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vol. 3, p. 21 - 29, dez. 1999 = A POETICA DO SUICIDIO EM SYLVIA PLATH Ana Cecilia Carvalho* RESUMO: Para questionar se haverta ou ndo una fungéo supostanente terapéutica na escrito Literdria e propor a idéia de una "toxidez" na escrita, este artigo exanina a presenca e os efeitos de elenentos destrutivos no que & descrito aqui camo una *poética do suictdio" na literatura de Sylvia Plath. PALAVRAS-CHAVE: Literatura, psicondlise, escrita, suictdio, Sylvia Plath. No livro Escrever, un de seus Gltimos textos, Marguerite Duras refletiu que 0 escritor & "una contradigo absurda, pois escrever & tanbén néo falar. € se calar". Para a autora francesa, escrever era "uma forma de pensar, de raciocinar", sendo a escrita 0 que "permite ao escritor dizer para si mesmo que néo é preciso se matar todos os dias, visto que & possivel se matar a qualquer dia". Se acatarms sua ponderagdo, ndo estaremos longe de formilar a idéia de que existe algo no trabalho de criacdo que coloca o escritor diante de una escolha terrivel: escrever ou morrer ~ possibilidade surpreendente, pois indicadora da presenga de forcas destrutivas no centro do processo de criagao. Nosso assonbro diante dela torna-se maior quando nos defrontamos com a escrita de alguém que, diferentemente de Marguerite Duras ~ mas em meio a una intensa produgdo criativa, justo no momento em que parecia ter encontrado sua identidade literaria -, decidiu interromper a vida con um suictdio, encerrando, assim, a escrita. E 0 caso de Sylvia Plath, escritora americana que se asfixiou com gés en Fevereiro de 1963, aos 30 anos, em Londres, onde morava. Com sua morte (a0 lado de Virginia Woolf, que se matou por afogamento en 1941, e Florbela Espanca, poeta portuguesa morta por ingestao de barbitaricos em 1930), Plath passou a ser inclufda en um c&none sinistro de escritoras suicidas, segundo o qual criatividade e auto- * Doutora en Literatura Conparada, 1998, Belo Horizonte, vol. 3, p. 21 - 29, dez. 1999 m sobre o texto, de maneira que o leitor se vé a procura dos anincios desse destino ‘tragico em meio as linhas que 1, campo onde estariam inscritas as pegadas que, se seguidas, poderiam The mostrar o caminho que levou a escritora ao auto-exterminio. Talvez nao sem razdo proliferaram durante algum tempo leituras que, em nome da psicanalise, utilizavam 0 texto para conpor um diagnéstico da personal idade do autor suicida. 0 equivoco desse tipo de leitura esta em ver 0 texto como una espécie de teste projetivo da mente supostanente doentia do autor, j4 que privilegia apenas 0 aspecto nio-literario (0 suicfdio) e 18 0 texto através dele. Assim sendo, acaba por negligenciar todos os outros aspectos que compdem 0 complexo da construcao textual. Por outro lado, tentando escapar & fascinagéo paralisante que a escrita do autor suicida desperta, algunas leituras se voltaram para uma andlise puramente formal, ignorando a inportancia de um elemento como 0 suicfdio e seus antecedentes biograficos. Daf resultou una leitura desvitalizada do texto, como se fosse possivel ignorar a densidade afetiva que mobilizou a escrita e 0 sofrimento emocional que antecedeu o suicidio. Pode-se, porém, evitar essas dificuldades aparentenente insuperdveis recorrendo & mediagao daquelas teorias que, privilegiando a enunciagéo, impedem o mergulho do leitor no imagindrio especular do texto. £ importante, porém, que esse instrumental te6rico ndo deixe de lado aspectos que ilustram de modo emblenstico a ‘imbricacéo entre a vida do autor suicida e sua obra, una vez que 0 suicfdio parece colocar em questdo, a um s6 tempo, a funcdo, os limites e a eficacia da escrita, e a existéncia de aspectos destrutivos na criagdo literaria. A questdo ver de que maneira vida e morte aparecen em uma escrita que, néo deixando de ser autobiografica, revela 0 elemento biogréfico como anteparo e fonte, ao mesmo tempo em que testemunha a constante transformacdo ocorrida na escrita em razio desse mesmo elemento. Nesse sentido, sob a luz das nodes freudianas que privilegiam a idéia do conflito psiquico e seus destinos, a escrita de Sylvia Plath parece exemplar, ndo apenas porque seu aspecto autobiogréfico aponta para a indissociagao entre vida, morte e obra, como tanbém pela constante preocupagdo ali revelada a respeito da funcao e dos limites da escrita, Por mais de uma vez, Plath escreveu sobre a faceta “terapéutica" da escrita. Deixou registrada, por exemplo, a conviccdo de que a B 1 Belo Horizonte, vol. 3, p. 2 - 29, dez. 1999 m fantasmatica. Nao se pode perder de vista que, enbora a melancolia — que em Plath se tornou escrita -esteja apoiada sobre as bordas de um vazio que 6 central na Tinguagem, em seus textos isso surge associado especificamente a certos significantes que deslizam para evocar a ressondncia de perdas pessoais reais ou imaginadas. Retomarei esse aspecto mais adiante. 