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ESPAÇO ADSO

A supervisão dos incidentes


críticos à luz do modelo reflexivo
CRISTINA RIBEIRO*

cional tendo como objectivo a inte-


RESUMO gração das experiências de acção7,8.
A supervisão da prática formativa dos orientadores mediante análise de incidentes críticos é um método que permite No contexto da supervisão, a aná-
aos orientadores desenvolver a capacidade de reflectirem sobre a prática, de identificarem os princípios subjacentes
lise de experiências sob diferentes
à sua actividade e planear uma metodologia de trabalho conducente à resolução de um problema.
perspectivas e a elaboração de alter-
Neste artigo, a autora descreve a forma como a análise de um incidente critico, em contexto de supervisão e à luz de
um modelo reflexivo, possibilita a restruturação do conhecimento face ao evento, permitindo a abertura e a renovação nativas de confronto com as situa-
de conceitos e atitudes. ções vividas poderão tornar-se oca-
siões de integração.
ABSTRACT A articulação de experiências de
Supervised teaching practice with critical incidents is a method of guiding medical teachers through their teaching, and acção com experiências de reflexão
encouraging reflection and self-assessment, identifying the principles underlying the teaching process, and defining a apresenta-se como indispensável
work methodology to solve vocational training problems. para o processo de desenvolvimen-
In this article, the author describes the way to analyse critical incidents using a reflection model, which may lead to a to pessoal (Fig. 1).
change of concepts and attitudes concerning the event. A criação de um portfolio de inci-
dentes críticos poderá desenvolver a
capacidade de reflexão e facilitar a
Introdução análise baseada na experiência do aquisição de aptidões comunica-
A SUPERVISÃO DO FORMADOR quotidiano, vivido na prática do ensi- cionais mais adequadas á prática10.
E O MODELO REFLEXIVO no, oferece à partida oportunidades
Nos currículos médicos pós-gradua- para um entendimento mais pro- Os incidentes críticos
dos há que prever um sistema de fundo e aplicado (incluindo o papel no processo formativo
treino, contínuo, que assegure uma dos sentimentos, pensamentos e Incidente corresponde a toda a acti-
boa qualidade de ensino e que per- percepções) do processo de ensino- vidade humana observável para que
mita auxiliar os orientadores a re- aprendizagem. através dela se possa fazer induções
solver dificuldades surgidas, quer ao ou previsões sobre o sujeito que rea-
nível do desempenho técnico cien- MODELO REFLEXIVO liza a acção. Para ser crítico deve
tifico, quer da interacção dos diver- Perante um determinado evento o dar-se numa situação tal que o fim
sos sujeitos envolventes no proces- modo como o sujeito percepciona e
so formativo, nomeadamente na re- reage depende de um conjunto de
lação médico–utente, na relação com aspectos conceptuais e emocionais
outros colegas e profissionais de (variáveis intrínsecas) que condicio-
saúde ou ainda na própria interac- nam uma determinada estratégia de
Eventos
ção orientador–orientando1,2. A su- acção que se traduz num determina-
Problema
pervisão da prática formativa é feita do comportamento. Prática Reflexão
As emoções e sentimentos ligadas Estratégia
sobre a orientação de um supervi-
sor/facilitador3,4,5. aos comportamentos estão sempre Solução
O modelo reflexivo por ser uma presentes na reflexão, assim como
na capacidade de análise dos dile-
*Assistente Graduada Clinica Geral – mas ou contradições6. A reflexão po- Figura 1. Modelo reflexivo (adaptado de Wallace9,
Centro Saúde de Sete Rios de constituir uma estratégia inten- 1991)

