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Nulidades no Processo Penal e Constituicio: Estudo de Casos a Partir do Referencial Garantista* Salo de Carvalho” Antonio Tovo Loureito*” Introducao O presente artigo parte de anélise da teoria e da aplicacao das nulidades no pro- cesso penal brasileiro. © pressuposto da investigacdo é 0 de que um dos pontos- chave para o incremento/obstrugio da acusatoriedade no sistema processual brasi- leiro encontra-se no sistema de nulidades. Em conseqiiéncia, a inquisitoriedade insi- ta ao sistema permite que atos processuais em desconformidade com os preceitos constitucionais surtam efeitos como se validos fossem. O campo das nulidades processuais esta vinculado a verificacao da conformida- de do ato processual com a estrutura constitucional do ordenamento juridico. Se determinado ato extrapola os limites impostos pelo arcabougo normativo-constitu- cional que o sedimenta, deve ter seus efeitos coibidos. Caso contrario sua legitimi- dade se esvaziard, sendo puro exercicio de coacao direta Cumpre papel central nesta anilise o formalismo judicial, referencial meta-ted- rico dos Magistrados brasileiros, 0 qual determinaré importantes conseqiiéncias no sistema de nulidades. Além da anilise do formalismo, a critica do modelo inquisito- rial consiste em ferramenta da pesquisa. A sustentacao tedrica do trabalho esté, por- tanto, no mapeamento das ideologias que se plasmam no caldo cultural dos Magistrados, ocultando-se sob o aparentemente insipido discurso da técnica proces- sual. Com 0 intuito de tragar os paralelos entre o caldo de cultura judicial e suas con- seqiiéncias na rotina forense, optou-se por ir além de mera revisio bibliogréfica — vicio da pesquisa juridica ~ e buscar na pesquisa de campo elementos que confirmem ou ilidam as premissas da investigagio. Ao escapar das limitagdes apresentadas pela dogmética processual penal, adotou-se perspectiva criminoldgica para estudar 0 © presente artigo € resultado de pesquisa realizada no Mestrado em Ciéncias Criminais da Pontificia Universidade Catdlica do Rio Grande do Sul, que resultou exn Dissertacio defendida e orientada pelos auto- res, no primeiro semestre de 2008, “Mestre em Direito pela UFSC (1996), Doutor em Direito pela UFPR (2000). Professor Titular de Direito Penal (Graduagio) ¢ Criminologia (Mestrado em Ciencias Criminais) na PUCRS. Advogado. "Mestre em Cigncias Criminais pela PUCRS (2008). Advogado. Sul Salo de Carvalho e Antonio Tove Loureiro modelo de nulidades, com forte viés sociolégico, objetivando promover corte inter- disciplinar. O momento final do trabalho é propositivo, buscando mecanismos de renova- so do sistema de nulidades vigente, realizado com amparo na obra do processualis- ta Alberto Binder. 1. A Constancia do Inquisitdério O idedrio que permeia o sistema judicial brasileiro determina a maneira pela qual se configura o sistema de nulidades vigente. Nao é novidade que o sistema pro- cessual penal brasileiro possui matriz nitidamente inquisitiva. O principio reitor inquisitivo, aliado aos demais contornos que tornam 0 processo penal brasileiro ins- trumento fundamentalmente persecutério, raramente protetivo dos imputados, pos- sui importantes repercussdes na temdtica das nulidades processuais penais. O inquisitério, mais que sistema hist6rico de processo penal, constituiu e cons- titui modelo complexo de administragdo e potencializagao do poder punitivo. Dentre as caracteristicas mais peculiares est 0 cuidado que confere ao tramite, como se este constituisse valor em si mesmo. Ou seja, formalismo é caracteristica insita ao inquisitério. Definigao pertinente do formalismo produzido pelo sistema inquisitério é a de Pierre Legendre, quando o alinha a sacralizagao do procedimento.