0 elemento que articula psicanalise e literatura para uma leitura critica da obra de Plath é, pois, a finalidade da escrita em sua dupla face de escrita terminavel e escrita intermindvel. Nesse sentido, os operadores te6ricos do recalcamento e da pulsdo sdo dteis, pois tornam posstvel que se examine o carter termindvel da escrita en sua relaggo com 0 recalcamento, assim como sua faceta intermindvel, que aponta para a iminéncia do transbordamento pulsional. No caso de Plath, seus textos exibem o conflito entre forgas construtivas e destrutivas operando na cena da criacdo literaria, mas tudo ali caminha para uma situacdo na qual se pressente uma espécie de “toxidez" na escrita, aspecto que aponta para a perda da fungéo defensiva da escrita. Isso € 0 que permite o redimensionanento do conceit de sublinaggo, t8o caro a una certa tradiggo psicanalitica que insiste em vé-Io como aquele que descreve 0 “caminho feliz" para o sofrimento pstquico. Néo me estenderei para retonar os desdobramentos que o conceito de sublimacao sofreu na teoria psicanalitica, pois isto me distanciaria dos objetivos deste artigo. Direi apenas que a obra da autora americana permite discordar dessa opinido classica, uma vez que sua escrita e seu destino tragico descrevem um movimento contrario: em seus textos, além de ndo existiren limites rigidos entre a vida e a escrita, a autodestruicao e 0 fracasso da sublimagéo se insinuam como possibilidades inevitaveis. E essa destrutividade que assoma no esforco literario da autora. Seus ecos transparecem na enunciagéo de sua poética e, fazendo coro com o destino tragico da autora, apontan para a predominancia das forgas que, mobilizadoras da escrita, sdo as mesmas que a levaram a renovar interminavelmente a dor. Sua poesia, alternando-se em uma escrita sem fim, que denomino "escrita de excesso" (pulsional), € uma escrita com fim, “escrita de contengao" (referida ao recalque), mostra a maior e também a menor das distancias das ligagies efetuadas sob o regime da subl imagio. Suspeitando que 0 "dildvio" no poderia ser inteiramente contido pelo "polegar" da Q Belo Horizonte, vol. 3, p. 21 - 29, dez. 1999 = Segundo Lacan (1995: 279-280), esse estrago € vivido pelo sujeito, na melancolia, como se fosse um suicidio do objeto. Essa nocdo é essencial, sobretudo quando 0 dado biografico se sobrepde, ligado aos acontecimentos que antecederam a morte do pai de Sylvia Plath quando a autora era ainda crianga: tendo se recusado @ consultar os médicos quando as crises do diabetes conecaram a se manifestar, Otto Plath s6 buscou ajuda médica quando a doenca ja tinha atingido um ponto irreverstvel . Em seus diarios, a autora interpretou freglientemente a morte do pai como una espécie de suicidio (Plath, 199 265-284). Vem desse ponto o lampejo dos arranjos sublimatérios que tremulam em meio a sombra do objeto que caiu sobre o eu. Dai se origina 0 paradoxal esforgo literario da escrita da melancolia. "Nunca conseguirei Juntar-te todo, /Composto, colado e devidamente ajuntado" (I shall never get you put together entirely, /Pieced, glued, and properly jointed), & 0 que lemos no poena "The colossus". 0 rein dessa escrita, porém, néo 6 0 do narcisismo cintilante de vida que adorna a existéncia com ilus6es fugazes, ainda que necessérias. Seu reino é 0 das sonbras, narcisismo de morte tributério da radicalidade da castragdo. 0 véu que essa escrita tece esgargado, cloack of holes para melhor deixar transparecer, sem disfarces, o que néo pode ser metaforizado, elevado, sub] imado.? Paradoxal sublimacao, que exibe no texto a decrepitude daquilo que s6 se deixa restaurar pela desmetaforizago: "Seria preciso mais que o lance de um relampago/Para criar uma tuina assim" (It would take more than a Lightning-stroke/To create such a ruin), diz © sujeito da enunciagéo em "The colossus". &m "Conversation among the ruins", de 1956, essa era uma rufna que nenhuma "cerimnia de palavras" conseguiria "remendar": What ceremony of words can patch the havoc? - & 0 que, ali, se pergunta. A movimentagdo metonimica dessa poética funciona, portanto, nao para acentuar ou para lamentar a desilusio com as metéforas, o que em si ja seria uma substituicao, mas para espelhar, da maneira mais préxima possivel, o esvaziamento dos sentidos, 0 fracasso da representacdo, a irrupgéo daquilo que Lacan denomina o Real. Ao revelar a precariedade das forgas internas defensivas e organizadoras que, durante una década, sustentaram a vida e a escrita, 0 suicfdio da autora coincide com a desmetaforizacao da linguagen, ocorrida de "Poen for a birthday" até Belo Horizonte, vol. 3, p. 21 - 29, dez. 1999 = REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS Deleuze, Gilles. Critica e clinica. Sé0 Paulo: Editora 43, 1997. Duras, Marguerite. Escrever. Rio de Janeiro: Rocco, 1994, Freud, S. "Luto e melancoliat. In: __. A hist6ria do novinento psicanalitico, artigos sobre metapsicologia @ outros trabathos. Rio de Janeiro: Imago, 1974. p. 271-291. (Edigao standard brasileira das obras comletas de Sigmund Freud, 18) Lacan, Jacques. 0 seminério Livro 8: 0 transferéncia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995. Plath, Sylvia. The collected poems. London: Faber & Faber, 1981. . The journals of Sylvia Plath. Ed. Frances McCullough and Ted Hughes. 9. ed. New York: Random House/ Ballantine, 1992.

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