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RELIGIOES DO MUNDO Nossas Grandes Tradigées de Sabedoria Titulo do original: The World’ Religions. Copyright © 1991 Huston Smith. Copyright original © 1958 Huston Smith; copyright renovado em 1986 por Huston Smith, Publicado mediante acordo com HarperSanFrancisco, uma divisio da Harper Collins Publishers, Inc. Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida ou usada de qualquer forma ou por qualquer meio, eletronico ou mecanico, inclusive fotocdpias, grava- des ou sistema de armazenamento em banco de dados, sem permissao por escrito, exceto nos casos de trechos curtos citados em resenhas criticas ou artigos de revistas. Tlustracao da capa: A Regra de Ouro, de Norman Rockwell, reproduzido com permissao da Familia de Norman Rockwell. Copyright © 1961 Norman Rockwell Family Trust. © primeito namero & esquerda indica a edicdo, oa reedisao, desta obra, A primeira dezena A direita indica o ano em que esta edicio, ou reedigao, foi publicada Edigao 3-45-6-7-89-10 Direitos de traducao para o Brasil adquiridos com exclusividade pela EDITORA PENSAMENTO-CULTRIX LTDA. Rua Dr. Mario Vicente, 368 — 04270-000 — Sao Paulo, SP Fone: 272-1399 — Fax: 272-4770 E-mail: pensamento@cultrix.com.br hup:/www pensamento-cultrix.com br que se reserva a propriedade literdria desta tradugao. Impresso em nossas oficinas graficas. Sumdrio 3 15 17 Prefacio........... Introdugio ..... Agradecimentos. 19 I. Ponto de partida.. Notas IL. Hinduismo............ O que as pessoas querem O que as pessoas realmente querem O além interior Quatro caminhos para a meta O caminho para Deus por meio do conhecimento O caminho para Deus por meio do amor caminho para Deus por meio do trabalho © caminho para Deus por meio dos exercicios psicofisicos Os estagios da vida A posigao na vida “Tu, diante de quem todas as palavras recuam” A maturidade no Universo O mundo — bem-vindos e adeus Muitos caminhos para o mesmo topo 29 Sugestées de leitura Notas ILL. Budismo... O homem que despertou O sabia silenci O santo rebelde 91 10 / As Religides do Mundo As quatro nobres verdades O caminho dctuplo Conceitos budistas basicos Grande jangada, pequena jangada O segredo da flor O raio diamantino A imagem da travessia A confluéncia de budismo e hinduismo na India Sugestdes de leitura Notas IV. Confucionismo 0.0.0.0... . . 155 O primeiro mestre problema enfrentado por Confticio Respostas rivais A resposta de Confitcio O conteudo da tradigao deliberada O projeto confucionista Ftica ou religiao? Impacto na China Sugestoes de leitura Notas Y. Taoismo O velho mestre Os trés significados do Tao Trés abordagens ao poder ¢ os taoismos que se seguiram Poder eficiente: O taoismo filosofico Poder aumentado: Higiene e ioga taoistas Poder delegatério: O taoismo religioso A mistura dos poderes Quietude criativa Outros valores taoistas Conclusao Sugestoes de leitura Notas 193 VL. Islamismo ... © pano de fundo O Selo dos Profetas A fuga que levou a vitoria © milagre permanente .. 216 Sumario / UL Conceitos teolégicos basicos Os cinco pilares Ensinamentos sociais O sufismo Para onde vai o Isla? Sugestoes de leitura Notas VII. Judaismo.. Significado em Deus Significado na criagao Significado na existéncia humana Significado na Historia Significado na moralidade Significado na justica Significado no sofrimento Significado no messianismo A ssantificacao da vida A revelagao O povo eleito Israel Sugestoes de leitura Notas VL. Cristianismo OJesus historico O Cristo da fe O fim e 0 comeco As boas novas O corpo mistico de Cristo A mente da Igreja O catolicismo romano A Igreja Ortodoxa O protestantismo Sugestoes de leitura Notas IX. As religides tribais.. A experiéncia australiana Oralidade, lugar e tempo O mundo tribal A mente simbolica Introducdo ‘os anos que se passaram desde que este livro apareceu pela primeira vez, Ne pessoas ficaram mais sensiveis aos vicios de género na linguagem; por isso mudei o titulo original, As Religides do Homem, para As Religides do Mundo. Nenhum livro conseguiria incluir todas as religices do mundo. Aqui, as princi- pais religides — conforme determinado por sua longevidade, impacto histéri- co e ntimero de adeptos nos dias de hoje — sdo tratadas individualmente; jé as religides menores, tribais, sio consideradas como classe. Alem de ter passado para uma linguagem inclusiva em termos de genero, acrescentei uma nota sobre o sikhismo e secdes sobre 0 budismo tibetano e 0 sufismo (dimensao mistica do Isla). Inseri uma secdo sobre “O projeto confu- cionista”; retrabalhei consideravelmente o material taoista; e o capitulo sobre o judaismo inclui agora uma secao sobre o messianismo, trabalhando com mais detalhes o Jesus historico. Também acrescentei um breve capitulo de conclusao sobre as tradicdes orais. Isso, em parte, é para reconhecer que as religides histéricas cobertas pe- lo livro chegaram mais tarde; pois na maior parte da historia humana, a reli, foi vivida no modo tribal e praticamente atemporal. Um forte motivo de apoio, porém, ¢ permitir que afirmemos nosso passado humano. As décadas recentes testemunharam um renascimento do interesse pelo feminino e pela Terra, preo- cupacgées que as religides histéricas (com excecao do taofsmo) tenderam a per- der de vista, mas que foram conservadas nas religides tribais. © tom um tanto informal — embora nao leviano — deste livro deriva do fato de que ele evoluiu a partir de uma série televisiva da rede que hoje € 0 Pu- blic Broadcasting System. Ao mencionar isso, quero mais uma vez reconhecer minha divida de gratidio com Mayo Simon, meu produtor, por todo 0 sucesso que meu livro alcanga no campo das comunicagées. A meta do livro continua a sera mesma que estabelecemos para aquela série: levar leigos inteligentes até o micleo das grandes fés mundiais, até o ponto em que eles possam ver, ¢ mesmo sentir, como e por que essas fés guiam e motivam a vida daqueles que as seguem. Huston Smith Berkeley, California Dezembro de 1998 20_/_As Religides do Mundo desta manha, e até as 11 da noite passarao a maior parte do tempo sentados imé- veis na posicao do létus, buscando absorcdo intensa para sondarem a natureza budica que repousa no centro de seu ser. Como €é estranho esse companheirismo dos buscadores de Deus em todas as terras, elevando suas vozes, das mais diferentes maneiras possiveis, até o Deus criador de toda a vida. Como soarao elas, vistas de cima? Uma babel con- fusa ou vozes se misturando em estranha e etérea harmonia? Sera que uma fé lidera as outras ou as muitas partes se distribuem em contraponto e antifona, ou mesmo formam um coro a plenos pulmées? Nao temos como saber. Tudo o que podemos fazer € tentar ouvir cada voz, com cuidado e plena atengao, quando ela se dirige ao divino. Essa escuta define 0 propésito deste livro. Seria 0 caso de perguntar se 0 propésito ndo é amplo demais. As religides que nos propomos a considerar cir- cundam o mundo. Suas historias remontam a milhares de anos e elas, hoje, mo- tivam mais pessoas do que antes. Seria possivel ouvi-las seriamente dentro dos limites de um simples livro? A resposta € sim, porque estaremos ouvindo temas bem definidos. Eles de- vem ser ouvidos no principio, para que os quadros que emergem destas pagi- nas nao sejam distorcidos. 1, Este nao é um livro didatico sobre a histéria das religides. Isso explica a escassez de nomes, datas ¢ influencias sociais. Ha livros wteis que se concen- tram nesse tipo de material. Eu poderia ter enchido este livro com fatos e mi- meros, mas nao é minha intengao fazer o que outros ja fizeram. Os fatos hist6- ricos ficam aqui limitados ao minimo necessario para localizar no espaco € no tempo as idéias nas quais me concentro. Fiz todo o possivel para manter a eru- dicdo fora de cena — ela da firmeza aos alicerces, mas como andaime obscure- ceria as estruturas que examinamos. 