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LEITURA CRITICA O CONCEITO DE MANEIRISMO Arnold Hauser Redescoberta e revalorizacdo do maneirismo Para que se mude radicalmente o julgamento sobre um estilo artistico desconhecido ou negligenciado sao sempre necessarios pressupostos particulares, e assim foi por acaso ou inesperadamente que ocorreu a reabilitagdo do maneirismo, o ultimo dos estilos a ser redescoberto e revalorizado em nossa época. O maneirismo falava uma linguagem ja es- quecida, que era preciso reaprender, sobretudo na arte figurativa e, de certa maneira, também na poesia. Mas para tanto devia-se primeiramente julgar 0 barroco sem precon- ceitos. O primeiro passo nesse caminho foi dado pelo impressionismo, que, por sua afini- dade formal com o barroco, levou nao somente a rever 0 juizo desfavoravel sobre esse es- tilo, mas também a desacreditar toda a estética classicizante que até entao lhe impedira o acesso. Mas como no préprio impressionismo, ainda inserido no quadro da evolucao ini- ciada no Renascimento, subsistiam profundos tracos do racionalismo e do realismo da arte classica, a redescoberta e a revalorizagao do barroco, que era ainda mais estreitamente conexo com o Renascimento, podiam em parte surgir de uma estética para a qual eram exemplares a Antigiiidade classica e o Renascimento, ainda que para apreciar plenamen- te esse estilo, no fundo anticlassico, fosse indispensavel um certo afastamento da estética classicista. Mas, diferentemente do barroco, 0 maneirismo afastava-se de tal modo do ideal classico do estilo que somente era possivel recuperar-lhe a dignidade e o valor abo- lindo totalmente, no ensino da arte, a aspiracao a ordem e a regularidade, 4 harmoniae a economia dos meios, ao racionalismo e ao realismo na reprodug&o da realidade. Assim como em sua origem o maneirismo influiu profundamente sobre a histéria da arte, também a sua redescoberta sob um julgamento mais favoravel implicou uma pro- funda ruptura na evolugdo artistica. Com efeito, a virada que determinou a nova atitude diante do maneirismo e permitiu a sua aprovagao incondicional foi ainda mais radical do que aquela que, ligada a crise originaria do Renascimento, produzira o préprio manei- rismo. A transformagao revoluciondria que comegou na histéria da arte com o maneiris- mo, criando padrées estilisticos inteiramente novos, consistia essencialmente no fato de que, pela primeira vez, os caminhos da arte separavam-se de propésito e consciente- mente dos caminhos da natureza. J4 antes, certamente, existia uma arte nao naturalista e antinaturalista, mas era quase inconcebivel afastar-se da'natureza, que nao era abso- lutamente afrontada com intencao polémica. A arte moderna, ou seja, a arte expressionista, surrealista e abstrata, que preparou e trabalhou o terreno para a revalorizagéo do maneirismo, e sem a qual o espirito desse es- tilo teria permanecido substancialmente incompreenstvel, renovou a revolucéo maneiris- ta, estancando novamente o desenvolvimento do naturalismo em curso ha muitos séculos, como aquele que precedeu o maneirismo. Somente uma geracao que havia sofrido um trauma como o que se ligou a origem da arte moderna tinha condigGes de aproximar-se do maneirismo de um ponto de vista adequado; ou seja, somente com o espirito de uma época que criou as premissas para uma arte semelhante poderiam nascer as premissas para a sua revalorizagao. Mas a arte moderna no se limitou a renovar a producgdo ma- neirista: superou-a em intransigéncia, afastando-se completamente da realidade natural, e nao somente deformando-a, mas substituindo-a em parte com imagens abstratas ou inteiramente ficticias. Em vez de reproduzir e interpretar os dados empiricos tradicionais, em vez de representar ou analisar o seu efeito, procurou criar objetos novos, produtos de uma atividade completamente auténoma, a fim de ampliar o circulo das experiéncias. Leitura critica 227 E por mais singular que fosse aquele proceso e completamente nova a condicéo com que, por conseguinte, se depararia a arte contemporanea, a analogia entre a época do maneirismo e a atual permanece intacta, e a importancia que as obras daquele periodo adquiriram para a nossa geracao parece destinada antes a aumentar do que a diminuir. Breve dura¢ao dos estilos classicos Relativamente breves so as épocas da arte classica, quando se padroniza completamen- te a vida gracas a disciplina das formas, a realidade € permeada de principios de ordem e a expressdo resolve-se inteiramente em harmonia e beleza. Em comparacdo com os pe- riodos geométrico, arcaico ou mesmo do helenismo, o periodo classico da arte grega nao se mantém por muito tempo, e o Renascimento é somente um episddio fugaz, que termi- na to logo comeca. Os classicismos como o da Roma imperial e do final do Setecentos, 0s quais, diferentemente da arte classica, sao estilos de segunda mao, unilateralmente formalistas e obstinadamente rigidos, duram mais tempo, mas justamente por serem uni- laterais e rigidos jamais produzem as formas puras da arte classica. Seja porque minados, nao obstante a sua resisténcia, pela anarquia e pelo romantismo, seja porque caracteriza- dos por obras de epigonos, jamais apresentam a unidade e a espontaneidade da arte clas- sica. O classicismo contrasta talvez com a natureza dos homens e presume uma discipli- ha interior 4 qual eles nao sabem submeter-se por muito tempo. A arte em geral é antes um grito espontaneo, freqiientemente selvagem e desesperado, algumas vezes mal arti- culado, é a expresso ora do desejo irrefreavel de possuir a realidade, ora da sensagao de estar abandonado ao seu arbitrio, sem resistencia e sem auxilio, que a expressdo de uma paz intima, de uma forca segura de si, de uma relagdo imediata