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O AMOR E DEPOIS MARIANA IANELLI Beas tact Coke ae Cog ea coy DOr he tom oni Cortera) Naturalmente levado pelo sono. Dewi oOR Cw ac ctl Cy Cacho POT EO Me MOR Lom rennin eC De ventura, seria apenas Pe cec tea Re misc ater Cor thee tek Para um coracdo manso ey eee ec cir sss ee Como se 0 tempo nao devorasse Betton mice OM E dele fizesse exsudar um leve perfume, Como se nao arrastasse Cada corpo uma penumbra, . Como se fosse possivel Em vida a paz dos mortos. | | | Cornea ter Me CMY ctr ty Tanelli através de seu livro Kezer siléncio, cujo titulo ja de saida me Crease esse Tn prs Mecsr ret OMT meth Cd Rena ere eae Paes eat See ee are Err aCaeao tiger Me Tate Rees Mencommenrten tarts rere ta ae tama act de mio segura confirma que sim. O Bienen mune enreZeenesetcOe uma frequéncia intima de reflexio, Cena Etec ates ere peranga, qualidades que encontrei Eyer V Cree MO ewes CTO nca se WR Tae tnr eae ent mesmo quando deslumbra, PM uuu Mm aunt c tit lancei a sens outros livros ja publi- cados, até ter o privilégio de ler nO NON arate Encontrei aqui o mesmo cuidado ee erected agers MCR area mas no exclui, antes reforca, a espontancidade.” Uma “diccao a0 Ceca occ Meret perturbadora,” como quis ainda Antonio Carlos Secchin, PM turer Mierse yt esha Dyan a eee tee ‘usa com a habilidade dos mestres. Secor tees mT St ase R ean Tncett Lene ices econ toecoect Os Eee citar Cmte) Bower nT ed Ca eee Neat Cee rw eer ee Pees te a Oui a amor existe, | Um lundtico men- i i i i | i 1 i | 1 1 | i | i i | } ! 1 4 ' i \ } i i i i i i i i i i I i I i i I i i i i i i i i i i i i | i i i i i ij i 4 0 AMOR-E DEPC ERC E COLO eae mT cee espera de outra chance (Miragem). RCo neatine reget wires nunca revela a costura, O domi- io incomum que Mariana tem da escrita nos faz acreditar que, afi- nal, nao hi esforgo. no esforgo que seguramente empenhou ali. Eo footer One merc emr tart Prec creme ter Peer ie meee ences CO eye ae a E olbem pava dentro alguma vee /E Re eae Bee er Oe aa a Oo ar Estaremos & altura da tarefa? ate meee ee ee ec cnet Mariana Tanelli. A satisfacao que rome eet ere ey Sema seen tance Parrett sera ercen cence or Pree Pa aero eae can acted Perea ea tere eerie rd erect INE aerator ae ayn nae ee Comat ro merce, do amor (¢ do seu fim, e do que SenesO beaten ents ined Berea tne ccre Cn atom Oot cere Brora cece are tet ee Ou wir Pois, como lembra o poeta ¢ edi- tor americano Christian Wiman, eee eee poder habitar de modo mais com- pee a eee Cree er te ered capazes de habité-los mais integral- ee ee ae Patios tous Tw eae Copyright © 2012 Mariana Ianelli Copyright © desta edigao Editora Iuminuras Ltda. Capa: Contrastes (1990) - Arcangelo Tanelli - Pintura - Oleo sobre tela (200 cm x 160 em) Reprodugao fotogréfica da obra: Nelson Kon Projeto gréfico: Mariana Ianelli / AA Design Revisao: Ramon Blanco Fernandez CIP-BRASIL. CATALOGAGAO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ 16a Tanelli, Matiana, 1979- O amor ¢ depois / Mariana Ianelli, ~ Si0 Paulo : Iuminuras, 2012. Bem ISBN 978-85-7321-395.9 1. Poesia brasileira, 1. Theulo, CDD: 869.91 (CDU: 821.134.3(81)-1 13.08.12 17.08.12 038056 2012 EDITORA ILUMINURAS LTDA Rua Indcio Pereira da Rocha, 389 CEP 05432-011 Sao Paulo SP Brasil Fone. / Fax: 55 11 3031-6161 iluminuras@iluminuras.com.br www.iluminuras.com.br INDICE Pedra de Sisifo Pantasi Miragem. Primeiro di Lirica, Os teus olhos Campo de Cassiana: Ouro e purpura... Os Patriarcas. Por um fio. Hospedeiros. Instinto.... Semelhanga. Desafio. Josafa.... Dezembro:.52.8. Carta de Chankay. Uma manha. Katia e seus brinquedos Mirada... Na madrugada. Fruto cafdo.. Dueto. Poeta do campo.. Retrato de familia. Tigres brancos... Rota 40... Nosso Rein Uma flor entre as pagina Panorama... Potsdamer Platz. Amor, soberania ¢ morte em Mariana Ianelli.. Posfitcio por Contador Borges Sobre a Autora.. Para Ramon, que traz 0 amor no nome Devota como ramo curvado pelos nevoes alegre como fogueira nas colinas esquecidas, sobre acutissimas laminas em branca camisa de urtigas, te ensinarei, minha alma, este passo do adeus... Cristina Campo NESTE LUGAR Nenhum trago de delicadeza, Sé palavral avidas E 0 tempo, A devoracgao do tempo. Um jardim entregue As chuvas € aos ventos. O que para os caes F febre de matanca E para um deus Um dos seus intimeros Prazeres. Caminhos de sangue Onde reina o amor primeiro, Morada de stibita Auséncia do medo. Um despenhadeiro, 0 céu E uma queda Sem alivio de esquecimento. LEGIAO As estétuas cobertas de hera Os casulos debaixo da escada O chao perigoso, esverdeado Mas ninguém se lembra Que em outros tempos Coisas mintisculas se agarravam E cresciam atrds dos reposteiros — Toda uma orgia assim igual a essa, De trepadeiras e crisdlidas, | Uma legiao de verdades escondidas Que a seu tempo conquistaria tudo, Rebentando a céu aberto, arremetendo Sem mais fazer sombra pela casa. HERANCA Nao escolhemos voltar, ter as maos E os pés desatados, feito Lazaro, O milagre do riso no fundo de um espelho Onde se foram misturar pavor e nausea. Outra vez e a cada passo as cegas, Os filodendros até a porta de entrada, Voltamos e a nossa maior fortuna E um rescaldo de violentas tempestades. SCOBRIMENTO Depois de uma viagem Que foi quase sempre angtistia De se debater num mar adversdrio fi entao o inexprimivel De pisar em terra firme E ainda ser