\ A sacralizacao da forma é contraposto 0 viés profano do desrespeito as prescri¢des solenes da tradi¢ao. Note-se que, no Ambito do inquisitério, o formalismo processual transcende 0 zelo exacerbado e ingénuo com as solenidades, alcancando o exercicio de poder exces- sivo e indesejivel daquele que detém o monopélio da forma. O Juiz formalista nao é a cristalizacao do ideal de insipidez judicial; mas ator processual que exerce o poder que concentra pelo dominio da linguagem e dos instrumentos colocados a seu dispor. Pontua Jacinto Coutinho “tratar-se, sem diivida, do maior engenho juridico que © mundo jé conheceu; e conhece”? em alusio a impregnacao do inquisitério no sis- tema processual contemporaneo. A caracteristica principal do sistema inquisitorial, na esteira de Cordero, reside na centralizagao da gestao da prova no Juiz-inquisidor. Ao julgador incumbiria inves- tigar e produzir as provas, ponderando quais seriam titeis para o deslinde do caso. 1 “Com 0 Direito sapiente, otra coise entra em cena; no discurso escoléstico 0 procedimento 6 um jogo ri- tual e constitui, na movéncia latina, a invengao de uma técnica de romar conta ou de recuperar os sujeitos, exatamente como alhures opera uma outta feitigaia, e principalmente a danca” (LEGENDRE, O Amor do Censor, p. 101). 2 COUTINHO, 0 Papel do Novo Juiz no Processo Penal, p. 18 512 Estudo de Casos a Partir do'Referencial Garantista Conforme Legendre,3 esta estrutura fundante do inquisitério candnico é (re)potencializada pelo Cédigo de Proceso Penal Napoleénico de 1808. No entanto © sistema adquire forca pela assimilacdo de elementos de aparente acusatoriedade. Napoledo realiza jogo de véust e o amélgama criado por sua codificacio ¢ to coeso que no se desagregou dos textos vigentes atualmente. A influéncia do Cédigo Napoleénico € tao pungente no proceso penal contempordneo que, guardadas as Proporcées, constitui o texto base do Cédigo de Proceso Penal Brasileiro de 1941. E no que tange ao sistema de reparago de atos processuais irregulares, a cons- tancia e o reforgo do inquisitério ocasionam conseqiiéncias nefastas a estrutura de garantias moldada pela Constituigo de 1988. 2. O Formalismo Judicial e a sua Utilidade Politico-Criminal Repressivista Apesar da objetividade imparcialidade propugnadas pelos atores judicidrios encarregados da aplicagao dos textos legais, ha imbricaco imanente da prética judi- cial com o poder politico que the da substrato. Conforme Bourdieu, nao hd como Perceber 0 direito e o judiciario como sistemas herméticos e auténomos, completa- mente alheios as pressées sociais e politicas. © discurso formalista instrumentaliza os Estados autoritérios, precisamente pelo afastamento que proporciona entre a burocracia judicial e os subordinados, entre aqueles que possuem ¢ os que no detém o dominio da técnica, Assim, em mui ‘os casos, legitimam.-se proposicdes vazias com vestes pscudojuridicas, impregnadas pelo repressivismo. Por este motivo, possivel notar que a formatacio autoritaria do Estado quando da elaboracao do Cédigo vigente, produziu reflexos significativos no ambito de nuli- dades. E a forma de se auferir validade a decisio invélida é através do formalismo judicial, o qual, conforme a caracteristica dos casos penais, manifesta-se de maneira bastante peculiar, oscilando entre os pélos da equacio rigidez-flexibilizacao. Percebe-se em inimeras decisoes proferidas na esfera criminal — e a pesquisa de campo atestou a premissa como vilida -, sensivel alternancia entre os discursos de cumprimento obtuso do rito prescrito e a permissio de se excepcionar (flexibi. vero: secondo gli eufemisti, Tinformation préliminaire’ quale appare nell'ordonnance 1670, ‘est une des plus précieusesconguétes dela legislation’ abilmente condotea, ‘elle pronege les droits des citoyens conten dles mesures imprudences: elle prépare le jugememt; elle en assure la sagesse' insomme, il lag to te ‘plas fecond del Quattrocento ai modern (CORDERO, Guida alla Procedura Penale, p. 73). 