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- Interpretação Equilibrada
Bacharelado- em
TEOLOGIA
PASTORAL
Hermenêutica Bíblica - 2
SUMÁRIO
1- HERMENÊUTICA – GENERALIDADES ................................................................... 3
2- HISTÓRIA DA INTERPRETAÇÃO BÍBLICA ............................................................ 4
2.1. HERMENÊUTICA ENTRE OS JUDEUS ............................................................................5
2.2. HERMENÊUTICA CRISTÃ ............................................................................................9
2.3. PERÍODO PATRÍSTICO..............................................................................................12
2.4. OS PAIS LATINOS ...................................................................................................15
2.5. PERÍODO MEDIEVAL ...............................................................................................16
2.6. PERÍODO RENASCENTISTA .......................................................................................17
2.7. PERÍODO MODERNO ...............................................................................................19
2.8. A HERMENÊUTICA PÓS-MODERNA ............................................................................21
3- PRINCÍPIOS DE INTERPRETAÇÃO DA BÍBLIA .................................................... 25
3.1. PRINCÍPIO DA CRENÇA NA AUTORIDADE DAS ESCRITURAS .............................................26
3.2. PRINCÍPIO DO SENTIDO USUAL E ORDINÁRIO DAS PALAVRAS .........................................27
3.3. PRINCÍPIO DA ANÁLISE À LUZ DO CONTEXTO ...............................................................27
3.4. PRINCÍPIO DO DESÍGNIO ..........................................................................................27
3.5. PRINCÍPIO DAS PASSAGENS PARALELAS ......................................................................28
3.6. PRINCÍPIO DA ANÁLISE EXPERIENCIAL À LUZ DAS ESCRITURAS .......................................28
4- PARTES BÁSICAS DA HERMENÊUTICA BÍBLICA ................................................ 29
4.1. NOEMÁTICA ..........................................................................................................29
4.2. HEURÍSTICA ..........................................................................................................35
4.3. PROFORÍSTICA .......................................................................................................36
5- DESAFIOS DA HERMENÊUTICA PARA OS NOSSOS DIAS .................................... 37
1- HERMENÊUTICA –
GENERALIDADES
A palavra “Hermenêutica” vem do termo grego “hermeneúo” que significa
“interpretar”. A Hermenêutica é a disciplina que ensina as regras para interpretar
um livro, um texto, e, nesse caso especial, o texto bíblico. Em uma outra definição,
J. Severino Croatto diz que “ Hermenêutica é a ciência da compreensão do sentido
que o homem traz para sua vida prática interpretando a mesma através da palavra,
de um texto ou de outras práticas... Toda ação humana se converte em sinal que
precisa ser decodificado; com maior razão se é o próprio Deus quem confere um
sentido aos acontecimentos.” Para Paul Ricoeur “ A hermenêutica é a teoria das
operações de compreensão em sua relação com a interpretação dos textos.”
A Hermenêutica abarca, de forma especial, as regras de interpretação que
procedem do estudo das características da linguagem humana em geral e de toda a
classe de escritos humanos, tanto profanos quanto sagrados. Toda linguagem
humana tem seu próprio gênio e idiossincrasias que não conseguem ser definidos
em uma tradução literal para outra língua. São modismos, provérbios, idiotismos,
peculiaridades gramaticais, referências a costumes locais, os quais poderiam
causar problemas de interpretação para aqueles que procuram entender o
significado original que o autor quis comunicar, lendo agora em outro idioma. O
problema aumenta com relação aos textos bíblicos, visto que o tempo que nos
separa dos escritos originais é grande e só há algumas décadas é que os judeus
recuperaram seu idioma a nível nacional com a instalação do novo Estado de Israel.
Assim, por muitos séculos o hebraico foi uma língua morta, embora preservada nos
círculos rabínicos graças ao desenvolvimento do texto massorético. Isto torna as
ferramentas da hermenêutica ainda mais importantes e necessárias. Ainda sobre
essa vertente, Paul Ricoeur identificou três necessidades do estudo hermenêutico,
salientando assim a sua importância:
• A palavra que em princípio foi “pregada”, “falada” e, desde então,
enquadrada em formas conceptuais, se transformou, por sua vez, em letra,
texto, o que limita-se agora ao processo de canonização. Os cristãos
possuem então não um testamento, mas dois testamentos para interpretar.
