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— s CFU SARA DOO 0 NOUN Cd Ss Pr Q $ , /EDMAR MOREL A ‘RBVOLTA DA CHIBATA bE EDPMAR MOREL. A Revolta da Chibata, de Edm: Morél, publicado cm 1959, colocou-se imediatamente entre os “be * do moments. ©O livro de Edmar rem bilita o mais obscuro heréi de nossa historia: Joho Canc Al- m ante Negro. © humilde de trinta anos. que com 5st avura acabou com o uso aviltante na Marint chibata de Guerra. Jo Candido, um-dos Gnicos herdis que escapou © 2 traicho do govérno brasilciro «0s homens que honrar ma Marinha de ¢€ 1erra for- cando a abolir o castigo corporal, ¢ wm herdi sem louros ne m gloriz ramente csquecido pelos pox - Intei res ptblicos, ores privacdes materi déle, muitos intelectuais fo- ram presos, als ~vicindos; outros ti- veram us oneome njuriado durante o N6évo, quando o heroismo de dido cra tabu. Gustavo reso — ° gene bidgrafo de Taman- daré, o patrono da Marinha foi considerado por cla secu inimigo pumero um por ter escrito artigos ten mdo rea- bilitar a figura do grande reformador negro ¢ foi proibido de e¢screver em jornais por ordem do Cap. Amilear Du- tra de Menezes, diretor do DIP. A figura do velho reformador sé foi gUindada ao seu merecido lugar na Histéria pelo livro de Edmar Moré], que A REVOLTA DA CHIBATA (Subsidios para a hist6ria da sublevacio na Esquadra pelo marinheiro Joio Candido em 1910) DO AUTOR: SOB OS CBUS DE PORTO SEGURO 1939 — Govérno da Bahia — Salvador. GAGO COUTINHO E SUA VIDA AVENTUROSA (Esgotado) 1941 — Ed. Coelho Branco — Rio. E FAWCETT NAO VOLTOU (Esgotado) ‘Traduzido para o inglés e espanhol e publicado pelo The People, de Londres, La Razén, de Montevidéu, Critica, de Buenos Aires, ‘Adaptado para uma histéria em’ quadrinhos chs Editéra_ Bra- sil América. Radiofonizado pela Radio Tupi. 1944 — Ed. O Cruzeiro — Rio. O BRASIL VISTO DOS CEUS 1946 — Ed. Cruzeiro do Sul — Rio. PADRE CICERO, © SANTO DO JUAZEIRO (Esgotado) 1946 — Ed. O Cruzeiro — Rio. DRAGAO DO MAR, 0 JANGADEIRO DA ABOLICAO (Esgotado) Radiofonizado pela B.B.C. de Londres e Radio Ministério da Edu- cagéo e Cultura do Brasil. 1949 — Ed. do Povo Limitada — Rio, MOSCOU, IDA E VOLTA (Esgotado) 3.* edigao — 1953 — PONGETTI — Rio. A REVOLTA DA CHIBATA (Levante na Esquadra pelo marinheiro Joao Candido) 1963 — Editéra Letras e Artes — Rio. (2.* edigiio) EDMAR MOREL A REVO.RTS DA CHIBATA 2.* EDICAO (Revista e ampliada pelo autor) Editéra Letras e Artes 1963 Montagem da capa: PauLo SOLON 1963 Reservados todos os direitos de publicagto em lingua portuguésa, total ou parcial, pela EDITORA LETRAS E ARTES Rea Rodrigo Silva of 14-4 Rio de Janeiro Imparsso Nos EstsD03 UNimos po Baasit, Edmar Morél Prémio “Joio do Rio”, de 1954, instituido para a melhor reportagem, pela antiga Prefeitura do Distrito Federal. Jor- nalista brasileiro de fama internacional, Biégrafo de Gago Coutinho, o aviador portugués que conquistou o Atlantico pelos eéus, em 1922; Padre Cicero Romio Batista, o Santo do Jua- zeiro; Cel. Percy H. Fawcett, chefe da expedicio inglésa de- saparecida nas selvas do Brasil, em 1926; Jangadeiro Francisco José do Nascimento, “Dragaéo do Mar”, que libertou os escravos do Ceara, num movimento popular em 1884; autor de “Moscou, Ida e Volta”, relato de uma viagem 4 Uniao Soviética, em 1952. “A Revolta da Chibata”, “best-seller” de 1960, INDICE Herdis Arbitro Pa Gonspiragho: 26 -cen oe scenes bir ele ee cnn ininee CNR Revolta Vitéria .... Massacre “Satélite” Covardia ...... dJustica -.-..... Perseguigio Creptisculo ...- Ressurreigaéo Bibliografia - Indice Nominativo ......-..-.ssseeenee eee eenenees Aos que morreram nas prisées, Intando pela liberda- de, éste Livro. Be HEROIS “Do lugar em que estou até ds fronteiras do mundo, 86 hd dois passos: fé ¢ auddcia,” Gago Courinno H eréis, no meu Estado, sdmente os generais Tibircio e Sampaio, da guerra do Paraguai; o Capitao J. da Penha, que morreu de espada em yunho, lutando contra os fandticos do Padre Cicero; 0 “Dragdo do Mar”, o rude jangadeiro Fran- cisco José do Nascimento, que fechou o pérto de Fortaleza ao trdfico dos escravos, em 1884; e o “Zé da Luz”, artista que escreveu bem alto o nome do Ceard nos céus da Capital Fe- deral’, pilotando o baléo Iracema, Os professéres ndo tinham muito interésse em alocugées sébre feitos histéricos com personagens estrangeiros, os nasci- dos além dos contrafortes do Apodi e da Ibiapaba. Heréis, 36 os de casa, gente com parentes espalhados pela cidade, pessoas com quem se bebe garapa, toma banho no Mucuripe e freqiienta o bar do “Majestic”. Tibircio e Sampaio simbolizavam as glérias de todos os generais e almirantes do Brasil. Durante longos anos sé aprendi isto. Daj o espanto geral no colégio Castelo Branco, quando Sila Ribeiro, o diretor, féz wma prelegio sébre Tamandaré, Osério, Caxias, Barroso, Greenhalgh e Marcilio Dias, de cujas vidas a juventude ndo sabia muita coisa. Os santos de casa ndo fazem milagres e os de fora eram inacessiveis aos meus precdrios conhecimentos. Por esta razéo o meu herdi ndo era nenhum daqueles. Era o Capitdo-de-Fra- gata César Augusto Machado da Fonseca, comandante da Es- cola de Aprendizes-Marinheiros, em dia de paradas ‘militares, montado no seu cavalo alazdo, trazendo alvas perneiras de linho ia a banda, sob/ a) Danita, do, eterto. SboNe ae eee mulato, com 1,70m e 90 quilos de banha, cara de bolacha, com wdrios dentes de ouro, sempre a sorrir. 