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Capineiro do meu pai, ndo me corte os meus cabelos, que so todos meus desvelos, capineiro, ouve os meus ais! E isso tudo com uma misica muito suave, muito bonita, Ele tentou de novo. E, de novo, o lamento, tao triste: Capineiro do meu pai, ndo me corte os meus cabelos, que sdo todos os meus desvelos, capineiro, ouve os meus ais! Ai, ele voltou para casa, epavorado. Procurou o pai da menina e contou tudo. O pai, assombrado, néo queria acreditar, mas como sempre esperara a volta da filha, foi lé no campo ver 0 que estava acontecendo, acompanhado pelo capineiro. Chegaram e o pai mandou o capineiro meter a enxada, mas foi ele erguer a ferramenta e se ouvir a voz, um lamento, lindo, lindo! como se o vento cantasse no pastigal: Capineiro do meu pai, ndo me corte os meus cabelos, que sdo todos os meus desvelos, capineiro, ouve os meus ais! Ai, com as prépries maos, c pai e o capineiro comegaram a cavar e logo desenterraram, vivinha, vivinha! a menina, que se abragou ao pai e ao fiel pedo. Quando os trés voltaram para casa, a mulher ma compre- endeu que tinham descoberto tudo e fugiu, sem tempo de pegar nada. Até hoje anda fugida por af, E veio a vaquinha Vitéria e comeu a histéria. Fazenda Sao Luizinho, Lombas, 23 de marco de 2001 e NOTA ‘Em Romero é “A madrasta", também sem melodia. Este conto tem como caracteristica uma parte cantada. Aparece como “A Menina Enterrada Vive" na,coleténea de Cascudo (p.328/ 329, op. cit.) com pequenas variag6es — e sem pauta musical para a estrofe, com versos distintos da verso gaticha. A melodia é esta, que transcrevo gragas 4 gentileza do amigo Buja do Conjunto de Folelore Invernucional “Os Gauchos”, Be AGATA BORRALHEIRA RA UMA VEZ um casal muito feliz, rico, que se amava mui- to e tinham uma filha, muito bonita e amorosa, que to- dos gostavam. Era quase como uma princesinha. ‘Mas um dia, a mae dela morreu e deixou muita tris- teza naquele lar. O vitivo ficou meio desnorteado e passado algum tempo, pensando em conseguir outra mae para a filha 6rfa, casou com a uma mulher vitiva, que tinha trés filhas mo- gas, mais ou menos da idade da enteada. Acontece que a mae era ruim como carne de pescoco e as trés filhas eram iguais, feias e més. Imediatamente as quatro se tomaram de antipatia para com a filha do vitivo. Aos poucos, foram deixando para ela as piores tarefas, todo o trabalho da casa: ela levantava cedo, limpava a casa, fazia fogo e comida pra todos e as outras s6 no bem bom e sé se enfeitando, comprando coisas, tentando serem menos feias, com muita inveja da pobre moga, que era muito bonita, Deixavam para ela 6 os trapos para vestir e tra- tavam a infeliz como escrava da casa. Com o tempo, fizeram com que ela fosse dormir no borralho da cozinha, na cinza mesmo. E passaram a chamar a moca de Gata Borralheira, por- que gata é que dorme no borralho. E ai vivia ela, sempre suja de cinza e carvo, fedendo a panela, vestida com trapos Mas deixa que o rei daquele reino tinha um filho s6, um mogo muito bonito e valente. Quando ele entrou em idade de casamento, o rei resolveu que ele tinha que se casar com uma moga do reino e que ia fazer uma baita festa no palécio, um grande baile com orquestra no qual todas as mogas do reino tinham que comparecer. ‘Desde muitos dias antes as mogas do reino comegaram a se preparar para a festa: compraram vestidos, sapatos, perfu- mes e jéias, De todas, as mais interessadas eram as trés sirigaitas, as trés enteadas do pai da Gata Borralheira. Com esta, ninguém se importou, 14 no seu canto, no borralho da cozinha. Chegado o grande dia, as trés se enfeitaram e se foram, gasguitas como sempre, para o baile, acompanhadas pela mae eo marido desta. 