sociedade & busca de autoconhecimento, Sempre que se particularizou, como manifestacio afetiva e descri¢do local, adquiriu, para nds, a expressividade que estabelece comunicacdo entre autores leitores, sem a qual a arte ndo passa de experimentacdo dos recursos técnicos. Neste livro, tentarsed mostrar 0 jogo dessas forcas, universal e nacional, técnica € emo- cional, que a plasmaram como permanente mistura da tradigao européia e das descobertas do Brasil, Mistura do artesdo neocléssico ao bardo roméntico; duma arte de clareza e discernimento a uma “metafisica da confusio”, para dizer como um fildsofo frances. A idéia de que a literatura brasileira deve ser interessada (no sentido exposto) foi expressa por toda a nossa critica tradicional, desde Ferdinand Denis e Almeida Garrett, a partir dos quais tomousse a brasilidade, isto ¢, a presenca de elementos descritivos 27 locais, como trago diferencial e critério de valor. Para 08 roménticos, a literatura brasileira comecava propriamente, em virtude do tema indianista, com Durdo e Basilio, reputados, por este motivo, superiores a Cldudio e Gonzaga. problema da autonomia, a definicéo do momento ¢ motivos que a distinguem da portuguesa, € algo superado, que nio interessou especialmente aqui. Justificava-se no século pasado, quando se tratou de reforcar por todos os modos o perfil da jovem patria e, portanto, nés agiamos, em relagéo a Portugal, como esses adolescentes mal seguros, que negam a divida aos pais e chegam a mudar de sobrenome. A nossa literatura é ramo da portuguesa; pode-se consideré-la independente desde Gregério de Matos ou 6 apés Goncalves Dias e José de Alencar, segundo a perspectiva adotada. No presente livro, a atengio se volta para o infcio de uma literatura propriamente dita, como fendmeno de civilizacio, nao algo necessariamente diverso da portuguesa. Elas se unem to intimamente, em todo 0 caso, até meados do século XIX, que utilizo em mais de um asso, para indicar este fato, a expressao “literatura comum” (brasileira e portuguesa). Acho por isso legitimo que os historiadores e criticos da mae-patria incorporem Claudio ou Sousa Caldas, e acho legitimo inclui-los aqui; acho que o portuense Gonzaga é de ambos os lados, porém mais daqui do que de Id; e acho que o paulista Matias Aires é 86 de lé, Tudo depende do papel dos escritores na formacio do sistema. Mas 0 nacionalismo critico, herdado dos roménticos, pressupunha também, como ficou dito, que o valor da obra dependia do seu caréter representativo. Dum ponto de vista histérico, é evidente que 0 conteddo brasileiro foi algo positive, mesmo como fator de eficdcia estética, dando pontos de apoio & imaginagio e miisculos 4 forma. Deve-se, pois, consideré-lo subsfdio de avaliacdo, nos momentos estudados, lembrando que, apés. ter sido recurso ideolégico, numa fase de construgao e autodefinigéo, atualmente inviével como critério, constituindo neste sentido um calamitoso erro de visio. 0 presente livro tentou evitlo, evitando, ao mesmo tempo, estudar nas obras apenas oaspecto empenhado. Elas s6 podem ser compreendidas e explicadas na sua integridade artistica, em funcao da qual é permitido ressaltar este ou aquele aspecto. 28 3 PRESSUPOSTOS 0 fato de ser este um livro de histéria literdria implica a convicgao de que 0 ponto de vista histérico é um dos modos legitimos de estudar literatura, pressupondo que as obras se articulam no tempo, de modo a se poder discernir uma certa determinacdo na maneira por que so produzidas e incorporadas ao patriménio de uma civilizagio. Um esteticismo mal compreendido procurou, nos tiltimos decénios, negar validade a esta proposigao, — 0 que em parte se explica como réplica aos exageros do velho método histérico, que reduziu a literatura a episédio da investigacao sobre a sociedade, a0 tomar indevidamente as obras como meros documentos, sintomas da realidade social. Por outro lado, deve-se & confusio entre formalismo e estética; enquanto aquele se fecha na visio dos elementos de fatura como universo auténomo e suficiente, esta nao prescinde o conhecimento da realidade humana, psiquica e social, que anima as obras e recebe do escritor a forma adequada, Nem um ponto de vista histérico desejaria, em nossos dias, reduzir a obra aos fatores elementares. Deste modo sendo um livro de histéria, mas sobretudo de literatura, este procura aprender 0 fendmeno literdrio da maneira mais significativa e completa possivel, néo s6 averiguando o sentido de um contexto cultural, mas procurando estudar cada autor na sua integridade estética. E 0 que fazem, alids, os