2. Mesmo na esfera dos significados, este livro nao tenta dar uma visao to- tal das religides consideradas, pois cada uma abriga diferencas demasiado nu- merosas para serem delineadas em um simples capitulo. Basta pensarmos no cristianismo. Os cristéos ortodoxos rezam em catedrais adornadas, enquanto os quacres consideram até mesmo 0 campanario uma profanacdo. Hé misticos cris- taos e cristaos que rejeitam o misticismo. Ha cristaos testemunhas-de-jeova e cristdos unitarios. Como seria possivel dizer, num simples capitulo, o que o cris- tianismo significa para todos os cristaos? A resposta, claro, € que nao seria possivel — a selecdo ¢ inevitavel. A ques- 1&0 que se impde a um autor nao é a de selecionar entre opinides diferentes; a questao € quantas apresentar e quais. Neste livro, a primeira questao € respon- dida economicamente; tento fazer justica as varias perspectivas, em vez de ten- tar cataloga-las todas. No caso do Isla, implica ignorar as divisoes sunita/xiita e tradicionalista/modernista, embora observando diferentes atitudes para com 0 sufismo. No budismo, diferencio as tradigoes hinayana, mahayana e vajrayana, 24 /_AsReligides do Mundo voltando a pegar a estrada no estudo e na imaginacdo quando nao na viagem real. Se é possivel ter saudades de casa quando a casa é 0 mundo, mesmo de lu- gares onde nunca estivemos e€ suspeitamos que nunca estaremos, entao este li- vro nasceu desse sentimento de saudade. Vivemos em um século fantastico. Ponho de lado as incriveis descobertas da ciéncia e 0 fio da navalha, entre ruina e realizado, ao qual elas nos empur- raram, para falar da nova situacao entre os povos. As terras de todo o planeta se tornaram nossas vizinhas, a China esta do outro lado da rua, o Oriente Médio est junto ao nosso quintal. Jovens com mochilas as costas estao em toda par- te; € aqueles que ficam em casa so expostos a um desfile infindavel de livros, documentarios e visitantes do exterior. Ouvimos dizer que Leste e Oeste estao se encontrando, mas isso é dizer pouco. Eles estao sendo lancados um sobre 0 outro, arremessados com a forga de étomos, velocidade de jatos, a inquietude de mentes impacientes para aprender os caminhos uns dos outros. Quando os historiadores do futuro estudarem nosso século XX, 0 que mais lhes chamara a atengao nao serao as viagens espaciais ow a libertagao da energia nuclear, e sim a €poca em que os povos do mundo comegaram a levar a sério uns aos outros. A mudanga que essa nova situacao exige de todos nés — nds que fomos su- bitamente catapultados de cidade e pais para um palco mundial - é perturba- dora. Ha 2.500 anos foi preciso que um homem excepcional como Didgenes ex- clamasse: “Nao sou um ateniense ou um grego, mas um cidadao do mundo.” Hoje, todos nés precisamos lutar para tornar nossas as palavras de Diogenes. Chegamos ao ponto da Hist6ria em que a pessoa que se considerar s6 japonesa ‘ou norte-americana, s6 oriental ou ocidental, seré apenas meio humana. Sua ou- tra metade, que bate em conjunto com o pulso de toda a humanidade, ainda te- ré de nascer. Tomando de empréstimo uma imagem de Nietzsche, todos nés fomos cha- mados a nos tornar Dangarinos Cosmicos que nao se apoiam pesadamente num unico ponto, mas giram e saltam com leveza de uma posicdo para outra. Como Cidadao do Mundo, o Dancarino Césmico sera um filho auténtico da cultura que o gerou, embora se mantenha intimamente ligado a todas as culturas. Suas raizes na familia e na comunidade serao profundas, mas, nas profundezas, atin- girao o veio d’4gua comum a toda a humanidade. Pois nao € 0 dancarino tam- bém humano? Se ele consegue ver 0 que interessou aos outros, nao se interes- sara também? E uma perspectiva excitante. Suavizar as divisdes induzira cruzamentos que as vezes produzem hibridos, mas, na maioria dos casos, enri- quecem as espécies e mantém seu vigor. Os motivos que nos impelem para uma compreenséo mundial sdo varia- dos. Certa vez fui transportado de caga-bombardeiro até uma base da Forca Aé- rea para fazer uma palestra aos oficiais sobre as fés dos outros povos. Por qué? Obviamente porque aqueles oficiais algum dia teriam de lidar com os outros po- vos, seja como aliados ou antagonistas. Essa € uma razio para conhecé-los. Tal- 28 / As Religioes do Mundo estruturas mentais, nunca compreenderemos realmente as religides diferentes da nossa. Mas, se levarmos a sério essas outras religides, ndo falharemos mise- ravelmente. E para levé-las a sério, apenas duas coisas sao necessdrias. Primei- 10, precisamos ver os adeptos das outras religides como homens e mulheres que enfrentaram problemas bem semelhantes ao nossos. E, em segundo lugar, pre- cisamos livrar nossa mente de todas as idéias preconcebidas que embotariam a nossa sensibilidade ou a nossa disponibilidade as novas idéias. Se deixarmos de lado nossos preconceitos sobre essas religides, vendo cada uma delas como for- jada por pessoas que lutavam para ver algo que as ajudasse a viver e desse sig- nificado a vida; e se entao tentarmos, sem preconceitos, ver aquilo que elas vi- ram — assim fazendo, o véu que nos separa delas se transformara numa gaze transparente. Um grande anatomista costumava fechar suas aulas inaugurais na faculda- de de medicina com palavras que também se aplicam ao nosso empreendimen- to. “Neste curso”, dizia ele, “estaremos lidando com carne, sangue, células e tendoes, e haverd momentos em que 0 corpo humano parecerd terrivelmente morto. Mas nao esquecam. Ele é vivo!” Notas 1 Umlivro padrao é 0 de John B. Noss, Man’ Religions (Nova York: Macmillan, 1984). 2 Katha Upanishad, Liii,14. 3 Arnold Toynbee, Civilization on Trial (Nova York: Oxford University Press, 1948), p. 156. 4 A. N. Whitehead, Science and the Modern World (Nova York: Free Press, 1967), p. 181. 5 Erwin Schrodinger, Science and Humanism (Cambridge: Cambridge Univer- sity Press, 1952), p. 9. 6 R. C. Lewontin, in “The New York Review of Books” (27 de abril de 1989), p. 18. 32_/_AsReligides do Mundo Esse ponto nao precisa ser discutido quando estamos diante de uma pla- téia ocidental contemporanea. O temperamento anglo-americano nao é volup- tuoso. Visitantes do exterior nao véem as pessoas de lingua inglesa desfrutan- do bastante a vida ou muito inclinadas a fazé-lo — elas estao ocupadas demais. Apaixonadas nao pelo sensualismo, mas pelo sucesso, o que as pessoas do Oci- dente querem discutir nao é o fato de as recompensas da realizagao excederem as recompensas dos sentidos, mas sim que também o sucesso tem suas limita- oes — aquele “Quanto ele vale?” nao chega até o “Quanto ele recebeu?” A india reconhece que os impulsos por poder, posicao e posses correm profundamente em nés. E também reconhece que esses impulsos nao devem set desacreditados per se. Uma quantidade modica de sucesso mundano ¢ indispen- savel para manter uma casa e desincumbir-se responsavelmente dos deveres cf- vicos. Além desse minimo, as realizagées mundanas conferem dignidade e res- peito proprio. Mas, no fim, também essas recompensas tem um fim. Pois todas elas contém limitacdes que podemos detalhar: 1. Riqueza, fama e poder sao exclusivos; logo, competitivos e, portanto, precdrios, Ao contrario dos valores mentais ¢ espirituais, ndo se multiplicam quando compartilhados; nao podem ser distribuidos sem diminuir a porcao de quem os tém. Se eu tenho um dolar, esse délar nao € seu; enquanto eu estou sentado nesta cadeira, vocé nao pode ocupa-la. © mesmo ocorre com a fama e © poder. A idéia de um pais onde todo mundo € famoso encerra uma contradi- cao; e se o poder fosse distribuido igualmente entre todos, ninguém seria pode- roso no sentido que geralmente damos a palavra. Da competitividade desses bens a sua escassez € um passo curto. Como os outros também os querem, quem. sabe quando o sucesso mudara de maos? 2. O impulso para o sucesso ¢ insaciavel. Aqui precisamos de uma quali- ficacdo, porque as pessoas realmente conseguem uma quantidade suficiente de dinheiro, fama e poder. E quando elas fazem dessas coisas sua principal ambi- cdo que seus anseios nao se satisfazem. Pois essas nao sao as coisas que as pes- soas realmente querem, e as pessoas nunca obtém o suficiente daquilo que nao querem realmente, Na expressao hindu, “Tentar deter com dinheiro o impulso para a riqueza € como tentar apagar o fogo jogando manteiga nele”. Também o Ocidente conhece esse argumento. “A pobreza nao consiste na diminuicdo das posses de uma pessoa, mas no aumento da sua ganancia”, es- creveu Platdo, ¢ 0 tedlogo Gregoris Nazianzeno