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Uma viséo de Caio Prado Jinior Igor Zanoni Constant Carneiro Leo” Resumo Apartir dos anos vinte e trinta um conjunto pioneiro de autores pensa o desenvolvimento capitalista no Brasil como a passagem de uma sociedade inorganica e personalista e de um Estado patrimonialista a uma sociedade homogénea e um Estado modemno. Um dos mais importantes desses autores £ Caio Prado Siinior que, tendo como referencia! a obra de Roberto Simonsen, elabora uma matriz tedrica e ideolégica daquele desen- volvimento pensando-o como a transigéo de wna economia colonial a uma economia nacional marcada pela industrializagdo, a homogeneidade € igualdade social no seio de um pats democrético e soberano. Sua obra, conquanto se possam fazer criticas a seu aparato analitico ¢ @ sua visio te6rica global, ainda hoje, diante dos impasses da crise atual, permanece vdlida como agenda de preocupacoes que incluem a dependéncia externa, 0s direitos trabalhistas no campo e a distribuigdo de renda, a importancia do planejamento e do Estado como pega central no desenvolvimento. Trata-se, por isso, de um autor que fornece elementos para a critica & 140 sobrevalorizada visdo neoliberal da crise. Desejo neste artigo oferecer uma breve visio da obra de nosso maiorhistoriador, Caio Prado Jinior,e de sua atualidade. A importan- cia desse autor reside em seu pioneirismo na abordagem da problematica do desenvolvimento brasileiro, abordagem esta que inspirou mais tarde outras vis6es fecundas do nosso desenvolvimento, como a de Celso Furtado, bem como constittiu o ponto de partida de revisdes criticas da hist6ria brasileira, como aquela presente na obra Rev. parana. desenvolv., Curitiba, n.83, set/dev, 1994, p.33-46 BF * Economista, doutorando ‘em economia pela Unicamp e tkenico do IPARDES, ECONOMIA Uma visto de Caio Prado Jiinior de Antonio Novais. Meu intento, aqui, consiste em contrapor Caio Prado Jinior a autores ligados 4 época dos primeiros trabalhos de Caio, tragar um esbo¢o da matriz teérica que este compée, e pensar sua importancia atual. A leitura desses “explicadores do Brasil", cuja obra é escrita a partir dos anos em que se inicia 0 nosso processo de industrializagao, impée-se numa época, como a de hoje, em que se observa a crise de um longo periodo de crescimento articulado por um Estado desenvolvimentista, no contexto de profundas transfor- mages na economia internacional de que o Pais participa, bem como dos préprios dilemas, opgdes e impasses que a sociedade e 0 Estado no Brasil enfrentaram ou se impuseram, ou enfrentam e se impdem na atualidade. Uma forma de apresentar alguns eventos centrais nessa obra consiste em contrapé-la & de outros autores com obras contem- pordneas as de Caio Prado Junior. Em um primeiro plano, odahistéria econdémica, creio que o melhor contraponto a este autor € Roberto C. Simonsen em Histéria Econémica do Brasil (1500/1820), cuja primeira edig&o é de 1937. Os dois livros mais importantes nessa rea, de Caio Prado Jr., siio Formagdo do Brasil Contemporéneo (1* edigao em 1942) e Histéria Econémica do Brasil (1* edigio em 1945). Deve-se lembrar, como assinala Aftanio Peixoto, no prefécio a0 livro de Simonsen, seu pioneirismo. Ele constitui a primeira tentativa bem sucedida de escrever uma histéria econémica, em oposigo as existentes histérias politicas e administrativas do Brasil. Mais do que isso, a histéria econémica de Simonsen buscava a “infra-estrutura decisiva e fundamental da hist6ria descritiva tradi- cional”, permitindo ver a histéria da civilizagio como um todo coeso e no mais uma histéria do Brasil separada da historia da América e do mundo. Simonsen destaca a importncia da histéria econémica para a compreensio da hist6ria politica ¢ militar nos tempos modernos, acentuando pequena importincia a ela conferida nfo apenas nas faculdades superiores do Brasil, mas inclusive na Inglaterra e Estados Unidos. Destaca ainda Simonsen o pequeno interesse dos histo- riadores nacionais pelo tema, ressalvando entretanto alguns, como Vamhagen, Capistrano de Abreu e, sobretudo, Pandia Calégeras. O livro de Simonsen vem, pois, preencher diversas lacunas, politicas e académicas, O livro destacard, segundo seu autor, a era