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ou intenção da acção tenha deter- dentes críticos. c. Discussão de grupo com facilita-
minado significado para o obser- 4. Fomentar práticas de discussão dor/supervisor
vador, ou seja, que dependa da for- de casos entre pares. A descrição do comportamento
ma como este o percepciona, que especifico e da situação que lhe deu
por sua vez é determinada pela cul- Estratégias origem deve ser detalhada, precisa
tura, valores e experiências.11 ESTRATÉGIAS GLOBAIS e associar um registo paralelo expli-
Num incidente crítico um fenó- No âmbito do processo formativo cativo ou interpretativo do evento
meno ocorre, é observado e regista- existiria um calendário de sessões (Quadro I).
do, o que permite a descrição do que para discussão de casos, relaciona- Na análise dos casos, utiliza-se a
aconteceu no contexto onde ocor- dos com incidentes críticos, sobre a seguinte metodologia:
reu.12 orientação de um supervisor e com 1. Tecem-se alguns comentários
No contexto de supervisão a ca- um grupo de pares. que permitem dar informações so-
pacidade de resolução do incidente A descrição do incidente (caso) se- bre as variáveis intrínsecas do su-
vai depender da: ria feita por escrito, obedecendo ao jeito, a estratégia utilizada, os com-
A. Análise da experiência pessoal do formato que permite o tipo de aná- portamentos, as suas consequên-
incidente. lise reflexiva referida. Cada sessão cias e a sua eficácia.
B. Análise dos principais dilemas ou decorreria num período de 4 horas, A informação sobre as variáveis
contradições subjacentes. com intervalo, e seriam analisados, intrínsecas é inicialmente inferida
C. Análise dos valores individuais e no máximo, três casos. mediante:
conflitos expressos. Durante as sessões, se tal fosse • Os parágrafos que precedem o
A existência de um portfolio per- necessário, recorrer-se-ia a role play diálogo no estudo de caso e que
mitiria a selecção e organização de com discussão de grupo e vídeo gra- tendem a descrever objectivos e
um conjunto de eventos2. Este do- vação das sessões para posterior estratégias.
cumento constituiria o primeiro con- análise. • Os parágrafos do lado esquerdo
teúdo susceptível de análise, nomea- da coluna que descrevem o pen-
damente duma auto-análise, com a ESTRATÉGIAS ESPECÍFICAS samento do sujeito sobre cada
finalidade de encontrar soluções a. Contextualização e descrição do parcela do diálogo.
para a resolução do incidente a par- incidente pelo orientador . • E através dos pressupostos sub-
tir do qual se poderia construir um b. Análise do incidente com registo jacentes que o sujeito identificou
espaço reflexivo e interpretativo descritivo e interpretativo. após analisar o seu diálogo.
sempre que tal fosse necessário.

Objectivos QUADRO I
OBJECTIVO GERAL INSTRUÇÕES PARA DESCRIÇÃO DE CASOS
Pretende-se apresentar, no contex-
to da supervisão, uma metodologia Descreva um incidente critico com o seu interno e que o tenha envolvido a si.
de identificação e resolução de pro- Se tiver dificuldade em fazê-lo, experimente um caso hipotético com que teria dificuldade de lidar
blemas. Comece a descrição com um parágrafo sobre os objectivos da sua intervenção, o contexto onde decorreu o incidente,
os envolventes no processo e alguma outra característica que considere importante.
OBJECTIVOS ESPECÍFICOS A seguir escreva alguns parágrafos sobre o tipo de estratégia que utilizaria para solucionar o problema identificado.
1. Produzir descrições de incidentes Após definir os objectivos e as estratégias que utilizou escreva como pretende atingir esses objectivos e porque
considerados críticos. seleccionou esses objectivos ou estratégias.
2. Ajudar o orientador perante os A seguir descreva o discurso como de facto ocorreu ou que esperaria que acontecesse.
incidentes críticos, a analisar os
seus comportamentos e a conse- Utilize o seguinte formato:
guir resolvê-los, por forma a me- À esquerda da página descreva o que sentia ou pensava enquanto decorria o diálogo.
lhorar a sua competência peda- À direita da página descreva o que os intervenientes realmente disseram. Continue a descrever o diálogo até que
gógica. pense ter ilustrado os seus aspectos principais. Finalmente após reler o seu texto descreva os pressupostos
3. Monitorizar e avaliar discursos subjacentes à forma como agiu perante este evento.
de práticas onde decorram inci-