concorda: “Se conseguisses to- das as riquezas do mundo inteiro, ainda restariam mais riquezas e a falta delas te deixaria mais pobre.” “O sucesso é um objetivo sem ponto de saciedade”, es- creveu recentemente um psicélogo, ¢ sociélogos que estudaram uma cidade do Meio-Oeste observaram “tanto empresarios quanto trabalhadores correndo co- mo loucos no afi de fazer o dinheiro que ganham se ajustar ao crescimento ain- da mais rapido de seus desejos subjetivos”. Foi da India que o Ocidente impor- tou a conhecida parabola do burro € da cenoura: para fazer o burro avancar, 0 36 /_ As Religides do Mundo sa chegar ao fim — também a Historia um dia tera de morrer — mas pela sua recusa de ser aperfeigoada. Esperanga ¢ Historia estao sempre alguns anos-luz distantes uma da outra. O bem humano final deve estar em outra parte. O que as pessoas realmente querem “Chegard o dia”, escreveu Aldous Huxley, “em que alguém perguntard a Shakes- peare, ou mesmo a Beethoven, 'e isso € tudo?” E dificil pensar numa frase que identifique com mais precisao a atitude do hinduismo diante do mundo, As ofertas do mundo nao sao mas. No geral, sio boas. Algumas sao boas 0 suficiente para nos inspirar entusiasmo por muitas e muitas vidas. Mas no fim cada ser humano chegaa perceber, como Simone Weil, que “nao ha bem verdadeiro aqui embaixo, tudo o que parece bom neste mun- do € finito, limitado, se gasta e, uma vez gasto, deixa a necessidade exposta em toda sua nudez”.! Quando chega a esse ponto, a pessoa se surpreende pergun- tando até ao melhor que este mundo tem a oferecer: “E isso é tudo?” E por esse momento que o hinduismo espera. Enquanto as pessoas estao contentes com a perspectiva do prazer, do sucesso ou do servico, o sébio hindu provavelmente nao as incomodara, além de oferecer algumas sugestdes sobre 0 modo de proceder com mais eficacia. O ponto critico na vida chega quando es- sas coisas perdem seu encanto original ¢ a pessoa se vé desejando que a vida ti- vesse algo mais a oferecer. Se a vida tem ou nao tem algo mais a oferecer talvez seja a questao que mais agudamente divide as pessoas. A resposta hindu a essa questo é inequivoca. A vida oferece outras possi- Dilidades. Para ver quais sao elas, precisamos voltar ao problema daquilo que as pessoas querem. Até agora, diria o hinduismo, demos a essa questo uma res- posta demasiado superficial. Prazer, sucesso e dever ndo sdo as metas mais im- portantes da humanidade. Quando muito, séo meios que, imaginamos, nos le- varao na direcao daquilo que realmente queremos. O que realmente queremos so coisas que repousam num nivel mais profundo. Primeiro, queremos existir. Todos nés preferimos existir, em vez de nao existir; normalmente, ninguém quer morrer. Um correspondente da Segunda Guerra Mundial certa vez descreveu a atmosfera de uma sala com 35 soldados que tinham sido designados para uma perigosa missdo de bombardeio da qual, em média, apenas 1/4 retornava. O que ele sentiu naqueles soldados, disse 0 cor- respondente, nao foi tanto o medo, mas “uma profunda relutancia em renunciar ao futuro”. O sentimento deles domina todos nds, diriam os hindus. Nenhum de nés se sente feliz pensando num futuro no qual nao tomaremos parte Em segundo lugar, queremos conhecer. Seja 0 cientista sondando os segre- dos da natureza, uma familia tipica diante dos noticiarios da TV ou vizinhos pondo em dia as fofocas, todos nés somos insaciavelmente curiosos. Experién- 40_/_AsReligides do Mundo mais provavel que se refira a um insight que desnuda o ponto essencial de todas as coisas. Dado esse insight resumidor, pedir detalhes seria tao irrelevante quan- to perguntar o ntimero de étomos numa grande pintura. Quando se apreende 0 ponto essencial, quem se preocupa com detalhes? Mas é possivel o conhecimento transcendente, mesmo nesse sentido mais restrito? Os misticos, claro, pensam que sim. A psicologia académica nao 0 se- guiu ao longo de todo o caminho, mas esta convencida de que ha muito mais na nossa mente do que parece a superficie. Os psicélogos comparam a mente a um iceberg, cuja maior parte é invisivel. O que contém esse imenso “lastro” sub- merso da mente? Alguns acham que esse lastro contém todas as lembrangas € experiéncias que j4 cruzaram seu caminho; nada seria esquecido por essa men- te profunda que nunca dorme. Outros, como Carl Jung, acham que esse lastro inclui as memérias raciais que sintetizam a experiéncia de toda a espécie huma- na. A psicanalise lanca alguns pontinhos de luz na escuridao mental. Quem € capaz de dizer até onde se pode dissipar a escuridao? Quanto a terceira limitagao da vida, sua existéncia restrita, para podermos consideri-la de modo benéfico temos primeiro de perguntar como haveremos de definir a fronteira do eu. Claro que nao a definiremos como a quantidade de espaco fisico ocupado pelo nosso corpo ou a quantidade de agua que desloca- mos na banheira. Faz mais sentido medirmos nosso ser pelo tamanho do nos- so espirito, pelo ambito de realidade com o qual ele se identifica. Um homem que se identificasse com sua familia, encontrando nela sua alegria, seria do ta- manho dela; jé uma mulher que se identificasse com a humanidade seria bem maior. Por esse critério, as pessoas que se identificam com o ser como um todo seriam ilimitadas. Mas esse tampouco parece ser 0 caso, porque elas ainda es- tdo sujeitas a morte. O objeto de seus interesses continuaria, mas elas proprias teriam desaparecido. Precisamos, portanto, abordar a questao do ser ndo apenas em termos es- paciais, por assim dizer, mas também em termos de tempo. Nossa experiéncia cotidiana nos oferece um ponto de partida para isso. Falando em termos estri- tos, cada momento da nossa vida € uma morte; 0 eu daquele momento morte ¢ nunca renascera. Embora nesse sentido minha vida nada mais seja que uma sé- rie de “funerais’, eu ndo me concebo como criatura que morre a cada momen- to, pois ndo me igualo aos meus momentos individuais. Eu passo por eles — experimentando-os, sem ser identico a qualquer um deles na sua singularida- de. O hinduismo leva essa idéia um pouco além, propondo um eu extenso que vive vidas sucessivas, assim como uma tinica vida vive momentos sucessivos. A crianga tem o coracao partido por infortinios que consideramos triviais. Ela se identifica completamente com cada incidente, sendo incapaz de vé-lo contra o pano de fundo de toda uma vida cheia de variaces. Muita experiéncia de vida é necessaria para a crianga conseguir eliminar sua auto-identificagao com 0 momento individual e, desse modo, alcancar a maturidade. Comparados Hinduismo / 43 As yogas que nos interessam sao aquelas destinadas a unir o espirito huma- no com o Deus que se oculta em seus mais profundos recessos. “Ja que todos os exercicios espirituais [enquanto distintos dos corporais] hindus se devotam se- riamente a essa meta pratica— e ndo a simples contemplagao fantasiosa ou a dis- cussao de idéias elevadas ¢ profundas —, eles podem ser vistos como represen- tacoes de um dos mais realistas, concretos e praticos sistemas de pensamento e treinamento ja criados pela mente humana. Como chegar a Brahman [Deus, em sanscrito] e permanecer em contato com Brahman; como se identificar com Brahman, vivendo fora dele; como se tornar divino enquanto ainda na Terra — transformado, renascido integro enquanto no plano terreno; essa é a busca que inspirou e deificou o espirito humano na india ao longo dos tempos.”