e néo-problematica com a existéncia, tal como a que se encontra nos momentos fugazes da arte classica. No inicio do Quinhentos, por um periodo que dura pouco mais de vinte anos, im- pde-se na arte italiana um alto sentido da forma, aparentemente em perfeita harmonia consigo mesmo e com 0 mundo; pelo intimo equilibrio e pela natureza em si acabada, costumamos chamé-lo espirito classico. Mas, também nesse breve tempo € nesses es- treitos limites, ele reina integro e soberano somente na arte figurativa; nem a literatura nem a misica produzem obras que pela importancia na hist6ria do estilo, e tanto menos pelo valor artistico, equivalham as criacdes de Leonardo, Rafael ou Michelangelo. De uma “classicidade" do Renascimento pode-se portanto falar, a priori, apenas em um certo sentido; poderiamos perguntar, de resto, se é possivel um classicismo puro em uma civi- lizagéo dinamica como aquela que traz em si todos os fermentos do Medievo em disso- lucdo e da crise que ameaca 0 equilibrio recém-conquistado. Habitualmente se considera terminada a arte classica do Renascimento com a mor- te de Rafael. E embora nao seja totalmente exato que depois de 1520, como sustenta Heinrich W6lfflin, nao tenha nascido uma s6 obra verdadeiramente classica, os sinais da dissolucdo jé se manifestavam muito tempo antes, e nao existe, pode-se dizer, mestre do primeiro Quinhentos que nao tivesse revelado tendéncias anticldssicas. Leonardo, o cria~ dor do exemplo mais puro de arte classica na Italia, é, afinal de contas, um “roméantico”. Em Rafael e em Michelangelo, desde a primeira juventude, tendéncias ora barrocas, ora maneiristas substituem modelos e objetivos puramente classicos. Para Ticiano a designa- cao de “classico” vale apenas dentro de certos limites, no minimo simplesmente porque ele é veneziano. Na arte de Andrea del Sarto sao evidentes os sintomas do maneirismo, e em Correggio, os do barroco. A mudanga do estilo, portanto, nao coincide absolutamen- te com a morte de Rafael e a conseqiiente autonomia da sua escola, nem com o estilo tardio de Michelangelo e com a formacao do michelangelismo. Nem todos os mestres do primeiro Quinhentos tornam-se maneiristas, mas quase todos se ressentem da crise 228 HISTORIA DA ARTE ITALIANA — DE MICHELANGELO AO FUTURISMO maneirista. Gaudenzio Ferrari e Lorenzo Lotto colaboram na dissolucao do estilo classico, a exemplo de Dosso Dossi, Correggio e Ticiano; e também Jacopo Bassano atravessa uma fase maneirista, ainda que mais breve e com efeitos menos decisivos. Estritamente clas- sicos permanecem apenas aqueles mestres de principios mais ou menos conservadores como Fra Bartolomeo e Albertinelli. A ruptura com o passado €, pois, manifesta, ainda que a tradicao classica subsista por longo tempo ao lado das novas tendéncias que anun- ciam e em parte realizam ora 0 maneirismo, ora 0 barroco, e ainda que na producao de artistas como Andrea del Sarto, Correggio, Lorenzo Lotto e Ticiano continue a inspirar obras originais e progressistas para a historia da evolucdo artistica; perseguir, sem des- vios estilisticos, as aspiragées do Renascimento nao é mais algo dbvio, mas que depen- de de condig6es particulares. A beleza formal da arte classica € o dominio da forma nao bastam mais, e diante das contradicées que qualificam o sentido da vida na nova gera- ¢0, 0 equilibrio, a ordem e a tranquillidade do Renascimento parecem muito cémodos, se nao hipécritas. A harmonia produz agora uma impressao de relaxamento, de vazio in- terior; a absoluta clareza parece uma simplificagao insolente, 0 acordo incondicional com a regra, uma trai¢o consigo mesmo. ‘Aessa geracao deve ter acontecido algo de grandioso, que a abalou até a base ea induziu a duvidar dos seus valores mais altos. No entanto, a crise deve ter sido em par- te determinada pela propria natureza do classicismo renascentista, j4 que sintomas de ruptura com os principios classicos manifestaram-se ainda antes que interviessem os mo- tivos de perturbacao a que se poderia imputar aquela crise. O sentido da harmonia pro- prio do Renascimento, o valor de eternidade atribuido as suas criagOes, o carater norma- tivo e ideal dos seus padrées, nao obstante a indubitavel grandeza das obras, pareciam ter sido um sonho, uma esperanca, uma utopia, mais do que uma posse segura, um le- gado certo as futuras geracées. A perfeita correspondéncia entre sujeito e objeto, alma e forma, expresso e figura, com excecdo de breves episddios, jamais foi alcancada de- pois da Antigiiidade e do Medievo. Obras como a Ultima Ceia de Leonardo, 0 Debate de Rafael ou a primeira Pieté de Michelangelo s4o sonhos ditados pela aspirago a um mundo puramente espiritual, a uma existéncia em que alma e corpo se equivalessem, expressdes diversas de um mesmo significado. © momento em que se realizaram tais obras respondia a uma grande utopia artistica, ndo a uma real harmonia. Mais cedo ou mais tarde a ilusdo iria desabar, e jA mostrava por toda parte rachaduras, sintomas de in- certeza, dlivida, declinio: sinais, em suma, de que o classicismo, nao obstante a aparen- te facilidade da sua criagéo, era somente um extraordinario tour de force, resultado de um esforgo, endo um fruto natural da época. Accrise do Renascimento Desde o fim do Medievo a histéria do Ocidente é uma histéria de crises. Os breves in- tervalos de repouso trazem sempre em si germes de dissolugao; sao pausas de euforia entre periodos de enfermidade e miséria em que o homem sofre pelo mundo e por si mesmo. © Renascimento representa certamente um momento de pausa, no porém desprovido de perigos, e por isso a arte do maneirismo, atormentada e como que im- pregnada de crises, arte t20 desprezada e difamada pela sua presumida insinceridade e artificialidade, exprime muito