capaz do passo distrafdo, Essa gloria de juventude De se deixar levar E ser4 algo tao novo Como se nunca tivesse existido Nunca tivesse nem mesmo Sido desejado — Um caminhar estrangeiro Por entre o orvalho ¢ a névoa, Um frescor de primeiro dia, Um momento sem passado, ‘A chance de tocar um mundo novo Como dois azuis se podem tocar Sem pecado. POSICAO nta e refinada arte fazer nascer um addgio — ir 0 peso a cada pedra yer mais alto o edificio cada coisa abandonada cada rosto de si mesmo perdido — se edificio transparente ¢ musical Onde se vé um passaro sobre ruinas. Vem de uma extinta batalha © calor dessa ternura Que é uma espécie de cansago. Quando a palavra nao ousa, Conversam os nossos olhos Sobre descampados, carcagas tristes, Um cenario de fumaga De uma devastagao que nos deu O ritmo ¢ as razdes de um salmo. O que nos dizemos Os amantes se dizem, os irmaos, Os ctimplices numa atrocidade. Dizem os olhos A noite que viram do outro lado E o transliicido, Finissimo domo de orvalho Que comegamos a ver (e nos envolve) No comego de uma ldgrima. ARCA DA LEMBRANGA Um sol de opala se uma tarde é pasto da meméria, Uma luz de ché dourando o canto cego de uma sala E sobre a mesa o espelho d’4gua A ocasiao do ato secreto De repovoar veredas, antros, mirantes do passado, Saudade que vai juncando de ramos, conchas e corais ‘Todo o imenso dorso de um barco naufragado. ESTA HORA O espasmo e um facho de luz Embebido nos vitrais de um templo, Ou talvez um dilivio, A voragem do estupro, e entao A calma trevosa debaixo d’4gua — Algum arrebatamento Algum sortilégio sobre a realidade Que deixa um corpo livido e cheio de gléria Como reminiscéncia de um bosque Rebrilhando em noite de geada. MO QUEM PESCA jperar ainda é pouco. jais é esperar como quem pesca orto entre dois céus — Jim barco fadado as trevas, ito para ser levado ao fundo © mar, desmesurado, nao leva... vena e soberana fera ¢ vem lamber as maos de um homem um instante e por obséquio. DRA DE SISIFO nda que tao longe no tempo quase adormecendo no mito) gressa agora num arrepio inferno que era rolar a pedra (¢ 0 alto de uma colina indo nada na paisagem dizia Jue dali alguma coisa brotaria, ém do infinito esforco inucil, Jue nasceria, sangrando em flor, ‘sse tempo de agora, sem castigo. ois da bruma que seduz ao erro wis da grande decepgao e do escripulo mo que te doendo como a um animal desse vingar pura a crianga sopro que te deu vida, coragao fremente, eslumbramento & margem dos abismos, guizo de tirgidas estrelas e nada mais... IRAGEM ‘lixistem ainda outras versdes Para o rumo de uma histéria, lixistem outros rumos, outros bailes da sorte — O amor, até 0 amor existe, Um lundtico mendicante que vadia pela terra espera de outra chance — . l) tudo nao passa de um relampago, miragem do esplendor numa terra de cinzas, O terror de se haver com as possibilidades mortas. |MEIRO DIA 0 sfio os ossos de uma casa jie tudo se desfaga — h4 uma tarde e uma manha {i onde houve um massacre a sombra movediga Im indicio de mariposa Jm olho que volta a se abrir 4 misericérdia. egasse antes da hora Ai te veria jo ato que sempre sé imaginei — a forma estélida, absorta, lossuida De um saber que livro algum Jamais te deu. Sem tocar teu corpo cantaro Provaria O sangue da tua meditagio, fi aquele rancor sequer perdoado Aum morto Num amor rebentaria, Alheio ao teu juizo, Como quem canta a noite A boca de um pogo E pela voz de um outro E correspondido. Assim eu revelaria O teu amor aos assassinos Precipitando-se Num rosto compassivo Que me recebe na hora certa 41 E permite TEUS OLHOS Que o meu pensamento Penetre o teu sem relutancia E faga contigo F . i B ie estejam vivos em algum lugar Irremediavelmente teus olhos A pt O que sé um poeta faz Com as palavras. : y io importa onde se demorem, » Jue coisas afaguem, que outras molestem, porta que estejam vivos ¢ curiosos olhem para dentro alguma vez © que vejam ieja alguma forga de sequdia sa & terra desde o império Je outros tempos seja ainda uma fonte de pedra, ejam Aguas correntes ¢ o privilégio De uma calma repleta ‘O regozijo da sombra lussado o terror das guerras) Que dessa multidao, desse rubor de sumo segredo de floresta e encham os teus olhos, 46 ento se esfumem, e sé entdo se fechem. 42 AMPO DE CASSIANAS ic todos nés que sobrevivemos pelo menos um desconsolo mortal. terno o teu corpo adolescente Se oferecendo num banquete divino, Sendo envolvido, devorado lentamente, Atrafdo por uma forma indestrutivel de virtude. Na tua imagem um sem-fim de sutilezas Que nao se apagam por falta de emogao, Sendo 0 contrério, que abrasam, que fustigam Com uma beleza que nunca nos pediu retribuigao. Ff, no maérmore o teu busto querendo ser tocado E no torpor & sombra de uma grande asa Em um dos biblicos jardins do oriente A idade da inocéncia em que tua vida se calou. Como a cada ano 05 Iirios, os gladfolos, Os cravos e os crisantemos, todos brancos, ‘Também o teu nome rebenta e se multiplica Num imenso campo magico de cassianas. © E PURPURA ra um pais de ouro e purpura, itono de rosa mosqueta e de magas — 0 © parafso que sonhamos uma vez nas para inventar boas memérias — io é mais um éxtase de nossa lavra o disfarce de feridas bem guardadas receio de munir com as nossas faltas inimigo no sentimento do amante. é mais deixar para amanha anha sempre a mentira deslumbrante um minimo gesto de distancia ler tocar