colonial, por "ter sido na era colonial que se formou a trama social asseguradora da estrutura unitéria do Pais, buscando clarificar os 34 Rev, parana. desenvolv., Curitiba, n.83, set./dez,, 1994, p.33-46 Igor Zanoni Constant Carneiro Leto ECONOMIA fatores externos que influenciaram o nosso periodo embrionério, que tiveram ago ¢ que continuam a atuar na modelagem da nossa formagao econémica”.! E nesse sentido que Simonsen estudaré ini- cialmente 0 perfodo de transigo para o capitalismo na Europa, enfatizando a revolugdo comercial como condigdo prévia a0 nas- cimento da revolugao industrial. Na esteira da revolugao comercial formam-se grandes paises agricolas dentro de uma nova divisio do trabalho e so adotadas pelos grandes e emergentes estados nacionais definidas politicas coloniais que atuaram em nosso passado ¢ ainda atuavam dada a natureza tropical da maior parte da nossa produgao. E pois a partir da situagdo colonial que se examinard a for- magao e a atualidade econdmica do Brasil, destacando as diferentes condigdes em que se desenvolve a nossa economia vis-a-vis a das demais nagdes cujas vidas comegaram contemporaneamente & nossa. No Brasil, a colonizagao teve de recorrer 4 agricultura, em um meio pouco atraente ao elemento europen ¢ adstrito a produtos tropicais, trazendo os portugueses uma grande massa de populacdo africana que se reuniu a primitiva populagdo autéctone, A partir daf Simonsen organiza seus temas, sumariando os primérdios da invasio portuguesa, bem como da Espana, em sua relagdo com a expansio comercial e 0 dominio e aproveitamento dos novos territ6rios, ultramarinos. Passa em seguida & forma inicial de aproveitamento das terras de Santa Cruz num contexto de expansio comercial da {ndia e do Oriente e examina as politicas coloniais ctiadas para o Brasil como ponto de partida para a economia do agiicar. O ciclo do agticar, na génese de uma coldnia marcada pela grande exploragio de produtos tropicais com mio-de-obra servil, primeiro indigena e logo africana, a expansio da pecudria ¢ sua importincia para a unidade do Brasil, o ciclo da mineragio, re- lacionado com a expanso paulista para o interior; os fundamentos da ocupagao de Amazonas; o balanco do comércio da era colonial e 0s primeiros momentos de vida auténoma apés a vinda de D. Joao VI a0 Brasil, todos esses temas so levantados de forma a compor uma agenda detalhada e complexa de problemas para os historiadores futuros da economia brasileira, mas no apenas da economia. Nao é por outro motivo que os pontos levantados por Simonsen reaparecerfo sob outro tratamento seja em Caio Prado Jtinior seja, mais tarde, em Celso Furtado, com a Formagdo Econémica do Brasil (1* edig&o em 1955). Em Caio Prado Jinior, especificamente, as preocupagdes anteriores sao retomadas a partir de uma visio do Brasil caracteristica de toda a sua obra: a visdo de um pafs que transita da condigao colonial para a de nagio independente e auténoma, tran- sigdo ainda incompleta, mas cujo desenrolar 6 0 foco continuo de Caio Rev. parana. desenvolv., Curitiba, n.83, set./dez, 1994, p.33-46 35 ‘SIMONSEN, Roberta C. iatéria econbmica do Brasil( 1500/1820). 8.0d ‘Sao Paulo : Ed. Nacional, 1978. ECONOMIA Uma visto de Caio Prado Jinior Prado Jr. Este reorganiza, portanto, o material de Simonsen, soma elementos, compe com sua obra historiogréfica um painel montado a partir de um ponto: a construgdo da nagao. Esta construgdo passa a um primeiro plano, no qual diversos aspectos da vida da colénia € depois do pais independente sto elaborados, desde a vida material & vida social ¢ politica, da formagao étnica & administragao portuguesa. Todos estes aspectos so examinados a partir da génese da colénia e do processo de passagem para nagdo. A revolugdo brasileira ser precisamente a proposta politica capaz de conferir ao Pais o estatuto de nagio, proposta portanto montada a partir nao da experiéncia historica de outros paises, mas das singularidades que caracterizam a formagio do Pafs. Dentro desse plano, seja a Formagao do Brasil Contem- pordneo, sejaa Historia Econémica do Brasil, compéem, juntamente com outras obras, como Diretrizes para uma Politica Econémica; Histéria e Desenvolvimento; A Questo Agraria; e A Revolugdo Brasileira, um.conjunto