mais fielmente as condigées reais do que o classicismo com a sua beleza, a sua harmonia, a sua calma exemplar. Os tempos de crise foram, como sempre, definidos como "de transicéo". Mas na verdade cada época histética é uma época de transigao; cada uma é transitéria, nenhuma tem limites precisos, em cada uma subsiste algo da heranga do passado e cada qual con- tém antecipagées do futuro e também, portanto, promessas que depois permanecem Leitura critica 229 irrealizadas. Mas na crise do Renascimento, a qual se dd o nome de maneirismo, a tran- sigdo € muito mais evidente do que na maior parte das outras épocas histéricas. Ela se origina entre duas fases relativamente uniformes da histéria do Ocidente, entre o esta- tico Medievo cristéo e a Idade Moderna, dinamica e cientifica. Ora condescendente, ora nostalgica, volve o olhar ao Medievo, do qual colhe motivos de inspiracao religiosa, es- colastica e estilistica, j4 abandonados pelo Renascimento; mas, por outro lado, prepara a concep¢ao cientifica do mundo dos séculos sucessivos. Aquilo que nés entendemos por crise do Renascimento manifesta-se na sua forma mais pregnante como crise do Humanismo e, em esséncia, poe em duvida o valor da- quela grande sintese do universo que, colocando no centro o homem e suas exigéncias espirituais, tentara conciliar a heranca da Antigiidade com a do Medievo e moderar os seus contrastes, seja entre si, seja com as exigéncias da época. Na sua forma mais pura 08 ideais do Humanismo foram formulados por Erasmo, que nas suas obras deu a pala- vra tanto ao bom cristéo quanto ao fiel discipulo dos escritores classicos. Mas quando se tratava da dignidade humana, ele, com os melhores humanistas, sentia-se mais atraido pela sabedoria estoica do que pela moral crista, pois o que eles mais apreciavam nos au- tores classicos, o que voltavam sempre a procurar neles, era a renovada fé no homem, que 0 cristianismo tanto tinha humilhado. Acreditavam ter atingido a sua meta suprema, tendo reconquistado a confianga na natureza fundamentalmente moral do homem; para eles, esta era com certeza algo absolutamente diferente do que para Rousseau era a “bondade natural”. Alheios a todo estro romantico, pensavam antes de tudo que a ver- dadeira humanidade, como ensinava o estoicismo, era fruto de cultura e de educagao, a preco de uma disciplina férrea e de uma herdica vitéria sobre si mesmo. Ser homem sig- nificava para eles um compromisso, nao um dom, exatamente conforme a sentenca de S€neca: “Como é desprezivel o homem, se nao se eleva acima do humano!". E nesse sentido também Goethe faz uma profissdo de fé humanista quando diz: “Cada um deve pensar a seu modo [...]. S6 nao deve deixar-se levar, deve controlar-se: o instinto puro nao condiz com o homem" (no Wilhelm Meister). A esséncia anti-humanistica da Reforma, do maquiavelismo e, em geral, do sentido da vida enraizado na época maneirista consiste na renovada destruicao da fé no homem, que ainda uma vez é apenas um pecador decaido, ou talvez um decaido sem pecado. O oti- mismo dos humanistas fundava-se na conviccdo de que a ordem divina concorda com a humana, a religiéo com o direito, a f€ com a moral. Ora, em cheio se proclama que a vontade divina nao esta vinculada a nenhuma de tais normas, que Deus, com arbitrio despotico, agracia ou condena o torto e o direito, o bem e o mal, a razdo e a insensatez. E junto com os critérios da salvagao subtraem-se a um juizo convicto também aqueles de validade moral, valor artistico e verdade cientifica. Ao enigma da predestinacio no campo religioso correspondem no campo filos6fico a ascese, na ciéncia o relativismo, em politica a “dupla moral” e em estética o “je ne sais quoi” Oestdico “sequere naturam" continha a idéia fundamental do humanismo. Lutero, Calvino, Montaigne, Maquiavel, Copérnico, Marlowe e Shakespeare, todos contribuiram para demolir para sempre 0 conceito de uma natureza tal que se pode seguir todo o tem- po. Por mais diversos que pudessem ser os fins e os interesses particulares daqueles ho- mens, a sua opiniao sobre a indole do homem e sobre a natureza da sociedade, o seu re- soluto nominalismo e pragmatismo, o seu relativismo e o senso da realidade que neles se manifestava e que nem 0 Medievo nem o Renascimento possuiam, tudo exprimia o mesmo espirito anti-humanistico. Na distante Alemanha a Reforma, na patria a Contra- Reforma catlica, a invasdo estrangeira, o Saque de Roma com a conseqiiente pilhagem, a preparagao e realizacao do concilio de Trento, a nova diregao das rotas comerciais, a re- volugao da economia em toda a Europa e a crise econdmica da bacia do Mediterraneo acompanham a crise € a parcial dissolugao do Humanismo que comega e se conclui na 230 HISTORIA DA ARTE ITALIANA - DE MICHELANGELO AO FUTURISMO Italia, As boas relacdes dos humanistas com a Igreja desgastam-se de vez, e nas idéias an- tidogmaticas e antiautoritarias que eles deixam entdo transparecer cada vez mais livre- mente se manifesta um modo de pensar que, acentuadamente racionalista por um lado, € fortemente antiintelectualista por outro. A crise do Humanismo e do Renascimento é um fenémeno espiritual assaz contraditério. As doutrinas de Montaigne, Maquiavel, Telésio, Vives, Vesalius, Cardano, Jean Bodin etc. revelam 0 mesmo naturalismo e empirismo e, direta ou indiretamente, o mesmo tipo de ascese. Travam a mesma batalha contra a dou- trina da Igreja, a escoléstica, a logica formal abstrata, a rigidez da tradicao, eo fazem em nome dos mesmos principios racionais. Mas nessa época de contrastes interiores equili- bram-se racionalismo e irracionalismo, intelectualismo e antiintelectualismo, iluminismo eé misticismo, Montaigne e Maquiavel eram inexoraveis racionalistas, Giordano Bruno e Agrippa von