criticos mais conscientes, num tempo, como 0 nosso, em que a coexistencia e répida emergéncia dos mais variados critérios de valor e experimentos técnicos; em que 0 desejo de compreender todos os produtos do espirito, em todos os tempos e lugares, leva, fatalmente, a considerar o papel da obra no contexto histérico, utilizando este conhecimento como elemento de interpretacao e, em certos casos, avaliacao. A tentativa de focalizar simultaneamente a obra como realidade prépria e o contexto como sistema de obras, parecer ambiciosa a alguns, dada a forca com que se arraigou 0 preconceito do divércio entre histéria e estética, forma e contetido, erudigio e gosto, objetividade e apreciacao. Uma critica equilibrada nao pode, todavia, aceitar estas falsas incompatibilidades, procurando, ao contrario, mostrar que sdo partes de uma explicagdo tanto quanto posstvel total, que é 0 ideal do critico, embora nunca atingido em virtude das limitacdes individuais e metodolégicas. 29 Para chegar o mais perto possivel do designio exposto, é necessario um movimento amplo e constante entre o geral e o particular, a sintese e a andlise, a erudicao e 0 gosto. E necessdrio um pendor para integrar contradigées, inevitaveis quando se atenta, ao mesmo tempo, para o significado histérico do conjunto eo cardter singular dos autores. E preciso sentir, por vezes, que um autor e uma obra podem ser e nao ser alguma coisa, sendo duas coisas opostas simultaneamente, — porque as obras vivas constituem uma tensio incessante entre os contrastes do espirito e da sensibilidade. A forma, através da qual se manifesta o contetido, perfazendo com ele a expressio, é uma tentativa mais ou menos feliz ¢ duradoura de equilibrio entre estes contrastes. Mas, mesmo quando relativamente perfeita, deixa vislumbrar a contradicao e revela a fragilidade do equilt- brio, Por isso, quem quiser ver em profundidade, tem de aceitar o contraditério, nos pe- riodos e nos autores, porque, segundo uma frase justa, ele “é o préprio nervo da vida”. Por outro lado, se aceitarmos a realidade na minticia completa das suas discordancias e singularidades, sem querer mutilar a impressdo vigorosa que deixa, temos de renunciar 4 ordem, indispensdvel em toda investigacao intelectual, Esta s6 se efetua por meio de simplificagdes, redugdes ao elementar, & dominante, em prejuizo da riqueza infinita dos pormenores. £ preciso, entdo, ver simples onde é complexo, tentando o demonstrar que © contraditério é harménico. O espirito de esquema intervém, como forma, para traduzir a multiplicidade do real; seja a forma da arte aplicada 3s inspiragdes da vida, seja a da ciéncia, aos dados da realidade, seja a da critica, A diversidade das obras. E se quisermos reter 0 maximo de vida com 0 maximo de ordem mental, s6 resta a visio acima referida, vendo na realidade um universo de fatos que se propdem € logo se contradizem, resolvendose na coeréncia transitéria de uma unidade que sublima as duas etapas, em equilfbrio instével, Procurando sobretudo interpretar, este ndo é um livro de erudi¢ao, e 0 aspecto informativo apenas serve de plataforma as operagdes do gosto. Acho valiosos e necessirios 08 trabalhos de pura investigagao, sem qualquer propésito estético; a eles se abre no Brasil um campo vasto. Acho igualmente valiosas as elucubragdes gratuitas, de base intuitiva, que manifestam essa paixao de leitor, sem a qual ndo vive uma literatura. Aqui, todavia, nao se visa um pélo nem outro, mas um lugar eqitidistante e,a meu ver, mais favordvel, no presente momento, & interpretagao do nosso pasado literdrio. 30 4 O TERRENO E AS ATITUDES CRITICAS. Toda critica viva — isto é, que empenha a personalidade do critico e intervém na sensibilidade do leitor — parte de uma impressdo para chegar a um juizo, e a histérica ndo foge a esta contingéncia. Isto nao significa, porém, impressionismo nem dogmatismo, pois entre as duas pontas se interpoe algo que constitui a seara prdpria do eritico, dando validade ao seu esfor¢o e seriedade ao seu propésito: trabalho construtivo de pesquisa, informacio, exegese. Em face do texto, surgem no nosso espitito certos estados de prazer, tristeza, constatacio, serenidade, reprovacio, simples interesse. Estas impressdes sao prelimi- nares importantes; 0 critico tem de experimentélas e deve manifestélas, pois elas representam a dose necessdria de arbitrio, que define a sua visdo pessoal, O leitor sera tanto mais critico, sob este aspecto, quanto mais for capaz de ver, num escritor, 0 sew escritor, que vé como ninguém mais e opde, com mais ou menos