de problemas e temas centrais que é insisten- temente reposto a partir de varios angulos. Tanto mais que Caio Prado Ir. no se vé como um mero historiador econdmico, mas como 0 historiador que procura dar conta dessa questo abrangente € com- plexa que é a formacao de uma nagio. Isto explica o sucinto comen- tario de Caio Prado Jr. & Histéria de Simonsen na bibliografia da Histéria Econdmica do Brasil: "trabalho sobretudo informativo". E muito pouco, pois Simonsen € pioneiro que Caio Prado Jr. retoma, mas se explica pelos limites mais modestos do livro de Simonsen na sua visio ideolégica. Caio Prado Jr. é 0 grande ideélogo da nago, seja comentando 0 campo brasileiro, seja trabalhando a questio do capital estrangeiro e assim por diante, Essa riqueza do trabalho de Caio Prado Jr. permite sua con- traposigio nfo apenas a Roberto Simonsen, mas ao conjunto de autores que, sobretudo nos anos trinta, elaboram retratos do Brasil, buscando captar o sentido da nossa evolugdo como pais, desde 0 proprio Retrato do Brasil, de Paulo Prado, primo de Caio, cuja primeira edigao é de 1928, até autores como Oliveira Vianna, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e outros da mesma importincia, Embora esses autores assumam posicGes politicas e ideolégi- cas diversas, tém uma problemética comum: a passagem de uma sociedade marcada pelo seu passado colonial e, portanto, pela in- coeso social e o personalismo; a outra, capitalista, dominada por lagos de solidariedade e, a0 mesmo tempo, a passagem de um Estado patrimonial ou oligérquico aum Estado burocrético e modemo. Esses temas no so exclufdos por Caio Prado inior, principalmente em sua obra-prima, a Formagdo do Brasil Contempordneo. Em seus 36 Rev. parana, desenvolv., Curitiba, n.83, set/dez., 1994, p.33-46 Igor Zanoni Constant Carneiro Ledo ECONOMIA textos encontram-se os temas da heterogeneidade social e econémica, a distorgdo do liberalismo, a ineficacia da administragao publica e outros. Embora Caio Prado Jiinior recuse intitular a revolugio brasileira como democrtica ou popular, ov outros adjetivos quais- quer, para ressaltar suas raizes autéctones e suas particularidades, é evidente que ele se move no 4mbito de uma recusa ao liberalismo (como, alias, Roberto Simonsen), da busca de uma transigao a um capitalismo marcado pela coesio social, a cessagdo de miséria, a industrializagao calgada no Estado ¢ no capital nacional, assumindo pois uma postura politica bastante clara. Nesse ambito € que Caio Prado Jinior é um autor que deve ser colocado em face dos novos retratos do Brasil iniciados nos anos trinta e seus autores. O nacionalismo de Caio Prado Janior, um dos tragos carac- terfsticos de sua obra, ja aparece naqueles retratos, a comegar por Paulo Prado, com seu Retrato do Brasil, Sérgio Buarque de Holanda ‘ou por autores anteriores, como Oliveira Vianna. Situar Caio Prado ‘no seu tempo exige pois que se conhega algo desses autores, com os quais Caio Prado Jiinior sempre interagiu. I Retrato do Brasil, Ratzes do Brasil e os livros de Oliveira ‘Vianna remetem-se & mesma questo - a transi¢4o do capitalismo no Brasil -, projetando imagens ou retratos do Brasil até certo ponto intercambidveis. Apesar disso, apresentam propostas politicas ou “vias de transi¢ao" distintas. Nestes livros, a transigao, assimilada explicitamente a um processo de revolugdo (burguesa), é vista como a passagem de uma sociedade marcada pela incoesio social e 0 personalismo a outra dominada por lacos de solidariedade social e, ao mesmo tempo, como a passagem de um Estado patrimonial (ou oligdrquico) a um Estado burocratico ou modemo. Da mesma forma, esses textos se tocam a0 examinarem as atitudes politicas predominantes. Assim, 0 povo, mesmo com 0 avanco da urbanizagao, mantém valores e préticas politicas moldadas no dom{nio rural. As elites, entendidas como "quadros dirigentes", conservario na Repdblica um caréter aris- tocrdtico, distanciando-se da realidade nacional ao adotarem insti- tuigdes do liberalismo europeu e norte-americano. O liberalismo, no Brasil, conflitara com as formas da vida social, traduzindo-se na distorgdo das instituigdes liberais. Em con- iiéncia, gera-se uma situagao de crise, suficiente para colocar em