Nettesheim, ao contrario, imprevisiveis irracionalistas. As tendéncias antiintelectualistas da época, bem como as tendéncias contrarias, manifestam-se nas mais diversas formas. Emanada da Reforma, a nova religiosidade, in- ada ao misticismo e & exaltacdo, representa uma forma mentis oposta ao sobrio inte- lectualismo dos humanistas, assim como o relativamente modesto mas inegavel reflores- cimento da filosofia medieval, & qual algumas vezes se apela. Além disso, percebe-se em geral certa irritagdo com a profusdo de livros e de palavras dos humanistas, que se come- gaa considerar contrarios & vida. Nesse sentido, como jd foi observado, todo o Dom Qui- xote parece uma acusa¢ao contra o mundo livresco dos humanistas. O antiintelectualis- mo 6, em primeiro lugar, uma revolta contra o dominio exclusivo da razao na filosofia, na ciéncia e na moral, mas é também uma oposicao aos critérios de medida, ordem, regra, € como tal se exprime na estética anticlassica da arte maneirista. Mas anti-humanista é também a ruptura do equilibrio entre alma e corpo, espirito e matétia. O “sequere naturam" equivale ao critério da “mens sana in corpore sano", ou seja, a harmonia de ambos; esteticamente isso significa 0 equilfbrio de forma e contetido, a total absor¢ao do conteuido na forma. Na nova arte que rompe com os principios do Re- nascimento e do Humanismo a idéia consegue exprimir-se retorcendo, partindo, dissol- vendo a matéria, a forma concreta, a aparéncia imediata; o espirito exprime-se gracas a deformagao da matéria. Quando, ao contrdrio, deve ser acentuado 0 elemento material, a beleza corpérea, a harmonia decorativa, a forma torna-se independente e cabe ao espi- rito sofrer violéncia: esquematizado, aprisionado, paralisado, exprime-se no formalismo. Todavia, a linguagem formal do Renascimento € inteiramente mantida; permanecem in- tactos esquemas compositivos, ritmo linear, estrutura monumental e ostentacao de dina- mismo, majestosos tipos humanos e pretensiosas encenagdes; mas toda essa pompa perde 0 significado que tinha no periodo classico. As formas permanecem as mesmas, mas esto em contraste com os impulsos animadores da nova geracao, € ficam por isso comprome- tidas, intimamente esvaziadas e enfim desagregadas. A nova geracao obtém assim indire- tamente o que na realidade queria desde o inicio: a dissolucao do estilo classico. E uma volta mais longa para atingir o que em parte ja obtivera com a deformacao e a caricatura Os dois caminhos se encontram, como é inevitavel, em uma radical mudanga de estilo. A perfeigao formal do Renascimento classico estava ligada a uma simplificacao do espirito; devia pagar a pureza expressiva e a absoluta integridade formal com o empo- brecimento dos contetidas espirituais. O quao era limitado o alcance dessa arte, de- monstrou-se no somente em seguida, em face das exigéncias espirituais da geracao subseqtiente: desde 0 inicio até as obras de Rafael, de Fra Bartolomeo e de Andrea del Sarto, as quais nao saiam dos limites da beleza ideal, faltou-lhe a perfeita adesdo aos problemas que agitavam a humanidade do Ocidente. Desde o inicio eram antiquadas nessa arte a imperturbavel harmonia, a tranqiila objetividade contemplativa, descuida- da do curso dos acontecimentos mundiais, a perfeita, equilibrada eufonia da linguagem formal; com a realidade jamais teve uma relagao propriamente dita. A arte classica da Leitura critica 231 Antigiidade correspondia a um mundo relativamente simples, mundo que nao conhe- cia ainda a continua referéncia ao transcendental, ao subjetivismo e ao simbolismo do cristianismo, o contraste entre realismo e nominalismo, o dualismo da alma imortal e do corpo transit6rio. A arte cléssica do Renascimento acreditava poder voltar 4 objetivi- dade antiga, ao culto grego do corpo, ao estoicismo romano, a plena satisfacdo neste mundo; e acreditava, todavia, poder permanecer diferenciada, espiritualizada, intima- mente enriquecida. Essa confianca revelou-se uma fatal ilusdo. Um dos mitos do Renascimento era o de que no homem espirito e corpo, exigéncias fisicas e morais, constituiriam uma unidade harménica ou facilmente harmonizavel. Sub- sistia ai um residuo da kalokagathia (ideal do “belo e bom") grega e da fé estdica na possibilidade de dominar racionalmente as paixées, os sentidos e 0 corpo. A crise do Re- nascimento come¢a com a duivida de que sejam conciliaveis as exigéncias espirituais e as fisicas, 0 pensamento da salvacao e a busca da felicidade. Por isso, na arte maneirista - e é esta a sua peculiaridade — a representacao do contetido espiritual nao se resolve nas formas concretas, mas algo de tao particular, de tao irredutivel a um aspecto material, que pode vir sugerido — e sempre apenas sugerido — exclusivamente em contraste com esse aspecto, em antitese a tudo quanto ndo é espiritual, transtornando as formas e for- ando os limites da matéria. As idades de ouro so piedosas ilusGes da humanidade. Ha momentos felizes na his- téria, nao épocas felizes. Mesmo nos periodos histéricos considerados harménicos € des- pojados de conflitos reinavam na maioria das vezes a incerteza e 0 medo, e os contem- poraneos nao somente eram descontentes, mas de ordindrio nao tinham nenhum motivo para ser contentes. Entretanto, ao se confrontar o Renascimento com certas fases prece- dentes ou posteriores da historia nao se pode desconhecer-Ihe, nao obstante os aspectos negativos, os sinais da satisfacdo, do otimismo, da confianga em si mesmo. A disciplina medieval e a restricao crista da alegria de viver segue-se uma concep¢aio do mundo mais livre e despreocupada; agora, 0 individuo, a caminho da libertagao da tutela clerical, po- dia sentir a propria forca e sua relativa autonomia. A crise do Humanismo e do Renasci- mento