discrepancia, a0 que os outros véem. Por isso, a critica viva usa largamente a intuicdo, aceitando e procurando exprimir as sugestdes trazidas pela leitura. Delas sairé afinal 0 juizo, que nao é julgamento puro e simples, mas avaliacao, — reconhecimento e definigao de valor. Entre impressio e juizo, trabalho paciente da elaboragéo, como uma espécie de moinho, tritura a impressao, subdividindo, filiando, analisando, comparando, a fim de que o arbitrio se reduza em beneficio da objetividade, e o juizo resulte aceitavel pelos leitores. A impressdo, como timbre individual, permanece essencialmente, transferindo-se a0 leitor pela elaboracdo que Ihe deu generalidade; e 0 orgulho inicial do critico, como leitor insubstituivel, termina pela humildade de uma verificacao objetiva, a que outros poderiam ter chegado, ¢ o irmana aos lugarescomuns do seu tempo. A critica propriamente dita consiste nesse trabalho analitico intermediario, pois os dois outros momentos sao de natureza estética ¢ ocorrem necessariamente, embora nem sempre conscientemente, em qualquer leitura. O critico é feito pelo esforco de compreender, para interpretar e explicar; mas aquelas etapas se integram no seu roteiro, que pressupde, quando completo, um elemento perceptivo inicial, um elemento intelec- tual médio, um elemento voluntario final. Perceber, compreender, julgar. Neste livro, 0 aparelho analitico da investigacdo é posto em movimento a servico da receptividade indt vidual, que busca na obra uma fonte de emocdo e termina avaliando o seu significado, 31 As teorias e atitudes criticas se distinguem segundo a natureza deste trabalho analitico; dos recursos e pontos de vista utilizados. Nao hé, porém, uma critica nica, mas varios caminhos, conforme o objeto em foco; ora com maior recurso 4 andlise formal, ora com atencdo mais aturada ao fatores. Querer reduzila ao estudo de uma destas componen- tes, ou qualquer outra, é erro que compromete a sua autonomia e tende, no limite, a destrufla em beneficio de disciplinas afins. Nos nossos dias, parece transposto 0 perigo de submissio ao estudo dos fatores basicos, sociais e psiquicos. Houve tempo, com efeito, em que 0 critico cedeu lugar ao socidlogo, ao politico, a0 médico, ao psicanalista. Hoje, o perigo vem do lado oposto; das pretensdes excessivas do formalismo, que importam, nos casos extremos, em reduzir a obra a problemas de linguagem, seja no sentido amplo da comunicagao simbdlica, seja no estrito sentido da lingua. As orientagdes formalistas ndo passam, todavia, do ponto de vista duma critica compreensiva, de técnicas parciais de investigacao; constituflas em método explicativo é perigoso e desvirtua os servicos que prestam, quando limitadas ao seu ambito. Nada melhor que o aprofundamento, que presenciamos, do estudo da metafora, das constan- tes estilisticas, do significado profundo da forma, Mas erigilo em critério basico é sintoma da incapacidade de ver 0 homem é as suas obras de maneira una e total. A critica dos séculos XIX e XX constitui uma grande aventura do espirito, ¢ isto foi possfvel gracas & intervencio da filosofia e da historia, que a libertaram dos gramaticos e retores, Se esta operagio de salvamento teve aspectos excessivos e acabou por Ihe comprometer a autonomia, foi ela que a erigiu em disciplina viva. O imperialismo formalista significaria, em perspectiva ampla, perigo de regresso, acorrentando-a de novo a preocupagdes superadas, que a tornariam especialidade restrita, desligada dos interesses fundamentais do homem. 32 5 OS ELEMENTOS DE COMPREENSAO Quando nos colocamos ante uma obra, ou uma sucessdo de obras, temos varios niveis possiveis de compreensio, segundo o Angulo em que nos situamos. Em primeiro lugar, os fatores externos, que a vinculam ao tempo e se podem resumir na designaco de sociais; em segundo lugar o fator individual, isto é, 0 autor, o homem que a intentou e realizou, ¢ estd presente no resultado; finalmente, este resultado, o texto, contendo os elementos anteriores e outros, especificos, que os transcendem e nao se deixam reduzir a eles. Se resistirmos ao fascinio da moda e adotarmos uma posigéo de bom senso veremos que, num livro de histéria literdria que nao quiser ser parcial nem fragmentdrio, 0 critico precisa referir-se a estas trés ordens de realidade, ao mesmo tempo. E licito estudar apenas as condigées sociais, ou as biografias, ou a estrutura interna, separadamente; nestes casos, porém, arriscamos fazer tarefa menos de critico, do que de socidlogo, Psicélogo, bidgrafo, esteta, lingiiista. A critica se interessa atualmente pela