Rev, parana, desenvolv., Curitiba, n.83, set/dez, 1994, p.33-46 a7 ECONOMIA Uma visio de Caio Prado Jiinior risco a coeso nacional. Nesse quadro, toma-se necesséria uma revolugdo que, readequando as instituigdes estatais & morfologia da sociedade, fornega a esta a sua coesio nacional. A revolucio é condigao indispensdvel para a continuidade do processo de urbani- zaco ou de desenvolvimento capitalista, pois acrise do Estado liberal se manifesta em ineficiéncia do aparelho de Estado, incapaz de expressar mais que solicitagdes contraditérias das distintas oligar- quias. Evidentemente, este esquema ignora nuances importantes de formulagio entre os livros citados, mas é vélido como aproximagio a todos eles. Os livros divergem, entretanto, na sua proposta de reforma politica. Retrato do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, embora no ignore que a transigaoe a superagio da crise possam ser realizadas através de uma experiéncia autoritéria, indaga pela possibilidade de uma "verdadeira revolugio", a um tempo democratica, nacional e popular. Oliveira Vianna e Paulo Prado inscrevem-se na tradi¢ao nacionalista-autoritéria. Entre ambos h4, entretanto, uma diferenga importante de formulagio, uma vez que Oliveira Vianna, propondo um Executivo forte e centralizado, procura ligar governo e povo pelo funcionamento das corporagGes de base econdmica e cultural. Dessa maneira, segundo imagina, seria posstvel criar uma administragao publica eficiente e apolitica ao lado de um Estado, este sim, verdadei- ramente democrético ¢ liberal. A proposta de Oliveira Vianna en- caminha um Estado agente da modernizago econémica e pedagogo do povo e da elite, que ganhariam, pela participago na administragao publica, consciéncia nacional. Sérgio Buarque, em contrapartida, nao consegue vislumbrar suportes sociais para sua proposta, que perde, dessa forma, muito de sua forga. Aparentemente, Oliveira Vianna estd na sua dianteira no que se refere A questio de como superar as atitudes insolidérias tradicionais. Entretanto, entra-se aqui em terreno pantanoso, pois em Oliveira Vianna as corporagdes “nascem e morrem" no Estado, que organiza a nagdo de cima para baixo. Aqui comegam a surgir novas distingdes importantes entre esses autores. Em Oliveira Vianna, coesto nacional significa su- presso das possibilidades de conflito social. A agdo das corporagies ser, portanto, concebida de forma a harmonizar relages de classe, para o que & essencial que o Estado defina e regule as formas de participago na administragio, escolhendo, além disso, suas préprias fontes de opinido paiblica. A revolugao buscar um desdobramento sem rupturas, como se 0 Estado e a sociedade pudessem conservar-se estiticos. 38 Rev. parana, desenvolv., Curitiba, n.83, set/dez,, 1994, p.33-46 Igor Zanoni Constant Carneiro Ledo ECONOMIA Em Sérgio Buarque, ao contririo, a concepgio de revolugio burguesa associa-se a um conjunto de rupturas, e a introdugio dos novos tempos parece depender de instituigdes estatais que permitam seu desdobramento politico, reequilibrando vida social ¢ instituigdes politicas. O sentido dos termos "coesio”, "harmonia" ¢ "nagdo” ganha desta forma um sentido distinto, referido a um projeto de hegemonia de camadas, algo vagamente denominadas populares urbanas. Este projeto, constata Sérgio Buarque, nao pode se basear no iberalismo classico e nos partidos tradicionais, "importagdes" inade- quadas & "nossa realidade”. Nao consegue, entretanto, delinear as instituigdes adequadas ou a forma de agenda-las, Por sua vez, Oliveira Vianna, tanto quanto Paulo Prado, tampouco esclarece quais 840 0s suportes de sua propria proposta, uma vez que permanece obscura a natureza de seu Estado Autoritério/Corporativo. Que Estado é esse, aparentemente aut6nomo ou exterior a sociedade, diante de um povo. uma elite marcados pela inépcia politica? Centrando-nos em Paulo Prado, seu livro Retrato do Brasit ganha bastante com a leitura prévia de Raizes do Brasil. O livro de Sérgio Buarque retoma do primeiro sua questao bésica— a passagem de uma sociedade patriarcalista e de um Estado patrimonial a uma sociedade e um Estado modemos, no Brasil - e 0s temas mais importantes ligados a essa questo - os temas da anarquia da vida nacional, da relago