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A informação sobre a estratégia discursiva, o deduzir de novos 2. Patterson F. A Competency model for
utilizada e o consequente compor- procedimentos ou estratégias general practice: implications for selection,
tamento é retirada directamente dos perante o evento crítico. training and development 2000:50(452);
188 -93.
diálogos. Esta informação revela o 2. Os pares que participaram na
3. Lowry, S. Teaching the teachers. Bri-
modo como o sujeito que descreve, discussão deverão também fazer tish Medical Journal 1993; 306, pp. 127-
percebe o seu comportamento. a apreciação da rentabilidade da -130. General Medical Council. Tomorrow’s
2. Opinião dos restantes partici- sessão e de que forma é que ela Doctors: Recommendations on Undergra-
pantes. foi manifesta duate. Medical Education. London. General
3. Estabelecimento de hipóteses e 3. O supervisor fará uma síntese da Medical Council; 1993.
discussão das mesmas. sessão e uma apreciação global 4. Nelson, M.S. Peer evaluation of tea-
Qualquer tarefa de análise de in- dos casos apresentados ching: an approach whose time has come.
Academic Medicine 1998; 73: 4-5.
teracção será facilitada pelo uso de Ao fim de 6 sessões dever-se-á:
5. Randall, J. Assuring quality and stan-
transcrição e videogravação. A possi- 1. Verificar o número de pedidos pa- dards. Quality Assurance Agency for Hi-
bilidade de analisar as frases utili- ra discussão de incidente críticos gher Education, Higher Quality; 1999.
zadas no discurso utilizado num de- 2. Analisar a casuística de casos so- 6. Schon D, Argyris C. Theory in Prac-
terminado momento do diálogo pos- licitados e discutidos tice. Increasing Professional Effectiveness
sibilita, junto com o supervisor e 3. Analisar o grau de satisfação dos 1974.
com outros colegas, a descoberta de intervenientes na discussão dos 7. Schon,D. The reflective practitioner:
factos nem sempre, directamente ou incidentes e na eventual resolu- How professionals think in action. New
York, Basic Books; 1983.
conscientemente, acessíveis no mo- ção dos mesmos através de um
8. Schön, D. The reflective turn. Case
mento da sua produção. É impor- questionário anónimo e dirigido
studies in educational practice. Teachers
tante que à dimensão retrospectiva a todos os orientadores que par- College, Columbia University, New York
(descritiva e interpretativa) das aná- ticiparam nas sessões and London; 1991.
lises efectuadas se junte uma di- Tende-se assim a resolver parte 9. Wallace, A. Training Foreign Langua-
mensão prospectiva que envolva os das dificuldades sentidas ao lidar ge Teachers- A reflective approach. Cam-
participantes na elaboração de es- com incidentes críticos na prática bridge; 1991.
tratégias de intervenção pedagógi- pedagógica. Dever-se-á portanto de- 10. Cunha E. Portfolio de incidentes
críticos: os relatos de consulta como ins-
ca. Por essa razão se utilizou esta fender um ensino que parta da rea-
trumentos de aprendizagem. Revista Portu-
técnica de estudo de caso para a lidade concreta e dos problemas
guesa de Clinica Geral 2003;19:300-03.
análise reflexiva do incidente crítico. suscitados pelas situações educati- 11. Tripp, D. Critical incidents in tea-
vas e que permita uma reflexão rees- ching. Developing professional Judgement.
Avaliação truturadora da acção pedagógica. New Fetter Lane. London; 1993.
A avaliação neste contexto decorre- 12. Vieira, F. Supervisão. Uma prática
ria no decurso de cada sessão e ao Referências Bibliográficas reflexiva de formação de professores. Edi-
fim de 6 sessões anuais ções ASA; 1993.
1. White P. Supervised teaching prac-
Em cada sessão: tice. A system for teacher support and qua- Endereço para correspondência
1. Os orientadores que apresenta- lity assurance. Department of General Cristina Ribeiro
ram os seus casos farão uma au- Practice and Primary Care. Guy’s, King’s R. Cidade Nova de Lisboa, 63
to-avaliação que pressupõe, no and St Thomas’ School of Medicine, Weston 1800-107 Lisboa
contexto do própria abordagem Education Centre, UK ; 2000. E-mail: cristina.mpr@mail.telepac.pt

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