carga extra-literaria, ou pelo idioma, na medida ‘em que contribuem para 0 seu escopo, que é o estudo da formacdo, desenvolvimento e atuagdo dos processos literarios. Uma obra é uma realidade auténoma, cujo valor esta na formula que obteve para plasmar elementos naoliterdrios: impresses, paixdes, idéias, fatos, acontecimentos, que sdo a matéria-prima do ato criador. A sua importancia quase nunca é devida a circunstancia de exprimir um aspecto da realidade, social ou individual, mas 4 maneira por que o faz. No limite, o elemento decisivo é 0 que permite compreendéda e aprecié-la, mesmo que nao soubéssemos onde, quando, por quem foi escrita. Esta autonomia depende, antes de tudo, da elogiiéncia do sentimento, pene- tracdo analitica, forca de observacio, disposicao das palavras, selecdo e invencdo das imagens; do jogo de elementos expressivos, cuja sintese constitui a sua fisionomia, deixando longe os pontos de partida nac-literarios. Tomemos o exemplo de trés pais que, lacerados pela morte dum filho pequeno, recorrem ao verso para exprimir a sua dor: Borges de Barros, Vicente de Carvalho, Fagundes Varela. Pelo que sabemos, o sofrimento do primeiro foi o mais duradouro; admitamos que fossem iguais os trés, Se lermos todavia os poemas resultantes, ficaremos insensiveis e mesmo aborrecidos com “Os Tamulos”, medianamente comovidos com o 33 fo “Pequenino morto”, enquanto 0 “CAntico do Calvario” nos faz estremecer a cada leitura, arrastados pela sua forga magica. E que, sendo obras literdrias, nio documentos biogréficos, a emocdo, neles, é elemento essencial apenas como ponto de partida; 0 ponto de chegada é a reacdo do leitor, e esta, tratandosse de leitor culto, sé é movida pela eficdcia da expressdo. Os trés pais sio igualmente dignos de piedade, do ponto de vista afetivo; literariemente o poema do primeiro é nulo; 0 do segundo, mediano no seu patético algo declamatério; o do terceiro, admiravel pela solugao formal. Este exemplo serve para esclarecer 0 critério adotado no presente livro isto é: a literatura é um conjunto de obras, nao de fatores nem de autores. Como, porém, o texto ¢ integracao de elementos sociais e psiquicos, estes devem ser levados em conta para interpretdo, o que apenas na aparéncia contesta o que acaba de ser dito. Com efeito ao contrario do que pressupdem os formalistas, a compreensdo da obra nao prescinde a consideragao dos elementos inicialmente nao-iterarios. O texto nao os anula, ao transfiguré-los e, sendo um resultado, s6 pode ganhar pelo conhecimento da realidade que serviu de base a sua realidade prépria. Por isso, se 0 entendimento dos fatores é desnecessdrio para a emogdo estética, sem o seu estudo nao hé critica, operacao, segundo vimos, essencialmente de andlise, sempre que pretendemos superar impressionismo. Entende-se agora por que, embora concentrando o trabalho na leitura do texto e utilizando tudo mais como auxilio de interpretacdo, n&o penso que esta se limite a indicar a ordenacao das partes, o ritmo da composigdo, as constantes do estilo, as imagens, fontes, influéncias. Consiste nisso e mais em analisar a visio que a obra exprime do homem, a posicdo em face dos temas, através dos quais se manifestam o espirito ou a sociedade. Um poema revela sentimentos, idéias, experiéncias; um romance revela isto mesmo, com mais amplitude e menos concentracao. Um e outro valem, todavia, nao por copiar a vida, como pensaria, no limite, um critico nao-literario; nem por criar uma ‘expressao sem contetido, como pensaria também no limite, um formalista radical, Valem porque inventam uma vida nova, segundo a organizagio formal, tanto quanto possivel nova, que a imaginagao imprime ao seu objeto. Se quisermos ver na obra o reflexo dos fatores iniciais, achando que ela vale na medida em que os representa, estaremos errados. O que interessa é averiguar até que Ponto interferiram na elaboracao do contetido humano da obra, dotado da realidade prépria que acabamos de apontar. Na tarefa critica ha, portanto, uma delicada operacao, consistente em distinguir 0 elemento humano anterior 4 obra e o que, transfigurado pela técnica, representa nela 0 contetido, propriamente dito. Dada esta complexidade de tipo especial, € ridiculo despojar 0 vocabulério critico das express6es indicativas da vida emocional ou social, contanto que, ao utilizé-las, ndo pensemos na matéria-prima, mas em sentimentos, idéias, objetos de natureza diferente, que podem ser mais ou menos parecidos com os da vida, mas em todo caso foram redefinidos a partir deles, ao se integrarem na atmosfera propria do