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ea Leonardo Benevolo ‘mas 0 justo lugar entre os componentes da vida social. Nao deve procurar solugdes méximas, mas solugdes proporcionais aos pro- blemas que Ihe sejam colocados. Em térmos de empenho individual, a arquitetura como ativi- Gade niio deve tornar-se a meta exclusiva, um idolo 20 qual se sacrificam todos os outros interésses, tal como concebiam a arte os artistas roménticos. © arquiteto deve dedicar ao seu trabalho uma parte propor- cional das suas fércas e conservar-se disponivel, se necessério, para ‘outras tarefas mais importantes ou mais urgentes, como demons- ‘trou Pagano nos tiltimos anos de sua vida, Dispostas déste modo, nfo se dissipam as relagdes entre a arquitetura e o seu ptiblico nas esferas incontroléveis da sugestio fe da emoco, mas pertencem inteiramente & zona da consciéneia e da razio, A arquitetura ndo deve resultar sugestiva, mas per- suasiva, néo deve colhér o espectador num momento de temporaria Gisponibilidade sentimental, mas convencer o consumidor, através de um apélo aos seus interésses cotidianos e permanentes, aju- dando-o a enxergar claramente as suas exigéncias e oferecendo, para cada uma, uma satisfagéo proporeional.” as exigéncias, de ordem intuitive e emotiva, devem, elas préprias, resultar racio- nalmente interpostas com as outras, em vez de elevadas delibe- radamente ao nivel méximo. Neste sentido, a arquitetura moderna néo pode deixar de ser uma arguitetura racional. A ARQUITETURA BRASILEIRA NE P. M. BARDI A histéria da arquitetura brasileira 6 restrita aos cinco séculos posteriores & descoberta, mas inclul também o periodo précabra- liano, do qual, porém, no temos noticias coneretas para recons- tituir sua realidade, A ARQUITETURA MAGICA DOS {NDIOS # déste periodo, pondo de lado a tese de que isto interessa somente a etnografia, que devemos comecar nossa répida viagem, baseandonos na arte dos Indios, de construir e urbanizar, que ainda sobrevive com sua civilizagio. Planejavam a moradia e 0 conjunto urbano em sintonia com as conviegdes magicas que ‘mantinham, ‘Numa aldeia dos bororés, para dar um exemplo, verificamos a concordancia entre arte e vida, a arte da vida disposta numa geometria de formas para a utilidade e a0 mesmo tempo distinta pelo gosto: aldeia circular, orientagao norte-sul tendo como eixo, a ‘casa central’, dividida em dois semicirculos, servindo a passa- gem central como um living para reunides de representacéo e convivio. ‘A disposic&o imita a ‘aldeia do além’: o arco da existéncia supera o tempo, o transito terreno em fungdo do infinito, Esta filosofia governa os atos de viver, as expressées plisticas ¢ mais ainda a poesia, compondo uma cultura bem definida. Nos semi gs. Planta esquemtica do uma aldela borers, (Gnciclopédia Brasileira de Venturelll e ATbiset) cfreulos moram os cliis, por sua vez divididos em subclis, na ordem matriarcal que se extingue quando um ‘espirito mau’, transformado em cobra peconhenta, pica mortalmente o ultimo representante feminino. Interessa notar a distingo social dos clés e subclis. Séo mais ricos os que possuem mais armas e enfeites, tinica moeda de troca. Na casa central realisam-se as ceriménias, e, como numa antiga basilica, tudo 1d se desenvolve. Casa retangular na proporeao 3x8, estruturada de caibros bem distribuidos, teto a duas aguas, sustentado por ripas flexiveis, amarramento com cipés. © habitar é natural; os civilizados o chamam de A arguitetura brasileira 2st selvagem. Outros grupos tribais ajeitam a vida em estilos diferentes, pois a invenco varia marcadamente. Os tucunas, por exemplo, preferem as linhas circulares as tetas, ten- ‘do.as aprovado, respectivamente, Hogarth e Mondrian, que igual- mente aplaudiriam as solug6es coloristicas dignas dos Fauves. A ARQUITETURA ESPONTANEA DOS CONQUISTADORES ‘Enquanto os indios haviam resolvido todos os problemas refe- rentes & sua civilizagio, por conseqiiéncia também os da arqui- tetura — cartéo de visita —, os portuguéses, desembarcando, deveriam concebé-1a, comecantio da estaca zero. Deveriam erguer seus abrigos, isto 6, tejupares, como se dizia (em tupi: teiy, povo; ‘updb, local), improvisar choupanas feitas de galhos de arvores e folhas de palmeiras. ‘ A arquitetura nacional tem esta origem, a mesma da insténcia préhistorica. Ainda hoje, freqiientemente, e em certas regides, ‘@ pobreza e a engenhosidade perpetuam o sistema no sertio Ionginguo e nas favelas conciliando solugées eststicas e estéticas notaveis. i 2 tradigfio do “cagar com gato” quando falta o cachorro que formula modos naturais e originais. Os pioneiros se improvisavam construtores. Resolvidos os casos existencialistas dos primeiros encontros com os indigenas, 0s contrastes cruentos e incruentos, os conguistadores dedica- vamse & construgiio das moradias e do entrincheiramento para conveniente defesa contra o gentio ¢ os intrusos de cér branca. Gragas & experiéncia africana e asidtica, os portuguéses de- monstraram invejavel capacidade no labor de conquista. Os pri- meiros indicios manifestamse nos marcos de posse, nas doze capitanias outorgadas em 1532 aos donatérios. As comunidades disciplinamse na lei feudatétia, envolvidas por rebelides e com- ‘bates ao lado dos indios, ou contra éles conforme as conveniéncias. s feudalistas organizam os arraiais. Contam as crénicas: “.. .corcar esta cidade de muros de taipa grossa... com dois balu- artes. ..’, como foi o caso de Salvador. A taipa é material usado, precrio, mas quando bem mantido, duravel ao longo dos séculos. ‘AS paredes so de barro estru:urado com enxaiméis e frasquias de madeira, sendo a argamassa misturada, segundo as possibilidades, com pedra e cascalhos. No litoral entravam na mistura, também, 2 PLM, Bardi substéneias gordurosas, para impermeabilizar. Cobertura, de capim ou de sapé, a meiagua e a tesoura, Materiais e técnica bem variados. No Piauf, 0 material de ajuda seré, e ainda é, a carnatiba. © sistema de construgdo ¢ rudimentar, simplificado, econd- mico. Em pleno séoulo dos foguetes, o arquiteto Acécio Gil Borsoi © estruturara cientificamente num modélo mais apropriado 2s comodidades e & decéncia contemporadneas. A experiéncia se deu nu Recife, onde uma pesquisa de vinte anos atras revelou que noventa por cento das casas eram ainda construidas como: no século da descoberta, 310, Casa do séoulo XVIE. Reconstrugio segundo um quadro de Frans Post © aportamento de mais naves e 0 povoamento, levaram os construtores a procurar materiais mais sélidos. As comunidades sentemse mais seguras dentros das muralhas de pedra. As ermidas, as capelas tornamse mais durdveis, as casas mais resistentes. EL quanto a estética? Prevalege a da arquitetura espontanea, cate- goria que substitui hoje, na critica, os térmos de menor e riistica. 171, Casa em Pernambuco (séeulo XVID), segundo uma pinture de ‘Frans Post, Col. O. Americano, Seo Paulo Sua caracteristica 6 a eliminagdo do supérfluo e do gratuito, inter- pretando, quando nao inventando, apelando para a carga emotiva, alinhando solug6es na maioria das vézes de alto valor formal. ‘Também os espanh6is, na eonquista do México, improvisaramse arquitetos; porém, lé encontraram uma civilizagio completa e abri- gada em monumentos de extraordinéria grandiosidade. No Brasil 2 situacdo era inteiramente inversa. A primeira construcdo em. pedra parece ter sido a tOrre de Olinda, erigida pelo seu primeiro donatario, Duarte Coelho. Seré aquela torre recordada na pro- sopopéia do poeta quinhentista Bento Teixeira Pinto, na desericio do Recife: ‘...uma torre tivera suntuosa....’? 28 PM, Bardi As mostras de arquitetura quinhentista rufram. Devese recor- rer aos documentos para se ter uma idéia aproximada. No testa: mento de Mem de Sé ficamos sebendo de algumas novidades. Documento de 1572 refere-se & Santa Cruz. No inventério fala-se de ‘...casa-fortaleza, nova, de pedra e cal, telhada para fazer varandas, qual est4 por assoalhar,.,’, de ‘,,.banarte telhado e cercado de pau a pique...’, casa do padre e do feitor, a do es- cumeiro, de senzadas compridas e de palha ‘...em que se aga- satham 0s negros da Guiné...’