o ideal de uma paisagem. © foram todos os nossos truques, idonados num tremendo acidente, 4 cormenta, num incéndio, numa alma foi picada em seu sono e despertou. of um pafs de ouro e purpura is despojados, tontos de ar puro, m-maduros para o amor sereno, jo Outono de rosa mosqueta e de macas. IS PATRIARCAS Nos que enlouquecemos de orgulho Produzindo ferro e fazendo miisica, Com que despeito vertemos nosso nojo, Nosso uivo, nossa dor de criatura [io que dizer do prazer subterraneo De atravessar desertos farejando sangue, Qualquer coisa que se mova e resplandega, Uma infancia para extirpar do mundo B quanto ainda pode valer nossa alianga Com o deménio do sarcasmo, essa jura De um dia pousar sobre a nossa cara © hélito quente do destino feito um lobo Uma cicatriz feito um brasao de familia, Todos marcados, condecorados pelo crime, ‘Tantos filhos, tanta fiiria depois De termos gerado em nés 0s assassinos. OR UM FIO casa deserta ‘omo se todos estivessem mortos. ssa quietude de Apice consumado. jm rastro de seda e a aranha Numa danga minima Gozando a espera desapressada. De tal modo sutil lisse fio, esse elo com as coisas, Que é real ondear pelos ares, Gentil pedir licenga as noites, Agradecer pela acolhida Ao corredor das velhas estatuas. Uma bondade a salvo de explicagées Que este lugar exista, Sendo tao mais humano Que nada, mundo nenhum vingasse. Uma beleza sem quem a perceba Ser o fantasma desta casa. HOSPEDEIROS Como saber que era em nés Esse animal de mansuetude, Enormidade feita de cleméncia E de veludo E que podia viver por tanto tempo Bem guardado sob a pele, Espelho dessas criaturas Abissais, meio fantdsticas, Que nao conhecem a luz. Que de todos os possfveis Ficaria essa trilhada Em que os pés vao sozinhos, Sabios embrutecidos De vasculhar entre despojos Como tem as palmas calejadas De enfeixar o trigo uma ceifeira, Como tem o peito crestado De se dar ao mar um pescador. INSTINTO Porque um dia te chamei Para sempre me persegues E j4 ndo me estilhaga O quanto perco Nem fingir que me despeco Como se fizesse do siléncio O véu de um corpo — Porque de estar contigo Ja nao me despego — Pode um remanso Ir me tomando & forga, Ameagando me chegar & boca, Infinitamente mais escuro | E raptor, teu beijo é dsculo. | SEMELHANCA —E se a tua mudez For a superficie de um lago Que nada recusa refletir E se eu ali mergulhado Feito um cego Compreender Que 0 rosto que me falta ver F este rosto Que sempre te oferego Mas que frente a frente Jamais encontrei E se 0 pranto for a verdade Do canto O assombro de um horizonte Tao brando Que desde longe me obriga A trazer 4 tona, um dia, O teu rosto refletido — DESAFIO Um ultimo olhar para os canteiros repisados, Ainda isso te comove — Sao coisas familiares que retornam, Pequenas pedras, lampadas de um caminho, Uma trilha sob o arco da folhagem Como se apesar de tudo os mesmos passos, A mesma ronda, 0 mesmo afogueado abrigo. Provando o rumor dos interiores, As cores sdbrias, o lado gético da vida, Pouco a pouco perdendo o fogo e 0 vigo, O desafio € quanto pode durar o teu sorriso Contra toda a tua escéria, as tuas derrotas, No fragor dos estilhacgos, algum brilho. JOSAFA Um trem some na noite, Ja nao sabes O que nesta viagem ‘Te aconteceu, O olho cego de Deus Ilumina os campos nevados, A brancura de nada saber Te faz bem. Moves-te Num ventre de dspide, Move-te a vontade de outrem. ‘Tua complacéncia viaja. ‘Tua complacéncia, Uma furia Que o vagar das sombras Enterneceu. Nao hé tua histéria, Tua estrela no peito, teus bens. Hé4 um rosto fixo ¢ mudo. Teu nome é ninguém. DEZEMBRO Trés e meia da tarde no reldgio de parede No fundo & esquerda de uma fotografia E do teu rastro d’dgua contra um céu de dezembro Nem o mais ténue vestigio. Antes alguma ancora te prendesse. Nada te prende. O que inspira Nao te move mas te apaga e dessedenta. Um sol de dezembro. Um sol além do medo. CARTA DE CHANKAY De uma carta sem data de meu avd Sobre as ruinas de Puruchuco, no Peru Esse pouco roubado de uma urna fi quanto basta — esse pouco Depurado de tragédia, Um restante de partes desencontradas | Que produzem a saudade Feito um cacho de uvas negras — Fragmentos revolvidos, misturados Ao prazer de ver nascer uma verdade, | A verdade de uma carta Que escamoteia um século E fantasticamente fala do presente Como numa profecia desvendada. Fala a carta de uma viagem a Chankay, De um todo de areia e céu ¢, ao longe, o mar, Fala de uma travessia no deserto E do vaso de um ttimulo violado Por cujas fendas o vento silva num lamento E nesse lamento um encanto mais potente Do que a mdgoa. Arrepanhamos esses cacos magnificos Sem mais semelhanga com o que morre. Arrepanhamos de galerias profundissimas Um tempo ja sem tempo de vaidades Eo sabor de roubar essa reliquia — A saudade feito um cacho de uvas negras — Nos ensina a gostar da nossa histéria. UMA MANHA Haverd nisso pureza, sob a luz Que ainda nos chega De uma estrela ha anos extinta: Duas sombras que se amam Porque foi em outra vida A encruzilhada De irreconcilidveis diferengas. Desabrochada da noite Como de um combate imenso, Uma centelha do principio dos tempos: Numa cama de escombros Nosso abraco inevitavel, Nossa nudez sem vexame No ermo das coisas desfeitas. KATIA E SEUS BRINQUEDOS Cinquenta anos desde aquele retrato Num interior iluminado, Um desastre revolveu a terra E expés a raiz de plantas altas e