texto, Quando falamos na ternura de Casimiro de Abreu, ou no naturismo de Bernardo Guimaraes, 34 nao queremos, em principio dizer que o homem Casimiro foi terno, ou amante da natureza o homem Bernardo, pois isso importa secundariamente. Queremos dizer que na obra deles hd uma ternura e um naturismo construfdos a partir da experiéncia e da imaginacdo, comunicados pelos meios expressivos, e que podergo ou nao corresponder a sentimentos individuais, Para o critico, desde que existam literariamente, sao forjados, a0 mesmo titulo que a coragem de Peri ou as astuicias do Sargento de Milicias. Interessando definir, na obra, os elementos humanos formalmente elaborados, no importam a veracidade e a sinceridade, no sentido comum, ao contrario do que pensa 0 leitor desprevenido, que se desilude muitas vezes ao descobrir que um escritor avarento celebrou a caridade, que certo poema exaltadamente erdtico provém dum homem casto, que determinado poeta, delicado e suave, espancava a mae. Como disse Proust, 0 problema ético se coloca melhor nas naturezas depravadas, que avaliam no drama da sua consciéncia a terrivel realidade do bem e do mal. Em suma, importa no estudo da literatura o que o texto exprime. A pesquisa da vida edo momento vale menos para estabelecer uma verdade documentéria, freqiientemente inutil, do que para ver se nas condigdes do meio e na biografia ha elementos que esclaream a realidade superior do texto, por vezes uma gloriosa mentira, segundo 05 padrdes usuais, Jé se vé que, ao lado das consideragdes formais, so usadas aqui livremente as técnicas de interpretacio social e psicolégica, quando julgadas necessérias ao entendi- mento da obra; este é 0 alvo, e todos os caminhos sdo bons para alcancé+lo, revelando-se a capacidade do critico na maneira por que os utiliza, no momento exato ¢ na medida suficiente. Ha casos, por exemplo, em que a informagdo biogréfica ajuda a compreender © texto; por que rejeitéla, estribado em preconceito metodolégico ou falsa pudicicia formalista? H4 casos em que ela nada auxilia; por que recorrer obrigatoriamente a ela? 35, 6 CONCEITOS No arsenal da historia literaria, dispomos, para 0 nosso caso, de conceitos como: periodo, fase, momento; geracdo, grupo, corrente; escola, teoria, tema; fonte, influéncia. Embora reconheca a importéncia da nogdo de periodo, utilizet.a aqui incidentemente e alendendo a evidencia estética e hist6rica, sem preocupar-me com distingdes rigorosas. Isso, porque o intuito foi sugerir, tanto quanto possivel, a idéia de movimento, passagem, comunicacdo, — entre fases, grupos e obras; sugerir uma certa labilidade que permitisse a0 leitor sentir, por exemplo, que a separacio evidente, do ponto de vista estético, entre as fases neoclissica € roméntica, € contrabalancada, do ponto de vista histérico, pela sua unidade profunda. A diferenga entre estas fases, procuro somar a idéia da sua continuidade, no sentido da tomada de consciéncia literdria e tentativa de construir uma literatura. Do mesmo modo, embora os escritores se disponham quase naturalmente por geracdes, no interessou aqui utilizar este conceito com rigor nem exclusividade. Apesar de fecundo, pode facilmente levar a uma visio mecénica, impondo cortes transversais numa realidade que se quer apreender em sentido sobretudo longitudinal. Por isso, sobrepus ao conceito de geracdo 0 de tema, procurando apontar ndo apenasa sua ocorréncia, num dado momento, mas a sua retomada pelas geracdes sucessivas, através do tempo. Isso conduz ao problema das influéncias, que vinculam os escritores uns aos outros, contribuindo para formar a continuidade no tempo e definir a fisionomia propria de cada momento. Embora a tenha utilizado largamente e sem dogmatismo, como técnica auxiliary, é preciso reconhecer que talvez seja o instrumento mais delicado, falivel e perigoso de toda a critica, pela dificuldade em distinguir coincidéncia, influéncia e plagio, bem como a impossibilidade de averiguar a parte da deliberacao e do inconsciente, Além disso, nunca se sabe se as influéncias apontadas sao significativas ou principais, pois hd sempre as que nao se manifestam visivelmente, sem contar as possiveis fontes ignoradas (autores desconhecidos, sugestes fugazes), que por vezes sobrelevam as mais evidentes. Ainda mais sério € 0 caso da influéncia poder assumir sentidos variaveis, requerendo tratamento igualmente diverso. Pode, por exemplo, aparecer como transposigdo direta mal assimilada, permanecendo na obra ao modo de um corpo estranho de interesse critico secundario. Pode, doutro lado, ser de tal