12 EDMAR MOREL O garéte que tocava contrabaizo era 0 menino prodigio Eleazar de Carvalho que, por esférco préprio, galgou téda a escala do esplendor musical, como condutor de orquestra que é. Mestre Lisboa e o aprendiz Eleazar cram, sem ditvida, comple- menios do meu idolo que criow forma na minha imaginagdo de adolescente pobre, vivendo numa capital onde os rapazolas néo davam importéneia aos soldados do Exército e da Policia. Os primeiros eram do interior, nao tinkam relagdes; os tiltimos eram cabras ruins que entravam na Férca Piiblica como pode- riam ter ingressado no cangago. O chique era o Tiro de Guerra 38, com o instrutor Margal, sempre preocupado em dar ligdes de estratégia, tiradas de um livro sébre Napoledo Bonaparte. E em francés! Eu, entretanto, ndo trocava nada déste mundo pelo meu pésto de honra nos dias de desfile, marchando, descalco, ao lado da banda do Lisboa, a contenplar, também, o porte marcial do cavalo Ponto Chic, do comandanie, batizado em homenagem ao melhor café de Fortaleza. Peralta e brigdo, apesar de franzino, aconselharam ao meu pai a levar-me para a Marinha. — S86 ela dard jeito neste menino — diziam os amigos da familia. Foi um Deus nos acuda. Como cra possivel entregar um filha @ Escola de Aprendizces-Marinheiros para apanhar de palmatéria ¢€ retho? Era a triste fama que tinha a E. A. M. O Capitéo César da Fonseca quebrou wna perna e veio para o Sul. O Ponto Chic engordou e deirou de sair nas paradas, A maior homenagem que ex poderia prestar ao oficial transferido para o Rio, era usar monéculo ce polainas. E assim surgiu éste monumento de desfrute, com menos de 16 anos, a desafiar os assobios dos moleques da Praca do Ferreira, o centro de Fortaleza. Um dia, ja de partida para o Rio, a fim de tentar a vida, encontrei na agéncia do Léide Brasileiro um exemplar do Correio da Manha, trazendo longa reportagem fotogrdfica com um pobre velhote recothido como indigente a um hospital. — “Jodo Candido, 0 Almirante Negro que comandou a Esquadra, em 1910, estd entre a vida e a morte no Sdo Fran- cisco de Assis...” Soube, assim, da existéncia de Jodo Candido, 0 tinico mari- nheiro no mundo inteiro a comandar os mais modernos e velo- A REVOLTA DA CHIBATA 13 zes encouracados, desfraldando a bandeira vermelha da revoita, para acabar com os castigos corporais na Armada, Levado por Mauricio de Lacerda para trabalhar no Jornal do Brasil, onde o Conde Ernesto Pereira Carneiro, Conde por obra e gracga do Vaticano, tirou-me a pele da carne, pagando 100 cruzeiros por més, para ficar na redagdo das 8 da noite as 4 da madrugada, aproveitava as horas de folga para ler as cole- ces antigas. E assim fui conhecendo a histéria de Jodo Candido. O Brasil estava sacudido pelo sépro revolucionério da Aliancga Nacional Libertadora. Isto em 1934. O operariado corria em massa aos comicios da A.N.L., sob a presidéncia do Comandante Hercolino Cascardo, o tenente que, juntamente com um outro tenente, o Augusto Amaral Peixoto, revoltou o Sao Paulo, em 1924. Um jornalista imperava na cidade. Era Aparicio Torelly, o popular “Bardo de Itararé”, a frente de valente equipe, no Jornal do Povo. Anunciouw dez reportagens sensacionais sébre a vida de Jodo Candido. Sairam duas. Na terceira o conhe- cido homem de imprensa foi seqiiestrado por oficiais da Ma- rinha e conduzido para a Barra da Tijuca, onde sofreuw vexames. Foi por isto, certamente, que o “Bardo” mandou escrever na porta da redacao: “__ Entre sem bater!...” Fiquei estarrecido com o acontecimento. Um herdi da ralé ndo podia ter histéria? Que espantalho era Joto Candido, depois de 24 anos do seu feito nas dguas da Guanabara, para causar tanto pavor? Comecei a estudar o caso Jodo Cdndido. Travei relagdes com o chamado Almirante Negro, que figura nas memérias de Afrdnio Peixoto, divulgadas por Tristdo de Athayde, em sua oracdo proferida na Academia Brasileira de Letras, por ocasido da posse de Afonso Pena Jinior. Foi um esedndalo. Joao Candido foi citado no Instituto Histdrico e Geogrdfico Brasileiro. Outro escéndalo! Carlos Cavalcanti, um dos mais brilhantes repérteres que a imprensa brasileira jd conheceu, promoveu a internagdo de Jodo Candido num hospital. A cada instante chegavam levas de marinheiros e soldados, cada um com uma coni is para o velho lébo do mar, agora, na desgraga. O Diario da Noite parou a ca’ le Depois foi Gustavo Barroso, o