* Sao quatro os caminhos espirituais abertos pelos hindus na direcao dessa meta. A primeira vista, parece surpreendente. Se ha uma unica meta, 0 certo ndo seria haver um tinico caminho até ela? Seria, sim, se todos nds partissemos do mesmo ponto, embora os diferentes modos de transporte — caminhar, dirigir, voar — aconselhassem rotas alternativas. Do jeito que as coisas sao, as pessoas se aproximam da meta a partir de diferentes direcdes, de modo que é preciso haver multiplos caminhos para o destino comum. O ponto de partida depende do tipo de pessoa que somos. Esse ponto nao foi negligenciado por orientadores espirituais do Ocidente. Um dos mais famo- sos deles, o Padre Surin, por exemplo, criticou os “orientadores espirituais que pdem um plano na cabeca e depois o aplicam a todas as almas que os procuram, tentando adapté-las ao plano, como se quisessem que todas vestissem roupas iguais”. Sao Joao da Cruz alertou para o mesmo perigo quando escreveu, em A chama viva, que a meta dos orientadores espirituais “nao é guiar as almas por um caminho adequado a eles proprios, mas verificar para qual caminho Deus as esta dirigindo”. Um aspecto distinto do hinduismo € a atencao dedicada a identificacdo dos tipos basicos de personalidade espiritual e as disciplinas que mais provavelmente funcionarao para cada um deles. O resultado € 0 reconhe- cimento, que percorre toda essa religido, de que ha multiplos caminhos pata chegar até Deus, cada um pedindo seu préprio modo de viajar. Na contagem hinduista, so quatro os tipos basicos de personalidade es- piritual. (Carl Jung construiu sua tipologia com base no modelo hindu, embo- rao tenha modificado em certos aspectos.) Algumas pessoas sio basicamente reflexivas. Outras sao basicamente emocionais. Outras ainda sao essencialmen- teativas. Algumas, por fim, sao inclinadas para a experimentacao. Para cada um desses tipos de personalidade, o hindufsmo prescreve uma yoga distinta que se destina a capitalizar a forca caracteristica desse tipo. Os tipos nao se encerram em compartimentos estanques, pois cada ser humano possui em algum grau to- dos os quatro talentos, assim como as maos no jogo de cartas contém todos os quatro naipes. Mas faz sentido cada jogador explorar a0 maximo o naipe que predomina na sua mio. 44 _/_AsReligides do Mundo Todos os quatro caminhos comegam com as preliminares morais. Como a meta da yoga é tornar o eu da superficie transparente para sua divindade ocul- ta, 0 primeiro passo é purificar o eu de suas impurezas mais densas. Religido sempre mais do que moralidade; mas, se Ihe faltar uma base moral, a religiao nao se sustentara. Os atos egoistas coagulam o eu finito em vez de dissolvé-lo; a ma vontade perturba o fluxo da consciéncia. O primeiro passo de toda yoga, portanto, envolve o cultivo de habitos tais como nio ferir, honestidade, nao rou- bar, autocontrole, limpeza, contentamento, autodisciplina e um desejo irresis- tivel de atingir a meta. Tendo em mente essas preliminares comuns, estamos prontos para as ins- urugdes distintas da yoga. O caminho para Deus por meio do conhecimento A jnana yoga, destinada a aspirantes espirituais que tém forte inclinacao refle- xiva, € 0 caminho para a unidade com 0 Divino por meio do conhecimento. Es- se conhecimento — gnosis e sophia, dos gregos — nada tem a ver com a infor- macdo factual; ele nado € enciclopédico. Em vez disso, é um discernimento intuitivo transformador, acabando por transformar a pessoa naquilo que ela co- nhece. (Vale dizer que nas principais linguas mes do Ocidente — hebraico, la- tim e grego — as palavras para “conhecimento”, neste modo, sao do genero fe- minino.) Pensar é importante para essas pessoas. Elas vivem muito na mente, porque as idéias tm, para elas, uma vitalidade quase palpavel: elas dancam e cantam nas idéias. E se esses pensadores séo parodiados como filésofos que cir- culam coma cabeca nas nuvens, € porque eles sentem o Sol de Plato acima da- quelas nuvens. Os pensamentos tém conseqiiéncias para essas pessoas; a men- te anima a vida, Nao so muitos os individuos que acreditam na alegacao de Socrates de que “conhecer o bem é praticd-lo”, mas talvez ele proprio estivesse relatando um fato claro e direto. Para as pessoas assim dadas ao conhecimento, o hinduismo propoe uma série de demonstragées que se destinam a convencer o pensador de que ele pos- sui mais do que seu eu finito. O fundamento € claro. Uma vez apreendido esse ponto, o senso do eu do iogue jnana se transfere para um nivel mais profundo. A chave para o projeto é discernimento, o poder de distinguir entre o eu da superficie (que ocupa todo o primeiro plano da atencao) e o eu maior, que esta fora de vista. O cultivo desse poder prossegue por trés estagios, o primeiro dos quais € 0 aprendizado. Ouvindo os sabios, as escrituras e os tratados sobre a ordem da Suma Teoldgica de Santo Tomas de Aquino, o aspirante é apresenta- do 4 perspectiva de que seu ser essencial ¢ 0 proprio Ser. O segundo passo é o pensamento, Pela reflexdo intensa e prolongada, aqui- lo que o primeiro passo apresentou como hipotese ganhara vida. O Atman (Deus Hinduismo / 45 interior) deveré mudar de conceito para realizacao. Inimeras linhas de reflexdo s4o propostas para esse projeto. Por exemplo, o discfpulo ¢ aconselhado a exa- minar nossa linguagem cotidiana ¢ ponderar suas implicacdes. A palavra “meu” sempre implica uma distingao entre 0 possuidor e aquilo que é possuido; quan- do falo do meu livro ou do meu casaco, nao estou supondo que eu sou 0 livro ow 0 casaco. Mas também falo do meu corpo, da minha mente e da minha per- sonalidde, evidenciando com isso que de algum modo também me considero distinto deles. O que € esse “eu” que possui meu corpo e minha mente, mas nao equivale a eles? A ciéncia me diz que nada existe no meu corpo que nele existisse ha sete anos, € que minha mente e minha personalidade passaram por mudancas com- paraveis. Contudo, ao lado dessas multiplas revisdes, eu permaneci de algum modo a mesma pessoa de antes, a pessoa que ora acredita nisso, ora naquilo; a pessoa que antes era jovem c agora ¢ idosa. O que € essa “coisa” na minha cons- titui¢ao, mais constante do que corpo ou mente, que permanece em meio as mudancas? Seriamente ponderada, essa questao desata o Eu das identificacdes menores. A palavra “personalidade” vem do latim persona, que originalmente se re- feria a mascara usada pelo ator quando subia ao palco para desempenhar seu papel; a mascara pela (per) qual ele dava som (sonare) ao seu personagem. A mascara registrava o papel, enquanto por tras dela o ator permanecia oculto e andnimo, distanciado das emocoes que representava. Isso, dizem os hindus, ¢ perfeito; pois nossa personalidade é exatamente o conjunto dos “papéis” que nos cabem, neste momento, na maior de todas as tragicomédias, o drama da propria vida, onde somos ao mesmo tempo atores ¢ co-autores. Assim como a boa atriz da o melhor de si ao seu papel, tambem nos devemos representar to- talmente o nosso. Nosso erro esta em confundir o papel que agora nos cabe com aquilo que realmente somos. Ficamos fascinados com as nossas falas, in- capazes de lembrar os papéis anteriores que representamos € cegos as perspec- tivas dos nossos futuros papéis. A tarefa do iogue ¢ corrigir essa falsa identifi- cacao. Voltando para dentro de si sua percepcao consciente, 0 individuo deve perfurar as incontaveis camadas da sua personalidade até, depois de rompé-las todas, alcancar 0 ator anonimo ¢ alegremente desapegado que se esconde por baixo delas. Outra imagem ira ajudar a fazer a distincdo entre o eu eo Eu. Um homem esta jogando xadrez. O tabuleiro representa seu mundo. Ha pecas para mover, bispos a ganhar e perder, um objetivo a ser alcangado. A partida podera ser ga- nha ou perdida, mas nao o proprio jogador. Se ele trabalhou bem, tera melho- rado seu jogo e, na verdade, suas faculdades; isso acontece tanto na derrota quanto na vitéria. Assim como o competidor esta ligado a toda a pessoa desse jogador, também o eu finito de qualquer vida especifica esta ligado a seu Atman subjacente. 