frias. Os pés descalgos na claridade liquida De um jardim em chao de mosaico, A mesma menina, a sempre viva, Brincando a sério de reerguer sua morada. MIRADA Uma tarde amarela E dentro a parede rasgada Ja sem as altas janelas De onde se via 14 embaixo A conversa das estatuas Com seus olhos de pedra Infinitamente ausentes De se haverem voltado ao passado. Nao ficou uma sé alma atrds da porta Nem as portas ficaram. Os gradis, as lanternas, os pilares, Foram-se as barricadas. A vida agora acontece em outra parte — Era a mensagem, ¢ parecia leve, Translicida na tarde amarela Feito uma casca de cigarra. NA MADRUGADA Se conheceu uma passagem Ou se de dor alucinava, A verdade é que se viu numa jornada E, nao pesando mais sua angustia, Era suave, qualquer coisa como um nd Se desatando, ver a si proprio Num mirante e no horizonte Apenas neblina sobre as casas, Branca la sobre todas as suas vidas Jé confundidas, remotas € perdoadas. FRUTO CAIDO Um dia uma paragem Um rendilhado de sombras Uma fonte na cangio das folhas E nada mais tem a cor do luto — Um dia um fruto caido O licor ungido na lingua O sangue fabricando amor A morte é um escarlate subito. DUETO Nosso segredo de camara (Como o de tantos casais) Seria o acordo de calar um morticinio O mérbido prazer do gosto amargo A farsa consentida Uma legido de deménios A cada gesto vagamente ambiguo — Seria ainda 0 mais escuro, Nao fossem os nossos pés na dgua Flutuando sobre as hidras, A pele onde uma casa ‘Ao final de um longo exilio, Uma cruzada de criangas, um dueto, Nossa corola aberta a cada grito. POETA DO CAMPO Cada coisa que tocava era tocada com minticia, Toda a sua alma a escuta de uma caricia Era agora um cego lendo o livro da sua vida — Para trés ficava a roseira-brava com seus espinhos, JA muito longe iam os atalhos, os artificios — Era agora onde o vento desimpedido vibra E vibrava por dentro 0 arco do seu destino. RETRATO DE FAMILIA Nascidos da mesma arvore, Do mesmo cheiro alcanforado Dos bosques, do mesmo amago, Nunca antes estivemos téo préximos, Mais fortemente atados do que por amor Unidos a machadadas, amalgamados Ao fim de tudo com brandura — Esse perdao fora do alcance da palavra — Todos radiantes, todos tao bonitos No arrebol de um punhado de brasas. TIGRES BRANCOS Podemos ser prédigos (Verdadeiramente prédigos) E nao voltar as mesmas velhas histérias, Nao recontd-las tantas vezes Até que se tornem As f4bulas do medo, Do desejo e da revolta Em que se gastam mais uma vez O nosso tempo € a nossa sorte — Podemos ser aqueles Que nunca mais retornam, Os que merecem desta vez O tempo presente — A pagina imaculada — Esse halo de majestade Dos tigres & beira da extingdo, Sem rasto de vidas pregressas E sem um fio de esperanga. ROTA 40 Iremos até a copa de arvores petrificadas E sobre vértebras de centenas de milhdes de anos. Nao ser4 um idilio pastoril. Sentiremos frio e tudo 0 que j4 suportamos Serd nada na alvura dessa terra De turistas do abandono e da amplidao. NOSSO REINO Lembram eras antiquissimas os nossos dias Gravados na pedra num rasgo de navalha. Aqui, 0 pouco que nos acontece E alegria — uma riqueza de matizes Que vamos descobrindo na cor da rocha. Cabe num desconsolo do espago 0 nosso reino, Mas afinal um reino inteiramente nosso — Uma abébada de sombra e alguns ossos E amanha os nossos nomes lado a lado Na parede de uma cela, como dois apaixonados. UMA FLOR ENTRE AS PAGINAS E espalha os odores pela casa onde habitas, meu Deus. Etty Hillesum Olhai o jasmim como cresce Entre 0 muro lamacento e o telhado, Como continua a florir no meio dos campos gelados — Nem 0 lirio dos Evangelhos Nem a rosa branca de Rilke Em todo o seu esplendor se vestiu como um deles. PANORAMA J& esquecemos o quanto foi destruido Até que se abrisse essa paisagem — S6 0 que vemos sao essas formas escavadas pelo vento ‘A beleza de uma terra violada até a pureza — Esse vazio das estepes onde nada cresce ‘Além de uma relva amarela que € pasto das ovelhas. POTSDAMER PLATZ Nao desisto enquanto nao encontrar a Potsdamer Platz. (Asas do Desejo —Wim Wenders, 1987) Novamente o mundo e tantos mundos, Mais que um fundo de pantano ¢ rufna, A mandala dos anjos de Hildegard von Bingen Sobre uma praca onde as distragdes Podem ser procuradas e conseguidas — Aqui onde os caminhos se destringam, Um mundo e a claridade do desejo De alguém que muito longe e muito antes, Recalcitrante entre os restos de uma guerra, Tentado a desistir, nao desistiu. AMOR, SOBERANIA E MORTE EM MARIANA IANELLI Contador Borges* Em tempos de saturagao de linguagens e histeria de signos, a poesia parece constituir-se na melhor resposta & descrenga de Pascal, para quem o homem sé é capaz de coisas mediocres. E esta fé que o leitor vé renovada pela palavra poética e seu empenho em fazer tébua rasa dos sentidos, dos esteredtipos, ¢ deste modo recolocar na origem nossas relagdes com os seres e coisas € com a propria linguagem: “como a vida é grande quando medi- ramos sobre os comegos! Meditar sobre uma origem, nao &é sonhar?”