. A descrigio compreende a ‘casa Wargueira’, a dos ‘mules’ ¢ a de ‘purgar’. Por aqui podemos ter uma idéia da casafortaleza quinhentista, que obedecia as pres- crigdes da Coroa ao conceder-se uma sesmaria. Os obreiros colocavam em funcao, onde era possivel, as pe- dreiras ¢ utilizavam a cal extraida das conchas de ostreiras ou dos sambaquis. A regitio mais rica déstes repositérios arqueolégi- cos era Santa Catarina, que exportava a cal para as capitanias que no a tinham. A experiéncia na construcao de casas motivou sua localizacio nas baixadas, onde havia 4gua propria que podia ser canalizada para o engenho. Cada regio apresenta seu tipo de moradia, e solugGes que as circunstancias, os materiais € 0 saber fazer impoem. A distribuigsio dos ambientes obedecia as exigén- clas do grupo familiar ou nfo, seu mimero e seu potencial econd- mico. A casa unida ou nio aos ambientes de trabalho. Sua fisio- nomia: construgio de carater tempordrio, pois as ameacas exter- nas estavam sempre prestes a estourar: revolta de escravos, vin- gangas de concorrentes, ataques de indios, fogo e sécas. A ARQUITETURA DOS MISSIONSRIOS A arquitetura num sentido que direi ‘artistico’, foi preocupa- Go constante das primeiras Missoes, particularmente dos jesuftas. Cultos e ambiciosos, sabiam que a construgéo das igrejas servia de base & catequese, desempenhando, 20 mesmo tempo, as tarefas religiosas e manuals. Improvisavamse pedreiros, enta- Ihadores e pintamonos com a maior naturalidade. Alguns ja tinham aprendizado, particularmente os que haviam participado de construgées ou de outros oficios na Europa, Comecaram a construir: pauapique e sapé. Os treze jesuitas que fundaram ‘So Paulo... — ‘A 25 de janeiro do Ano do Senhor de 1554 cele- A arquitetura brasileira 235 ‘bramos em paupérrima e estreitissima casinha a primeira missa’ — 6 num barracéo inicial: capela, dormitério, escola, cozinha, enfermaria, rédes para dormir, fothas de banana como toalha. Na ‘Bahia, entio, funda-se Salvator: o povoado é de um milheiro de homens: seiscentos colonos degredados, uns trezentos soldados com ‘mtisica de trombetas ¢ tambores’ e o restante ‘mecnicos’: pedreiros, caieiros, tapeiros, carpinteiros ‘de casas’, serradores, calafeteiros, ferreiros e oleiros. Eram éstes os artistas que iam 0 unir aos improvisados. M72, Capela de Sto Roque (séeulo AVID). De uma antiga fotografia Foram os Jesuitas que construiram a primeira Sé: como a de ‘S40 Paulo, uma pequena ermida composta de paus e palha, onde oficiou o bispo Sardinha. Desmoronada, foi reedificada em taipa ‘mais resistente, e finalmente '. . batendo de porta em porta... dos senhores honrados.,. para repari-la até que Deus queira dar outra igreja de mais duracao....’, foi edificada convenientemente. 26 PM, Bardi O padre Nobrega, em 1550, deu inicio & construgio do novo tem- plo. Mas é s6 apds a chegada de Mem de $4 que a idéia de uma igreja grandiosa € resolvida, Apela-se ao irm&o Francisco Dias que aporta juntamente com Luis Dias. Sio vindas compardveis, no Ambito profissional e das repercussbes, a de Grandejean de Montigny, no inicio do Oitocentos, ou a de Le Corbusier no Nove- centos. M8, Colégio dos Jeeustas no Morro de Castelo (Séeulo XVID, destruldo, A arquitetura brasileira ar Frei Francisco Dias, também piléto, arquiteto, desenvolveu vvasta atividade ao longo de meio século em Portugal e nos Agores; foi colaborador de Filippo Terai, arquiteto italiano, prevalente- mente militar, que nas ultimas décadas do Quinhentos langa em Portugal os modos maneiristicos de Serlio e Vignola, realizando numerosas obras em Lisboa: maneirismo na acepgio mais cien- tifica do térmo: expresses imitativas de uma originalidade gené- rica e coerente, sem particiracdo de talento criativo, interpretacdo de ecos jd no limiar de sua sonoridade. Chegado ao Brasil, Fran- cisco seré o introdutor daquele maneirismo nos Colégios que 0s jesuitas Ihe encomendam: Olinda, Rio — no Morro do Castelo, demolido em 1922 —, Salvador e Santos. Seu estilo satistazia, ‘a0 mesmo tempo, as idéias da Companhia e as diretrizes de Felipe II, sObre uma arquitetura austera e crismada do espirito de peni- téncia, simbolizado no Escurial de Madrid. 114. Tgrela de SG0 Migul, Rlo Grande do Sul (séeulo VIED, WS, Plano da Tgreja dos Miitares, Bio de Janeiro (séeulo XVIED, Os arquitetos provém das Ordens. Sio os propagadores do sistema pléstico, improvisandose também nos trabalhos de enfeite, modestos, apropriados a0 processo de vida social, politica, espiritual, condicionados pela economia ainda em estruturacéo. © reflexo € puramente europeu e compée-se de transplantes, em alguns casos mais ou menos satisfatérios, com sabor doméstico repleto de significados, mas sempre tendo em mente a epopéia de construir uma nacio. Entre os arquitetos de maior renome: 0 Jesuita Antonio Pires, Manuel Fernandes e, finalmente, frei Fran- cisco dos Santos, também escultor. Ha escassez de artistas. ‘A profisséio de arquiteto, assim como a de pintor, escultor ou talhista, ndo era bem definida, sendo tédas confiadas a prati- A arquitetura brasileira 239 cos leigos ou nao, Na maioria dos casos importavam-se da Europa as plantas, os mestresdeobras, os engenheiros militares e os arquitetos, que nao vinham s6 de Portugal, mas também da Itdlia, como Baccio da Filicaia, personalidade ainda no definida; inti- tulado ‘architecto mor do Estado do Brazil’ e em outros do- cumentos mencionado come ‘engenheiro maior’. Trabalha aqui entre 1596 e 1607, em obras de fortificagio e pesquisas minera- I6gicas, participando da exredigio & prooura do lendério Eldo- rado. A éle atribuise a autoria da igrejinha de Monserrate de Salvador. 0 esférgo arquitetOnico, como era de se esperar, concentra-se nas fortalezas, implantadas nos mais longinquos e impérvios territdrios. Basta citar 0 forte dos Reis Magos no Rio Grande do Norte, planta original do jesuita Gaspar de Samperes, que causaré admiracao a Nassau. Os arquitetos ou construtores de fortalezas io numerosos, muitos ocultos no anonimato, como aconteceu com os arquitetos da Roma imperial. OS ARRANJOS DO BARROCO NO SEISCENTOS Deve-se notar antes de mais nada, um fato de ampla reper- ‘cussio politica: as conquistas holandesas. Nos vinte e quatro 1316, Igreja © Convento de S80 Francisco, om Sto Paulo (séoulo XVID; Totogratia dee fins do seculo XIX. [8 P.M, Bardi anos de dominio, os batavos conclufram riquissima seara de documentacao cientifica e artistica, sem duivida interessante, mas de qualquer forma estranha 20 labor brasileiro, desde que os conquistadores no se misturaram aos produtores da incipiente arte local. Entretanto, um ponto favoravel 6 o de terem trans- formado Recife na cidade mais importante da Colénia, através de um aparelhamento urbanistico e arquiteténico notével: cons- truiram sobrados, alguns de quatro andares, pontes, canais, igrejas culvinistas e sinagogas, armazens e fortalezas, contando para isso com a colaboragio de Pieter Post, arquiteto que Nassau incluiu em sua comitiva, juntamente a pintores, médicos, cosmégrafos enaturalistas. A arquitetura propriamente brasileira, como vimos, funda-se na simplicidade robinsoncruscesiana das ermidas e das capelas, evoluida em forma de longinqua lembranga maneiristica & moda jesuita da Casa Generalitica romana; durante éste século comeca manifestar discreta adesio 20 espirito barroco, aligs proprio a Companhia e as demais Ordens que nao 0 recusam, numa Preponderante imitagéo de tudo quanto acontece em Portugal, Severo controlador das andangas coloniais. Nosso barroco, toda- via, floresce como planta extravagante, mal adaptada, num viveiro impréprio: podada, enxertada grosseiramente de galhos rejei- tados e, se aceitos, mal aceitos por parte de préticos primdrios, mas, entretanto, implantadas; planta que esté ai, com sua vivencia propria, Eis a que certos historiadores relegam nosso barroco; alids 0 aesclassiticam das categorias da arte, de vez em quando dita provinefal. Ebulia o estilo como lustro éa nossa operosidade na mescla dos acontecimentos administrativos e morais — uma moral hete- Togenea derivada de interésses disparatados — na cimara, tea- trinho, escola, taberna, mercado, comereio ‘matriculado’ e ‘dis- pensado’, vadiagem, prostituicéo, cadeia, as consegtiéncias da aglomeracdo da vila. La também esto os que devem atender & construcio, & decoracao e a0 fornecimento do objeto de uso, desde 0 mével até 0 arreio. © bemestar e a procura do requinte e da disting&o, cujos alvores vemos desenvolvidos no fim do Quinhentos, afirmam-se com mais firmeza, © luxo aninha-se diretamente nos ambientes, ‘simbolo da sociedade em formacéo, as igrejas. Agora as Ordens competem entre si para apresentar templos imponentes e repletos, A arquitetura brasileira eat quanto possivel, de riquezas. Nao mais as capelas téscas, mas templos cada vex maiores e grandiosos, agora com altares guar. nocidos de imagens, pinturas nas paredes e nos tetos, apetrechos tdrgicos de ouro ¢ prata em substituigso aos de estanho. Em cada aldeia, aspiragio de matriz e ambicSo de catedral. Na rea- lidade éste iuxo € de poucos. © povo continua em casas simples, com ornamentos despretensiosos, resultado da parciménia que se devia manter num viver repleto de problemas mais urgentes, hhabitagoes desataviadas como os modelos portuguéses, singelos e racionais. Lticio Costa, em um estudo fundamental sobre a habitacao colonial, constatou que nesse século a casa é ainda modesta, com poucas portas e janelas externas, quando no acon- tece de algumas delas serem substituidas por pequenas fendas, onde s6 passaria 0 cano dos pesados arcabuzes, fato que se inverteré no Setecentos, quando a casa apresenta maior pompa, devido a vida mais fécil e segura. OS PRIMEIROS ARQUITETOS NAS CAPITANIAS © que ocorre agora 6 que o mestre-de-obras tem 0 6lho vol tado para a arquitetura representativa da igreja, e quer transpor um togue de sagrado na habitagio doméstica, reservando ambi- entes para a oracio, introdusindo aqui 0 artistico do tempo. O desbravador da terra, lentamente, mas firme no seu projeto de vencer, domina, cria a fazenia e 0 engenho, comunidade e vila, as mais auténticas baronias, e ergue-se dono do assunto em ma- téria econdmica, depois politica e juridica, e finalmente religiosa, chegando até 2 imitag4o dos principios romanos ao tempo do barroco, a propria igreja dentro da casagrande. Depositdria e manipuladora da riqueza artistica era na rea- lidade a Igreja, devendo, todavia, manobrar através das preges de uma complicadissima burccracia. Tudo, até as miudezas, devia ser aprovado e regulamentato em Lisboa. No que se refere & arquitetura, dependia da organizacdo religiosa do Rei, a Ordem de Cristo, devendo também ter 0 placet e 0s carimbos da Mesa de Consciéncia e Ordens & qual pertenciam as licengas para edi- ficar igrejas. A prosperidade da arquitetura religiosa devese também & instituiggo das Irmandades que construfam suas igtejas, as vézes, 22 P.M, Bardi rivalizando com as Ordens. Vérios Livros do Térmos de Confra- rias confirmam que a grandiosidade de uma igreja dependia bastante destas rivalidades. Os artistas eram disputados e razoa- velmente retribuidos. Nao 6 possivel neste rapido escorgo des- crever, estética e técnicamente, o vultoso patriménio da arquite- tura seiscentista e muito menos a ainda mais vultosa setecentista, culminante na genialidade do Aleijadinho — o leitor veré mais aprofundado 0 tema em minha Histdria da Arte Brasileira, de préxima publicacio —. Alguns dados, porém, ¢ interessante referir. Na Bahia predominava um tipo de templo que a desco- berta do plano da destruida Igreja de Palma permite reconstruir: € de 1712, mas calcada nos tregos do século precedente: planta em forma de T, colocado no braco do altar e dos lados a sacristia, e uma sala de moradia, todas com saida para a rua; a nave tam- bém tem duas outras saidas além da porta principal. Nao de- vemos estandardizé-la, pois em Salvador e no Recdncavo baiano a variedade de plantas apresenta um leque da mais atraente forma, 0 que indica 0 capricho das Ordens, dos comitentes ou da vontade dos doadores. 7. Plano da primeira A grein. de N.S. da Palms, Salvador, Bania(séeulo XVD, segundo © plano re ‘construido por R. C. Smith ‘A, corpo da Sgrela: B, cape: emor; C, sacristia; D, morse an ae A arquitetura brasileira 28 Os nomes dos arquitetos raramente aparecem, nebulosados pela falta de informagées: o mais ilustre talvez tenha sido o espanhol frei Macdrio de Séo Jodo, provavel autor da Santa Casa de Misericordia e do Convento dos Carmelitas Descalgos de Santa, Tereza, hoje Museu de Arte Sacra, que apresenta a novidade do Atrio a trés arcadas. Alids, Salvador, como capital, regurgitou de igrejas e conventos. Désse século o templo mais notavel consti- tuise, sem dtivida, 0 Colégio dos Jesuitas, hoje Catedral Basilica, construido com pedra de cantaria importada ja aparelhada ¢ pronta para sua montagem. A Bahia ditava as leis da arquitetura, Centro de difustio e contato permanente das Ordens, — jesuitas, franciscanos, carmelitas, beneditinos, j4 presentes desde meados do Quinhentos, — af se formam seus quadros de construtores, as vézes sedentérios, mas na maioria dos casos itinerantes pelos sediamentos implantados pelas Ordens em todo 0 Pais. Através das regides, pelas circunstancias de diversidade de materiais miodeobra, criam-se aprecisveis distingdes. Com os frades itinerantes, transfiramonos a outras regises. ‘Comecemos pelo Maranhio, ro qual se apoiaram mfos francesas, hholandesas e finalmente portuguésas. Em Sto Luis e em Alcantara conservam-se edificios deste tempo, todavia transfigurados, sendo impossivel conhecer qual foi 0 nivel estético. Também 2s noticias sio escassas, mas parece certo que as atividades preponderantes foram desenvolvidas pelos jesuitas. Em Pernambuco, fortalecido apds @ retirada holandesa, a arquitetura e as artes em gerel ganharam uma atividade singular. ‘Ap6s a opressio do calvanismo batavo, Recife dedicou inu- sitado fervor 2 construgdo dos templos, erguendo novos. For- mosa construgéo € a da Tgreja da Nossa Senhora da Madre de Deus da Congregacéo do Oratorio da regra de Sto Felipe Neri, de marcante calor humano e com uma carga mistica em sua decorago interior bem mais notéria que @ baiana, uma ver que estamos em uma cidade que lutou para defender seus sentimentos. elas outras regies de ocupacio holandesa, Paraiba, Cearé ou Alagoas e Sergipe, a recuperacéo néo tardou. Brotam templos portentosos como Convento de Santo Antonio em Joo Pessoa, que mais parecs um palécio imponente. ‘Atingindo uma regido menos conhecida, o Espirito Santo, encontramos a mais ousada construcio colonial. 