escritor que mais tarde viria a ser o bidgrafo de Tamandaré. Ensaiou recompor o M EDMAR MoRtL quadro da revolta da Esquadra nas colunas de A Manhi, 6rgdo do Govérno. Foi chamado ao DIP pelo Major Amilear Dutra de Menezes que, em nome do entdo Ministro da Marinha, Almirante Aristides Guilhem, o ameacou de prisdo se vol. tasse ao assunto, exigindo, ainda, desculpas, A resposia foi imediata: — Interromper o meu trabalho, cstd nas maos do DIP Quanto a retratagdo, nem morto! Surgiu o ruidoso episddio com Raimundo Magathdes Jii- nior, que arrancou, na verdade, Jodo Candido do mais terrivel esquecimento, projetando-o, de mancira espetacilar, cm 8 paginas fotogrdficas da Revista da Semana. Véem a publico os Comandantes Luiz A utran de Alen- castro Graca e H. Pereira da Cunha, os Srs. Vivaldo Coaracu, Roberto de Barros ¢ outros. Transformam Jodo Candido num caso. Para muitos Jodo Candido 6 um au co herdi do povo. Para outros um simples moleque bébedo ¢ dew que ganhava a vida lambendo a sola dos sapatos dos ofic Juntei todo ésse material. Ouvi testemunhas ocularcs dos acontecimentas de 22 de novembro e 9 de dezembro de 1910, respecttvamente, a Revolta na Esquadra e 0 levanie no Bata. Théo Nepal. Ganhei o original de um documento inédito, O rclatério do Comandante Carlos Storry, do Satélite carguciro Cm que foram fuzilados diversos marinheiros anistiados, alguns com os pis e max algemados, Li depoimentos prés € contra o “negro que violentou a Historia”, na frase feliz de Gilberto Amado, Copiei os discursos de exaltagGo e contradigéo de Rui Barbosa © Pinheiro Machado. Perdi noites inteiras exami- nando © processo julgado por um Conselho de Guerra, num calavougo, perdido na itha das Cobras. Antes, fiz 0 mesmo, com relatérivs dando noticias do exterminio, em massa, dos merujos perdoudos pelo Conygresso Nacional ¢ impiedosamente assassinados com cal, numa catacumba daquela ilha, Gravei 08 insultos € as injtrias assacadas contra a Marinha por poli- tivos que tiravem partido da situacdo, para fins cleitorais. Ne Cémara Federal foram discutidos os projetos de Jonas Baiense e Souto Mayor, concedendo uma pensdo para o velho marinheiro viver os scus tiltimos dias, sem necessitar recor rer @ coridade piblica, Reuni tudo isto em livro e li-o para Jodo Candido, reco- Uiendo 0 sev depoimenta quase a beira do timulo. EB o segundo herdi dg ralé que trago para ae pdginas de wm livro. O pri- meiro foi “Dragdo do Mar”, 0 meu modesto “Chico da Matil- A REVOLTA DA CHTRATA de”, figura Tenddria e que cobre de orguiho a minha gonte nordestina, E, agora, o Jodo Céndido que, em 1910, com wna cidade de mais de wn milhdo de habitantes a que ndo a_atacasse, teve o gesto de humildade de que néo foi capaz o Presidente da Repiblica, Marechal Hernies 4 da Fon- soca, que mandou bombardear Salvador para atender aos édios de wm dos seus ministros, J. J. Seabra! O Congresso Nacional eo Goveérno, ime eupazes de wma rea. edo ante 0 pode a Esquadra sublevada, em trove ravel que deivou de arrasar a Ca para, em sequida, mum ato de felor fundo de vama masmorra da era medieval, # oassim maseen “A Revolta da Ci trabalho que entrego ao pidlico com a mesma satisfagdo daquele gardto que acompanhava a banda de misica do Mestre Lisboa pelas ruas de Fortaleza, ALE parece que estou excutanda o “Cisne Bro pelos meninos da Escola de Aprendizes-Marinhe do vento do coqueival do Pirambu da she do negro admi- al, anistion o herdt assassind-lo no », cantado O8, 0 86pro pata Mort, ARBITRO “Em um momento, Jodo Candido é o drbitro de uma Nagao de vinte milhées de almas; impé vontade, obriga o Congresso a wma resolucdo anti-regimen- tal, faz @ final da sua resolucdo a tinica lei que obedecemos, A sabvagde que con- seguimos, veio de sua magnanimidade.” Giteertro AMADO Miremes nas velhas colecées da Biblioteca Na- cional, em busea da verdade sébre a Revolta da Chibata, encontrei o libelo do Comandante José Carlos de Carvalho, 0 em » que o Catete enviou a bordo do Minas Gerais, em cujo mastro tremulava o pavilhio rubro da Esquadra revol- tada, sob 0 comando de um simples marinheiro Mas o artigo de Gilberto Amado, em O Paiz, de 27 de novembro de 1910, ¢ que tanta celeuma levantou 6, sem di- vida, a mais bela pagina sébre a marujada sublevada. n “Mocidade no Rio e Primeira Viagem A Europa”, o autor de “A Chave de lomo”, a pagina 85, escreveu: “Vou olhando para a memdéria e para os artigos que escrevi, nesses primeiros meses de colaboracéo em O Paiz, encontrando capi- tulos e capitulos a me pedirem referéncia neste livro, Des- prezei uma da melhores paginas que ja escrevi sébre a revolta dos marinheiros Gilberto Amado nao resistiu e na pagina 87 publicou tre- chos do magistral artigo lancado, precisamente, ha quase meio século, Cingiienta e dois anos depois do feito de Joico Candido, que acabou com o acoite na Marinha, um reporter aproveita-o, a guisa de um depoimento, que diz do entusiasmo do povo brasileiro pelo motim: “Enfim! Podemos respirar livremente. O Almirante Jodo CAndido teve a benemeréncia de apenas exigir, para nos deixar viver, a anistia, que o Congresso, com uma compreensfo pres- surosa da “gravidade do momento”, foi solicito em votar. 