significa uma reagaio a esse senso da vida relativamente livre, alegre e também le- viano. Essa crise sepulta 0 prazer de viver, 0 senso da harmonia, da alegria na divida, sempre recndita aqui e acola no racionalismo do Renascimento; racionalismo jamais in- teiramente sdlido e seguro. Nao perde por esperar o tardio Michelangelo, que abandona tao dramaticamente o “otimismo do Renascimento", nem o melancdlico Tasso, que tan- to faz Galileu encarecer a serenidade, a intima seguranga e 0 bom senso de Ariosto em face dos desabafos de dor na Jerusalém libertada, como aquele da bela estrofe tornada célebre por Rousseau: Viverei entre meus tormentos e minhas curas/Temerei a mim mes- mo, e, de mim mesmo / Sempre fugindo, terei-me cada vez mais préximo (xii, 77). Também em Ronsard, em geral, sereno € equilibrado, encontram-se versos como es- tes: Ah, e em vez de viver entre Deuses/Torno-me homem a mim mesmo odioso (“Elé- gie & Belot"). O sonho de um divino idilio sobre a terra acabara, a humanidade ociden- tal sofria uma "espantosa perturbacao"; arruinava-se o edificio do universo, tal como 0 tinham construido a Antigiidade; o Medievo e o Renascimento. Como se pode tentar definir 0 maneirismo Ao anti-humanismo como concep¢ao de vida, como filosofia da vida e da historia, cor- responde na arte uma corrente que, dadas as suas tendéncias contrarias ao Renascimen- to, prevalentes hd muito tempo sobre os aspectos afins a ele, se poderia definir como “anti-renascimento”, se nao se quisesse sublinhar o cardter estilistico auténomo e posi- tivo € se na historiografia artistica 0 termo maneirismo” nao tivesse doravante pleno 232 HISTORIA DA ARTE ITALIANA — DE MICHELANGELO AO FUTURISMO direito de cidadania, tornando-se assim indelével. A palavra “maneirismo" se associa a acepcao de desprezo, de modo que atribui-la a obras de grandes mestres causa quase sempre certa perturbacao. Mas desaconselha ainda o seu uso a possibilidade de confun- di-la, como efetivamente e com freqiiéncia acontece, com “maneira" e “amaneirado”, conceito sui generis que pode também, mas nao necessariamente, coincidir com o de “maneirismo”, Para o historiador, “maneirismo" designa um tipo de arte; “maneira" é para o critico um conceito de qualidade artistica; no seu desenvolvimento essas nogdes convergem, é verdade, e algumas vezes consideravelmente, mas nem ldgica nem histo- ricamente existe entre eles um nexo obrigatério. Nos artistas de tendéncia maneirista existe somente uma maior inclinagéo — mas nenhuma inelutavel necessidade interior - a se tornarem “amaneirados", isto é, a enrijecer a propria originalidade em uma formula, parecendo assim rebuscados, extravagantes, obscuros Se pode ser facil determinar certas caracteristicas individuais, mais ou menos marcan- tes, do maneirismo, e descrever eficazmente a sua natureza, sem pretender a perfeicao nem a essencialidade, j4 0 seu verdadeiro principio estilistico é dificil de definir de modo completo ou exaustivo. Embora a literatura sobre o tema aumente dia a dia, tal definigao ainda nao existe. Os estudos mais proveitosos consideram apenas aspectos isolados, ain- da que importantes; outros se mostram amitide estimulantes e interessantes mais do que persuasivos; parecem se fundar sobre uma insuficiente consideracao das circunstancias historicas ou sobre premissas historicamente insustentaveis, como, por exemplo, certas idéias inexatas, na hist6ria da religido, sobre o tempo necessdrio para que se sentissem os efeitos dos acontecimentos, em determinadas condigGes. Em principio, o mais importante esclarecimento sobre a natureza formal do maneiris- mo se encontra em Walter Friedlander, que o define como um estilo “anticlassico". Com isso ele entende, fundamentalmente, a expressdo de tendéncias nao redutiveis a norma, irracionais e antinaturalistas e, como tais, contrapde-nas nitidamente a arte do Renasci- mento maduro, que ele define simplesmente como objetiva, regular e exemplar, isto é, uma arte que, fundada sobre presumidos valores supra-historicos e universalmente v dos, transcende todo valor excepcional, casual, arbitrario. Embora tal definicao seja pre- ciosa como ponto de partida para uma andlise do maneirismo, é porém insuficiente se nos limitarmos a sua unilateralidade e se a adotarmos sem restrigdes. Porque, afinal, sus- tentar que o maneirismo é anticlassico, sem declarar que é ao mesmo tempo classico, nao somente prejulga, mas também falseia a verdade. Assim como é uma meia-verdade defini-lo somente como antinaturalista e formalista ou irracional e extravagante. O ma- neirismo tem caracteristicas naturalistas e antinaturalistas, e nem o racionalismo tem ali menor peso do que 0 irracionalismo. Uma idéia aceitavel do maneirismo pode surgir apenas da tensao entre classico e anticlassico, natural e formal, racional e irracional, sen- sual e espiritual, tradicdo e mania de inovacées, convencao e revolta contra todo con- formismo. Ele esta inteiramente nessa tensdo, nessa conciliacdo de opostos aparente- mente inconciliaveis. De resto, o “anticlAssico” de Friedlander, a parte a unilateralidade e a particularidade do conceito, limita-se a caracterizar negativamente o maneirismo. Uma definicao comple- ta desse estilo nao deveria apenas compreender as suas duas faces, mas deveria essencial- mente consistir em uma declaracao positiva e chamar a atencdo para o que o maneirismo é na realidade, mais do que sobre 0 que nao é. Uma definigio satisfatoria deveria, antes de tudo, sublinhar aquela espécie de tensao entre elementos estilisticos antitéticos, que se manifesta especialmente nitida e intensa na estrutura de certas formulagdes paradoxais. A idéia do paradoxo poderia, de todo modo, servir de substrato a uma definigao de valida- de geral, que