0 Convento de A arquitetura brasitetra os Nossa Senhora da Penha, em Vitéria, surgido de uma ermida de 1534, no cume de uma colina, ainda nos nossos dias meta de peregrinos de tOdas as redondezas. NOSSO PRIMEIRO TRATADO DE ARQUITETURA Nessa época 0 Rio se proclama, com énfase, ‘grande cidade bem construida e de excelente aspecto’, e vive em trno do Mos- teiro de Sdo Bento e do Colégio dos Jesuitas. Sua populacio composta em sua maioria de frades e escravos, e a cidade 6 mais uma feira de comércio freqlientada pelos fazendeiros dos arre- dores, Esta cidade acothe, talvez, 0 mais importante mestre-de- -obras do século, a quem se deve homenagear com 0 titulo de ar- quiteto: frei Bernardo de Sio Bento. Portugués, prético em construgées, depois de vitivo resolve ordenar-se, executando im- portantes reformas no Moste:ro de Sao Bento e dando-Ihe seu aspecto atual. Deixou obras inclusive no campo tedrico, sendo autor das Declaracoins de Obras, o primeiro tratado no género, escrito no Brasil, seguindo a orientago do ambiguo maneirista Sebastiano Serlio. Sao Paulo,atevese mais em organizar suas ‘Dandeiras, adotando uma vida austera, A arquitetura continua de talpa, de formas rigidamente tdscas. Taubaté, MogiGuagu, Ttu e Sorocaba alinham uma ou outra construcio, mas sem dtivida (© mais belo exemplo desta época é 0 Convento de Embu: simples e severo, ainda que encetado pelas intervengdes museogréficas para atrair turismo. No Sul, a populagio concentrouse em Curi- tiba e Paranagud, mas com escassos empreendimentos construto- res, A drea sulina, que constitui excegdo, € a terra das Missdes Jesulticas do Paraguai, que apesar de pertencerem mais & area hispanoamericana, deve ser registrada por encontrar-se em solo brasileiro as MissOes de Sdo Miguel, no Rio Grande do Sul. O que fol chamado, 20 tempo das polémicas da expulsdo, de ‘tene- broso polvo’ organizou-se politicamente: fundou as ‘reduces’ com © trabalho indigena, nfo pondo de lado as artes, pois para os Jesuitas estas eram encaradas como utilidade e funcéo. Uma urbanistica elementar: a praca da igreja na qual se erguem o cruzeiro e © pelourinho; dos quatro angulos saiam estradas di- retas &s terras de cultivo, o recinto da feira do gado, a estrada 26 Borat de comunicacio com os grandes centros. Na arquitetura, mais que a moda barréca predominava o maneirismo, 0 vignolismo ortodoxo dos jesuitas romanos, como se vé nas ruinas da Igreja de Sio Miguel, ainda ndo conclufda ao tempo da expulsio. Longe do litorel, nas regides ainda nao consideradas meta dos cagadores de ouro, as artes circunscreviam-se aos limites do pioneirismo. No longinquo Mato Grosso a primeira arquitetura é um t6sco fortim entrincheirado pelos paul'stas em caca aos escravos con- 179, Interior da Tereja de Santo AntOnio, Tiradentes, MG ‘seul. XVID, trastando com os jesuitas, 0 mesmo acontece com Goids e Minas, ‘a espera das Bandciras interessadas pelos metais e pedras pre- closas. Neste século a construgio de fortaleza nao para, pelo con- trario, intensifica-se devido a cobica estrangeira e pelas rebelides internas. Seus construtores sio, ra maioria, engenheiros oriundos de Portugal. © mais ilustre déles é Francisco de Frias da Mes- quita, que também se improvisa arquiteto, construindo, além de A arquitetura brasileira 2a fortalezas, imimeras igrejas em varios pontos do Pai fazem-se notorios os fortes dz ha de Garupé no "Para! telo em Belém e o de Nazaré na Bahia, cada um com sua} e lendas, passando de um ocupante a outro. Agora io © SETECENTOS E 0 ALELJADINHO © Setecentos € 0 século de ouro da nossa arquitetura e por conseatiéncia de t6das as artes, manifestas especialmente pela 180. Igreja de Sto Francisco, Séo Joo del Rel, MG (séeulo XXVIII), 8 P.M, Bardi genialidade popular que também conflui na explosio das lutas pela Independéneia nacional. Dois personagens de estatura inco- mum dominam 0 tempo: Tiradentes e o Aleijadinho. ¥ em Minas que a arquitetura adquire sua fisionomia: na base do barroco, com fulgores de rococé, aquelas vilas adornam-se de igrejas, capelas, chafarizes, passos, oratdrios, casas, palécios, numa harmonia pitoresca que o tempo andou amalgamando numa bela unidade, aceitando e transformando os influxos que aporta: vam com 0 intereémbio. Além dos novos portuguéses que sio ‘0s mais fortes, encontram-se os muculmanos e até os chineses, devido as continuas, relagdes entre as colonias da Coroa. No trdpico uma planta se insere, domina, estrangula e remodela outra existente, criando um inédito de dialogia entre duas ou freqtien- temente muito mais formas, tio efervescentes de sugestées que basta deduzir para criar fragilidade, mudanca, improvisagio. Se uma planta se conjuga com outra, numa estreita simbiose de enxertos ou de tolerancias, por que um modo estilistico nao pode, por analogia, se entrosar 2 outro? Isto podemos verificar em Sabaré, Ouro Préto, Congonhas, Séo Joo del Rei, Tiradentes, para lembrar as cidades mais famosas, onde paira a sombra do Aleijadinho. Evocativo, porém, nao retrospectivo, furiosamente enamorado do proprio oficio e firmemente decidido a impor seu ideal. A novidade do conjunto de Congonhas do Campo, tio contrastante com a rotina das Comissées, foi sem diivida mais que aceita, imposta. Quantas vézes ld estivera entre 1796 e 1805, no seu itinerar através das Minas, levando os desenhos e @ defesa dos seus projetos, abrindo ateliers, recrutando ajudantes, susci- tando confianca e incutindo respeito e porque nfo, brigando. O itinerante corria de uma vila a outra com entusiasmo viril, pre- sente em Sabard, Caeté, Catas Altas, Santa Rita Duréo, Morro Grande, Tiradentes, Nova Lima, Pedro Leopoldo, Sdo Jodo del Rei, Ouro Préto e quantas outras localidades. Desenhava igrejas — planos, frontispicios, altares, talhas, méveis, lambris —, acon- sethava, desempatava litigios, esculpia madonas, santos e santi- nhos de oratério, sem se cansar, pronto a colaborar com outros mestres, como no caso da mais harménica construcéo de Sao Joao del Rei, a esguia igreja da Ordem Terceira do Carmo, cujo arquiteto, adaptando riscos do colega, foi Francisco de Lima Cer- queira, que 14 trabalhou por irinta anos. Os agradecimentos am, eer lct rs, Tgreje de Santo Antonlo, Tiradentes, MG (séoulo XVII). 250 P.M, Bardi plisticos da burguesia enriquecida com 0 manuseio do ouro eram representados pelas igrejas que ainda hoje brilham nas Gerais. ‘Muitas delas encontraram seu artifice neste artista surgido como por encanto, com naturalidade, sem boatos e festas, como um. operério qualquer, na maioria dos casos pago por dia, sem a fama merecida, tanto que, concluida sua obra acabrunha-se no anonimato, Passatam-se decénios para afinal ter sua primeira biografia, a de Rodrigo Brétas em 1858, mas seré sdmente nos tempos do PHAN que virio & tona os primeiros estudos, que todavia desencadearam uma febre de literatura sobre o assunto, em grande parte anedotando curiosidades ao invés de penetrar a mensagem. Apelidaram Manuel Francisco Lisboa de ‘Miguel Angelo dos tropicos'; compararamno a Lorenzo Ghiberti, logomaquizando até que o autor das portas do Batistério de Florenca seria ‘mais barroco’; André Maurois chamo:-o de ‘El Greco Mulato’, e assim por diante. Satisfaz, ao invés, a definicio erudita e a0 mesmo tempo encomiistica do vereador capitdo Joaquim José da Silva: ‘novo Praxiteles’, que devia soar misteriosa nos meios da Mariana do setecentos. Minas, nesse século, constitui palco tinico no florescimento arquitetonico, Intitil aqui redigir um daedeker das principais igrejas mineiras: aconselho uma visita detalhada As suas cidades, a fim de conhecer 0 miximo patrimonio de nossa arte. Para nao perder o costume, dou, todavia, algumas indicagées. Comeco pela igreja que, para mim, mais denota a melancolia do catolicismo, a Matriz da Vila de Séo José do Rio das Mortes, hoje a trangiiila © patética Tiradentes. POETICA DO ROCOCO risco do frontispicio ¢ atribuido ao Aleijadinho, sendo de sua autoria 0 portal em pedra-sabéo. A decoracéo interna é de rara harmonia, se comparada com outras igrejas que sofrem ou sofreram intervengées de padres e das contabilidades paroquiais, quase sempre ignorantes dos problemas da arte e dos pedidos do bom gosto. Os contratados para a edificagdo devem ter operado em uma equipe bastante concorde, todavia com liberdades de invencéo, arquitetura brasileira Bt pois se observa extravagantes reformulagées da concha, simbolo do barroco em geral, pouco difundido em nossa decoracio e, quando usado, estranhamente reformado; um tipo de anjo nunca, estandartizado: rechonchudo ¢ musculoso, emplumado, segurando cornucépias, ora condecorado com omatos de colares ricos de pingentes, até metamorfoseados saborosamente em esfinges. Por ‘eimulo: anjos