modo incorporada a estrutura, que adquire um significado organico e perde o cardter de empréstimo; tomé-la, entdo, como 36 | | i | ' | | | | ! } | influéncia, importa em prejuizo do seu caréter atual, e mais verdadeiro, de elemento préprio de um conjunto orginico. Estas consideracdes exprimem um escrupulo e uma atitude, conduzindo a um dos conceitos basicos do presente livro: que 0 eixo do trabalho interpretativo é descobrir a coeréncia das produgées literdrias, seja a interna, das obras, seja a externa, de uma fase, corrente ou grupo, Por coeréncia, entende-se aqui a integracdo orginica dos diferentes elementos fatores, (meio, vida, idéias, temas, imagens, etc.), formando uma diretriz, um tom, um conjunto, cuja descoberta explica a obra como férmula, obtida pela elaboragio do escritor. E a adesdo reciproca dos elementos e fatores, dando lugar a uma unidade superior; mas nao se confunde com a simplicidade, pois uma obra pode ser contraditéria sem ser incoerente, se as suas condicdes forem superadas pela organizacao formal. No nivel do autor, ela se manifesta através da personalidade literdria, que nao é necessariamente o perfil psicolégico, mas o sistema de tragos afetivos, intelectuais e morais que decorrem da anilise da obra, e correspondem ou nao a vida, — como se viu ha pouco ao mencionar a ternura de Casimiro. No nivel do momento, ou fase, ela se manifesta pela afinidade, ou cardter complementar entre as obras, conseqiiéncia da relativa articulagio entre elas, originando o estilo do tempo, que permite as generalizacdes criticas, Por isso, no interessou aqui determinar rigorosamente as condicées histéricas, — sociais, econémicas, politicas, - mas apenas sugerir 0 que poderiamos chamar de situago temporal ou seja, a sintese das condi¢ées de interdependéncia, que estabelecem a fisionomia comum das obras, e sio realidades de ordem literdria, nas quais se absorvem e sublimam os fatores do meio. Accoeréncia é em parte descoberta pelos processos analiticos, mas em parte inventada pelo critico, ao lograr, com base na intuigdo e na investigacao, um tracado explicativo. Um, nio o tragado, pois pode haver varios, se a obra é rica. Todos sabem que cada geracdo descobre ¢ inventa o seu Géngora, o seu Stendhal, o seu Dostoievski. Por isso, hd forcosamente na busca da coeréncia um elemento de escolha e risco, quando 0 critico decide adotar os tracos que isolou, embora sabendo que pode haver outros, Num periodo, comeca por escolher os autores que Ihe parecem representativos; os autores, as obras que melhor se ajustam ao seu modo de ver; nas obras, os temas, imagens, tracos fugidios que o justificam. Neste processo vai muito da sua coerancia, a despeito do esforco e objetividade. Sob este aspecto, a critica é um ato arbitrdrio, se deseja ser criadora, ndo apenas registradora. Interpretar é, em grande parte, usar a capacidade de arbitrio; sendo o texto uma pluralidade de significados virtuais, € definir 0 que se escolheu, entre outros. A este arbitrio 0 critico junta a sua linguagem prépria, as idéias e imagens que exprimem a sua visdo, recobrindo com elas 0 esqueleto do conhecimento objetivamente estabelecido. 37 CAPITULO I RAZAO, NATUREZA, VERDADE 1. TRACOS GERAIS. 2. RAZAO E IMITACAO 3. NATUREZA E RUSTICIDADE 4, VERDADE E ILUSTRACAO 5. A PRESENCA DO OCIDENTE, 1 TRACOS GERAIS © momento decisive em que as manifestacdes literdrias vio adquirir, no Brasil, caracteristicas organicas de um sistema, é marcado por trés correntes principais de gosto € pensamento: 0 Neoclassicismo, a Ilustracio, o Arcadismo. Frequentemente elas se misturam e, embora predomine ora uma, ora outra, conforme © setor, autor ou momento considerado, é a sua reunido que caracteriza o periado, que poderia ser denominado segundo qualquer uma delas. Neste livro, as trés designacées serdo usadas conforme o aspecto referido, preferindo-se para 0 conjunto, a designacao tradicional de Arcadismo, por ser menos técnica, ficando subentendido que engloba as demais, sempre que no houver ressalva expressa. Neoclassicismo € termo relativamente novo em nossa critica, nesse contexto, e nos veio dos portugueses, que por sua vez o tomaram aos espanhdis. Estes e os ingleses costumam designar assim a imita¢do do Classicismo francés, verificada em toda a Europa no século XVIII. Na literatura comum (brasileira e portuguesa) 0 seu emprego é util, se levarmos em conta que o movimento da Arcédia Lusitana, a partir da doutrinagao de Verney, teve por idéia-forca 0 combate ao Cultismo. Nessa empresa, 0s reformadores se inspiraram na codificagao de