melhor consubstanciasse os fendmenos em discussao, designando ao mes- mo tempo um principio estilistico positivo e original; isto 6, uma definigdo que nao deri- vasse da pura e simples contraposig¢&o do maneirismo a outros estilos. A primeira vista, Leitura critica 233 exprime-se no paradox um carater mais ou menos excéntrico e extravagante, que nao falta em nenhuma obra maneirista, por mais profunda e séria que seja. Distingue a arte maneirista em todas as suas fases um espirito caprichoso, uma predilec&o pelas coisas re- finadas, extravagantes, excéntricas, pelo particular insdlito, mas sempre sugestivo, por sa bores incomuns, apetitosos, pelo arriscado € 0 provocante; por ai se reconhecem sempre os maneiristas, até os mais diferentes. E caracteristico dos precursores, como Lorenzo Lotto, Gaudenzio Ferrari e Pordenone, dos alunos de Rafael e dos sucessores de Miche- langelo, dos primeiros maneiristas, como Pontormo, Rosso e Beccafumi, dos mais tardios, como Primaticcio e Tibaldi, dos grandes mestres, como Tintoretto e El Greco, e, em maior medida, dos ultimos representantes, como Bloemaert e Wtewael. € sobretudo tal espirito extravagante = um desabusado ou constrangido desvio da norma, oscilando entre a pirue- ta afetada e o esgar angustiado ~ que denota o cardter maneirista da obra. Para a bizarria da arte maneirista também contribui abundantemente o virtuosismo que sempre ostenta. Uma obra maneirista é sempre uma acrobacia, um tanto de valentia, um jogo de pres- tidigitagao. E um fogo de artificio que desprende cores e centelhas. Para conseguir o efei- to so determinantes a oposicao a tudo quanto é exclusivamente instintivo, 0 protesto contra qualquer racionalidade pura ou ingénua naturalidade, a acentuacao do subenten- dido, do problematico, do ambiguo, o exagero do particular, que evoca o particular opos- to, nao representado: a exaltacdo da beleza, demasiadamente bela e portanto irreal; da forca, demasiado forte e assim acrobatica; do contetido, sobrecarregado e portanto insig- nificante; da forma em si auténoma, € por isso esvaziada. A tendéncia ao paradoxo significa, na sua forma mais comum, a uniao dos inconci- lidveis; e a “discordia concors", com a qual se costuma caracterizar a estrutura formal do maneirismo, representa, sem duvida, um elemento essencial. Seria porém muito su- perficial querer perceber um simples jogo de formas na variedade dos elementos que compéem uma obra maneirista. O contraste das formas exprime, nesse caso, a polarida- de de todos os seres ¢ a ambivaléncia de todas as atitudes humanas, isto é, aquele prin- cipio dialético que, para o maneirista, determina todo 0 sentido da vida. Nao se trata da antitese efetiva entre os elementos da existéncia e do contraste ocasional dos fatos, mas da inevitavel ambigiiidade e do eterno conflito, nas grandes como nas pequenas coisas, da impossibilidade de se alcangar algo de inequivoco. Nas criagdes do espirito tudo deve lembrar que nos encontramos em um mundo de tensdes irredutiveis, de contrarios que se excluem, mesmo sendo conexos entre si. Porque neste mundo nada subsiste na sua exclusividade, na sua unilateral certeza; de cada coisa real é também verdadeiro e real 0 seu contrario, Tudo se manifesta em extremos contrapostos e s6 na sua paradoxal unigo se pode refletir o sentido da existéncia. Esse amor pelo paradoxo nao significa somente a continua retratagdo do quanto antes se havia averiguado, mas se reconhece a priori que a verdade tem duas faces ¢ a realidade, dois planos, e que é preciso evitar toda sim- plificagao, compreendendo as coisas na sua complexidade, se quisermos ser sinceros e nos conservarmos fiéis a realidade. Idéias, sentiments e expressdes paradoxais s4o, naturalmente, sempre possiveis e se encontram na arte e na literatura de todos os tempos; mas o maneirismo distingue-se pela incapacidade de configurar seus problemas a nao ser sob forma de paradoxo. Este deixa assim de ser somente um jogo de palavras ou de idéias, uma formula retérica ou um achado espirituoso, embora nem sempre seja muito mais do que isso. © pensamento do tempo revela com clareza a sua natureza radicalmente paradoxal na doutrina protestante da predestinacdo. A graca sem mérito € 0 paradoxo ético-reli- gioso por exceléncia. O dito de Lutero - "A fé precisa aprender a se amparar em nada" = € apenas uma versdo do “Credo quia absurdum", formula tipica de toda fé, porque a f€ € puro e simples paradoxo, certeza sem ciéncia. Essa idéia domina o pensamento de todos os grandes fildsofos da religido, desde os Pais da Igreja até Pascal e Kierkegaard 234 HISTORIA DA ARTE ITALIANA ~ DE MICHELANGELO AO FUTURISMO Na doutrina da predestinacao é somente formulada e levada ao extremo a conviego de que a salvago, a graca, a justificagao e a verdadeira justica s4o incompreensiveis, inde- finiveis, imperscrutaveis para a razdo. A fé é efetivamente paradoxal, e tanto mais se tor- na quanto mais diferenciada e critica € uma época. Paradoxal, nao somente como a en- tende Kierkegaard, para o qual é absurdo, ou seja, incompreensivel para a razao, 0 fato de que o absoluto manifeste-se no tempo, que o eterno, o infinito, possa intervir no tempo e na historia e que o homem participe da salvacdo, e nem somente como a en- tende a doutrina da predestinagao, para a qual hd e deve haver salvagio sem mérito; mas também no sentido de Tolstdi e Dostoiévski, que ndo associam mais a salvagdo a um critério moral, mas até mesmo concebem salvacao e moral como termos antitéticos; pois na mitologia dostoievskiana, ao lado de Michkin e Aliocha, os mais seguros partici- pantes da graca sao os grandes pecadores, Mitia Karamazov, Rogojin, Stavréguin e Ras- kélnikov. Para medir 0 quanto estao proximas do pensamento da época maneirista