emparethados como irmaos siameses. Até o seu ‘sexo no obedece As reservas e as prudentes perplexidades teo- l6gicas. ‘Toda esta figuracdo 6 caseira, ocasional e futuristica. No altar: apontam-se até cariétides, mas é provdvel que o artifice nem sabia o que significavam. Para onde o élho procura, a plés- tica sempre responde com o inusitado, a surprésa, a novidade. Este templo permitenos anclisar friamente os coneeitos desta liturgia reformada, com participagies de liberdades, todavia eficiente mensageira de um fausto atenuado, bem composto, que entretanto deixa transparecer que os pensamentos estavam ousados nas minas, afinal o simbolo do fausto. ‘Numerosas so as ‘cidades babés’ do ouro, ornadas de arqui- teturas ainda vivas: Congonhas, com sua ‘Biblia em pedrasabao / Banhada pelo ouro de Minas’, como a batizou Oswald de An- Grade; Mariana, a vila das brigas herdico-comicas entre poder civil e espiritual e mesmo entre os gregais da hierarquia religiosa, ergo de padres ‘que menos curavam das almas, que dos seus negécios particulares’, apresenta, desde a Matriz ao gracioso pala- cete que hospeda o bem mantido Museu, uma série de arquitetu- ras bem representativas do século. Ouro Préto, rica de igrejas que avangam na sua piramide de telhados, ¢ dominada pelas cbras do Aleijadinho que encontra- Temos no préximo titulo. Dos edificios civis, na grande praca, estd 0 severo capitolio, antiga Casa da Camara e Cadeia, projetada pelo entéo governador Dom Luis da Cunha Menezes em 1783, a terrivel figura & qual sto dedicadas as Cartas Chilenas. Em frente a esta construgdo situa-se 0 Paldcio dos Governadores, monumen- tal ¢ ajeltado a fortaleza, obra do arquiteto portugués Manuel Francisco Lisboa, pai do Aleijadinho. Se excursionarmos por ura cidade como Sabaré e pararmos diante da porta da Matriz de Nossa Senhora da Conceicio, se- gundo a lenda vinda de Macau ou da Igreja de Nossa Senhora 282 P.M, Bardi do 6, perceberemos 0 probleme do influxo chinés que é curiosa- mente mais evidenciado no interior que no litoral. AS VARIAGOES DO BARROCO DO NORTE No setecentos nfio ¢ s6 Minas, pelo surto do ouro, a movi mentar o timo da arte. O nordeste alinha expresses de cunho empolgante e define modos barrocos e rococés diversificados do mineiro. Aqui se admira um barroco mais truculento e aformo- seado em talhas pesadonas, entremeadas a carrancas gritantes, © jacarandé assombrando tenebrosamente 0 ambiente, ou 0 our cegando a vista. Minas enfeitase mais alegremente, amigando cores pastel, procurando leveza e dogura. No nordeste € mais evidenciada ‘a influéncia européia; os construtores procuram se basear nos exemplos portuguéses, especialmente as ricas igrejas do Porto ‘A variagéo € constante e devese notar que as diferenciagdes no s8o $6 regionals, pols até numa mesma cidade manifesta-se éste espirito de cambiamento e competicao estética tipico dos mestres operosos, com individualidades que concentram um ca iter pessoalista na interpretacio e manipulacéo do estilo. As artes dio lustro as atividades econOmicas muito présperas, 0 que traz como conseqiiéncia uma arquitetura concentrada antes de tudo nas fortalezas e depois nas igrejas. © modo é de um barroco que direi temperado, como € geralmente no nordeste. Salvador, nosso santuério dustre das artes pela posicio de capital, como ja vimos, concentrou a vida da Coldnia, declinando sua importancia alguns decénios antes da transferéncia da capital para o Rio, As arquiteturas selscentistas agora sio em parte remodeladas, as iniciativas naquele século ultimadas, 20 passo que novos empreendimentos so levados a cabo. Nao faltam as remi- niscéneias do maneirismo, despontando também as primeiras no tagdes do rocoes. Como sempre acontece, registramos a coexis: tencia dos trés modos e suas conjugagdes no eldstico interpretar dos mestres: incongruéncias, remodelagdes e contribuigses ingé- nuas produziréo a mescla um rouco confusa de heterogeneidade, categoria ainda néo bem aceita do barroco brasileiro. Certamente, no é simples encaixar nesta defini¢go, por exemplo, 0 Convento de Sao Francisco. Deliberada a construcdo em 1686 ¢ concluido ta J A « oe 12, Frontispicfo da igraja do Convento de Sto Francsico, Reeife (séoulo XVIII) 258 P.M, Bardi em 1723. Marca um momento da decoragio carregada do barroco desenfreado, no tanto no contraste frontispicio, mas no espaco interno literalmente ocupado, de ponta a ponta, por talhas, escul- turas e douragées: teto a caixot6es emoldurando pinturas em gloria a Nossa Senhora, espécie de Merzbau de Kurt Schwitters, capelas laterais, ptilpitos, sacristia, biblioteca — todos os ambi- entes marcando a opuléncia daquele denso templo baiano, quando ‘triunfavam o jacarand4 e 0 ouro —. Os olhos se cansam, pois no ha um So instante de sosségo, a nao ser quando pousam sobre © brilho dos painéis de azulejos, que constituem um dos conjun- tos mais belos. Aos tesouros seiscentistas baianos junta-se 0 caso mais es- quisito da arquitetura setecentista alheio & tradigdo: a Igreja da ‘Venerdvel Ordem Terceira de Sio Francisco da Peniténcia, planta do mestrede-obras Gabriel Ribeiro. 1 um dos templos que no citocentos foi castigado, aliés castigadissimo pelo impiedoso de- sinterésse para com os antepassados. Sua fachada rebocada, pintada e repintada foi transfigurada, a decoreio interna destrufda e reajeitada. Seu estilo é plataresco. Parece um retébulo espanhol pantografado em grandes dimensGes: flamejante de faustosos en- quadramentos em relévo, fantasioso engastamento de querubins encapuzados de capitéis jOnicos, aparigGes de figuras profanas, monstrengos, ¢ no nicho, San‘o, tudo rendado minuciosamente. Uma tempestade de formas devida, provavelmente, a escultores espanhdis ou préticos daquela cultura. Outras igrejas que me limito a referir: Nossa Senhora da Conceicéo da Praia, obra do arquiteto portugués Eugénio da Motta, que trouxe de Lisboa a pedra de lioz necessiria @ construcio, edificio austero nas formas mzneiristicas italianas, inclusive no espago interno; Nossa Senhora do Pilar, onde comecam a se en- fronhar os modos do neocléssico, mas seu frontispicio é um ele. gante exemplo do rococs; e pelo interior da Bahia, riquissimo de templos, cito por todos o Convento da Ordem Terceira do Carmo, em Cachoeira, cuja decoracéo zococoizante é de rara harmonia. As arquiteturas setecentistas de Pernambuco e da Paraiba convidam a descobrir uma infinidade de detalhes decorativos que oferecem, mais uma vez, a ocasiéo de notar 0 espfrito inventivo dos talhistas. A verdadeira diferenciacdo das igrejas nota-se no igo variado das decoracdes. A arguitetura brasileira 255 Recife, nesse século, erige templos onde 0 barroco ¢ festivo, de impressionante alegria decorativa, tanto que certas fachadas mem parecem de casas de religiéo, como ¢ a da Igreja do Con. vento de Santo Anténio, construcao contrastante com Séo Pedro dos Clérigos, ainda no espirito jesuitico. Iniciada nos ultimos anos do seiscentos, a Capela Dourada dos Terciérios Franciscanos, pelas dimensées, pelas farturadas talhas e pinturas, é uma das arquiteturas mais célebres do Brasil. No setecentos, Olinda assiste & reformulagdo de suas igrejas e altares 2 moda rococé e neo- cldssica, Aqui as Ordens sio ricas, pois recebem do Govérno ‘quantidades de agticar para serem vendidas. Alguns padres tro- 183. case de fazende, Hstado do Rio (séeulo XI, P.M, Bardi ‘pegam neste tréfico e vao parar no Aljube, a espagosa cadeia ecle- Sidstica de dois andares, recenlemente restaurada para abrigar um Museu, Nesta regio também verificam-se tracos de orientalismo, como na Igreja de Nossa Senhora da Guia em Jo&o Pessoa, onde 0s omnatos parecem executados por artesios com estégio na India, Nesta cidade a igreja do Convento do Carmo tem a parti- cularidade de apresentar altares em pedra, em estilo rococé mas sem rebusques, e direi, compendioso, ce comparado a