capitalismo-democracia e da revolugio burguesa. Os dois livros coincidem em diversas observagBes e conchusdes sobre esses temas. A cobiga e a luxtiria que, segundo Paulo Prado, presidem a colonizago do Brasil, terdo paralelo na ética da aventura enodesleixo, de Ratzes do Brasil, enquanto fontes da insolidariedade social. Em ambos 0s autores, esses conceitos apreendem a dominago do capital mercantil na col6nia, associando-se 4 escraviddo, a0 baixo grau de desenvolvimento da divisdo social do trabalho e & ética e moralidade senhoriais. Da mesma forma, o desencanto frente & realidade, fruto do choque entre.a mentalidade senhorial ea urbanizagio, segundo Sérgio Buarque, constitui-se num eco da "tristeza brasileira" que subintitula Retrato do Brasil. A mesma tristeza, ou desencanto, explicard nos dois livros 0 alheamento das elites, seu bacharelismo ou, ainda, seu romantismo. A anarquia da vida social e 0 bacharelismo e conservadorismo das elites dardo funcionamento proprio as instituigdes liberais, con- cluindo ambos os autores pela inviabilidade do liberalismo classico no Brasil. Rev. parana. desenvolv., Curitiba, n.83, set.dez., 1994, p.33-46 9 ECONOMIA Uma visio de Caio Prado Jtinior Entretanto, Raizes do Brasil leva adiante a andlise de Retrato do Brasil, como se observa, por exemplo, através do conceito de revolugdo empregado nos dois livros. A idéia de revolugdo como simples assalto ao poder transforma-se em Sérgio Buarque na idéia de um conjunto de rupturas, com dimensdes e momentos distintos, na dirego do capitalismo. A transi¢o ao capitalismo surge dessa forma como um movimento complexo, enquanto Retrato do Brasil projeta antes a imagem de uma sociedade e de um Estado quase iméveis, & espera da revolugdo capaz de introduzir os novos tempos. Em boa medida por essa distingdo, Sérgio Buarque nio deseré na possibilidade da revolugio desaguar numa democracia adaptada as formas especificas da vida social e capaz de conferir & transigo um carater nacional e popular. Paulo Prado, 20 contrério, aponta para uma Vida estatista ou autoritéria e também nacional. Sérgio Buarque no consegue apontar os fundamentos sociais que sustentariam uma via democratica de transigao, confiando nas influéncias da propria urbanizaco. Rafzes do Brasil torna-se, assim, paradoxal, justapondo ‘uma proposta democratica a uma virtual demonstrago de sua impos- sibilidade. Paulo Prado tampouco explicita os suportes de sua revolugio que, distinguindo-se de um movimento caudilhista, parece depender de individuos com consciéncia da “nagSo", isto é, de sua unidade (territorial) e do que é necessério para manté-la (a redefinicZo de uma politica de desenvolvimento capitalista). A proposta, entretanto, € ‘obscura. Essas observagdes indicam a superficialidade da aproxi- mago entre Paulo Prado e Sérgio Buarque estabelecida por alguns criticos. Nao bastassem as diferentes propostas politicas, Sérgio Buarque parece ter tomado Retrato do Brasil como um ponto de partida, desenvolvendo e precisando conceitos e uma andlise que permite reler Paulo Prado. Il Neste ponto se impde 0 esboco da matriz tedrica de Caio Prado TGnior. Seu ponto de partida é o conceito de nago, construfdo a partir das nogies de soberania, democracia, igualdade social, homogenci- dade social e industrializagao. A nagio, no autor, € tanto um valor - e, logo, uma proposta politica -, quanto uma categoria analitica. 0 exame do autor comeca pois pela andlise dos conceitos basicos, o de economia colonial, que € o ponto de partida do processo de formacao do capitalismo brasileiro, e o de economia nacional, que é seu ponto, ainda nao totalmente atingido, de chegada. A economia nacional € conceito construido observando-se 0 capitalismo desenvolvido, re- 40 Rey, parana. desenvolv., Curitiba, n.83, set/dez,, 1994, p.33-46 Igor Zanoni Constant Carneiro Ledo ECONOMIA metendo as nogées de estrutura industrial integrada, na qual produgio e consumo se alimentam mutuamente, e de um organismo produtivo voltado para o atendimento das necessidades fundamentais da popu- lagdo que trabalha e vive no Pafs. Por seu lado, a economia colonial € construida conceitualmente a partir da forma de insersio da colénia brasileira nas primeiras etapas do capitalismo