O desafio agora é o do retorno à “palavra” que está antes do texto.
• Existe uma distância cultural (já abordada acima) entre a época das
escrituras e a nossa época. Uma das funções da hermenêutica consiste em
vencer essa distância cultural para permitir a manifestação na cultura
presente daquilo que foi dito em outra cultura e que não é mais do nosso
tempo.
• Depois da influência do Racionalismo e do movimento de crítica bíblica o
que ficou do texto bíblico foi um sentido de profano ou de um texto
qualquer. Entretanto, para o cristão a Bíblia tem um valor particular e o
desafio do pós-modernismo é o de compreender e aplicar aquilo que se
constitui em “proclamação” a partir de um texto que teve suas passagens
dissecadas através do método crítico.
Acrescente-se a isto o fato de que os dias hodiernos apresentam como
característica a proliferação de “teologias” de pouca profundidade, nas quais o texto
bíblico deixa de ser o ponto de partida e se torna um mero instrumento de
confirmação de idéias preestabelecidas, gerando uma distorção da mensagem do
2- HISTÓRIA DA
INTERPRETAÇÃO BÍBLICA
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Hermenêutica Bíblica - 5
2.1. Hermenêutica Entre os Judeus
Provavelmente, um dos primeiros empreendimentos do uso da Hermenêutica
entre os judeus venha da época de Esdras, conforme lido em Ne.8:1-8, onde consta
uma menção especial à leitura da Torah nunca dantes vista entre os judeus. Deve-
se levar em consideração que a extrema preocupação com a leitura da Torah deu-se
após ou a partir do exílio babilônico, por conta do sentimento de culpa nutrido
pelos movimentos deuteronomista e sacerdotal, levando assim à mente da
comunidade que o exílio era o castigo de Javé ao povo desobediente à sua Palavra.
A idéia de reunir pessoas em grupos nesse período culminou mais tarde no projeto
de sinagoga judaica (Ez.3:15;8:1;14:1;20:1).
Júlio Trebolle Barrera levanta alguns fatores que contribuíram para o
nascimento e desenvolvimento da interpretação bíblica no judaísmo a partir das
épocas persa e helenística6. Em primeiro lugar ressalta que o desenvolvimento do
cânon hebraico (Tanach) exigiu que os escritos mais tardios (literaturas sapiencial,
apocalíptica e apócrifa) representassem uma espécie de interpretação e de
reescritura de textos e tradições de épocas anteriores. Aliás, isso já era uma prática
dentro do próprio texto canônico (comparar o Decálogo em Ex.20, Dt.5 e Jr.17:21-
22; ver também a promessa incondicional a Davi que o seu reino será eterno em II
Sm.7:12-16 e I Rs.2:1-9, verificando-se como diferencial o cumprimento da Torah).
Em segundo lugar, para manter vigentes as leis e instituições do povo judeu e para
manter a própria identidade e esperança nas difíceis situações de cada época, era
necessária uma releitura e uma nova compreensão dos velhos textos legais e das
tradições históricas de Israel. Por fim, a necessidade de traduzir os textos sagrados
hebraicos para a língua aramaica falada na Palestina e na diáspora judaica oriental
e também para o grego, falado por muitos judeus na diáspora ocidental, obrigava a
um grande esforço de interpretação ou de atualização dos textos hebraicos.
Continuando nesse processo histórico, no século III AC aparece a Septuaginta
(LXX), primeira tradução escrita do AT, que tem sido também considerada uma
obra de caráter interpretativo do mesmo. Justamente por conta desse aspecto tem
sido objeto de diversas críticas, sendo que as mais freqüentes apontam para a
helenização do texto hebraico. Barrera aponta a tradução de Gn.1:2 “deserto e
vazio”, helenizado para “invisível e desorganizado”.
Já Hans W.Wolff, em sua Antropologia do AT, aponta que a LXX
descaracterizou o sentido de alguns termos designadores da antropologia judaica
tais como “Nephesh” (“goela” traduzida por “alma”) e “Ruach” (“vento”, traduzido por
“espírito”), dando um outro sentido ao leitor moderno que encontra os termos
helenizados nas traduções atuais que seguem o texto da LXX 8. Outro fator é o da
eliminação de antropomorfismos e antropopatismos. Por exemplo, em Dt.32:10,
falando da relação entre Javé e seu povo, o texto hebraico oferece a expressão:
“como a menina dos seus olhos”, enquanto que a versão grega omite o pronome
“seus” (“...como a menina de um olho” ).