18 EDMAR MOREL Apenas a anistia... e os direitos preliminares de respeito humano e de alimentacao, que a bordo dos dreadnoughts parece ‘er sido timbre em desconhecer a marinhagem que se revoltou, na qual Joio Candido avulta num relévo de chefe extraordinario. Agora, que nao se abrem mais para a cidade as bocas tragicas dos canhées; que Joio Candido, vitorioso, j4 sem as responsabilidades do comando, desenrugou a fronte e tera apenas o sorriso dos herdéis ¢ o natural orgulho de um homem que violentou a histéria, e que a quietacio se restabeleceu, 6 JA possivel viver normalmente, comer com apetite, olhar sem inquietac#o ¢ pensar licidamente sébre o caso... Pensar? Nem sei se, agora, jA ser4 porventura possivel pensar com seguranca, quando os cabelos quase nfo assentaram do arrepio de susto, as pancadas do coracio ainda nao se apaziguaram no ritmo natural e quando o espirito, cheio das imagens déstes dias, incoerentes e complexas, mal pode atentar, nao livre da confusio, no aspecto de renascida trangiiilidade, que, mercé da cleméncia dos revoltosos, nos é dado contemplar hoje. ‘Certo, foram os dias mais arriscados a que nés, os que nascemos com a Republica e nfo assistimos 4 revolta de se- tembro ¢ outras, tenhamos assistido. Pela primeira vez vi © panico; fisionomias esbugalhadas, bécas a tremer, 0 alvo- régo triste da debandada. Na minha rua quase nao ficou ninguém; houve I ataques, solucos ruidosos e o berreiro alarmado das cr que viam na face materna a consternacao ec o pasmo. Vez em vez, atulhados de bagagens e de pessoas, automé- veis fuzilavam nervosamente, numa velocidade imprevista. Era © pavor; parecia um fim de mundo. Lembrei as gravuras dos terremotos, todo o sinistro, o patético, as dores gritadas, o incompariivel dantesco dos cataclismos. Tudo isto cra ape- nas Joio Candido. Depois, com o balsamo dos desmentidos, ressurgida de improviso a serenidade aos animos e¢ a coragem aos valentes, senti na Camara, deliberando com prudente rapidez sébre as exigéncias de Joio Candido, téda a agitacio, téda a trepida- ao nervosa dos grandes momentos de emocao. Exigua, aglomerada, fervilhante, estrepitosa de vozes e do estralejo metalico daquele sino feroz, que manifesta a energia regimental, a Casa do Parlamento dava uma impressaio nunca vista de angtstia tumultuéria, de asfixia violenta, de desas- sosségo, de febre. Fora, Jofio Candido, arbitro do Brasil, evoluia, fazia curvas complicadas, piruetava na bala, na costa — a mais rimas, incas, nl A REVOLTA DA CHIBATA ridicula ¢ a um tempo a mais formidével ameaca que ainda apavorou uma cidade. Jofio Candido, o “Minas”, o navio amado, orgulho do nosso patriotismo superficial, transmuda- do em navio-fantasma, instrumento de mal e de horror que nunca imaginaramos, Entretanto, entre o ombro, a maravilha: — Vejam como navegam os revoltosos! Que pericia magistral. FE para ésses marinheiros que pedimos instrutores es- trangeiros; sfio ésses os navios sébre cuja satide os jornais se iludiam Isso bastou pa ec da a hipétese do perigo, borbotar © facil entusiasmo nacional. Quase chegamos a abencoar a revolta, pela surprésa da revelacio. Certo, © que animava os revoltosos era uma ga- antia dé jasmo, da alegria popular. les mataram 9 Comandante Baptista das Neves, 0 Tenente Claudio, mas tinham por si o direito da dignidade humana, o primeiro de todos os direitos, que a chibata feria. Mas, niio foi certamente por isto s6, pela afirmac&o re- belde d direito, que Jofo Candido ¢ os revoltosos conquis- taram a simpatia. Foi outro 0 motivo. Bles comoveram o nosso patriotismo; andamos numa fase em que é tal a falta de grandeza, de acho, de vigor, que qualquer ato nutrido destas virtudes, suscita até a gratidio popular. 1% mesmo da nossa indole sentiment Uma vez, no palco de um eafé- concérto, um préto, o Ciriaco, venceu no jiu-jitsu um japonés issional. A alma ns ajubilou sinceramente, o Candido é um marinheiro formiddvel. Entre nds é excepcional um marinheiro que sabe navegar, dirigir smos de manobra, quando a tra- , uma tradicio de abalroadora, de encalhadora, de arruinadora lamentavel dos navios. No Brasil, Joho Céndido, simbolo, 6 esta coisa divina: um especialista, que nao divaga; um profissional que sabe a sua profissao, e que, ainda mais, nio precisou de cursos nas eseolas, de viagens 4s capitais européias (a bordo dos transa- tlanticos para manobrar com uma habilidade milagrosa). Para ndés, que chegamos A “organizacio das aparéncias ilusérias", quando aparece uma realidade precisa, efetiva, objetiva, verdadeira, 6 ésse alvorégo. Nos amos que o “Minas” e os outros estavam estra- gados, que nfo arredavam um metro, que a ultima revista foi um prodigio de esférco improvisado, que os navios eram incapazes das deslocagées rapidas. 