exemplos baianos. Para 0 Convento dos Franciscanos dedicado a Santo Antonio, ainda em Jo&o Pessoa, vale a mesma observacao feita, sObre 0 convento da mesma Ordem em Recife, quase uma Teacéo fas regras de pobreza do Santo. A ARQUITETURA CIVIL E MILITAR No nordeste a arquitetura civil, cujos esforgos foram con- centrados no aprimoramento do engenho e da patriarcal casa- -grande, prestase a algumas observagdes: de taipa ou de pedra, com telhado de sapé ou de telha cozida, bem protegida do sol e das chuvas, correspondia ao ambiente ecoldgico e as razbes econémicas e sociais dos periodos da monocultura, variando nas muudancas regionais, mas ligeiramente uniformizada no seu con- junto. Foi notado 0 funcionalismo destas construgées, tendo em conta que cada habitacio implicava num minimo de apare- thamentos higiénicos, facilidades de abastecimento, servicos e des- canso, A casa-grande tinha razodvel comodidade, devido aos escra- ‘vos que se tornavam maquinaria para atender qualquer necessi- dade: transporte, fornecimento de agua, esgéto, faxina, ventila- 40, cozinha, recados, baba e naturalmente cumplicidades afeti vas, reprodutoras e capangueiras. Qs palicios, na acepedo européta, no eram numerosos. Em certas capitais procurava-se construé-los quando se tinham os meios, certamente ndo como os que Nassau erguet na Mauritshuis, no Recife. Hram sedes de cimaras e de cadeias 20 mesmo tempo, residéncias de vice-eis e dos cresos que se enriqueciam, Em geral, os planos eram os do solar de importagéo ibérica, com amplo patio interno e cireundado de jardins, cachoeiras, dependéncias A arguitetura brasileira 2 184, 0 aqueduto do Rio (seule XVID; gravura do século XIX para criadagem, servigos de banheiros, particularidade esta de frisar, pois o brasileiro sempre gostou de égua e de higiene. No ‘Maranhiio as Ordens foram muito ativas, mas das arquiteturas religiosas tio abundantes err. So Luis e em Alcantara sé subsis- tem as estruturas, devido as simpatias & moda neoclissica que acabaram por transfigurar grande parte aos edificios. Em Belém 258 rd do Para a vida colonial devia ser intensa, se La Condamine, vol tando da Amazonia, na terceira década do século, a encontrou “...uma grande cidade, com ruas bem alinhadas, casas alegres, zna maioria hé trinta anos reconstruidas em pedra e mosaico, igre- Jas magnificas...” ‘Anos depois chegaria da Ttélia Antonio Giuseppe Landi, por- tador de um maneirismo prenunciador do neoclassico, com leves tragos de barroco, que alguns historiadores chamam de ‘estilo. pombalino’. B uma personalidade que eclipsa o escultor jesuita Peter Traer, que Id tentava aclimatar modos do barroco austriaco. A Igreja de Santa Ana, 1782, planta da cruz latina, caipula e lanter- nas circulates, fot uma novidade do autor do sdbrio Paldcio dos Governadores. Landi foi arquiteto digno déste apelido, autor da Sé © das Igrejas de Nossa Senhora do Carmo e de Sio Jodo Batista. Passando agora a Mato Grosso, s6 Cuiabé estabeleceu-se como verdadeiro centro, cuja Sé, talvez 0 tinico exemplo impor- tante da arguitetura matogrossense déste século, foi barbara- mente arrasada recentemente. O Rio, escolhido como capital do Brasil, necessitou reorganizar sua vida meio opaca, estérgo do primeiro Vicerei que procurou ‘...reabilitar um pouco esta ci- ‘dade que s6 tem frades, clérigos, soldados e mendigos....’. Ativou atrativos mundanos, teatros e academies, saneou e melhorou as condigées urbanas ¢ construiu 0 Aqueduto, a maior obra piblica~ do tempo, resultado de varias tentativas para dar a cidade sua gua. Apés tremendo fracasso, a obra foi construida espléndida- mente pelo talentoso brigadeiro José Fernando Alpoym, um di- nécrates local, autor de palécios, conventos e fortalezas. A pre- senga mais polarizante no Rio §, entretanto, a do Mestre Valen- tim da Fonseca e Silva, virtuoso em todos 0s campos, artista dis- putado: nenhume autoridade, a comecar do Vice-el, tomava d sbes sem antes ouvilo. No seu atelier da rua do Sabio dese- mhavase de tudo: tragados urbanisticos, reedificagdes de monu-_ mentos, igrejas, pecas de ourivesaria, porcelanas, mobilidrios. A atividade valentiniana, que congrega modos manuelinos, barrocos, rococés @ neocléssicos, conseguiu uma expresso, pode- -se dizer, autdrquica, num Brasil & procura de definig&o estética. ‘Sio Paulo nfo teve @ chance de se erguer como Minas. Entre- tanto, no faltaram a riqueza e os mecenas dispostos a erguer igre- jas. Deve-se assinalar, por outro lado, que a terra de Piratininga no A arauitetura brosieira 29 era desprovida de sentido cultural: prospera o Arcadismo e torna- se renomado um personagem de talento: Mathias Aires Ramos da Silva de Ega, nosso primeiro fildsofo censor das vaidades huma- nas e autor de Problemas dz Arquitetura Civil, publicado postu- ‘mamente em 1770 em Lisboa, 0 primeiro livro no género escrito por um brasileiro. No Parand s40 raras as arquiteturas dignas de nota, pois s6 no oitocentos conhecerd seu verdadeiro povoamento. Deve-se todavia, observar o Colégio Jesuitico de Nossa Senhora do Térgo, em Paranagué, que apdés a expulséo da Companhia foi adaptado sucessivamente em caserna ¢ alfandega, tendo a igreja ruido. No fim do século os jesuftas sfio expulsos, uma certa crise ¢ advertida, em coincidéncia com o exaurimento da mineracao © 0 conseatiente empobrecimento do pais. Conventos e igrejas aban- onados, desaparecimentos ce comunidades religiosas, marcam 0 Ponto de declinio da arte onde a Companhia prevalecia: as Mis- sdes do Paraguai s&o -devoradas pela mata. A arte, pela preva- léncia do poderio real lisboeta, recebe seu golpe fatal: a Igreja estava organizada para produzi-la, pois Ihe servia como instrumento de propaganda; 0 Estado, prético s6 em construir fortalezas, casas da moeda, prisées, estava despreparado para levantar monumen- tos e se entrosar com as ares. Portugal estd agora ciumento do seu ouro e das fronteiras do Brasil. Assim, a construgao de fortalezas no cessa e vale a pena referir a uma delas, 0 Real Forte do Principe da Beira, nos limites do Brasil com a Bolivia, Foi construido por Doménico Sambo- cetti, engonheiro italiano participants de uma misao que visava ‘2 delimitar a regio fronteirica, com surpreendente técnica mili- tar, nto pondo de lado o acabamento em caréter distinto, com talhas em pedra e capitéis desenhados, compilando curiosos mo- tivos florais. Em geral os portuguéses reformaram as antigas fortalezas que guardavam o litoral, utilizandoas até o fim do seu dominio, © ACADEMISMO NEOCLASSICO Pelos acontecimentos da Suropa agitada por Napoleiio, a Coroa portuguésa descobre que o Brasil poderia tornar-se centro do set império. O desembarque de Dom Joao VI determinou um rumo 260 P.M, Bardi inesperado na arquitetura. Apesar das desavencas politicas, 0 Regente, aconselhado pelo Conde da Barca, apelou para a Missio francesa, que em 1816 desembarca no Rio. Nela estava Grandjean de Montigny. Este arquiteto de renome encontrou uma situacdo bastante precéria, Basta dizer que 0 Rio era cidade sem esgotos; foi somente na segunda metade do oitocentos que se realizaram os principais trechos de canais subterraneos, e s6 agora Copa: cabana esté recebendo a canalizagSo que jogaré os detritos no Atlantico. Logo que se abriram os portos e 0 comércio aos estran- geiros, os ingléses divulgam o uso do vidro até ai rara- mente visto: as rétulas e as gelosias foram substituidas por Janelas envidracadas e cortinadas. A nova interligacao entre casa @ rua, prescrita por um decreto do Principe, deu por resultado tum ajeitamento na limpeza e no mobiliamento das habitacées, aumentando assim 0 trabalho dos fabricantes de méveis e incre- mentando as importagdes. Outro decreto bésico para 2 ordem © 0 decéro da cidade foi o ‘triouto de décimas dos prédios ur- banos’, que eram cérea de 6000 numa cidade de 70000 habi- tantes, sendo a metade de escravos. Dois anos depois, em 