mundial, como estru- tura produtiva voltada para o atendimento de mercados exteriores e calgada na grande lavoura monocultora ¢ no trabalho servil. O autor destaca, com isso, aespecificidade da formagio do nosso capitalismo, em oposigao A visio da III Internacional, que postulava um desen- volvimento das nagGes sul-americanas por etapas que repetiriam a sucesso dos modos de produgdo observada na histéria dos paises europeus. Entre a economia colonial e a economia nacional media 0 desenvolvimento do capitalismo no sentido da constituigao da nagio tal como entendida pelo autor, 0 que leva a andlise para um plano complexamente construido, nos niveis politico, social e econdmico. autor propée nessa trajetéria uma periodizago que articula um momento externo - 0 desenvolvimento do capitalismo interna- cional em suas etapas: 0 capitalismo mercantil, o capitalismo concor- rencial eo imperialismo - aum momento interno, revelado por marcas como a independéncia politica, a cessagao do tréfico € a aboli¢o, a reptiblica ¢ a crise da economia capitalista exportadora do café, Nesse sentido, a dinfmica do desenvolvimento € entendida como uma andlise da totalidade, feita exemplarmente em Formagao do Brasil Contempordneo ¢, muito mais limitadamente, em Histéria Econémica do Brasil. Nesse contexto, Caio Prado Jtinior faz um balango da obra colonizadora na virada do século XVIII para o XIX acompanha as articulagdes sucessivas ¢ contraditérias que impul- sionam ¢ limitam a configuragao da nagao, entre o momento extemmo eo momento interno, deixando claro como a crescente complexidade do processo produtivo, a progressiva homogeneizagao social ¢ 0 crescimento de um mercado interno potencial conduzem inexoravel- mente ao desenho da nagio e a superagao dos remanescentes colo- niais, inclusive porque estes sio incompativeis com o equacionamento de problemas na balanga de pagamentos e de uma organiza¢ao financeira sélida no Pais. O conceito de revolugdo do autor € o de rupturas com os remanescentes da economia colonial nascida nas circunstincias é especificidades do desenvolvimento brasileiro, ¢ aponta para a con- secugao final do projeto nacional, partindo do estadio jé atingido por esse mesmo desenvolvimento. Por isso, o programa da revolugio apontaré para a superagio dos residuos escravistas nas relagdes de trabalho no campo, pela reforma agréria destinada a ampliar o mer- Rev. parana. desenvolv., Curitiba, n.83, set.fdez,, 1994, p.33-46 4a ECONOMIA Uma visio de Caio Prado Jiinior cado intemo e supri-lo em géneros de consumo intemo, pela luta antiimperialista, que passa pelo controle estatal do comércio extemo € 0 controle das remessas de lucros para o exterior, bem como por uma rigorosa intervengao estatal no livre curso da iniciativa privada, como forma de integrar e dar bases s6lidas 4 industria. Os suportes dessa revolugdo serao as classes populares no campo e nacidade, uma vez que as classes burguesas esto profundamente ligadas & ago do imperialismo no Pafs, sem que isso signifique uma proposta de ruptura com o capitalismo, o que para Caio Prado Jtinior nao esté na agenda politica, mas sim um relacionamento entre classes e segmen- tos sociais voltados para uma solidariedade orgénica ainda que ba- seada em meios mercantis. Deve-se fazer aqui duas observagées. A primeira € que Caio Prado Jiinior procede a uma recuperagao do pasado brasileiro, dentro da sua dtica te6rica, utilizando sobretudo suas ferramentas de histo- riador. Nao possui, a0 mesmo tempo, um aparato analitico baseado na teoria econdmica, ao contrario, por exemplo, de Celso Furtado. A obra deste tiltimo, claramente, e sem que ele mesmo dé os devidos créditos, se inspira em Caio Prado Jinior, seja em seus conceitos fundamentais, seja em sua periodizagio do desenvolvimento, mas Furtado possui um aparato analitico sofisticado, centrado na nogdo de fluxo de renda que por sua vez se inspira no mecanismo do multiplicador. Isto tomard a obra de Furtado mais rigorosa e, em termos de aceitaco académica, mais bem sucedida. Creio, entretanto, que esta observagio nao encaminha a melhor critica que se pode fazer a Caio Prado Kinior. Esta critica, e aqui esta a segunda observagao, é que Caio Prado Jinior e, de resto, Celso Furtado, nao