20 EDMAR MOREL Eis que Jofo Candido assume o comando, O “Minas Gerais", e o “Séo Paulo” correm na baia com uma graca, uma agilidade de batel. Joao Candido nos agradou por isto. Foi uma surprésa maravilhadora. De resto, fora da competéncia técnica, sua conduta tem alguma coisa de extraordinério. & uma sim- pleza de puritano; nem fanfarronadas, nem embevecimentos; 6 uma austeridade que espanta, que quase o resgata do crime. Chefe de uma revolta, senhor exclusivo dos dois ma poderosos vasos de guerra do mundo, tendo aos seus pés, hu- milhada, implorativa, lacrimejante, uma cidade de milhao de habitantes, recebendo como um guerreiro triunfante o envia- do, pelo qual a Nacio pede que Ihe permitam viver, ainda que tristemente; a Camara, o Senado, sonorizando palavras quase em seu louvor — Joio Candido nao se embriaga do triunfo; atira ao mar o depésito de bebidas ii que a riqueza de bordo acumulava para os festejos didrios, enquanto lhe minguavam a racao e cortavam A chibata a pele dos companheiros — Joao Candido nao bombardeia; nao tem um gesto de vinganca; apenas pede o seu direito, Sua alma de oprimido se contém em uma firmeza formidavel. Ele, o humilde, o préto aviltado, vitorioso e dominando sdzinho, nao sente o frémito, sequer, de derrubar por sim- ples afirmagio de orgulho, os cocurutos fulgurantes, nos quais a cidade alteia o seu fausto e a sua riqueza. Joao Candido impée a disciplina, a ordem, a bordo; olha para a cidade piedosamente; nem um tiro; e no entanto o “Minas” a seu mando 6 fgil, donairoso, exclusivamente seu e Pode, em um instante, dar a sua vinganc¢a a grandeza de uma tragédia enorme. Em um momento, Jodo Candido é o arbitro de uma Nagao de vinte milhdes de almas; impée a sua vontade, obriga o Congresso a uma resolucéo anti-regimental, faz afinal de sua resolucdo a tinica lei a que obedecemos. A salvacko que conseguimos, veio da sua magnanimidade. Por mais que desdenhemos os comentarios melancélicos, é indtil dissimular a gravidade, 0 consternador da situacio moral do pais. E preciso nado pensar devidamente no caso, para fugir 4 evidéncia do desastre. Eo pior é que todos sao limes em reconhecer que era esta a unica solugao que nos restava. Submeter-se ao Joéo Candido. Tem-se a impressao de que um século de civilizacio, todo o nosso Passado, a nossa historia se desmoronou e que tudo isto velo apenas para Provar o disparatado da nossa vida, a falta de ordem, e que A REVOLTA DA CHIBATA é preciso que um pais seja o prodigio da desorganizagdo or- ganizada, se 6 possivel assim exprimir a normalidade dos desvairios que tém sido a seqiiéncia da nossa vida, para que um tal fato, com todos os caracteristicos cénicos que o ro- dearam, pudesse efetuar-se. E déstes, ali. que pela sua monstruosidade visivel inuti- liza todos os comentarios. Uma licéo nao poderiamos receber de mais elogiiéncia; nenhum instrumento, como ésse Joao Candido, nos poderia o destino mandar de mais impressiva documentacgiéo para a adverténcia do quanto nos temos alongado do verdadeiro ca- minho e de como nos devemos engravecer em habitos mais cuidadosos e¢ mais sérios e como é tempo de dar a nossa vida outro tom, que és alegre de manifestacgdes cotidianas, que tem sido a norma civica dos tiltimos tempos. Hoje, talvez, o caso passado, esvaida a sombra do perigo imediato, com a leveza de alma que nos caracteriza, esteja- mos a sorrir com 0 nosso otimismo, que é um sinal fldcido de preguica, antes que a consciéncia pletérica de uma férca, que, todos sabemos — e Jofio Candido demonstrou — nao existe. Continuaremos a confiar no destino que tao munificente nos tem sido, mas que, afinal, um dia ha de cansar-se. Por mais lugar comum que pareca, é inevitdvel repetir que precisamos trabalhar com seriedade e intensidade, cuidar com pre: dos verdadeiros intos, dos problemas basicos da sociologia brasileira, com a solucdo dos quais, tmiecamente, o Bra S te, uma Nacao sisuda, que niio possa, enfim, cémicamente oscilar, & vontade de outros Jodes Can- didos que aparecam. GILBERTO AMADO CONSPIRACAO “Foi mais uma _ conspiragio de co- zinka tantas vézes fatais a sala.” Joio Briciwo Vein esquadra estrangeira estava fundeada na Guanabara. Aqui chegou para 2 a stir & posse do Marechal Hermes da Fonseca, na Presidéncia da Reptblica, o candi- dato que o caudilho Pinheiro Machado, o verdadeiro dono do Brasil, levou para o Catete, apés derrotar a chamada can- didatura civilista de Rui Barbosa, que nao contou com as simpatias de Nilo Pecanha, 0 qual concluiu o resto do Govér- no findo a 15 de novembro de 1910. O Presidente Afonso Pena faleceu no dia 14 de junho de 1909 e Nilo Pecanha, como vice, assumiu o poder. O Cireo Spinelli, em homenagem aos oficiais do navio de guerra portugués “Adamastor’’, que cedo caiu no anedo- tario, como sendo “pequeno por fora e grande por dentro”, representava “A Vinganca do Operario”, do famoso palhaco negro Benjamin de Oliveira, enquanto o Teatro Recreio encenava o “Diabo que o Carregue”, de Joaio Foca, em honra aos marujos do cruzador francés “Duguay Trouin”’. O S&o Pedro, em noite memoravel, num espetaculo de gala dedi- cado as representagdes diplomiticas, fazia subir & cena o drama de Gabriel D’Annunzio, “La Figlia di Jorio”. O assunto que empolgava a opiniado ptblica era a quest&io dos frades portuguéses B. J. Rodrigues e Anténio Coutinho, tidos como indesejaveis e que viajavam no “Ourissa’. ot, Levee es ec. orate? otek Lakor yor cig wr <5 ae Vota Bp hin Eo » erat e- Marana rant Garr r2of CPC CED premade x60 foc evs lecavlo orgie aoe corre fee Me aledor Los e272 le 00) whe JE PrRemeamios es, Eom 2 cc ten fret EL FL EE @ Por ectos ae Ultimato dos marujos rebeldes ao Presidente da Reptblica, Marechal Hermes da Fonseca, enviado de bordo do courn. ¢gado “Sao Paulo” sarod onoucin1et or Qenaelor saan wor gue xs Lacs arm ae cet la eeale ole? Sige AeAar (Were, p- pier ~ nfo esquecer que os ma- i s livres, obedecendo & plina da Constite insubordinados que pedem reparacdo, desvairados pelo horror da chibata”. O maior interessado na medida era o Govérno, débil e rudemente atacado no Congresso Nacional. A anistia era a salvacio dos podéres ptiblicos ameacados pelos canhdes de 12 polegadas da Esquadra sublevada. © Marechal Hermes da Fonseca divulgou indmeras so- lidariedades recebidas, predominando as da Guarda Nacional, armada com espingardas de pau. “O Paiz’ publicou éste telegrama, certo de que a sua leitura influiria no animo da marujada. “Ponho a disposigdéo de V. Excia., para a defesa da Repiiblica, um inflamavel de minha inven¢gao, com que, bom- bardeado, qualquer navio tornar-se-4 inabitavel em poucos minutos e cuja aciio nfo podera ser impedida sendo por a4 EDMAR MOREL quem conhega a sua técnica. Rua Clube Atlético n° 40 (a) Ernesto de Oliveira, lente de fisica e quimica.” Neste mesmo dia alguns funciondrios ptiblicos promo- veram uma passeata levando, como atracao, varios artistas de circo e do teatro. O processo para atrair massa, com vedetas, nio é coisa nova. Em 1910 os empresérios eram conhecidos por “Quebra Lampiao”. No tempo de Artur Bernardes, os arruaceiros dos “Cravos Vermelhos”. Hoje sio os repelentes pelegos do Fundo Sindical, escéria que vive A custa do operariado. As ondas de bajuladores se sucediam ao Catete. Candido, serenamente aguardava os acontecimentos do “Minas Gerais Até entéo, o seu nome, que béca em béca, ainda nio ecoara no recinto da C Deputados, nem do Senado Federal. Havia médo, vergonha, em pronuncia-lo vencido por Bethencourt da Silva Filho, na Deputados “Os fatos que se desenrolam nelro, onde uma parte da Esquadra, revolta da maruja, em verdadeira frota a trangqililidade e pGe em risco a vi cidade, podendo-se dizer. tiveram seu iniquo, e até hoje impune, da cidade de “Nao se devem, pois, espa pablica com as ameacas que rinheiros, edificades daquele “Aqueéles que justifics a Amazonas, que o aplaudiram, £ gens inconfessaveis com a politica naquele Estado, tiver: seus esforcos. “A animacdo ao atentado a que, bo} com pasmo, veio de cima. “Emquanto as autoridades jerais peram sidade désse homem, ate ontem: ignorade, mas cido em tedo o Brasil, o marinheire Joie Can capital do ea cidade comercial, sede dos pedéres consti da Republica, nde seja bembuardeada, destruidos seus prédios, e assassinada sua populagie; en- quanto todos nés tudo fiamos da gemeresidade désse cabocio dos A REVOLTA DA CHIBATA até ontem obscuro e, de ontem para hoje, revelado um_ belo e habil marujo, com proficiéncia superior a muitos oficiais de nossa Armada, notayeis pela perambulacio na Rua_ do Ouvidor e pela comparéncia a tédas as festas e bailes désse regime de comesainas, fica tristemente evidenciada a im- poténcia de nossas fortalezas e de parte de nossa Esquadra, simbolizada na fidelidade ao Govérno legal da Reptblica. “A populacho da cidade do Rio de Janeiro vive ansiosa, nao sabendo se, de um momento para outro, ficaraé na contingéncia de uma populacio atacada por uma esquadra inimiga “Qual quer que seja a solucio, ou o Govérno reaja ime- diatamente, expondo-nos ao subseqiiente bombardeio da cidade ec 4 perda dos navies da nova Esquadra, ou facam a entrega ifica das armas os marinheiros revoltosos, confiantes no lheirismo dos representantes legais do povo brasileiro, seja qual fér a solucéo do desgracado caso em relévo, o que fica iniludivelmente provado 6 que osea questiio de orca- mentos de marinha de guerra 6, apenas, uma utilidade para » externo, nao servinde, seqner, 1 exatidio do tra- alho de estatisticas das despesas nacionais. “Milhares e milhares de contos de réis sho despendidos com os arcarnerit: no entanto, 4 do dominio piblico que o no n tem mejos eficazes depois de 72 horas, ‘olta de parte di ao Govérno néio se vr a Esquadra sublevada, sntregues 4 generosidade de que se encontra um pais, onde saitui mais merecimento para as moriestos mas profieuos, dos » do Exéreito. Eo resultado que passear. impunes, peia cidade do Rio o Coronei Pantaieao Teiles «¢ 0 Comandante Costa Mendes. vé sew superior indisciplinado ir ao Palicio do Catete cumprimentar o Chefe da. Nagao, ir aos melhores espetaculos ¢ cimemas de Rio de Janeiro, tomar uma xicara de caf numa das terrasses da Avenida! etc.. tera em tudo isto um exemplo edificante! 