46 _/_AsReligives do Mundo As metaforas continuam. Uma das mais belas é encontrada nos Upanis- hads e também (por estranha coincidéncia) em Platao. O viajante esta sentado sereno e imével em sua carruagem. Tendo delegado a responsabilidade da jor- nada ao condutor, 0 viajante esta livre para se recostar no assento e dar toda atencao a paisagem. Nessa imagem reside uma metafora para a vida. O corpo é a carruagem, A estrada que a carruagem percorre so os objetos sensoriais. Os cavalos que puxam a carruagem pela estrada afora sao os nossos sentidos. A mente que controla os sentidos, quando estes so disciplinados, ¢ representada pelas rédeas. A faculdade mental de tomar decisdes é 0 condutor. O mestre da carruagem, que detém plena autoridade mas nunca precisa levantar um dedo, € o Eu onisciente. Se 0 iogue for capaz e diligente, essas reflexdes acabarao por induzir um senso vivo do Eu infinito que existe sob o seu eu finito e transitério. Os doi ficarao cada vez mais diferenciados em sua mente, separando-se como a agua €.0 6leo, quando antes se misturavam como agua e leite. A pessoa entao esta- ra pronta para o terceiro passo no caminho do conhecimento, que consiste em transferir sua auto-identificagao para a sua parte permanente. O caminho di- reto para ela fazer isso € imaginar-se Espirito, nao sé durante os periodos de meditacdo reservados para esse propdsito, mas também, tanto quanto poss: vel, enquanto executa suas tarefas cotidianas. Esse exercicio, porém, nao é {4- cil. A pessoa precisa abrir o dificil caminho entre seu ego, encapsulado sob a pele, € seu Atman; como ajuda, ela podera imaginar 0 ego na terceira pessoa. Em vez de pensar “Eu estou andando na rua’, ela pensa “La vai Sybil descen- do a Quinta Avenida” e tenta reforcar essa afirmacdo visualizando a si mesma 4 distancia. Nem agente nem paciente, sua abordagem ao que acontece é: “Eu sou a Testemunha.” Ela observa sua insubstancial historia de vida com o mes- mo distanciamento com que deixa 0 vento soprar em seus cabelos. Assim co- mo a lampada que ilumina um aposento nado se preocupa com o que aconte- ce a sua volta, também o iogue, dizem 0s textos, observa o que ocorre em sua morada de protoplasma. “Até o Sol, com todo o seu calor, esta maravilhosa- mente longe”, rabiscou alguém na parede de uma prisdo. Os acontecimentos da vida simplesmente recebem permissdo para irem em frente. Sentada na ca- deira do dentista, Sybil observa: “Coitada da Sybil. Mas logo acaba.” Porém, ela precisa fazer jogo limpo e adotar a mesma postura quando a sorte a visi- tare ela nao quiser outra coisa da vida senio desfrutar o calor dos elogios que estiver recebendo. Pensar em si mesmo na terceira pessoa produz dois efeitos simultanea- mente. Abre o dificil caminho entre nossa auto-identificagao e nosso eu de su- perficie, e ao mesmo tempo forca essa auto-identificacdo em um nivel mais pro- fundo, até que finalmente, por meio de um conhecimento idéntico ao ser, a pessoa se torne plenamente aquilo que sempre foi no coracao. “Tu és o que Es, sem outros olhos, ouvidos, pensamentos ou acées.”” 48_/_As Religides do Mundo Pode a agua beber de si mesma? Podem as drvores provar o fruto que delas nasce? Aquele que adora a Deus deve conservar-se distinto Dele, Somente assim conheceré a alegria do amor de Deus; Pois, se disser que Deus ¢ ele sdo um 56, Essa alegria, esse amor, de imediato se desvanecerao. Nao pecas a unidade absoluta com Deus: Onde estaria a beleza se a pedra preciosa e 0 engaste fossem um s6? O calor e a sombra sao dois; Se nao fossem, onde estaria o conforto da sombra? Mae e filho sao dois; Se ndo fossem, onde estaria 0 amor? Quando se encontram, depois de separados, Quanta alegria sentem, a mae ¢ 0 filho! Onde estaria a alegria, se os dois fossem um s6? Nao pecas, portanto, a unidade absoluta com Deus.* Segundo: persuadido da alteridade de Deus, também a meta do bhakta di- ferird da meta do jnani. O bhakta tentara nao se identificar com Deus e sim ado- rar a Deus com cada elemento de seu ser. As palavras de Bede Frost, embora es- critas em outra tradi¢ao, aplicam-se diretamente a esse lado do hindufsmo: “A uniao no € uma absor¢ao panteista do homem no Uno, mas tem cardter essen- cialmente pessoal. Além disso, como € principalmente uma unido de amor, 0 ti- po de conhecimento exigido € 0 da amizade no mais elevado sentido da pala- vra.”* Finalmente, em tal contexto a personalidade de Deus, longe de ser uma limitacdo, € indispensavel. Os fildsofos seriam capazes de amar o ser puro, in- finito além de todos os atributos, mas eles s4o excegdes. O objeto normal do amor humano é€ uma pessoa que possua atributos. Tudo o que temos a fazer nessa yoga € amar a Deus de todo coragio — nao apenas afirmar esse amor, mas amar a Deus realmente; amar apenas a Deus (as outras coisas sto amadas em relagao a Deus); ¢ amar a Deus sem quaisquer ou- tros motivos (nem mesmo por desejo de libertacao ou de ser amado em troca), mas apenas pelo proprio amor. Na medida em que o conseguimos, conhecemos aalegria, pois nenhuma experiéncia se compara com a do amor pleno e autén- tico. Além disso, todo fortalecimento da nossa afeicao por Deus ira enfraquecer a atracdo do mundo. Os Santos conseguem realmente amar o mundo mais do que nés, profanos; mas eles 0 amam de uma maneira bem diferente, vendo ne- le um reflexo da gloria do Deus a quem adoram, Como sera gerado esse amor? A tarefa, claro, nao ¢ facil. As coisas deste mundo clamam por nossa afeicao tao incessantemente, que causa surpresa o fa- to de um Ser, que nao pode ser visto nem ouvido, rivalizar com elas 52_/_As Religides do Mundo juvante é predominantemente afetiva ou reflexiva. A resposta a essa questao de- termina se 0 iogue aborda o trabalho intelectualmente ou no espirito do amor. Na linguagem das quatro yogas, a karma yoga seria praticada em um destes mo- dos: jnana (conhecimento) ou bhakti (servico devotado). ‘Como vimos, o ponto essencial da vida € transcender a pequenez do eu fi- nito. Podemos fazé-lo de duas maneiras: por uma identificacdo com o Absolu- to transpessoal que reside no amago do nosso ser; ou transferindo nosso inte- resse e afeicio para um Deus pessoal que é conhecido como sendo distinto de nés mesmos. O primeiro € 0 caminho de jnana; 0 segundo, de bhakti. O traba- Iho seré um veiculo para a autotranscendencia em ambas as abordagens, por- que, segundo a doutrina hindu, toda agao realizada no mundo exterior reage so- bre quem a praticou. Se derrubo uma arvore que bloqueia a minha vista, cada golpe do machado perturba a 4rvore; mas também deixa sua marca em mim, le- vando até o fundo do meu ser a minha determinacao de ter o mundo ao meu modo. Tudo o que faco para o meu bem-estar particular acrescenta outra cama- da ao meu ego, e este, cada vez mais espesso, afasta-me ainda mais de Deus. Por outro lado, cada ato feito sem pensar em mim mesmo diminui o meu autocen- tramento até que, por fim, nao restam barreiras separando-me do Divino. O melhor caminho para as pessoas emocionalmente inclinadas a prestar servigo altruista é por em jogo sua natureza ardente ¢ apaixonada, trabalhando pelo bem de Deus, em vez do seu proprio. “Aquele que realiza ages sem ape- g0, sujeitando-as a Deus, nao € tocado pelos seus efeitos, assim como a folha do lotus nao € tocada pela agua.”" Tal pessoa € tao ativa quanto antes, mas agora trabalha por uma razéo diferente: por dedicacdo. Seus atos ja ndo visam as re- compensas pessoais. Além de agora serem realizados como um servico a Deus, seus atos também sao vistos como acionadbos pela vontade de Deus e concreti- zados pela energia de Deus, canalizada por meio do devoto. “Tu és 0 Agente, eu sou 0 simples instrumento.” Realizadas dentro desse espirito, as acoes ilumi- nam o ego, em vez de estorva-lo. Cada tarefa se torna um ritual sagrado, amo- rosamente cumprido como sacrificio vivo a gloria de Deus. “Tudo 0 que fizeres, tudo 0 que comeres, tudo o que ofereceres em sacrificio, tudo o que doares, to- daa austeridade que praticares, 6 Filho de Kunti, faze-o como oferenda a Mim. Assim te libertards da servidao de aces que trazem bons ou maus resultados”, diz o Bhagavad-Gita. “Eles ndo desejam os frutos de suas acdes”, enfatiza o Bha- gavata Purana. “Eles nunca aceitarao sequer 0 estado de uniao Comigo; prefe- tirdo sempre estar a Meu servico.” Uma jovem, recém-casada e apaixonada, nao trabalha apenas para si mes- ma. Ao trabalhar, ela pensa no amado e isso da significado e propésito as suas atividades. O mesmo ocorte com o servo devoto. Ele nada pede para si mesmo. Independentemente dos custos pessoais, ele cumpre seu dever pensando na sa- tisfagao do seu mestre. Assim também, a vontade de Deus € a alegria e satisfa- cao do devoto. Entregando-se totalmente ao Senhor, 0 devoto nao ¢ tocado pe- 36 _/_AsReligides do Mundo mentador em particular. A alegacao, contudo, é a de que as experiéncias que se abrem confirmarao a hipotese em pauta. Ao contrario da maioria dos experimentos nas ciéncias naturais, os da ra- ja yoga sao feitos no nosso proprio eu e nao na natureza