Boileau, procuraram redefinir a imitagio direta dos Gregos © romanos, sobretudo Tedcrito, Anacreonte, Virgilio, Hordcio, e tentaram restabelecer varios padres do perfodo por exceléncia classico na literatura portuguesa, 0 século XVI, promovendo, sob muitos aspectos, um verdadeiro Neoquinhentismo. E af estdo trés derivacdes capazes de justificar a etiqueta neoclassica, que tem a vantagem de marcar a ligacdo com 0 movimento afim da literatura espanhola. Por Ilustracdo, entende-se 0 conjunto das tendéncias ideolégicas préprias do século XVIII, de fonte inglesa e francesa na maior parte: exaltagdo da natureza, divulgagio apaixonada do saber, crenca na melhoria da sociedade por seu intermédio, confianca na ago governamental para promover a civilizacao e o bem-estar coletivo, Sob o aspecto filoséfico, fundem-se nela racionalismo e empirismo; nas letras, pendor didético e ético, visando empenhé-las na propagacio das Luzes!, 1. Prefiro flustracdo a Huminismo, muito usado em nossa lingua, para evitar confusio com o movimento mistico assim designado, que acorre contemporaneamente. 41 A designagdo Arcadismo é menos rica e significativa, devendo-se &influéncia dos italianos, que reagiram contra 0 maneirismo nas agremiagdes denominadas Arcédias, cuja teoria poética nos atingiu pela influéncia de Muratori ¢ a pratica de seu poeta maximo, Metastasio. Ela engloba os tracos ilustrados, e se tivermos a preocupagao de nao restringia 4 convencao pastoral, que evoca imediatamente, ainda ¢ melhor que as outras, dado o seu sentido histérico, pois, como se sabe, 0 movimento renovador partiu, em Portugal, da Arcadia Lusitana (1756). A sua grande vantagem € que, sendo um nome convencional, permite englobar os outros dois aspectos principais do movimento sem suprimir a idéia de outros, como as sobrevivéncias maneiristas, que persistem sobretudo gracas 4 moda bucdlica. Parece, com efeito, algo forcado chamar neoclissico a um periodo onde Marilia evolui com os seus ademanes caprichosos, onde Silva Alvarenga traga as volutas amaneiradas dos rondés, e que alids se articula como o Barroco de Minas e do Rio. Considerando, pois, que ha nele forte lastro de maneirismo, e a aspirada naturalidade anticultista € freqiientemente alcangada pelo Rococé, nao o Classico, é bom conservar a velha etiqueta nos casos em que for preciso recorrer a uma designacio geral, utilizando livremente as outras quando se tratar das componentes que elas exprimem. Neste capitulo, procurar-se-d analisar e caracterizar esse periodo complexo, jogando livremente com os trés conceitos e tentando ver a que realidades correspondem no mundo das idéias e teorias literdrias. A tarefa nao é facil, e pode servir de exemplo da influéncia que as mudancas de perspectiva exercem sobre a conceituacao dos periodos. Com efeito, a situacao tradi- cional do século XVIII na literatura foi desarticulada, em nosso tempo, gracas a dois novos focos de interesse: de um lado, a revalorizagao do Barroco, que levou a pesquisar nele as sobrevivéncias de maneirismo e atenuar 0 aspecto classico; este sofreu nova atenuagdo gracas a0 conceito de Pré-romantismo, que localizou nele os germens da literatura do século XIX. Puxado dos dois lados, pouco sobraria de especifico, sobretudo na literatura comum, onde o Romantismo inicial constitui, em parte, desenvolvimento de premissas liricas do século XVIII; e onde a presenga absorvente dos quinhentistas, sobretudo Camées, garante certa semelhanca entre ele e 0 século XVII, ambos dependentes da imitacdo grecolatina, do petrarquismo, da estética aristotélica horaciana, Além do mais, a falta de genialidade dos autores contribui para esbater, nele, o relevo préprio, que todavia existe e se procurard salientar aqui. Na literatura comum, a sua férmula seria mais ou menos a seguinte: Arcadismo ~ Classicismo francés + heranca grecolatina + tendéncias setecentistas. Estas variam de pals para pals mas compreendem, em geral, como vimos, 0 culto da sensibilidade, a (é na razao e na ciéncia, 0 interesse pelos problemas sociais, podendo-se talvez reduzi-las 8 seguinte expressdo: o verdadeiro é o natural, o natural é 0 racional. A literatura seria, conseqiientemente, expresso racional da natureza, para assim manifestar a verdade, buscando, & luz do espirito moderno, uma “Itima encamacao da mimesis aristotélica. Foi este 0 padrao ideal, o arquétipo a que se podem referir as varias manifestagdes particulares, e a cuja investigacdo convém proceder, tomando como ponto de referencia 0 trés grandes conceitos:chave mencionados: razdo, natureza, verdade. 