es- sas tendéncias paradoxais da fé, basta lembrar as palavras de Lutero em uma carta a Melanchton: “Sé pecador e peca sem medo, [...] Devemos pecar a fim de que esteja- mos neste mundo”, E soa absolutamente paradoxal a sua adverténcia, quando depois diz: "Preserva-te de ser tao puro, de nao querer ser tocado por nada [...] (porque) o mal pior sempre veio dos melhores". A fé nao se opde somente a toda logica, opée-se a toda moral € assim abole o conceito de pecado. Mas na época do maneirismo nao apenas o protestantismo cria condigdes parado- xais com a sua teoria da predestinacdo irracional. Encontramo-nos diante de formas pa- radoxais também na economia, com a alienacao do trabalhador do produto de suas mAos; na politica, com a "dupla moral”, uma para o principe e outra para os stiditos; na literatura, com o papel preponderante atribu(do a tragédia, que com a idéia do erro sem culpa vai ao encontro da “salvagdo sem mérito”, e com a descoberta do humor, que permite considerar e julgar uma pessoa por dois lados diversos ou opostos ao mesmo tempo. Nessa civilizacZo nada se deixa reduzir a uma formula univoca; de qualquer mo- do que se dirija a indagacao, sempre se responde com uma contraposigao. O fendmeno mais singular nao consiste na existéncia e no paralelismo dos opostos, mas no fato de que estes freqiientemente nao se podem distinguir, confundem-se uns com os outros porque as partes se invertem. Ha uma bela frase de Kierkegaard que lembra esse géne- ro de paradoxo: “Um em verdade reza a Deus embora adore um idolo; outro adora o verdadeiro Deus com espirito de falsidade, e por isso em verdade adora um idolo”. Em certa medida serve de chave também para o mundo intelectual do maneirismo a idéia que constituiu o principio e o fundamento da filosofia existencialista: a idéia de Kierkegaard segundo a qual o pensamento abstrato e sistematico - na sua forma mais pura o pensamento de Hegel — nada tem em comum com a condigdo humana, com a nossa verdadeira existéncia, com as tarefas imediatas, as dificuldades particulares e os problemas logicamente incompreensiveis da nossa vida real. Quando nos esforcamos por determinar e resolver esses problemas, essas dificuldades, essas tarefas, fazé-mo-lo de modo inteiramente assistematico e sem nenhum compromisso légico. Limitamo-nos a contornar os obstaculos da existéncia, ficando continuamente de olho nas dificuldades que ela suscita a razéio, em vez de tentar remove-los. Os artistas e poetas da época maneirista nao somente estavam conscientes das con- tradig6es insoliveis da vida, mas acentuavam-nas e exacerbavam-nas; preferiam perse- verar naquelas contradig6es irritantes em vez de mascara-las ou emudecé-las. O carater ambiguo e contraditério de todas as coisas fascinava-os de tal modo que a formula tipi- ca da sua arte tornou-se o paradoxo, a ponto de isolar a contradigéo em uma espécie de cultura in vitro, perpetuando o seu mistério inexplicavel. ‘Mas os maneiristas nao apenas se davam conta da insuficiéncia do pensamento ra- cional, nao apenas sabiam que a realidade, a existéncia real, nao pode ser compreendida Leitura critica 235 ou reduzida a meros conceitos: nao obstante o seu fundamental irracionalismo e ceticis- mo, nao sabiam renunciar as artes do pensamento, a jogar com os problemas, a propor e aceitar quesitos, Desesperavam-se com o pensamento especulativo, e mesmo assim a ele se agarravam; esperavam bem pouco da razo, mas permaneciam pensadores apaixona- dos, assim como, mesmo pondo constantemente em diivida a legitimidade de suas exi- géncias sensuais, sentiam-se sempre lancados ao imperativo dos seus instintos erdticos. Acreditavam em fazer-se compreendidos da maneira mais integral e imediata em seus as- pectos ora espirituais, ora corpdreos, ora conscientes, ora instintivos, e terminavam por encontrar o sentido da propria existéncia expresso com particular fidelidade no conflito das suas inclinagdes. Usavam 0 paradoxo como 0 unico instrumento expressivo possivel, embora em sie por si problematico, de algo que de outro modo seria quase inexprimivel. Sabiam ou talvez sentiam que isso trazia em si, com as marcas da complexidade, as mar- cas do jogo traicoeiro e da tragica insuficiéncia do pensamento, e que nao levava a mui- to longe em questées de filosofia, embora nao deixasse de fascina-los. Como julgar, portanto, o carater de uma época que em grande parte amadureceu as proprias criagdes sob o influxo dessa mentalidade tao fascinante mas igualmente osten- tosa e presungosa? O irracionalismo, que na filosofia e na ciéncia leva a “destruigao da ra- zo" € & bancarrota do pensamento, nao impede naturalmente o nascimento de obras de arte significativas, fato que freqilentemente escapa até aos criticos mais agudos ao subli- nharem os seus perigos no ambito da teoria. Com efeito, a critica de arte orientada a es- querda, depois de ter justamente reconhecido uma relacao causal entre a concepcao fi- loséfica do mundo, o pensamento politico e a orientacao social, de um lado, e a criagdo artistica, do outro, incorre em erro ao concluir que aos valores indiscutiveis no primeiro dominio devem corresponder valores andlogos no segundo, Que um bom homem pos- sa ser um mau musico ou vice-versa, nao é um fenédmeno desconhecido nem mesmo para a sociedade. A inteligéncia artistica 6 absolutamente diversa da tedrica e, como 0 irracionalismo em geral, a tendéncia ao paradoxo significa algo inteiramente diferente para o artista e para o fildsofo. Todavia, os maneiristas menores geralmente tornam-se vi- timas da prépria expressao paradoxal estereotipada, que tende a enrijecer-se e a tornar-se mecénica. Mas tanto os artistas maiores, para os quais tal forma expressiva representa uma ulterior fonte de energia, como os