Se na LXX a interpretação helenística estava embutida na tradução, nos
Targumim a interpretação se localizava na fronteira entre a tradução e o
comentário. Em estudos introdutórios já foi visto que o Targum evoluiu com a
diminuição do uso do hebraico como língua corrente e a necessidade de se traduzir
o texto nas sinagogas para o dialeto aramaico da região. Acontece que o Targum é
um jogo entre tradução e interpretação que pode acontecer de duas formas:
parafraseando uma tradução literal ou convertendo a própria tradução numa
paráfrase verdadeira. A primeira forma é a mais primitiva e corresponde à fase oral
dos Targumim (tradução-comentário); a segunda corresponde ao período de
3- PRINCÍPIOS DE
INTERPRETAÇÃO DA BÍBLIA
No decorrer da história da Hermenêutica foram se formando as diversas
tendências de interpretação da Bíblia, aliadas a alguns princípios de utilização na
tarefa sempre nova e desafiadora de atualização do texto. Geralmente os teólogos
dividem essas tendências em quatro escolas de interpretação: a escola gramatical, a
escola histórica, a escola teológica e a escola crítica. A escola gramatical lida com o
sentido das palavras ora isoladamente (sentido etmológico), ou então com o texto
como um todo, levando ainda em consideração questões relativas ao contexto
lingüistico, histórico, social, político e religioso. É nesse aspecto que se confunde
com a escola histórica, a qual lida com o ambiente em que foi formado o texto
bíblico. Esse ambiente é o ambiente do autor e do seu povo. Aqui, o lugar, o tempo,
as circunstâncias e as concepções do ambiente formador da Bíblia são vistos como
importantes para a interpretação dos textos. Como afirma Louis Berkhof ao utilizar-
se desses princípios, o interprete transporta-se mentalmente para a época em que o
texto foi escrito. Já a escola teológica, zela pelo princípio "escriturístico" da Bíblia,
ou seja, o caráter místico da Bíblia, enquanto Palavra de Deus. A tendência dessa
escola é tornar os testamentos como uma unidade principalmente no que diz
respeito à doutrina da redenção que une tanto israelitas no AT quanto gentios do
NT. Uma das marcas desse caráter místico da Bíblia é a interpretação tipológica das
escrituras, a qual será estudada no próximo capítulo. Aqui mística-tipo-símbolo
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Hermenêutica Bíblica - 26
constituem uma realidade inseparável. Finalmente, a escola crítica, a qual possui
seus precedentes na busca de um diálogo entre a linguagem científica e a
linguagem religiosa própria dos séculos XVII e XVIII, tem, como uma de suas
características principais, a utilização de métodos científicos na interpretação dos
textos. Identificando-se com a escola histórica, a escola crítica busca conhecer o
texto a partir do autor e do seu ambiente, respeitando a antropologia do momento e
as categorias sociais; identificando-se também com a escola gramatical, procura
identificar categorias de linguagem próprias da cultura local através do método da
história das formas, da crítica textual e da história da redação. Do ponto de vista
teológico, ao contrário da escola chamada teológica, a escola crítica procurar
entender a teologia enquanto evolução na história, seccionando períodos e
tendências teológicas, desistindo assim da idéia da unidade dos testamentos, visto
que, segundo ela, na Bíblia encontram-se diversas teologias. O diferencial da escola
crítica é a sua proximidade da Psicologia, da Antropologia, da Filosofia e
principalmente da Sociologia. O texto é entendido primeiramente no seu ambiente
formador e, depois, por analogia, é entendido em um novo momento, sempre numa
ênfase nova onde a perspectiva da comunidade é determinante na interpretação do
texto.
Ao estudarem as escolas de interpretação bíblica, os teólogos geralmente
dividem os princípios hermenêuticos, separando-os por tendência, quer seja
gramatical, quer seja histórica, quer seja teológica, quer seja crítica. Em nossa
abordagem evitaremos as classificações, sugerindo apenas alguns princípios válidos
para a leitura de textos bíblicos. No contato com o estudante da Bíblia em
laboratório, faremos as devidas identificações.