! Pois é este 0 movimento que demanda o poema quando a moeda dos signos se desgasta por tantas trocas simbdlicas, por tantas perdas ¢ danos na reiteragao do mesmo pela comunicagao cotidiana, pelo abuso da midia, pelo oportunismo ideolégico, enfim, confirman- do a tarefa sempre urgente do poeta em “dar um sentido mais puro as palavras da tribo” (Mallarmé). E neste Ambito que o leitor estabelece um pacto com a poesia, sem o qual as vias de expresso da linguagem ficam obstrufdas, sem oxigénio, sem liberdade, sem beleza. E se \Gaston Bachelard, La potrique de la reverie. Paris: PUF. 1960, p. 94. m5 a lingua empobrece é a vida que sofre, e nao se pode dar trela ao coracao, isto é, as “razdes que a Propria razao » sta mdquina por vezes limitante da sensi- bilidade e do pensamento. comunicag4o no sentido forte desconhece” A comunicagao postica, do termo, pelo contrério, nos coloca em comunhio com o Aberto, no dizer de Rilke, pois as telacdes que a Poesia favorece © poe em jogo produzem novas apropriacées de subjetividade, que Por sua vez se objetivam em Processos de afirmacdo da existéncia ¢ da prépria vida. E este estado de choque, este sentimento que abole toda indiferenca, toda nulidade, que os poemas provocam. Jogo de sensibilidade, sensibilia, Pondo a raz4o ¢, no limite, a “apientia em estado de alerta, em regime de desconfianga, de diivida, mais radical das violéncias (e também a mais delicada e sutil) que a poesia exerce sobre os poderes do pensamento e da linguagem. Este Passo além, para o olho duro e ° saber pragmético, nao serg excess pode produzir com isto? Ora, que se trata: de risco, talvez a ‘0, loucura? O que se € primordialmente disso a poesia nada produz a nao ser a afirmagao pura de si mesma, que pode ser entendida como uma soberania da inoperancia. Mas desse modo o poeta evita tepisar os signos & maneira da comunicacao convencional, pois 0 mecanismo de tepeticao da atividade produtiva sé Serve para confirmar 0 que a cultura sabe de si mesma. O que cla nem sempre sabe ou nao quer saber é que a poesia espiral e surpreender os a funcdo do poeta é arejar a costuma girar em outra volta da sentidos da lingua. Por isso, 96 teia para o orvalho da vida e seu ea fechar soberanamente os olhos para ver a - aforismo de René Char: Treva alvorada, ae a um dos titulos de Mariana Ianelli. Sao as con licsesa) esta operacio retine para dignificar cee ein e, quem sabe, reinventar algo para o one ce ber do nao-saber, o fundo do descouu ec fe — na célebre formulagao de Baudelaire. osm - atividade, paradoxalmente inoperante g ee homem desaparece debaixo da massa indiscrimin: ne signos, como se as mdscaras acabassem por devorar a s tancia de seu préprio rosto. eae Falar da origem ¢ 0 mesmo que elles a a que os extremos sé podem se comunicar com on e agenciar um espago comum sem dyes, torte e-stdeeceletiadad manent n espelho negro das palavras. E assim as tm a ann recoloca o leitor em sua origem, refazendo 0 te! ae este gesto de brincar de deus das es e ae coisas, entre o tudo e o nada, Soe & um Bs jogo, de saber e nao saber, de experiéncie e oe i sombra ¢ luz, resplandecéncia ¢ ane =e ara o poeta (como para deus) nao ha di E leah criar, Importa, aqui, lembrar a one intuicéo de Blanchot, segundo ene oe dat relacdo constante com a morte. oul : an é 0. Quem dispée dela, dispde SE ; ie aha Ae Maret ate 7 morte”, se i. estabelece com ela relagdes de soberania”.3 IL Pensando nisso a | wu F se que sua singularid. i Be Side Maitea anally uuaridade € for f i i ‘ar os sentid reinterpretacdo de si Os a uma le si mesmos, vy. i » vale dizer, i € suas relacées, » da vida, do, de novo pairasse / No mundo | A s homem.s Ou ainda, com vé- do ser com. nine ‘© que em um retorno ao desconheci. a i nos em estado de nudez essencial como se olidao do primeiro Ae er demolidora delicadeza, nos a morte para celebrar a vida, ao mes oO em a ; = ip que Nos mostra nao ser isto possivel sem aceitar o prépri E 0 sofrimento: Jé : : Jd varri todos o: Ss mortos, / Nao hd restos no chéo ™ quarto branco, uma cadeira, hd vestos hao. | Uj 6b , cad / O me f e u tempo ¢ 0 presente, / Nao tenho do 1m, porque o “presente” é 0 tem poéticas. FE que me queixars a po de todas as operacées et : que age o mistério da criacao, Pratica o rito de nascimento, de gozo e di if ee gozo e de sacriff que se que n4o € outro a + cio dos ee ee senao a atualizacao simbélica de lagdes de vida e di . le morte com tod: " Eis uma todas as coisas, Prova de fogo . E, a respeit , peito de como Mariana Tanelli lei se posiciona di ante da cont. : ‘emporaneidade, 2 M. Blanchot, Li A ee ‘espace littraire. Paris: Gallimard, 1955, p. 110. 4M. lanelli, Treva alvorada. Sao Paulo: Hum inuras, 2010, p.5. i, Trev, vy P. j Th > M. lanelli, Almddena. Sao Paulo: Huminuras, 2007, p. 69, : 98 que ele sé conse gue escrever se é “ - senhor de si di iante da Contemporineo, diz Giorgio Agamben, “é, justamente, le que sabe ver essa obscuridade, que ¢ capaz de es- aquel pena nas trevas do presente.”6 crever mergulhando a Deste modo a poeta sonda o ser na ling! a trajetéria do gesto inaugural do poema, Que se anuncie que 0 uagem, refazendo que ao mesmo tempo participa de sua morte. ponto alto desse trajeto vital é talvez a maior invencao da cultura: 0 amor. Enquanto dura o ato criador, muito se sacrifica da linguagem: em poesia, a economia do texto nao se faz es dos sentidos efémeros, dos lampejos, das mas inebriantes, que desaparecem ¢, sem as mort! aparigées fortuitas, como os mortos, séo matéria varrida para o siléncio, em que a palavra abortada, a pagina rasgada, a coletanea per- dida, o livro impossfvel sé encontram cumplicidade na passagem do tempo, isto ¢, no que este agente maior invis(vel tem a ver com a ruina e a consuma¢ao de si. Mas felizmente esse movimento também ocorre no prazer da relagdo do poeta com a obra, a escrita que lhe salva da tuna nessa dilatagdo do tempo na qual se adiam com- promissos, congelam-se adversidades, todo o tipo de ameaca, de interveng4o inoportuna, impelindo a obra para frente. A soberania do poema se manifesta: Olho 0 escuro, olho os dias | e néo preciso penetrd-los / para viver como quero.” 