exterior. Mesmo nas areas em que a ciéncia se volta para a auto-experiéncia — como na medicina, onde a ética prescreve que experimentos perigosos sé podem ser realizados no proprio experimentador —, a énfase da india é diferente. O iogue nao faz a ex- periéncia no seu corpo (embora se descubra que o corpo esta definitivamente envolvido), mas na sua mente. Os experimentos tomam a forma da pratica de exercicios mentais prescritos e da observacao de seus efeitos subjetivos. Nenhum dogma precisa ser aceito, mas os experimentos exigem hipoteses destinadas a confirma-los ou a negé-los. A hipotese subjacente a raja yoga ¢ a doutrina hindu do eu humano; e embora jé tenha sido descrita muitas vezes, ela precisa ser reafirmada como o pano de fundo contra o qual avancam os passos da raja yoga. A teoria postula que o ser humano € uma entidade constituida de cama- das. Nao precisamos entrar nas andlises hindus dessas camadas; os relatos si0 técnicos ¢ talvez no futuro a ciéncia mostre que sua exatidao € mais metaférica do que literal. Para nossos propositos, basta resumir a hipotese, reduzindo a quatro as camadas principais. Primeiro, e o mais dbvio, nds temos um corpo fi- sico. Depois vem a camada consciente da nossa mente. Subjacente a essas duas, ha uma terceira regiao, a esfera do subconsciente individual. Este se constréi ao longo da nossa historia de vida pessoal. A maioria das nossas experiéncias pas- sadas se perdeu na nossa memoria consciente, mas continua a moldar a nossa vida — de mil maneiras que a psicandlise contemporanea tenta compreender. Com essas trés partes do eu, 0 Ocidente esta de pleno acordo. O aspecto distin- to, na hipotese hindu, é postular um quarto componente. Subjacente as outras trés camadas e menos percebido pela mente consciente do que seu subconscien- te individual (embora tao ligado a consciéncia quanto aquele), esta o Ser, infi- nito, desimpedido, eterno. “Sou menor que o mais diminuto atomo, e tao gran- de quanto o maior deles. Sou o universo inteiro, diversificado, multicolorido, maravilhosamente estranho. Sou 0 Anciao. Sou o Homem, o Senhor. Sou o Ser de Ouro. Sou o proprio estado de divina beatitude.”” O hinduismo concorda com a psicanalise que, se conseguissemos trazer a tona por¢ées do nosso inconsciente individual, experimentariamos uma expan- so extraordindria dos nossos poderes, um vivido rejuvenescimento da vida. Po- rém, se desvendassemos algo esquecido nao s6 por nés mesmos, mas pela hu- manidade como um todo, algo que oferecesse pistas nao apenas para nossa personalidade e peculiaridades individuais, mas para toda vida e toda existén- cia, 0 que aconteceria ent4o? Nao seria isso da maior importancia? Fica claro que o chamado € para se retirar do panorama inconsequente do mundo, chegando as profundas zonas causais da psique, onde residem os ver- 60 / As Religides do Mundo Somente 0 iogue Cuja alegria ¢ interior, Interior sua paz E interior sua visdo, Chegara a Brahman E conhecerd o Nirvana. Foi contra o pano de fundo de trés milénios desse postulado que o Mahatma Gandhi propés ao nosso século extrovertido: “Voltai os holofotes para dentro.” O ultimo passo transicional do processo de se voltar do mundo exterior para o mundo interior é fechar as portas da percepcao, pois so assim o estarda- Ihago da efervescéncia do mundo sera eficazmente emudecido. A experiéncia comum mostra que isso pode ser feito, e sem mutilagio do corpo. Um homem chama a mulher e avisa que esta na hora de sairem para uma reunido social. Cin- co minutos depois, ela insiste que nao o ouviu; ele insiste que ela deve ter ou- vido, porque ele estava no aposento ao lado e falow alto e claro. Quem estd cer- to? E uma questao de definigao. Se ouvir significa que ondas sonoras com amplitude suficiente alcancaram timpanos sadios, a mulher ouviu; se significa que as ondas foram notadas, ela nao ouviu. Nao ha nada esotérico nessas ocor- réncias; clas podem ser explicadas pela simples concentragao — a mulher esta~ va profundamente entretida no computador. Do mesmo modo, nao ha nenhum ardil neste quinto passo da raja yoga. Ele procura levar 0 iogue além do ponto que aquela mulher atingiu; primeiro, transformando a concentracao, de ocor- rencia casual em poder controlado; segundo, elevando esse talento a um ponto tal que um tambor no mesmo aposento nao seria notado. Mas a técnica € idén- tica. A concentracgdo em uma coisa exclui as outras coisas. 6. Por fim, o iogue esta sozinho com a sua mente. Os cinco passos enume- rados até aqui apontam para esse arremate; cessaram, um a um, as intrusdes dos anseios, a consciéncia perturbada, o corpo, a respiracdo, os sentidos. Mas a ba- talha ainda nao foi ganha; vista de perto, esta apenas comecando. Pois o mais fe- roz antagonista da mente € ela propria. Sozinha consigo mesma, a mente ainda nao mostra a menor inclinacao para sossegar ou obedecer. Lembrancas, expec- tativas, devaneios, cadeias de fantasias com os elos mais ténuese inesperados que se possa imaginar, tudo isso vai se fechando de todos 0s lados, fazendo a mente ondular como um lago agitado pela brisa, fragmentando-se em reflexos cambian- tes. Deixada a si mesma, a mente nunca se aquieta, nunca fica lisa como um es- pelho, cristalina, refletindo 0 Sol da vida como réplica perfeita. Para que tal con- digao prevalega, nao basta que os riachos afluentes sejam represados; os cinco Ppassos anteriores dao conta dessa tarefa. Ainda € preciso secar as nascentes no fundo do lago e frear as fantasias. E claro que ainda resta muito por fazer. Que tal mudarmos para uma metafora menos serena? Os movimentos da mente mediana, dizem os hindus, sao quase tao ordenados quanto os de um ma- 64_/_As Religides do Mundo O segundo estagio, que comeca com 0 casamento, era o do provedor do lar. Aqui, durante 0 meio-dia da vida, com seus poderes fisicos no auge, os in- teresses e as energias se voltam naturalmente para o mundo externo. Ha trés frentes nas quais eles agem satisfatoriamente: a familia, a vocacao e a comuni- dade a qual pertence a pessoa. A atencdo, em geral, se divide entre essas trés frentes. Esse é 0 momento para satisfazer os trés primeiros desejos humanos: prazer, basicamente por meio do casamento e da familia; sucesso, por meio da yocacao; € dever, por meio da participagao civica. O hinduismo sorri ao ver a feliz realizacdo desses desejos, mas nao tenta segurd-los quando eles comecam a refluir. E bem apropriado que o apego a eles acabe declinando, pois nao seria natural que a vida terminasse enquanto acdo e desejo esto no seu auge. Nao € obrigatério que seja assim. Se seguirmos as es- tacoes a medida que elas aparecem, notaremos um momento em que 0 sexo € 0 deleite dos sentidos (prazer), bem como a realizacao no jogo da vida (sucesso), deixam de produzir novas e surpreendentes reviravoltas; quando mesmo o de- sempenho responsavel da vocagao humana (dever) comega a ser saciado, tor- nando-se repetitivo e estagnado. Quando chega essa estacao, ¢ hora de o indi- viduo passar para o terceiro estagio da sequiéncia da vida. Algumas pessoas nunca o fazem. O espetaculo que elas oferecem nao é bo- nito, porque as buscas apropriadas as estagdes anteriores se tornam grotescas quando prolongadas indevidamente. © playboy de 25 anos até ¢ atraente, mas poupem-me da visdo dos playboys de 50. Quanto eles se esforcam para manter a pose, quao pouco recebem em troca. O mesmo ocorre com a pessoa que nao consegue renunciar a uma posi¢ao-chave quando a nova geracao, cheia de ener- gia e novas idéias, j4 a deveria estar assumindo. Mas nao devemos censurar essas pessoas; sem ver as outras fronteiras na vida, elas nao tém outra opcao a nao ser se agarrarem aquilo que conhecem. Eis a pergunta que elas fazem sem rodeios: “Vale a pena envelhecer?” Coma cién- cia médica aumentando tao dramaticamente a expectativa de vida, mais e mais pessoas estao tendo de enfrentar essa quest4o. Os poetas sempre aceitaram as folhas do outono e os anos do sol poente, mas seus versos parecem suspeitos. Ficando apenas na poesia, idéias como “Vem envelhecer ao meu lado, pois o melhor ainda esta por vir” nado tem metade da convicgao de “Colhe teus botées de rosa enquanto ainda podes, pois amanha estaremos mortos”. Se a vida tem futuro além da meia-idade € algo que, no fim, dependera, nao da poesia, mas dos nossos reais valores na vida. Se os valores de uma pes- soa forem principalmente os do corpo ¢ dos sentidos, é melhor ela ir se resig- nando ao fato de que a vida, depois da juventude, segue ladeira abaixo. Se a pes- soa acreditar que a conquista mundana e 0 exercicio do poder sdo 0 que vale, entao o auge da vida sera na meia-idade, o estagio do provedor do lar. Mas se a visio ¢ 0 autoconhecimento trouxerem recompensas iguais ou superiores as an- teriores, entao a velhice tera suas proprias oportunidades e chegaremos a feli- cidade no momento em que os rios da nossa vida fluirem suavemente. 