42 | 2 RAZAO E IMITACAO Nao esquecamos que a idéia-forca do Arcadismo portugués (de que o brasileiro é um aspecto) foi polémica: tratava-se de opor; dai ter sido um movimento eminentemente erftico, flado de preferéncia no discernimento, desconfiado em parte da inspiragio, ou “furor poético”, como vem nos tratadistas. ‘Tis hard to say if greater want of skill Appear in writing or in judging ill, escreveu 0 grdo-padre do neoclassicismo inglés, ajuntando: But of the two, less dang'rous is th’offence To tire our patience than mislead our sense”. Conseqientemente, prezaram-se na poesia aqueles valores atribuidos de ordinario & prosa e que haviam sido, mesmo nela, obliterados por mais de um século de intempe- ranga verbal: clareza, ordem Iégica, simplicidade, adequagdo a0 pensamento. Esta reconquista da naturalidade da feigdes de cldssico ao periodo, pois se liga a uma estética segundo a qual a palavra deve exprimir a ordem natural do mundo e do espfrito. Em Portugal o Arcadismo integra um amplo movimento de renovacdo cultural, paralelo a certas iniciativas pombalinas. Homens como Verney e Ribeiro Sanches queriam introduzir na patria o novo espirito filoséfico, impregnado das orientacdes metodoldgicas do racio- nalismo e do pés-racionalismo anglo-francés. Em literatura, 4 maneira, menos de Boileau, invocado pelo primeiro, quanto de Fontenelle, do seco Houdart de La Motte — modernos, seus antagonistas, — propugnavam uma poesia légica, sem artificios nem surpresas mar- cantes: poesia envergonhada e timida em face da prosa, 4 qual pedia desculpas pelo que nela ainda restasse de poético. Boileau, nas Reflexdes sobre Longino, da como test da 2.“E dificil dizer onde aparece maior falta de competéncia: no escrever mal ou no julgar errado; entretanto, entre os dois, é menos perigosa a injria de cansar a nossa paciéncia do que a de desorientar 0 nosso discer- nimento”. Pope, An Essay on Criticism, pig.247. Notes, a titulo de curiosidade, que o Ensaio sobre @ Cri tica, na traducéo do Marqués de Aguiar, foi dos primeiros livros editados na Brasil pela Imprensa Régia (180). 43 imagem a sua viabilidade ante expressées como — “por assim dizer”, ou “se assim ouso falar”, mediante as quais se suprimiriam ousadias indomaveis pelo freio da légica... La Motte acusara Racine de impropriedade e exagero num verso de Fedra, onde narra 0 aparecimento do monstro que matou Hipélito: Le flot qui Uapporta recule épouvanté. Boileau retruca que a imagem é legitima, como se pode ver acrescentando mental- mente — “pour ainsi dire”; e desta maneira (deveria completar) justificando-a perante a prosa?, Por estas e outras, a literatura francesa precisava de um movimento exatamente ‘oposto ao racionalismo estético; movimento que restaurasse algo daquela fantasia irregular dos preciosos e burlescos, banida pela regularidade cldssica do “século de Luis XIV". Noutras partes, porém, como a Italia e Portugal, essa dieta magra vinha corrigir os excessos de um século destemperado, que dera a certa altura produtos excelentes mas descaira, em seguida, na orgia verbal. Assim como, cento e poucos anos depois, Verlaine exigiria, em meio as rotundidades plisticas do Parnaso, que a poesia “retomasse 4 musica o que lhe pertencia”, os drcades se empenhavam nas duas peninsulas em retomar a prosa 0 que nao menos legitimamente pertence a poesia: decoro e dignidade da expresso. Tais idéias constituem o ponto de referéncia da teoria literéria do século XVIII em quase toda a Europa. Em Portugal, embora come¢assem a ser conhecidas desde os fins do século XVII e inicio do XVIII, em torno de homens como 0 Conde da Ericeira, tradu- tor da Arte Poética de Boileau, sé ganharam forca atuante pelos meados deste, gracas a0 movimento da Ilustragao, capitaneado por Verney, por intermédio de quem passa- ram ao grupo da Arcadia Lusitana, — seja na teoria de Candido Lusitano, seja na pré- tica dos poetas. Verney No Verdadeiro Método de Estudar, como se sabe, hé trés cartas dedicadas aos estudos literdrios: a 5* e 6" A oratéria, a 7%, que nos interessa, & poesia. Nela, Verney se encontra muito préximo dos tedricos franceses posteriores a Boileau, que por um lado despoetizaram ao maximo a teoria poética, mas insistiram por outro, alguns deles, no gosto como critério de apreciacao, possibilitando desta forma a introdugdo de um ponto de vista mais pessoal, em contrapeso & aplicagio estrita das normas, 3. Boileau: Réflerions critiques sur quelques passages du rhéteur Longin, etc; Oeuvres, Tomo III, pags. 116 a 121, Ad

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