6 EDMAR Mort No Senado Federal, Rui Barbosa, em discurso memora- vel, justificou o projeto de anistia do Senador Severino Vieira e que ¢éle apresentou, pronunciando, entao, longa oracao. “Convencido estava de que se tratava de um caso de urgéncia, em que as palavras devem ser rapidas @ os atos prontos, razio por que julga exprimir com sentimentos de ansiedade e sobressalto da populagao da metrépole brasileira, na situacio indecisa em que esta emer- géncia a coloca “Ou o Govérno da Reptiblica dispGe dos meios cabai decisivos para debelar justo seria que os empregasse par’ a_tranqiiilidade ao Pa ou désses meios nao dispde o Go- vérno da Repiblica e, em tal caso, o que a prudéncia, a dignidade e 0 bom-senso Ihe aconsclham é a submissio ds eircunstancias do momento, “A cobardia é uma t triste ¢ a jactan« que sé bs mas coisa ainda mais em presen¢ca da situacao sigem numa situacaio em que a Rondescenaenc! é io imposto para a salvacio ptiblica; o fraco 6 0 que a na ultima extremidade ainda supée ter nas maos todos os recursos e ¢ forcado a abandoni-los em tltima andlise para ceder quando tran- sagdes revestem as formas das humilhagGes indecentes ¢ desgracad: “No estamos em um momento de recriminagdes; nao temos que analisar as causas dos acontecimentos atuais. tamos em presenga déles, em uma situacao tal, que todos, de um ec outro lado, amigos e nio amigos, nos encontramos reunidos em uma s6 conviccio, em_um sé pensamento, em um sé desejo, na certeza de que nio ha senéo um recurso para chegar a um resultado em que salvem, com ©: interésses do Pais, com os inter concidada os interésses da legalidade e do regime. “Nao vé, é necessdrio pér de lado o preconceito do pudor mal-entendido, para confessar a necessidade de pdr eébro a situagao atual, nao vé meios para resisténcia sen- sata, nao vé probabilidades de uma resisténcia Uti “Se, com os meios que a revolta da parte mais podero- sa da Esquadra deixou nas maos do Govérno, pudesse éle vencer © movimento dessa parte revoltada, ficaria demons- trado entio que tinhamos perdido os nossos_sacrificios, quando os empregamos na _ aquisicdo dessas formidaveis maquinas de guerra; aquisic¢fo a que nado nos decidiamos A REVOLTA DA CHIBATA 7 se nfo contando com certeza de sua invencibilidade; enten- demos que era necessério dispor de maquinas de luta naval irresistiveis e invenciveis nesse campo de guerra, como sao. os grandes dreadnoughts; que armada com um ou dois dés- ses vasos poderosos a defesa do nosso Pais seria invencivel. “Se agora, porém, com o recurso de algumas torpedeiras e destroiercs, se pudesse conseguir a destruicio na demolicio désse movimento acastelado nos grandes dreadnoughts, es- taria provado que nos tinhamos enganado e que em uma juta com o estrangeiro estariamos completamente desapare- jhados para a resisténcia e para a vitéria, como até entao. “Nao pode set isto que se propde o Govérno da Rept- e, isto seria expor-se @ contingéncia resultados. Nao sera com o canho- neio de algumas pecas de artilharia, colocadas nos nossos morros, niio sera com a va tentat de abordagem por meio de lanchas tripuladas com fércas de terra que essas grandes maquinas, que essas méquinas invenciveis poderdio ser domi- nadas. As fércas de terra nfo se fizeram para lutar sobre as ondas. “Os dreadnoughts di decisivos para rechacar as tentativas de agres empregadas para os vencer. ALI o ELLs Sao inexpugnaveis. Rut Barrosa — io inexpugnaveis e a sua inexpugna- sem dentro do seu béjo de recursos o contra éles, bilidade foi o tnico ilo com que perante o Congresso se justificou a exigéncia dos crandes sacrificios empregados na sua aqui Depois, é necessirio nfo esquecermos 0 valor maquinas de guerra. Digamo-lo, mn desvanecimento, por honra da gente Iguma vaidade, com algu s compatriot: “OQ que constitui as forcas das méquinas de guerra nfo a sua mole, nao é a sua grandeza, nao sao os aparelhos le destruicio — & a alma do homem que as ocupa, que as maneja, e as arremessa contra 0 inimigo. “As almas dessas maquinas que povoam oS nossos hoje, em nossa baia, sejamos justos ainda para com ésses infelizes no momento do seu crime, as almas désses homens tém revelado virtudes que sé hon- ram a nossa gente e a nossa raca. “Li com admiracfio as declaracées do Sr. José Carlos de