1811, outro isentava das décimas, por dez anos, os que edificassem ca- sas na Cidade Nova, Bste incentivo foi benéfico, mais no sentido quantitativo que no sentido qualitativo: a arquitetura era simples, sem sair dos feitios coloniais, mas, geralmente correspondia as exigéncias da nova e pequena burguesias. Os comerciantes cons: trufam casa, empério, botequim e pousada num mesmo edificio. ‘As Areas verdes contribuiam para harmonizar as construgdes. Entretanto a beleza selvagem da natureza era vista com maus olhos, como competidora dos desfgnios do desbravador. A arguitetura, pelo menos a da fachada, tornava-se a formu- lagio nostilgica do estilo da casa portuguésa: enriquecido, 0 Teinol aspirava aquela reprodueéo, engentilizada pelo revestimento de azulejos decorativos vindos do Porto, portas e janelas enqua- dradas com granitos malva maculados de préto do Rio. Esta fachada, rapidamente, venceu a marroquinada das rétulas, decain- do assim os influxos drabes que ao invés, prepotentemente, reapa- recerfio em nosso século, quando em Sao Paulo aquela animosa colonia construiré em estilo rseudomugulmano. O burgo de aspecto entre 0 lusitano e o africano foi sacudido pela decisio 185, Fachada da Academia de Belas Artes, Rio, (de Montigny); reconstrugio através de desenho de Dan Fsidini Filho. do seu improvisado crescimento, e dewse 0 mesmo que se dé com as familias pobres que de improviso, confusio medonha, devem receber e acomodar, por acaso, uma de ricos. © Rio andow pondo-se em ordem, passando por muitos entraves. Apegados aos modos da Patria, ndo sé a comunidade mer- ante o funcionalismo luso, mas também 0s poderosos que cons- ciente ou inconscientemente gostavam do barroco, resistiram & 262 P.M, Bardi aceitagdo da novidade neoclissica: fachadas salpicadas de corni- Jas retas em lugar de volutes, conchas, colunas e timpanos. Ge- ralmente 0 costume a um ambiente repudia as propostas de mudélo: € curioso notar que uma vez que 0 neocléssico arranjou popularidade entre a classe abastada, éste perseverou resistindo, anacrénico, até os nossos dias. # facilimo gargalhar em frente a palacetes, caricaturando o Parthenon. Chegada a MissSo francesa, que passa por deliciosas peripé. clas deseritiveis s6 em muitas laudas, a expectativa mais intensa em seus resultados era posta, como é facil imaginar, na arqui- tetura de Montigny, expoente do neoclassicismo na Europa, Era oriundo de uma experiéncia na Vestfalia, onde servira a Jerome Bonaparte, e tinha sido convidado a trabalhar em Séo Petersburgo. Todavia a Russia preferiu o Rio, quando, Le Breton, chefe da Missio, 0 convidou. Os neocldssicos estavam convencidos de caminhar na linha justa: era o tempo da restauragao das virtudes classicas e Napoledo, apesar de ter acabado em Santa Helens, tinha razio. Mas aquéle estilo frio e arqueolégico, veiado de me- lancolia, teimoso inquisitor do regular e do retilineo, sofista da simplicidade e do simplismo, nio servia para 0 trOpico. No transplante perdeu suas asas de terceira mio, ‘Se 0 barroco aqui se entrosou — afinal era o estilo da Tgreja e da retérica ibérica, quente e agitado — e recebeu alguns acrés- cimos locais, 0 neoclissico mortificou-se sem apresentar possibi- lidades de se inserir no ambiente, Latrobe, adaptando Vitrivio em Washington, pelo menos desenhou os capitéis com folhas de tabaco; no Rio, Montigny delineia folhas de acanto gregas, sem querer pensar que um capitel floreado de bico-de-pepagaio teria sido uma maravilha, N&o se verificou nenhuma reclaboragao no estilo que ia servir a0 Império. Nas gélidas aulas da Academia, gélidas de idéias, naturalmente, 0 jeito local foi pontualmente posto de lado. Como em Paris, os exercicios para os alunos eram déste teor: “Templo jdnico nas margens do Ilyssus’, “Eleva. Go geometral e plano de um elegante hospital, com comodidades para os dois sexos’, ‘Cornija do paldcio Strozi em Florenca’, ‘altarmor do templo da Fortuna’, e assim por diante. O ensino de Montigny abriu o caminho para o Ecletismo. Sem aprecis-lo de ‘maneira imperfeita e malévola’, Montigny era 0 com: pilador de um élbum de brincadeiras antigas, antiquissimas: 188, Palécio da Reitoria da Universidade Federal do Cearé, Fortaleza num dos seus teatros, 0 que tinha ‘varanda corrida, destinada as senhoras’, com cadeiras forradas de palhinha, a decoragio era em estilo egipcio. Napoledo nio foi ver as Piramides? A folha de palmeira estilizada a0 moco neocléssico tornouse elemento decorative de moda e, através de Montigny também o Brasil teve sua racdo destas folhinhas, aliés ndo estranhas aqui, mas os decoradores as transformaram em penachos de indios. ‘As conseqiiéncias do ensino da arquitetura com as receitas neoclissicas foram, como nos outros paises ocidentais, contri- buintes do Ecletismo, isto 6, forneceram possibilidades de ex- pressAo aos estilos do passado. N&o é aqui caso de elencar os artifices. Os arquitetos confundem-se com os préticos de outros oficios. S80 ainda artistas no senso co Brasil colonial, isto 6, aquéles que resolvem problemas de plastica, com jeito ¢ resultado estéticos. Nos offcios mais simples era também assim: fécil encontrar cla- rinetistas que 20 mesmo tempo eram aplicadores de sanguesugas e até cirurgiées. Adolfo Morales de los Rios Filho, na mono- = PLM, Bardi grafia dedicada a Montigny, estudou todo éste artesanato-arte ou arteartesanato, dando noticia de mestres aos quais se atribuiam titulos curiosos como ‘Mestre geral das obras puiblicas, arrumador © arquiteto da Camara’, ‘Engenheiro-arquiteto’, ‘Arquiteto medi- dor’, que devia ser 0 topdgrafo, e até titulos pomposos como 0 que foi atribuido a Jodo da Silva Moniz: ‘Arquiteto das Reais Obras © Arquiteto da Nova Inspecéo na Carte do Rio de Janeiro’. De- duz-se que se ia implantando uma buroeracia da arquitetura, nas pegadas do Conselho Ultramarino que se nota no seiscentos. Os resultados foram, de um ponto de vista estilistico, sem grande valor: afinal sem Miguel Angelo e Rafael que teria combinado Leto X? Entretanto, no Rio as herancas mais dignas do ‘montignismo’ podem ser classificadas: 0 Hospital da Praia Vermelha, sendo José Maria Rebelo autor do corpo central, 0 mesmo arquiteto do distinto Paldcio do Visconde do Itamarati, conjunto que apesar das reformas e ampliagGes conserva ainda um fascinio roméntico. © mesmo, encanto possui o Palécio Imperial de Petropolis, hoje sede do Museu Imperial, que além de ser de Rebelo ¢ fruto da colaboracéo de Joaquim Candido Guillobel e o engenheiro Julius Frederic Kéller, sagaz construtor de edificios civis e de estradas eum dos fundadores desta ultima cidade. Qutro edificio representativo, tao ligado & nossa histéria, 6 0 Palacio do Catete, residéncia do Bario de Nova Friburgo, do arquiteto Gustavo Weschneldt, expresséo do gosto dos grandes cafeicultores que, viajando pela Buropa, apreciavam © que viam em moda, importando lambris Luis XVI, de car- valho, pinho de Riga para soalhos, porcelanas de Sevres, cris tais de Bacarat, espelhos venezianos de Salviati e assim por Giante. © neoclissico era 0 dominante pela atuagéo dos mis- siondrios franceses, mas precisou também ajustar as contas com a presenga dos ingléses, e foi assim que o neogético, 48 aparecido nos tempos do Regente, andou ganhando terreno, certamente pelo papaguear de um dos acontecimentos mais ex- traordindrios daquela metade de século: a exposi¢go do Cristal Palace, da qual o Brasil timidamente participava. Apareceu, absurdo, mas triunfante, na Baia da Guanabara 0 palacete da Uha Fiscal, a se comparar & Igreja Navegante, apre- sentada pelos Estados Unidos, que naquela exposi¢ao era uma A arguitetura brasileira 285 das maiores atragdes. Sera em escritura gética 0 cabegalho da Lei Aurea pela libertacio dos escravos de 1888. Cada provincia teve sua porcko de ogivas; curiosas as da Igreja de Nossa Senhora dos Remédios em SAo Luis do Maranbiio , de tapa em tapa, voltamos a0 Rio onde o Palacete Martinelli, apelidado ‘o dente cariado’, é a mais laboriosa e méticulosa ten- tativa de retalhar um estilo. O exemplo mais dissonante do neo- gético seré, porém, em Sio Paulo, na descombinada arquitetura da sua catedral, isto no comégo do nosso sécullo. N&o faltou também um exemplo de Manuelino, 0 Gabinete Portugués de Leitura, depois Real, desenhado em 1880 por Rafael da Silva Castro, com tOda a cantaria vinda de Lisboa. ast. Bstrutura da Catedral de Brasil, DP, Arq. 0. Niemeyer. Foto Brunner. 