possuem uma nogao de padrio de acumulagio presente nos periodos observados, como 0 da economia capitalista exportadora, 0 perfodo 1930-55 e o do Plano de Metas. A nogdo de padrao de acumulagdo sé sera introduzida em hist6ria econdmica muito mais tarde, na década de setenta, nos trabalhos de Jo%o0 Manuel Cardoso de Mello e Maria da Conceigao Tavares, combinando uma vis4o marxista vigorosa e critica com um instrumental keynesiano-kaleckiano, que introduz uma modema con- cepeio do ciclo econémico. Mas no se pode exigir tais horizontes te6ricos de um autor seminal ¢ original, autodidata, como Caio Prado Jinior, cuja contribuigao mais importante se dé inclusive antes dos primeiros trabalhos da Cepal. Tais deficiéncias, se assim as podemos chamar, se traduzirio num viés subconsumista que s6 muito mais tarde se viria a avaliar criticamente. Entretanto, a proposta de Caio Prado Jiinior, a conclusio do processo de constitui¢do da nagio nos moldes em que delineou, é a2 Rev. parana, desenvolv., Curitiba, n.83, set./dez, 1994, p.33-46 Igor Zanoni Constant Carneiro Ledo ECONOMIA muito mais uma proposta (¢ uma derrota) politica que uma visio equivocada da histéria. Nesse sentido, permanecem na agenda pre- ‘ocupagies que ele levantou, como a da dependéncia externa, e sobre- tudo a construgao de uma nago que insira sua populaco no teor de vida materiale cultural proprio das populagdes dos paises desenvolvi- dos. E ai se colocam a questo dos direitos trabalhistas no campo, a da reforma agréria, a do papel do Estado e do planejamento e outras, que ele, historiador, levantov, e geragdes de economistas ¢ homens de Estado maltrataram ou ignoraram. Estamos af jé no terreno da sua atualidade. Exponho a seguir algumas reflexes sobre a atualidade de Caio Prado Iiinior no que se refere aos impasses atuais do nosso desen- volvimento. Em primeiro lugar, € consensual que, diante da problemitica desse desenvolvimento tal como ela se apresentava nos anos mais fecundos da produgao teérica do autor, este soube reunir numa visao abrangente os aspectos principais da economia e so- ciedade brasileiras na tica de sua proposta politica e analitica. A consecugdo de uma visio com grau semelhante de abrangéncia da crise brasileira atual e suas multiplas implicagées é tarefa que se impée aos nossos atuais analistas, e tem sido encaminhada por alguns, como atesta o belo ensaio de Jodo Manuel Cardoso de Mello, “Con- seqiiéncias do Neoliberalismo". Sem tentar fazer um diagnéstico da crise atual, que se acha presente em diversos trabalhos principalmente a partir da segunda metade dos anos oitenta, Iembremos que ela tem um claro compo- nente intemo, expresso por exemplo na chamada "privatizagio do Estado" e sua decorrente crise fiscal bem como no né gérdio da industrializagao brasileira, que sempre foi o da definiggo de um padrao adequado de financiamento do investimento. Todavia, ela apresenta componentes derivados da reestruturagao produtiva dos paises centrais e sua "modemizagao conservadora”, com reflexos diretos sobre 0 tecido produtivo e social dos paises do segundo e terceiro mundos e, logo, também sobre a economia e a sociedade brasileiras. Essa combinagao de elementos internos e extemos, que ex- pressa as dificuldades e inspira alternativas politicas do desen- volvimento do Pafs, tem se traduzido numa virtual estrada para a desindustrializagdo e 0 retorno a uma condigo de subdesen- volvimento, na medida em que os setores mais importantes do ponto de vista das modernas estruturas industriais atrasam-se fortementeem termos tecnolégicos ¢ produtives ou sequer chegam a se instalar, observando-se © mesmo atraso em setores montados h4 muito no Brasil, como 0 téxtil. A liberalizagdo progressiva das importagdes Rev. parana, desenvolv., Curitiba, n.83, set/dez, 1994, p.33-46 43 ECONOMIA Uma visdo de Caio Prado Jinior os descaminhos da politica tecnolégica no Pais agravaram esse quadro, problematizando o desenvolvimento de setores novos ¢ todo um vasto cordio de pequenas e médias empresas, como aquelas localizadas no fornecimento de autopegas. A queda do investimento na economia colaborou para 0 atraso tecnolégico, bem como a forte concentrago do investimento das empresas transnacionais nos paises centrais. Uma