29 IS A Gata Borralheira ficou sozinha e muito triste, por- que também gostaria de se lavar, se perfumar, botar um ves- tido bonito e ir dangar com o principe. Depois de lavar e limpar tudo, estava s6 com a vassou- ra, na cozinha, chorando. Af lhe epareceu a sua fada madri- nha, muito bonita e bondosa. — Porque choras, minha filka? ~ Porque hoje o rei dé uma festa para escolher a esposa do principe e eu queria tanto ir! - Pois entdo tu vais. ~ Mas como? No tenho roupa, nem sapatos, nem car- ruagem, nem criados. ~ Pois agora, terés Fez um gesto com a varinha de condéo que todas as fadas tém e os trapos da Gata Borralheira se transformaram num belissimo vestido prateado de festa, cor de luar. Seus pobres chinelos, se transformaram em sapatinhos de prata, muito elegantes. A fada transformou uma abébora-gringa, de pescogo, em carruagem, quatro ratées em cavalos brancos e 0 gato da casa em cocheiro. ~ Mas tem ume coisa: fica com a atengao no relégio. Quando bater a tltima badalada da meia-noite, tudo volta a ser 0 que er antes. Tens que sair da festa antes disso, nao te esquegas! A Gata Borralheira, que agora parecia uma princesa, entrou na carruagem belissima e se tocou para o palécio No baile, o principe néo dargava com ninguém, muito menos com as trés falsas irmas da Gata Borralheira, que se exibiam para ele de tudo que era jeito Mas foi a Gatg Rorralheira entrar e todo o mundo olhou pra aquela moga tao bonita, téo ricamente vestida, que tinha chegado naquela rica carruagem, que ficou ali nos jardins es- perando, com seu cocheiro uniformizado. © principe, maravilhado, imediatamente tirou a des- conhecida para dangar e nao parou mais, todo o baile. As pes- soas murmuravam, quem é, quem néo €, as trés invejosas rofam as unhas, mas perto da meia-noite a Gata Borralheira se des- pediu do principe, entrou na carruagem e partiu. 1b 30 Quando 0 grande relégio do palacio badalou a wltima das doze batidas, ela jé estava na cozinha, vestida de Gata Borrelheira outra vez, a abdbora no lugar, os ratos e o gato também. Quando as falsas.irmas chegaram sé falaram da festa, no principe e na estranha moca, tao bonita e rica, No outro dia, o principe que nao tirava a moga da me- méria, pediu ao rei seu pai outro baile. E assim foi feito. Novamente as falsas irmas se enfeitaram e se embelezaram o que puderam, mas nao melhoraram muito E novamente a Gata Borralheira ficou sozinha e triste na cozinha. E novamente lhe apareceu a sua fada madrinha, que desta vez Ihe deu carruagem, vestido e sapatos, tudo de ouro, mas com a mesma recomendagao: nao ficar na festa de- pois da meia-noite. E novamente o principe, que jé esperava ansiado pela bela desconhecida nas escadarias do paldcio, sé dangou com ela. E novamente, antes da meia-noite ela saiu correndo, en- trou na carruagem dourada e desapareceu. E mais uma vez, quando as falsas irmas chegaram, ela estava na cozinha, junto ao borralho, triste e sé. - Ab, Gata Borralheira, se tu visses o principe, lindo como o sol, mas s6 tinha olhos para aquela lambisgéia desco- nhecida, que ninguém sabe quem é. Sé dangou com ela, pare- ciam dois apaixonados. Mas ainda nao perdi as esperancas! Nem eu! — Nem eu! - ecoou, a terceira. — Fazem bem - disse a mde delas - E hoje ou nunca, o terceiro baile. Foram dormir e quando se acordaram ja foram se prepa- rando, para o Ultimo baile. Fizeram o melhor que puderam, gas- taram 0 que ndo podiam e de noite, todas bem empiriquitadas, se tocaram para o palécio. Desta vez, a fada madrinha caprichou com a afilhada. Deu para a Gata Borralheira um vestido de luz, azulado, sapatinhos de cristal e a carruagem também de cristal. E novamente avison do hordrio da iltima badalada da meia-noite. Quando a carruagem de cristal chegou no palacio com a bela desconhecida jé