265 P.M. Bardi A ARRANCADA DA NOVA ARQUITETURA A hibrida situagao da arquitetura do oitocentos continua no novo século. O ecletismo, através das imigragées, se ramifica em aventuras dos mais curiosos disparates, resultando sempre mais acentuadamente em problema de decoragio de fachada e de exi- biggo da nova burguesia: as duas avenidas, Rio Branco, no Rio ¢ Paulista, em Sao Paulo, juntamente aos dois Teatros Municipais, cépias do Opera, de Paris, testemunham o que quero dizer. Nem a Semana de Arte Moderna de 1922 conseguiu apresen- tar alguma arquitetura néo incrustada no ecletismo. ste ramo mal estava presente no movimento, pois a participacéo dos arqui- tetos Antonio Moya e Georg Przirembel, aparentemente, no con- ‘tribuiu para uma inovaedo nes‘e setor. Governava esta arte, em ‘So Paulo, Francisco Ramos de Azevedo e outros alquimistas dos estilos. Contra éles devia polemizar Gregori Warchavchik, um jovem russo formado em Roms, e desembarcado no Rio em 1924. 188. Praca dos Trés Podéres, Brasilia, DF. 8, {greja Sho Francisco, Pampulha. Ara. O. Niemeyer: afrescos de C. Por- finart, Mis altar da mesma igre 268 P.M, Bardi ¥ 0 inaugurador no Pais da arquitetura coerente com os tempos. ‘Nao foi facil sua iniciativa, A resisténcia, as vézes, enfurecida pelo ardor polémico dos velhos construtores, foi tenaz. Naqueles anos © pseudoneoclassicismo ainda imperava como estilo dulico, apesar de transfigurado das conotagGes caracteristicas, como podia se constatar, vendo o palacete reproduzindo o Petit ‘Trianon, que a Franca doou em 1923 & Acaderria Brasileira de Letras, edificio construide como pavilhio na Exposicao do Centenério da Inde- pendéncia do Brasil. A casa da rua Santa Cruz, 1928, inaugura a fase da reviséo arquiteténica que outra iniciativa warchavchi- kiana consolida quando, em 193), tem a singular idéia de apre- sentar um edificio que vale como manifesto: A Casa Modernista. ‘Associado mais tarde no Rio a Liicio Costa, dar-sed no seu escri- torio a revelacko de Oscar Niemeyer. As visitas ao Brasil de Le Corbusier afirmario, ainda antes da Segunda Guerra, a prefe- réncia pelas construg6es que tém em conta os valéres funcionais, pondo mio a mio, de lado, a consideracao da arquitetura-enfeite- -das-fachadas. Suas visitas & América do Sul tinham, por finalidade, o triunfo do sett ideal no Continente que lhe parecia mais disposto & acel- taco. De fato, a generosa mensagem foi aceita, como testemunha 0 Ministério da Educagio e Satide, planejado no risco do Mestre pela equipe: Liicio Costa, Oscar Niemeyer, Affonso Reidy, Car- Jos Le&o, Jorge Moreira e Hernani Vasconcelos. © rumo do racionalismo brasileiro, 20 qual deu aberta contribuicéo Alexander “Altberg, construindo habitagdes onde a fungao determina a estéti ca, com 0 passar do tempo foi apagando-se nas ‘gangs’ do forma- lismo, obedecendo ao irresistivel espirito de diferenciagio dos nossos arquitetos, subvertendo 0 conceito. Alguns vestigios do racionalismo lecorbusierano restaram em Brasilia, onde, porém, os interrogativos de ordem estética e funcional a serem desfeitos so numerosos. Brasilia foi planejada por Costa e Niemeyer — mas aos dois nomes deve-se juntar 0 de Joaquim Cardoso, o enge- nheiro calculador de todas as estruturas, também conhecido como poeta e estudioso da arte colonial — para ser um simbolo nacional, formas monumentais representativas, mais de uma estrutura pol tica a ser composta no futuro cue corresponde & realidade. ‘Tivemos nos tiltimos trinta anos e como temos hoje arquite- tos de valor, todavia, elementos de diferentes formagées e expres: 190, Museu de Arte de Sio Paulo, SP. (Arq, Lina Bo Bard. Ges dificiimente englobaveis numa tendéncia: os irmios MMM Roberto, o ja lembrado Affonso Reidy, autor do edificio do Museu de Arte Moderna do Rio, Lina Bo Bardi, autora do edificio do Museu de Arte de Séo Paulo, Joao Villanova Artigas, Joaquim Guedes, Sérgio Bernardes, Henrique Mindlin e outros. Quanto ao que se refere a geragdo mais nova dos arquitetos 6 prematuro um julgamento, Das Faculdades saem jovens prepa- rados, mas com escassas perspectivas de construir. Alguns fa zem-se notar pela inventividde das formas excéntricas, especial- mente quando projetam palacetes burgueses. O problema da arquitetura no Brasil, pelas conhecidas razbes sociais e morais, deve ser, porém, considerado e disciplinado em outros térmos. Precisamos moderar 0 desperdicio das minorias e os sacrificios das maiorias e prover o crescente deficit habitacional. O problema da arquitetura torna-se problema social, ¢ deveria fazer parte de um plano diretor da urbanistica do Pais para atingir uma estétice oF 270 PM, Bara nao fragmentada em miriades de idéias e ideiazinhas, achadinhos, belezinhas, e tudo que compée a arquitetura, cartio de visita de um Pafs. Penso que as arquiteturas representativas do século so as barragens que o Brasil constréi para se abastecer de energia elétrica, a Bolém-Brasilia, a Transamaz6nica, isto é, as obras ptiblicas da estrutura nacional. Desta consideragdo medese como a arte se dilata em todas as atividades: das mais grandio- sas as mais frdgeis. Caberia aqui dar destaque especial a Ro- berto BurleMarx, hoje considerado um dos grandes planejadores de jardins, para ilustrar esta tese, ( INDICE DE ILUSTRACOES Abadia de Fossanova — Planta e Interior ms Abadia de Westminster — Sectéo ¢ Inierior : 1 ‘Academia de Belas Artes, Rio — Fachada 28 ‘Aeropolo. de Atenas... 25 ‘Aldeia bororé — Plants 230 ‘Attar de Zeus om Berlim | weit ‘Altar de Zous em Pergamo a Amsterdam’ —"Plnnla “do racic dita VAT “tga Agqueduto do Rio... 237 ‘Basilica de Paestum’ 19 Basilica de Santa Maria 0’ Loreio, Roma — Bxterior ea! Basilica de Santa Sofia, Tstambil — Planta, Exterior @ taterior | 113 Basilica de Santo ambrosio — Fachada 8 Basilica de Sio Marcos, Veneza — Planta ¢ Fachada 6 Basilica de Sto Pedro’ — Planta 155 Basilica de Sio Pedro — Vista gerai 1st Bauhaus, Dessau 2 Baunaus de Weimar — Marca, Ya Pedvera 208 “Boodle's Club", Londres — Fachade 94 Brasilia — Praga dos ‘Trés Poasres 285 Burgo medieval de Sao. Vitorino st Gapela de “NotreDame de Haut", Roachap aa Capela Palatina — Interior e Planta 5 Gapela de Sto Rogue 235 asa em Pernambuco do’ (sécule: VIE) | Gasa do. século XVIT Castelo deste — Vista dren ¢ Plants amine Castelo dos “Viveros de Juensaldafia" — Pianta an Catedral de Albi — Planta e Exterior i anes Gotedral de Amiens — Planta e Fachada Catedral do “Brasilia — Estrutura Catedral de Chartres — Planta e Fachada Catedral de Durvan — Interior ... Catedral de Gerona — Plantae inicrior Catedral de Notre Dame — Plarta e Fachada Catedral de Noyon — Fachada Catedral de Pisa — Plania © Bierior do Batisério Catedral de Reims — Planta e 108 Catedral de Salisbury "Vista area = ma Catedral de Santo Bstévio — Exterior © coogi... a Catedral de Toledo — Interior, Planta e Seeqao’ do transparente da ‘torre 1841853187 Catedral de’ Worms ~ Plana, Fichada ¢ Bxierior 97 Guester Teracy ms Londres’ —"Casas 195 — Parte do centro... 199 Gidsde torutteats °° 16? Cidade dos homens"; 98 Cidade medieval de Rowen a Gidade citocentista — Rua-corredor 203 Giaads de Vitruvio .... 145 Goieeio dos Jesultas’ ne iorto do Cassio 26 liseu em Homa — Fachada Planta, 3 SDosnatre cottemporduco oa s‘Ibsrocae ital epg =

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