68 _/_ As Religides do Mundo elevadas se beneficiando a custa das mais baixas. E finalmente, a casta tornou-se hereditaria: a pessoa permanecia na casta em que tinha nascido. Com esses pesados argumentos contrarios, talvez cause surpresa verificar que ha indianos contemporaneos que, embora familiarizados com as aliernati- vas ocidentais, ainda defendem o sistema de castas — nao nasua totalidade, cla- To, e especialmente aquilo que acabou se tornando, mas na sua forma basica.” Quais valores duradouros poderia conter um sistema como esse? O que se pede aqui € 0 reconhecimento de que, quanto a maneira de dar sua melhor contribuigao para a sociedade e desenvolver suas proprias potencia- lidades, as pessoas se enquadram em quatro grupos. (1) Ao primeiro grupo, a india denomina brahmins ou videntes. Reflexivos, apaixonados pela compreen- sao € com aguda percepsao intuitiva dos valores que mais importam na vida hu- mana, eles sao os lideres intelectuais e espirituais da civilizacao. Em sua esfera cabem as funcdes que nossa sociedade ocidental, mais especializada, distribuiu entre filésofos, artistas, lideres religiosos e professores; as coisas da mente e do espirito séo sua matéria-prima. (2) No segundo grupo temos os kshatriyas, ad- ministradores natos,”* com uma excepcional capacidade para orquestrar pessoas e projetos de modo a obter o maximo dos talentos humanos disponiveis. (3) Outros encontram a vocagao de produtores; sao 0s artesdos e fazendeiros, capa- zes de criar as coisas materiais de que depende a vida. Sao os vaishyas. (4) Fi- nalmente, temos os shudras, que podem ser caracterizados como seguidores ou servos. Mao-de-obra nao-qualificada seria outro nome para eles. SA0 pessoas que, quando querem seguir uma carreira, precisam de longos periodos de trei- namento; quando abrem o proprio negécio, fracassam. Como sua atengio se fi- xa por tempo relativamente curto, elas nao se dispoem a sacrificar 0 ganho pre- sente com vistas a recompensas futuras. Sob supervisao, contudo, sao capazes de trabalho duro e servico devotado. Tais pessoas se sentem melhor, na verda- de mais felizes, trabalhando para os outros do que por conta prépria. Nés, com nossos sentimentos democraticos e igualitarios, nao gostamos de admitir que haja pessoas assim. A isso responde o hindu: O ponto nao € 0 que vocés gostam; o importante é aquilo que as pessoas realmente sao. Poucos hindus, nos dias de hoje, defendem os extremos a que a India aca- bou chegando para manter a separacao entre as castas. A proibicao de casamen- tos, refeicdes e outras formas de contato social entre membros de castas dife- rentes tornou a India, na avaliacdo ironica de um de seus primeiros-ministros, “a nagdo menos tolerante nas formas sociais, embora a mais tolerante no reino das idéias”. Mesmo aqui, porém, temos certo argumento por tds das execradas proliferagoes. O fato de ser particularmente rigida a proibicao de membros de diferentes castas beberem da mesma fonte sugere a eventual importancia das di- ferencas na imunidade a doencas. As razées instrumentais, porém, eram bem mais amplas. A menos que os desiguais fossem separados de algum modo, os fracos teriam de competir com os fortes e nao teriam chance de vencer em par- te alguma. Entre as castas nao havia nenhuma igualdade, mas dentro de cada 72_/_As Religides do Mundo Comecemos com um nome, simplesmente para fixar nele o nosso pensa- mento, O nome que os hindus dao a realidade suprema é Brahman, que tem du- pla etimologia: deriva de br, respirar, e brih, ser grande. Os principais atributos a serem ligados ao nome sao sat, chit e ananda; Deus € ser, percepcao e bem- aventuranga. Realidade absoluta, consciéncia absoluta e absolutamente além de toda possibilidade de frustragao — esta é a visao basica hindu de Deus. Mas mesmo essas palavras nado pretendem dar uma descricdo literal de Deus, pois seus significados para nés sao radicalmente contrérios aos sentidos nos quais se aplicam a Deus. Como seria o ser puro, o ser infinito do qual absolutamente na- da se exclui? Disso mal e mal fazemos uma vaga idéia. O mesmo ocorre com a percepcdo e a alegria. Na formulacao de Spinoza, a natureza de Deus é tao se- melhante as nossas palavras quanto a constelagao do Cao Maior é semelhante a um cachorro. O maximo que se pode dizer dessas palavras é que elas sao pon- teiros; é melhor que nossa mente se mova na direcdo que elas apontam do que na direcdo oposta. Deus repousa no lado extremo do ser, como 0 compreende- mos, no no nada; além da mente, como a compreendemos, 1ido na argila sem mente; além do éxtase, néo na agonia. E até ai que algumas mentes precisam ir em sua visao de Deus: ser infini- to, consciéncia infinita, bem-aventuranga infinita — tudo o mais é comentario, no melhor dos casos, e, no pior, retracao. Ha sabios que conseguem viver nes- sa atmosfera austera e conceitualmente ténue do espirito e a acham revigoran- te; eles entendem, como Shankara, que “o sol brilha mesmo sem objetos sobre os quais brilhar”, Mas a maioria das pessoas nao se deixa seduzir por abstraces de ordem tao elevada. O fato de C. S. Lewis estar entre elas é prova de que suas mentes nao sao inferiores, apenas diferentes. O Prof. Lewis conta que, quando crianga, seus pais viviam dizendo para ele nao tentar imaginar Deus como al- guma forma, porque isso limitaria Sua infinitude. Ele fez 0 possivel para seguir suas instrucdes, mas o mais perto que chegou da idéia de um Deus sem forma foi um oceano infinito de tapioca acinzentada. Essa anedota, diriam os hindus, aponta com perfeigdo para a circunstan- cia do homem ou mulher cuja mente precisa “morder” algo concreto, uma re- presentaco, para encontrar um significado que sustente a sua vida. A maioria das pessoas acha impossivel conceber algo que esteja muito distante da expe- riéncia direta, e muito menos ser motivada por ela. O hinduismo aconselha es- sas pessoas a ndo pensarem em Deus como a abstracdo suprema, como um ser ‘ou consciéncia, mas, em vez disso, pensarem em Deus como 0 arquétipo da mais nobre realidade que enconturam no mundo natural. Isso significa pensar em Deus como a pessoa suprema (Ishvara ou Bhagavan), pois a pessoa é 0 mais nobre coroamento da natureza. Nossas consideragdes sobre a bhakti yoga (o ca- minho para Deus por meio do amor e da devogao) ja nos apresentaram ao Deus concebido dessa maneira. Esse, na linguagem ocidental de Pascal, € 0 Deus de Abraao, de Isaque e de Jaco, no o Deus dos filésofos. Eo Deus enquanto pai, 176 / As Religides do Mundo decisdo tera suas conseqiiéncias determinadas, mas as decisées, em tltima ana- lise, sao tomadas livremente. Abordando o assunto da outra dire¢ao, as conse- quéncias das nossas decisées passadas condicionam o nosso destino atual, as- sim como 0 jogador recebe determinada mao de cartas mas continua livre para jogar aquela mao de varias maneiras. Isso quer dizer que a carreira de uma al- ma, seguindo seu curso por intimeros corpos humanos, ¢ guiada por suas esco- Ihas, as quais s4o controladas pelo que a alma deseja e quer em cada estagio da jomada. As coisas que a alma deseja, e a ordem na qual elas aparecem, serao resu- midas aqui, porque as secdes anteriores ja as analisaram com detalhes, Ao en- tar pela primeira vez num corpo humano, uma jiva (alma) nada mais quer do que provar amplamente os deleites sensoriais que seu novo equipamento fisico tornou possiveis. Com a repetigao, porém, mesmo o mais extatico desses delei- tes acaba caindo no