Carvalho; vi como ésses homens lhe mostravam com orgu- Tho os seus navios, dizendo: senhor, sto é uma revolta honesta! Qo a8 EDMAR MOREL “£les tinham lancado ao mar téda a aguardente exis- tente a bordo, para se nao embriagarem; tinham feito guardar, com sentinelas, as caixas onde se achavam deposi- tados os valores: tinham mandado guardar com sentinelas os camarotes dos oficiais para que nio féssem violados; tinharm guardado, na organizacio do movimento, um sigilo prodigioso entre os costumes brasileiros; tinham sido fiéis a sua idéia; tinham sido leais uns com os outros, desinte- ressados na luta — e, por que nao dizer? — em vez de se entregarem aos impulsos dos instintos tao desenvolvidos e tao naturais em homens da sua condicio, servindo-se ime- diata e refletidamente dos meios destruidores de que dis- punham, contra a cidade, fizeram coneessées e estabeleceram a luta como se fédssem féreas regulares contra inimigos regularmente constituidos. Gente desta ordem niio se des- preza. Lamentam-se os desvios, mas reconhece-se o valor humano que ela representa. “fisses homens aventuraram-se a meios barbaros, na ameaca que nos fazem de bombardear a grande capital brasileira. Mas a isto foram levados pelas conseqiiéncias irresistiveis da situaciio em que se tinham colocado, pelos desvios a que se tinham arrastado, na reivindicacio de al- gumas pretensdes, nas quais nio se podera deixar de reco- nhecer o carater de um verdadeiro direito. “As reclamacées capitais existentes na base désse mo- vimento correspondem a necessidades irrecusaveis, “No programa com que o orador se apresentou na luta eleitoral, na Ultima eleic&o de Presidente da Reptiblica, recla- mou para o marinheiro e para o soldado o aumento do séldo e a extincio dos castigos servis. a que o marinheiro e o soldado continuavam sujeitos, no Exército e na Armada. Estes castigos foram abolidos por ato legislativo do Govérno provisério; mas, pelas necessidades estabelecidas Pela rotina, esta exigéncia poderosa que se criou no fundo das instituigdes antigas, desconheceu a lei e os castigos tornaram a voltar. UrBaNo SANTOs — Diga antes V. Excia. abusos. Rut BarBosA — Abusos com os auais, na gloriosa época do abolicionismo, levantavamos a indignacdo dos nossos compatriotas, quando nos batiamos pela liberdade, abusos que fazem desconhecer no soldado e no marinheiro as qua- lidades principais daqueles que tém de expor a vida para. defender a Nacao, A REVOLTA DA CHIBATA 9 . “ um engano acreditar-se que o regime racional e humano da abolicio dos castigos corporais pode influir para reduzir as forcas disciplinares do Exército e da Armada. Esta perfeitamente convencido do contrario. Acredita que todo movimento saido de abusos abatidos — reduzidos a condicées servis, em que é criado o homem sujeito a aviltante condi¢&o de escravo; tudo aquilo que diminui o homem e o sentimento moral, tudo aquilo que aproxima o homem da condigéo de bésta-fera, que tudo aquilo que desconhece a impressiio de honra e de dever; tudo aquilo que apela do homem para os instintos materiais e brutos; tudo isto que se resume no emprégo do litego, do tagante, da chibata, aplicada sébre o dorso humano — nao tende senfio a desviar o homem e a prepara-lo para as surprésas mais terriveis contra a socie- dade e a ordem. E entre os homens educados e aptos a conhecer as razées pelas quais se devern obter os limites do mundo que se formam as sociedades, bem disciplinadas, que se prepa- ram os corpos para afrontar os perigos. “Acostumando a nao chibatar os seus comandados, ha- bitua-se a medir o que pedem; habitua-se a nfo se exceder ao que lhe cumpre; habitua-se a governar-se para saber governe habitua-se a poder ser chefe sem ser escravo. ‘A escravidio comeca por desmoralizar e aviltar o senhor, antes de desmor re aviltar o escravo. “Rerordo a leitura que fiz nas Viagens de Saint Hilaire, por uma das nossas antigas provincias do Sul, da hist6ria de um cura que, ndo-se aos tempos do seu cativeira na Africa, di: como éle, aviltado pela condicéo de escravo, tinha caido nos mesmos vicios em que os escravos negros depois vieram a se acostumar nas terras brasileiras. “f mentia, dizia éle, por necessidade de minha condicéo. O esecravo 6 geralmente haixo e mentiroso, por exigéncias iniludiveis de sua defesa, “ esta a influéncia fatal do cativeiro que pesa sdbre os homens que o sofrem e sébre os homens que 6 impoem. “O orador est persuadido intimamente de que a grande parte, a maior parte, porventura, dos males sociais pelos quais ainda hoje penamos no Brasil, se deve a infancia mo- ral da escravidao, ha tantos anos entre nés ja extinta. “Extinguimos a escravidéo sébre a raga negra, mante- mos porém, a escravidao da raga branca no Exército ¢ na Armada, entre os servidores da Patria, cujas condicées tao simpaticas sfo a todos os brasileiros.

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