modemizago parcial observa-se apenas nas maiores empresas, em geral estrangeiras, sem grande aumento de capacidade produtiva, levando todo esse contexto a uma crescente heterogenei: dade produtiva da economia bem como a uma crescente heterogent dade social, uma vez que o nivel de empregos s6 cresce significativamente nos setores informais e de baixa renda e se estan- cam as possibilidades de ascensio social. Uma insergio passiva na economia mundial, tal como perseguida pela politica industrial desde © governo Collor, tem substituido esforcos coerentes no sentido da retomada da industrializago e suas implicagdes sociais, A esse esgarcamento do tecido produtivo tem também correspondido uma crescente fragmentagdo da solidariedade entre as diversas regides do Pais que se centrava no dinamismo industrial ¢ do investimento piiblico e privado. Fica clara, observando a cena brasileira, uma acelerada corrida para o subdesenvolvimento, que a proposta neoliberal de restringir 0 papel do Estado a assegurador da estabilizaco monetéria e eqilidade social nao pode deter. De fato, como assegurar estabilidade & moeda se a ancora principal desta é a prdpria producio, e o dinamismo desta, numa economia complexa e diversificada como a nossa, ndo pode se basear em elementos como a insergdo passiva ou via nichos no mercado internacional, cujo crescimento, alids, é baixo ¢ centrado nos paises mais desenvolvidos? Como assegurar eqiiidade social apenas com politicas sociais tradicionais, deixando de lado intervengdes decisivas do Estado em Ambitos como a distribuigao efetiva da renda ea elevagao dos saldrios, a reforma da estrutura agrdria, o enfren- tamento da hipertrofia do setor banc4rio e seus ganhos usurarios e imobilidrios? Como buscar, dessa forma, elementos legitimadores da ordem politica, como a busca da igualdade e homogeneidade sociais € perspectivas de ascensio social numa economia dinamica? Como buscar tudo isto sem elementos que reportem a uma revitalizago do papel do Estado em seu controle sobre a iniciativa privada, pape! planejador em niveis nacional e regional, buscando integrar 0 tecido produtivo ¢ 0 tecido de relagdes sociais e politicas, numa palavra, sem objetivar a consecugio da nagio? Nesse sentido, ereio que, quaisquer que sejam as eriticas que hoje se possam fazer & matriz te6rica de Caio Prado Jinior, ele &, a0 44 Rev. parana, desenvoly., Curitiba, n.83, set/dez., 1994, p.33-46 Igor Zanoni Constant Carneiro Ledo ECONOMIA lado de outros autores que pensaram o desenvolvimento capitalista do Pais, alguns dos quais examinados acima neste artigo, um pensador que nos deixou como heranga uma preocupagio com as questdes que, embora reelaboradas, esto no ceme da discussio de uma alternativa democrética para os dilemas que hoje enfrentamos: a defesa do conjunto da economia e sociedade brasileiras, pensado como nagdo no sentido de um pais industrializado, integrado e homogéneo social- mente, democritico e soberano, que atenda as necessidades bésicas de sua populagio. Portanto, um pais em que sua condigao periférica seja ativamente questionada, mobilizando para isso o Estado como a “forga concentrada da sociedade”. Um pais ainda que, se nao pode prescindir do capital estrangeiro para o seu desenvolvimento, o que seria inimagindvel, pode negociar comeele na medida em que organiza seu espago interno num sentido precisamente oposto ao do pen- samento neoliberal, isto é, como "capitalismo organizado”. Penso, portanto, que Caio Prado Jiinior é um autor atual, tanto para pensar- mos a trajet6ria hist6rica brasileira, como para fornecer pistas acerca do debate sobre a crise que vivemos, se quiscrmos uma sociedade orientada pelos valores bésicos que ele sempre defendeu. Além disso, Caio Prado Junior nos deixa o problema de quais suportes politicos mobilizar para as transformagées de que tanto necessitamos, dada a propria diferenciagdo observada hoje na sociedade brasileira, e que tem tido até agora, apés tantos anos de crise, um papel tio avesso a mudangas. REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS FURTADO, Celso. Formagiio econémica do Brasil. 12.edrev. So Paulo : Ed.Nacional, 1974, HOLANDA, Sérgio Buarque de. 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