habito e se torna monotono; por isso, a jiva se volta para as conquistas sociais, numa tentativa de escapar do tédio. Essas conquistas — as varias formas de riqueza, fama e poder — conseguem prender o interesse da pessoa durante um tempo consideravel. Ha muito em jogo e sua conquista é al- tamente gratificante. Mas, por fim, a pessoa vé a real natureza de todo esse pro- grama de ambicdo pessoal: um jogo — um jogo fabuloso, excitante, que faz a Historia, mas s6 um jogo ¢ nada mais. Enquanto prende o interesse, ele satisfaz. Mas quando a novidade se des- gasta, quando o vencedor recebe com a mesma mesura € com o mesmo discur- so os louvores que ja recebeu tantas vezes antes, ele comeca a ansiar por algo novo € mais profundamente satisfatrio. O dever, a dedicagao total de sua vida 4 comunidade, preenchera as necessidades durante algum tempo, mas as iro- nias e anomalias da Historia transformam também esse objeto em uma porta gi- ratoria. Apéie-se nela e ela cede, mas com o tempo vocé descobre que ela esta sempre girando no mesmo lugar. Depois da dedicacao social, 0 unico bem sa- tisfatorio é aquele que ¢ infinito e eterno, cuja realizacdo transforma toda a ex- periéncia, mesmo a experiéncia do tempo e a derrota aparente, em esplendor, assim como as nuyens de tempestade cruzando um vale parecem diferentes quando vistas do alto de uma montanha banhada pelo sol. A bolha esta se apro- ximando da superficie da agua e exigindo a libertacao final. O progresso da alma por esses estratos ascendentes de desejos humanos nao toma a forma de uma linha reta com um angulo agudo apontando para ci- ma. Ele anda as tontas, ziguezagueando na direcdo daquilo que realmente ne- cessita. No longo prazo, porém, a tendéncia dos apegos sera ascendente — to- dos nés finalmente compreenderemos, “Ascendente”, aqui, significa um relaxamento gradual do apego aos objetos e estimulos fisicos, acompanhado por uma libertacdo progressiva do egoismo. Quase podemos visualizar a acéo do karma quando ele libera as conseqiiéncias daquilo que a alma procurou. E co- mo se cada desejo que visa a gratificacao do ego acrescentasse um grao de con- 80_/_ As Religioes do Mundo parecem todos os aspectos que caracterizam o mundo da nossa percepcao nor- mal — sua multiplicidade e materialidade. Ha apenas uma tinica realidade, co- mo um oceano transbordante, ilimitado como o céu, indivisivel, absoluto. E co- mo um imenso lengol de agua, calmo e sem margens. O ndo-dualista alega que essa terceira perspectiva € a mais exata das trés. Comparado com ela, o mundo que normalmente vemos é maya. Essa palavra costuma ser traduzida como “ilusao”, mas isso € enganoso. Quando muito, por- que sugere que o mundo nao precisa ser levado a sério. Essa € uma idéia que os hindus negam, apontando que, enquanto o mundo nos parecer real e exigente, teremos de aceita-lo nesses termos. Além disso, maya tem uma realidade con- dicional, provisoria. Quando nos perguntam se os sonhos sao reais, nossa resposta tera de ser condicional. Os sonhos sao reais no sentido de que nés sonhamos, mas nao sio reais na medida em que o que eles mostram nao precisa ter existéncia objetiva. Falando em termos estritos, 0 sonho é um constructo psicolégico, um produto da mente. Os hindus tém algo desse tipo em mente quando falam de maya. O mundo aparece como a mente, no seu estado normal, o percebe; mas nao se jus- tifica pensar que a realidade, como ela é, seja como a vemos. Uma criancinha que assiste a0 seu primeiro filme confundira as imagens em movimento com objetos reais, sem se dar conta de que o leo rugindo na tela € projetado de uma cabina no fundo da sala de cinema. O mesmo acontece conosco; o mundo que vemos é condicionado e, nesse sentido, projetado pelos nossos mecanismos de percepgao. Mudando a metafora, nossos receptores sensoriais registram somen- te uma banda estreita de freqaencias eletromagnéticas. Com a ajuda de micros- cOpios e de outros amplificadores, conseguimo@detectar alguns comprimentos de onda adicionais, masa supraconsciéncia precisa ser cultivada para conhecer- mos a realidade em si. Nesse estado, nossos receptores deixariam de refratar, co- mo um prisma, a pura luz do ser num espectro de multiplicidade. A realidade seria conhecida tal como ela realmente é: unica, infinita, absoluta. Maya provém da mesma raiz que magica. Quando diz que o mundo é ma- ya, o hinduismo nao-dualista esta dizendo que ha nele alguma coisa ardilosa. O ardil esta na maneira pela qual a materialidade e multiplicidade do mundo se apresentam como se fossem independentemente reais — reais sem levar em conta a postura da qual as vemos —, enquanto toda a realidade é, de fato, Brah- man indiferenciado, assim como uma corda largada no p6 continua a ser uma corda, mesmo que seja confundida com uma cobra. Maya também seduz com 0 fascinio com que se apresenta ao mundo, atraindo-nos para dentro de si e re- tirando de nos o desejo de continuar a jornada. Cabe ainda perguntar: se o mundo €¢ real apenas provisoriamente, como leva-lo a sério? A responsabilidade nao se afrouxara? O hinduismo acha que nao. Num esboco de sociedade ideal, comparavel a Repiiblica de Platao, 0 Tri- pura Rahasya mostra um principe que alcanga essa visio do mundo e, portan- 84 /_ As Religides do Mundo subjugd-los; sempre que hd um declinio da religiao em alguma parte do mundo, pa- ra ali Deus envia seu Salvador. E um tinico e mesmo Salvador que, tendo mergulha- do no oceano da vida, ergue-se em um lugar e é conhecido como Krishna, e, mergu- Ihando novamente, ergue-se em outro lugar e conhecido como Cristo. Cada um deve seguir a sua religido. O cristao deve seguir o cristianismo, o mu- ulmano deve seguir o islamismo e assim por diante. Para os hindus o antigo cami- nho, 0 caminho dos sdbios arianos, é 0 melhor. As pessoas dividem suas terras por meio de fronteiras, mas ninguem podera dividir o abrangente céu que esta acima da nossa cabeca. O céu indivistvel cerca tu- do e tudo inclui. Na sua ignorancia, as pessoas dizem: “Minha religiao é a tinica verdadeira, minha religido € a melhor.” Mas um coracao, quando iluminado pelo verdadeiro conhecimento, sabe que acima de todas essas guerras de seitas ¢ secta- rismos preside a indivistvel, eterna e onisciente bem-aventuranca. ‘A mde, cuidando dos filhos doentes, da arroz e curry para um, araruta para outro € pao com manteiga para o terceiro; também o Senhor oferece diferentes ca- minhos para pessoas diferentes, cada um apropriado a cada natureza. Havia um homem que adorava Shiva, mas odiava todas as outras divindades. Um dia Shiva apareceu diante dele e disse: “Eu nunca te estimarei enquanto odia- res os outros deuses.” Mas 0 homem se manteve inflextvel. Depois de alguns dias, Shiva reapareceu e lhe disse: “Eu nunca te estimarei enquanto odiares.” O homem se manteve em siléncio. Alguns dias se passaram e Shiva voltou a aparecer diante dele. Dessa vez, um lado de seu corpo era o de Shiva e 0 outro, o de Vishnu. O ho- mem ficou metade satisfeito e metade insatisfeito. Fez suas oferendas ao lado que representava Shiva, mas nada ofereceu ao lado que representava Vishnu. E entdo Shiva disse: “Tua intolerancia é insuperdvel. Eu, assumindo este aspecto duplo, ten- tei te convencer de que todos os deuses e deusas nada mais sao do que os varios as- pectos do Brahman Absoluto.” Apéndice: O sikhismo Os hindus tendem a ver os sikhs (literalmente, “discipulos”) como membros um tanto caprichosos da familia mais ampla do hinduismo, mas os sikhs rejei- tam essa interpretacao. Para eles, sua fé nasceu de uma revelacao divina origi- nal, que fundou uma nova religiao. A revelagao foi transmitida ao Gura Nanak — a palavra guru é popular- mente‘explicada como aquele que dissipaa ignorancia ou a escuridao (gu) e traz a iluminacdo (ru). Nanak, piedoso e reflexivo desde seu nascimento em 1469, desapareceu misteriosamente por volta de 1500, quando se banhava num rio. Reaparecendo trés dias depois, disse: “Se nao ha hindu nem mugulmano, o ca- minho de quem eu seguirei? Seguirei o caminho de Deus. Deus nao € hindu nem muculmano, eo caminho que seguirei € o de Deus.” Sua autoridade para fazer

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