todo o mundo, com o principe a frente, esperava por ela. E dancaram e dancaram, um olhando nos olhos do outro. A pobre da Gate Borralheira ja estava perdi- damente apaixonada pelo principe. Quase se esqueceu do re- légio, dangando, dangando. Ai, bateu a primeira das doze badaladas. E a moca se apavorou. Deixou o principe espantado sozinho no meio do saléo e saiu correndo e correndo com tanta pressa que perdeu um dos sapatinhos de cristal nas escadarias do pelacio. O prin- cipe imediatamente agarrou o pequeno calgado e o segurou apertadamente junto ao peito. A Gata Borralheira, ouvindo as fortes badaladas do relogio fatidico, viu seu lindo vestido de luz se transformar em trapos, a carruagem virer abdbora, os cavalos em ratos e © cocheiro num gato gordo e velho. Chegou a pé em casa e se meteu ne cozinha. Logo chegaram as outras, afobadissimas, com a novi- dade: o principe ia passar por todo o reino, de casa em casa, com o sapatinho de cristal deixado nas escadarias do palé- cio. Ele tinha certeza que a bela desconhecida era dali mes- mo, do reino e queria descobrir quem era para casar com ela No outro dia, as casas de todas as cidades do reino es- tavam em polvorosa: todas as mogas queriam se banhar, per- fumar, joias, enfeites, unhas dos pés bem cortadas. E 0 principe apareceu com o sapatinho numa almofada de veludo azul, bordada com pérolas e fios de prata. Chegava, convidava as mocas da casa a experimentarem 0 sapatinho no servia em nenhuma! Quando chegou na casa da Gata Borralheira as trés ir- mas gasguitas se apresentarem, faceiras e ~ claro! - 0 sapatinho nao segyiu em nenhuma delas, que chegaram a cor- tar pedagos dos dedos e do calcanhar para o pé ficar menor. 0 principe nao se deu por vencido: Tem mais alguém moga em casa...? ~ N&o, nao. Mais ninguém. Quero dizer... — Quer dizer 0 qué? - Tem a Gata Borralheira, mas ela nao conta. 32 ~ No conta porqué? ~ Porque é muito feia e suja, vive no borralho e. ~ Mas eu quero ver essa moca. - Nao, senhor principe, que esperanga, é um pobre bi- cho feio.. ~ Eu quero ver essa moga. E ja! Tiveram que trazer a Gata Borralheira e ela veio, suja, mal vestida, mas linda, linda. Ao ver a moga. o principe es- tremeceu. Ela estendeu o mintisculo pézinho, diante do de- sespero das outras. E, para surpresa de todos, 0 sapatinho de cristal calgou nela como uma luva! O principe caiu de joelhos, aos pés da moga. Apareceu a fada madrinha, em todo o seu resplendor e bateu com a varinha de condao: imediatamente ela surgiu com o vestido de luz e o outro sapatinho de cristal. Todo mundo ficou assombrado e, mais que todos, as suas trés falsas irmas, que tanto tinham judiado dela Vai daf o principe, emocionado, pediu a mao da moga para o pai dela ¢ ela ainda convidou as trés falsas irmas para aias do seu casamento. Arrependidas elas estavam, quando se deram conta do que haviam sido. Houve uma grande festa para o casamento, o principe se casou com a Gata Borralheira, tiveram muitos filhos e vi- veram felizes para sempre E veio a vaquinha Vitéria e comeu a histéria. Lombas, 16/01/01 NOTA ‘Este conto originalmente aparece em Perrault como Cinderela, mas estd também, sempre com variagdes, nos irmdos Grimm, ainda como Cinderela. # Maria Borralheira, em Silvio Romero, aparece como A Gata Borratheira ou Sapatinho de Cristal, em Meinel e ndo aparece, curiosamente em Cascudo. Na versdo gaticha, como as outras, impressionava todos nds 0 detalhe das irmds malvadas chegarem ao ciimulo de cortar pedacos dos pés para que o sapatinhe de cristal coubesse neles. Bu, guri im- pressiondvel, imaginava que o principe veria a sangueira toda. 0 borraiho é um punhado de brasas quase apagadas cheio de cinzas, no fogdo, 33 44

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