6 G. Agamben, O que é 0 contemporiineo? E outros ensatos Chapecd, 2009, p. 63. 7 M. Ianelli, Trajetdria de antes. Sito Paulo: Iluminuras, 1999, p. 135. 99) is i ‘i i i Esse “quando” que Em O amor e depois, as questées acima referidas corpos se fundem na intensidade. qi q continuam sendo enfrentadas por Mariana Ianelli com a anula no ato amoroso toda percepgao do oe se torna mesma nobreza e reticéncia, pausa necessdria para que 0 visivel na trama poética como sangue ee lo are a leitor respire fundo e medite sobre a escrita. Neste livro, parte cognoscivel do imenso, que na imagem i iao a gradacao de sentidos sugerida pelo titulo tem a seu fisiolégico e 0 ideal, pois nao se pode se fuiae izer qe favor um sol além do medo: os instrumentos fornecidos o “depois” do amor € a morte, eindrlate stbito. Assim pela poesia revelam-se em varias facetas nas quais se apre- voltar atrés nao é mais possivels jé que o parafso termina senta a luta do poema contra o tempo e o terror da ruina, onde comega 0 abismo, ocasiao caus a peatiens morte que lanelli nao mede forgas para o enfrentamento, nem despossui o sujeito na aaa de cs Como - abre mao de recursos como a proeza de suas imagens, amor acaba? — O qué? Ele entdo acaba?”, pergunta méscaras, e até mesmo a poténcia do falso, para utilizar Roland Barthes.* eee Fl uma expressio de Deleuze, 0 que na linguagem cria Levando em conta a experiéncia vital do amor e da prodigios, interroga as sombras, penetra as frestas dos morte para a subjetividade, interrogue-se: quantas sentidos, se avizinha dos acordos e dissidios nos cami- mortes tolera o amor? Serd que a ce sucede ao aoe nhos e descaminhos dos corpos, seus acertos e malogros. porque 0 sujeito nao suporta por mais tempo a poe Eis 0 que implica a ousadia de fazer siléncio. O que pode saturagio em que se encontra por fore daquele? : cre ser mais verdadeiro? E nesse itinerdrio, por meandros mesmo que a morte representa um limite em que a p ents inusitados entre as palavras e as coisas, que a poeta mate- tude do amor se mostra intolerdvel? Masiisso - a rializa Um restante de partes desencontradas / Que pro- fazer pouco do amor, que é imenso ou nao € nada? a duzem a saudade / Feito um cacho de uvas negras. A entio devéssemos conceber serenamente 0 amor ee nao-cor age como um disparo de arma branca de lucidez como movimentos distintos e complementares de i poética alvejando a fruta no dpice do gozo e dando inicio mesmo processo vital: Era esperado que aos so ao “depois” do deleite. Esse movimento assinalando o Definhasse, fosse desaparecendo / Naturalmente leva Aid lado extremo das coisas, o instante em que uma figura sono / Era suposto que por abandono Ce —A énfase cumpre seu termo e resolve o acontecimento do ser na nos tempos verbais sé reitera aquilo que ja sabemos, por i 4 « z iénci mana testemunha de linguagem, seu tempo de nascenca, madurag4o e morte, suposto”, e que a experiéncia hu € também aquele que nos coloca na possiblidade de rahi 7 m i: Seuil, 197, p. superagao de todo limite, quando no dpice das relagdes os 8 R. Barthes, Fragments d'un discours amoureux. Paris: Seui P. 100 101 sobra, pois as operagdes amorosas preenchem a lacuna deixada pela atividade produtiva naquilo que a cultura instituiu como exigéncia do trabalho ¢ dos dias. Para complicar, ha 0 fator temporal, a legiao de anjos vorazes agindo imperceptivelmente desde o nosso mais reles movimento, Como se 0 tempo ndo devorasse / Também o desconsolo, / E dele fizesse exsudar um leve perfume. Ao amoroso sé resta este efeito, a forma que assumem pro- priamente a rufna e o desaparecimento do amor, ausén- cia a qual, ligada ao fantasma, separa o sujeito (por um ténue fio) do ser amado. O amor nao deixa de ser um acontecimento que nos leva a reconhecer uma pluralidade de efeitos decor- rentes de tudo o que somos, mas também de tudo 0 que nos falta, nos fragiliza, nos fratura, quando ja nao h4 mais lugar para o sujeito em nés mesmos. Assim, o “depois” se constitui como um efeito de morte dupla: do outro, que desaparece, e do sujeito esvaziado do amante, ou, talvez menos grave: do sujeito em frangalhos, mini- mamente falando, Na outra ponta da meada, a poeta est4 em guarda diante da morte e, por amor as palavras, resgata a relacdo com a vida. Por isso, pensando no signo como um “véu pintado”, na expresséo de Barthes, a poesia renova os sentidos do ser: sem ela nao h4 como resgatar a nudez perdida do que somos e néo somos. E Mariana Ianelli pode entao dizer que Nem o lirio dos Evangelhos / Nem a rosa branca de Rilke / Em todo o seu esplendor se vestiu 102 como um deles. O movimento de vestir as coisas com sig- nos e as relagdes forjadas entre eles e os referentes do exterior (se bem que neste plano o lado de fora da lin- guagem nfo existe), depende da aposta do poeta nas palavras, que também pode ser vista como um ato amoroso, seguido pelo inevitavel “depois” que 0 conecti- vo “e” tao bem evidencia em