5 BOURDIEU, 0 Poder Simbstica 513 Salo de Carvalho e Antonio Tovo Loureiro lizar) as formulas legais e constitucionais. O primeiro discurso pode ser identifica- do como a espécie mais simpléria do formalismo, e é demonstrado pelo apego exa- cerbado ao rito inquisitério — aos atos, trimites e parametros (con)sagrados no Cédigo de Processo ~, evitando a efetivacao plena das garantias asseguradas na or- dem constitucional. O exercicio e a manutencio do rito constituem-se, portanto, como fim em si mesmo. O segundo discurso aparece de forma velada, pois, embora aparentemente flexibilizador ou desregulador ~ ou seja, em oposi¢ao ao formalis- mo ~, converte-se em artificio retérico para o exercicio e 0 abuso de poder através do processo penal. Este formalismo de dupla face consiste, portanto, em modalidade de exerci- cio/abuso de poder pelo dominio da técnica processual penal, que determinaré os meios pelos quais a burocracia judicial obstaculizard a plena efetivacdo das garantias constitucionais. Nas palavras de Kant de Lima, possivel verificar que esta modalida- de de formalismo judicial desempenha papel util ¢ conveniente ao poder politico centralizador.7 Sem a ilusio paleopositivista de procurar isolar o sistema judicial da influéncia politica, fundamental referir que qualquer modelo processual republicano que alme- je efetivar os princ{pios do sistema acusatério deve transcender esta espécie de for- malismo, buscando potencializar o instrumental juridico do Estado de Direito com 0 objetivo da garantia do débil na situagao processual. Portanto oportuna a realizacdo de diagnéstico sobre a aplicacio do modelo de nulidades pelos Tribunais, tanto para examinar como o formalismo afeta os julgado- res, quanto para identificar os problemas pragméticos acerca da inefetividade das garantias do acusado. 3. A Aplicagdo das Nulidades no Sistema Judicial Brasileiro: Estudo de Caso 3.1, Da Hipétese a Pesquisa de Campo: Detalhamento Técnico e Anilise Preliminar De maneira a identificar 0 discurso formalista de dupla face na pratica judicial brasileira, estruturou-se pesquisa de campo junto ao Tribunal de Justica do Rio Grande do Sul, com intuito de obter acérdaos das Camaras Criminais, a partir do parametro “nulidades no processo penal’. Limitaram-se aleatoriamente as ocorrén- 6 FOUCAULT, A Verdade ¢ as Formas Juridicas, p. 78. 7 KANT DE LIMA, Ensuios de Antropologia e de Direito, pp. 19-20, 514 Nulidades no Proceso Penal e Constituigio: Estudo de Casos a Partir do Referencial Garantista cias no periodo de 02 de fevereiro de 2005 até 28 de setembro de 2006. A partir des- tas balizas, foram localizados 404 acordéos. Definido 0 universo de decisdes judiciais que serviu de substrato para exame, passaram a ser analisados individualmente os acérdaos, observando-se quesitos pre- viamente estabelecidos para a composig’o de tabela com os dados colhidos’ Posteriormente, foram realizadas andlises quantitativas e qualitativas dos casos con- siderados paradigmaticos. Os dados iniciais foram aqueles que dispensam exame mais apurado, obedecen- do A simples légica de quantificacao. O primeiro disse respeito a declaracao ou no da nulidade, em que se aufere a discrepancia entre as nulidades suscitadas e as nulidades efetivamente declaradas. Conforme referido, do total de 404 acérdios, em 98 decisées as nulidades foram declaradas, restando 306 nao declaradas. Em termos percentuais representa 24,25% de sim, contra 75,74% de nao, conforme 0 grafico. Grdfico I: Nulidade declarada? Sim ou Nao Mo usM Contudo a disparidade nao pode ser tomada isoladamente como expressio defi- nitiva do sistema de nulidades. Nesta contraposicio entre nulidades declaradas e ndo declaradas, nao se considerou, por exemplo: (a) se 0 argumento do Magistrado, a0 negar ou declarar 0 defeito processual, estava ou néo afastado do formalismo judi- cial; ou (b) se houve ponderaco sobre as conseqiiéncias de declarar a nulidade e a possibilidade de restaurar 0 vicio. Apés a primeira andlise, separaram-se os casos de acordo com 0 quesito sujeito processual suscitador da nulidade: Defesa, Ministério Publico, Magistrado e 8 “Técnica particular pela qual o contetido dos documentos é decomposto em seus elementos constitutivos (palavras, frases, parigrafos, simbolos ou palavras-chave), elementos que depois so classificados em cate-

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