menores, para os quais representa um perigo, ser- vem-se dela com evidente satisfacao. Rosso, Parmigianino, Tintoretto, El Greco usam for- mas paradoxais com a mesma desenvoltura de Spranger e Bloemaert ou de Callot e Bel- lange; € as obras de Tasso, de Shakespeare e de Cervantes esto radicadas em imagens e idéias ndo menos paradoxais do que as de Marino, Géngora ou John Donne. A unidade do maneirismo Enquanto Walter Friedlander reconhece no anticlassicismo o verdadeiro principio e a fonte histérica e ideal do maneirismo, Max Dvorak reconhece-o no espiritualismo. Com esse termo identifica uma concep¢do transcendente de tipo metafisico e essencialmente religioso, uma espiritualizagdo da vida contraposta & nascente concepgao empirica e cientifica do mundo. € certo que ele sublinha um pouco demasiadamente a importancia de tal espiritualismo, mas ndo esquece absolutamente que o maneirismo, em que distin- guiu uma tendéncia "dedutiva” e uma “indutiva", visa, assim, espiritualizar e sublimar as coisas, mas também exaltar a natureza imediata e sensivel, Ele sabe muito bem que o transcendental nao exaure a esséncia do maneirismo, que nao uma simples repeticao do Medievo; no esquece jamais que, ao lado de Tinto- retto e El Greco, houve também Bruegel e Bassano e que a arte de Tasso e a de Cervan- tes se moviam de um mesmo ponto de partida. Cré, contudo, poder distinguir no ma- 236 HISTORIA DA ARTE ITALIANA ~ DE MICHELANGELO AO FUTURISMO neirismo em geral uma predominante, exclusiva inclinacao espiritual, e erra apenas ao assinalar que tal espiritualidade tinha um carater genericamente intelectual, nao especi- ficamente religioso. Que o maneirismo esteja sempre as voltas com um contetido ideal é inegavel; mas tal contetido nao se resolve jamais inteiramente de forma artistica; sem- pre acenado, jamais completamente dominado, gera aquela tensdo que Dvorak, influen- ciado pela hostilidade ao positivismo e ao materialismo, propria da sua geracao, chama de “espiritualista”’, considerando-a uma inquietude essencialmente religiosa. Contudo, essa tensao ideal nao tinha sempre uma origem mistica, orientada a me- tas ultraterrenas. Podia-se encontra-la nao somente em artistas como Tintoretto e El Greco; sob a “couraca da compostura" tao caracteristica na forma dulica do maneiris- mo, manifestava-se também em artistas de tendéncias mundanas, como Bronzino e Par- migianino, e era perceptivel tanto no naturalismo ~ aparentemente despojado de pre- tensdes ideais - de Bruegel e Jacopo Bassano quanto no intelectualismo académico de Vasari e Salviati. A arte maneirista dos “pintores de camponeses" era, de todo modo, mais espiritual do que a dos grandes idealistas do primeiro Quinhentos, porque mais im- pregnada e animada de um principio imaterial, ainda que apenas indiretamente visivel. A espiritualidade do maneirismo nao significava absolutamente negacao ascética do mundo, transcendéncia platénica ou crista, e sim, o mais das vezes, somente uma atitu- de mental incapaz de aplacar-se em qualquer forma objetiva da realidade, na qual 0 mundo € 0 eu, os sentidos e 0 espirito, apareciam sempre entrelacados e relacionados. © mundo devia trazer a marca do espirito, da forma criadora e deformante; nao podia nem devia aparecer livre da resisténcia do espirito. Em uma critica da teoria dvorakiana do maneirismo, Rudolf Kautzsch perguntou-se © que realmente teriam em comum as duas tendéncias, diferenciadas em “‘indutiva" e “dedutiva” , e representadas tanto por Bruegel e pelos naturalistas declarados quanto por El Greco ou talvez ainda por Bronzino: perguntou-se se existiria deveras algo que as associasse estilisticamente. Duvida que se possam situar no maneirismo artistas como Bruegel e El Greco, ou quem sabe Shakespeare e Cervantes, e pretende limitar 0 concei- to a fendmenos que “de algum modo mostrem verdadeiramente uma maneira". Em sua opiniao, nao se deveria absolutamente atribuir a qualificagdo de maneirismo a arte de todo aquele periodo. Kautzsch aprecia a acuidade de Dvorak, que lhe permitiu com- preender como Michelangelo e Tintoretto com o seu espiritualismo entrassem resoluta e significativamente em conflito com o Renascimento, mas reprova-o por colocar no mes- mo plano o espiritualismo e o naturalismo, ou também mesmo o formalismo da manei- ra. Sustenta, além disso, que sempre existiu o contraste das tendéncias que Dvorak cha- ma de "dedutiva" e "indutiva”; e se no maneirismo essa contraposi¢ao assume formas mais agudas do que habitualmente, Dvorak deve ainda explicar-nos por que isso acon- tece. Mas nao é verdade que tal contraste tenha sempre existido, como afirma Kautzsch, € que no maneirismo simplesmente se acentue esse fendmeno conhecido, segundo ele, ab antiquo. O contraste dos elementos estilisticos no maneirismo é inteiramente parti- cular — materialidade e transcendéncia, naturalismo e formalismo jamais se fundiram tao intimamente em um mesmo estilo — e cabe a Dvorak 0 mérito de té-lo descaberto e su- blinhado. Kautzsch tem razao apenas na medida em que nada se explica com a mera enunciacao da antitese, que Dvorak reconhece no entregar-se ao mundo, que no en- tanto se recusa. Todavia, a questao néo pode ser resolvida pela historia da arte nem mesmo com 0 método que Ihe é contraposto. © mais importante dos problemas enfrentados por Kautzsch, problema que a hist6- ria da arte tem condiges de discutir e de resolver, é o concernente a unidade do ma- neirismo no seu desenvolvimento histérico. E 0 maneirismo um estilo substancialmente homogéneo, proprio de toda a época tratada por Dvorak, determinante de todo um pe- riodo evolutivo? Ou melhor, para formular a pergunta mantendo-nos mais do que o Leitura critica 237

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