flagrante ambivaléncia unindo e separando os elementos: amor / morte. E na perspectiva dessa barra ou fronteira que Mariana Tanelli insere 0 leitor, porque, no fundo, Tudo ndo passa de um relampago, / A miragem do esplendor numa terra de cinzas, / O terror de se haver com as possibilidades mortas. O que a imagem do relampago e da miragem esplendorosa ergue nao é outra coisa senio 0 corpo extasiado pela experién- cia do amor, mas ao mesmo tempo submetido & intran- sigéncia e A danagéo do “depois”, o terror da rufna. Georges Bataille por isso mesmo afirma que “apenas 0 sofrimento revela a inteira significagao do ser amado”?. Mariana Ianelli sabe e mais de uma vez acentua: depois do amor a poesia é tudo o que resta ao poeta. E certo que cle tem a vida, mas, atendo-se &s suas deman- das, coloca-se na encruzilhada de todas as exigéncias que acabam por montar em seu corpo, se enrolar em seus bracos, embaracando, imobilizando imponderavelmente seus dias e noites, A vida segue seu curso. Mas a vida urge e nao raras vezes exige excesso € paixdo, porque a morte 9° G. Bataille, O.C. X, Lévotisme. Paris: Gallimard, 1987, p. 25. 103 est4 sempre a espreita como uma mancha indelével em nossa trajetéria de antes e de sempre. A vida (c 0 amor) se comporta como a hidra de Hércules, suplicando por algo maior com suas intimeras, reincidentes cabegas. Por isso, se o poeta cede a esse movimento imperioso, j4 nao escreve. Nao se pode viver plenamente e escrever todo 0 tempo. Escrever ¢ regime de desvio ¢ como tal tem a ver com a navegacao ¢ ndo com a inexordvel vivéncia. E para © escritor navegar é preciso. Verdade que a escrita é um fluxo entre outros, fluxo de vida, sem dtivida, e de grande intensidade, mas isso jd é outra coisa. E como extrair o maximo da existéncia num mundo paralelo, jardim das delicias, jardim de ruinas. No fundo e na superficie, & flor da pele, a poeta sabe que em matéria de amor, nao no sentido de dgape, o amor fraterno, inofensivo para si, mas no de Eros, 0 amor se revela encantatério e ao mesmo tempo perigoso, no qual 0 outro pode ser o estopim de nossa grandeza, mas também de nossa miséria. O proble- ma é justamente este “depois”, o tempo abissal que emerge do fim do amor, parecendo intermindvel, como exprime tao bem a formulacao mistica de Teresa de Avila em seu “morrer de nao poder morrer”. Na perspectiva do apaixonado, este tempo parece muito maior do que o da plenitude do amor. Pequeno porque imenso, incomensu- rdvel enquanto vivo, Exatamente por isso, 0 amor escapa 4 medi¢ao do tempo, j4 que sempre o ignora. O que dizer diante desse “depois” pode comegar com certa confissdo de impoténcia (adynaméa) em forma interrogativa: “e 104 agora, José?”; ou entao: “o que fazer, Josafa?”, ie parafrasearmos Drummond com o personagem dite deste livro. Talvez preenchendo a lacuna como faz Ianelli, a lacuna que a vida deixa depois do amor, & qual somente a poesia responde. A poeta sd conta com O olho cego de Deus, pois move-se / Num ventre de dspide, retrocedendo até os referentes mais toscos da animalidade, dir-se-ia, quando a vida natural comega, até a sofisticada e intri- gante realidade das relag6es sociais e intersubjetivas, nas quais o sujeito é movido pela vontade de outrem. Mas por que outrem? Quando se vive no “depois” nao se pode mais ser 0 mesmo, senio varios outros pela metade, aos pedacos de um eu multifério, tantos sao os efeitos que assolam o lugar esvaziado do sujeito, mutilado desde a raiz dessa nogdo ideal pela mortificagao voraz de Eros. E essa pluralidade de efeitos que a poesia reflete ¢ que a ee de Mariana Ianelli traz 2 tona no rio caudaloso e certeiro de sua poética de multiplas extragées ferindo de verdade os olhos do leitor. A respeito desse sujeito esfiapado é a poeta quem diz: reu nome é ninguém. Tl Assim, se a sem-razao tem um plano discursivo, € 0 da fabulagao poética assolado pelas razées do coragao € das outras formas de erotismo: sexualidade, erotismo sagrado, mancomunado com a violéncia e a morte. O espaco literério € desdobrado in extremis por sobre as 105 lacunas deixadas pela vida, seus agentes e acidentes. Pois a Iégica nao explica isso. Um dos méritos de Se é justamente o de ter delimitado 0 alcance da linguagem da razao, deixando de fora todo o inex- plicdvel: © reino do siléncio (“o que nao se pode falar, deve-se calar”)!, porque os campos da mistica, da ética ¢ da poesia transbordam os dominios daquilo que se pode atribuir rigorosamente aos sentidos da linguagem. Deste modo, os poetas respondem a contraluz da razio pelo que a raz&o nao ousa fazer e a ldgica sé pode ignorar, manter & distancia como se faz com os loucos, doentes e apaixonados. Nao que a poesia se dedique a explicar essa matéria excedente de nds mesmos. A poesia sé pode ser ela mesma, isto é, violentar com lirismo todas as coisas todos os seres de linguagem. E assim que ela se caprime a deriva da comunicagao cotidiana, da linguagem do senso comum, exatamente porque nos coloca em relagao com o incomum, inusitado para nés. A poesia é essa “lin- gua A parte que os poetas podem falar sem o risco de serem entendidos”, como diz Jean Cocteau!!, nao porque 0s poetas representam as elites que pretendem manter toda populacao restante & distancia, & margem de suas operagées soberanas, mas, ao contrdrio, porque a lin- guagem poética é sempre a tiltima reserva de poder de que dispdem as formas simbélicas para a sondagem do 10 2, Wire T ico-phil icus, Sa ned sgenstein, Tractatus Logico-philosophicus. Sto Paulo: EDUSP, 1968, M7. Cock “Clair » J. Cocteau, “Clair-obscure”, in Potmes. Paris: Rocher, 1984, p. 65. 106 homem, livres da sujeigéo de outros discursos de poder (religiao, politica, ciéncia, midia), provavelmente a tinica garantia de renovagio da lingua ¢ dos valores humanos em favor da vida. Perigosos, os poetas? Mas nao sera mais usual (ou pragmético) dizer que nao servem para nada? Obsoleta, ignorada, exclufda desse mundo histérico, rui- doso, histriénico, a poesia acaba soando ainda mais estra- nha, mais fora de lugar e quem sabe por essa raza0 ainda parega mais urgente. Nao apenas ao leitor de poesia, mas potencialmente a todo ser sensfvel que abre um livro ¢ lé. Percorrendo O amor e depois em “dueto” com Mariana Ianelli, o leitor ir se deparar com tigres brancos no caminho sem perder a esperanga, pois o que aqui se Ihe oferece ¢ a melhor resposta que a poesia pode dar: Algum arrebatamento | Algum sortilégio sobre a realidade / Que deixa um corpo livido e cheio de gloria | Como remi- niscéncia de um bosque | Rebrilhando em noite de geada. Ao aceitar o “desafio” de pensar (e dizer) o amor € depois, Mariana Tanelli nos aproxima do abismo, nos embrenha em selva escura na metade ou qualquer idade desta vida, a qual ha que se atravessar a contento, sem temor, no fragor dos estilhacos. Quando encontramos uma poesia deste quilate, a tarefa ja estd ganha, inteiramente realizada. E, inspirados na sua coragem, talvez também devamos encarar 0 “depois” de nossas falhas ¢ fracassos, de nossas perdas e danos, pois seré hora de provar nossa témpera domando a vida pelos chifres em sua luta desigual contra o tempo. A poesia nos oferece essa mes- 107 tria de que fala Blanchot, nos pondo em guarda diante do pior, provando ser possivel vencer o terror da rufna pela exposicao a beleza de ser, ainda que a morte seja, no fundo, sua razdo implicita. Nesse empenho é a poténcia de si que se atualiza, ¢ 0 triunfo da vida ao menos goza- do por um instante na intensidade da revelacio poética. IV Uma ressalva, entretanto. Em geral, nossa aderén- cia cega ¢ irrestrita ao amor, e a seu apelo mais intenso, mais radical, a paixio, nao é mérito da mestria, do con- trole absurdo do tempo diante da morte, mas prova fla- grante de desespero, adesdo metafisica, mitoldgica (0 amor, diz Edgar Morin, ¢ 0 tinico mito ao qual devemos sucumbir). Ama-se porque esta experiéncia desperta o sentimento de continuidade, da promessa de vida que nos é imanente e deste modo nos concebe plenos. O ero- tismo € uma resposta intensa que a experiéncia humana nos reserva como antfdoto contra a morte, 0 que nao se faz sem riscos. Enquanto resposta, também é provisério, j& que para além da adesdo muitua dos corpos em encaixe e conluio carnal, o amor sé funciona mesmo num plano ideal e subjetivo. Alguma forma de morte, de perda ou ruina fatalmente ira surpreendé-lo na curva. A morte éa vitéria do real sobre o sonho. Ela nao deixa de ser a forma ultima que o amor adquire, como o terror que sucede & beleza, na elegia de Rilke, cuja fulguracdo méxi- 108 ma coincide com o comego de sua metamorfose: o terror que se pode suportar. Se o sentido da morte se torna belo na poesia é que ele evidencia o que hd de mais intenso na beleza, quando ela agoniza e comega a esvanecer. Mas a possibilidade do amor por vezes parece subitamente cair do céu & maneira de uma corda ao alcance das mos, uma corda & beira do abismo prometendo salvagao. Eis nossa ultima ratio (intu(mos), pois nao hd segunda chance. O problema, como se viu, ¢ 0 “depois”, que via de regra possui a singularidade da rufna e da consumagio de si. E assim que debaixo desse jardim das delfcias surge o fundo falso do abismo. Mas sempre nos resta a poesia, wm dlti- mo olhar para os canteiros repisados. O resto € siléncio, a matéria escura e represada do espelho do poema. Nele, lanelli (e 0 leitor) se encontram mergulhados, Como se fizesse do siléncio / O véu de um corpo, simultaneamente protegendo e expondo a intimidade até 0 osso. E isso mesmo que o leitor tem em méos: 0 véu pintado do poema, servindo-lhe também de escafandro para esse mergulho definitivo e necessério no amor e depois, armadura sutil contra a morte. Contador Borges € poeta, ensaista e dramaturgo. Publi- cou, pela editora Tluminuras, os livros Angelolatria (1997), O reino da pele (2003), A morte dos olhos (2007), Wittgenstein! (2007) A cicatriz de Marilyn Monroe (2012) 109 SOBRE A AUTORA ‘Arquivo pessoal Mariana Ianelli nasceu em 1979 na cidade de Sao Paulo. Poeta, mestre em Literatura e Critica Literdria, pu- blicou pela Editora Iluminuras os livros Trajetéria de antes (1999), Duas chagas (2001), Passagens (2003), Fazer siléncio (2005 — finalista dos prémios Jabuti 2006 ¢ Bravo! Prime de Cultura 2006), Almddena (2007 — finalista do prémio Jabuti 2008) ¢ Treva alvorada (2010 — Mengao Honrosa no Prémio Casa de las Américas 2011). Em 2008, recebeu o prémio Fundagao Bunge (antigo Moinho Santista) — Literatura, na categoria Juventude. Este livro foi composto em Garamond ¢ Franklin Gothic Book e ter- minou de ser impresso em novembro de 2012, nas oficinas da Orgrafic Grafica, em Sao Paulo, SP em papel off-white 90 gramas.

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