Os princípios que sugerimos são os seguintes:
4- PARTES BÁSICAS DA
HERMENÊUTICA BÍBLICA
O estudo da Hermenêutica requer um adequado conhecimento de seus
elementos fundamentais. São esses elementos que comporão cada etapa do
processo de interpretação e aplicação do texto em estudo. Conforme apresentado na
Introdução do presente trabalho, são três as partes básicas da Hermenêutica,
voltadas para o sentido do texto: A Noemática ( do grego noema, "pensamento,
sentido" ) aponta o sentido presente no texto; a Heurística ( do grego eurisko,
"achar, encontrar") estuda as ferramentas utilizadas para se determinar o sentido
do texto; e a Proforística ( do grego profero, "mostrar, expor" ) trabalha com o modo,
a maneira, de expor os sentidos contidos na Bíblia.
4.1. Noemática
Para a compreensão deste elemento, é imprescindível o entendimento do
conceito de SENTIDO, bem como a sua distinção de SIGNIFICADO: enquanto este é
o que uma palavra, em seu valor denotativo, pode significar, aquele é o significado
que a palavra recebe pelo influxo do autor ou mesmo até do intérprete. Segundo
Georges Mounin, citado por Fernando Castin, 38 o sentido é o valor preciso que um
significado adquire num contexto. Pierre Guiraud, também citado por Castin no
mesmo texto, defende a dinâmica das relações da palavra com as outras palavras
do contexto. Tais relações são determinadas pela estrutura do sistema lingüístico, o
que equivale a dizer que palavras isoladas não possuem sentido mas significado,
somente adquirindo sentido dentro de um determinado contexto. Um exemplo disto
pode ser visto no provérbio "Quem tem boca vai a Roma ". O significado das
palavras isoladas nos traz uma frase sem nexo, mas o valor que cada palavra
adquire na frase nos levará a um sentido, qual seja: podemos ir a qualquer lugar
desconhecido e longínquo desde que estejamos dispostos a pedir orientação ou a
perguntar.
Entrando no campo bíblico, chegamos à histórica questão hermenêutica da
busca do sentido original do texto, o que deu origem às célebres controvérsias entre
interpretação alegórica e literal, e às mais variadas propostas quanto à
multiplicidade dos sentidos do texto bíblico: sentidos anagógico, tropológico,
escatológico, etc. Uma das tendências hermenêuticas é achar que só existe na
Bíblia um único sentido, o literal, seja ele próprio ou metafórico. Por sentido literal
entende-se aquele sentido do domínio direto e consciente do autor em seu momento
histórico. É aquilo que ele intenta dizer independente da forma ( estilo, gênero, etc.
); por exemplo: O cordeiro pascal em Ex. 12:3 e em Jo. 1:29 deve ser entendido em
sentido literal; em ambos os casos, a palavra cordeiro tem um só significado ( o
animal sacrificado no rito de expiação ) e um só sentido, embora próprio no
primeiro caso e metafórico no segundo. Como fundamento, admite-se que se Deus
fala aos homens através da Escritura, Ele o faz através de homens que, por sua vez,
não escreveram para não dizer nada, mas possuem uma intenção através das
palavras que usam.
Entretanto, outros teólogos defendem, ao lado deste, um outro sentido literal
chamado de pleno, também conhecido como sensus plenior. Compreende-se aqui
que Deus coloca uma consistência mais profunda no conteúdo expresso pelo autor,
ainda que seu pensamento se limite ao seu momento histórico, pois o sentido pleno
está fora do seu alcance intelectivo ou visual. O sensus plenior não é, portanto, do
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Hermenêutica Bíblica - 30
domínio do autor. Algumas das profecias messiânicas encontradas em Isaías e em
Malaquias são interpretadas a partir do sensus plenior, cujas características gerais
são as seguintes:
• Está incluído na letra do texto, apesar de ser desconhecido do escritor;
• É da alçada divina e de sua intenção;
• Só pode ser descoberto à luz de uma revelação ou ensinamento posterior;
• É homogêneo em seu conteúdo.
Manuel de Tuya e Jose Salguero apresentam um exemplo de homogeneidade
do sentido pleno: Em Sl. 2:7 a expressão "Tu és meu filho; hoje te gerei" tem relação
com a entronização do messias vetero-testamentário. Entretanto, o sentido pleno do
texto encontra-se centrado na pessoa de Jesus Cristo em três textos do NT, nos
quais os sentidos são polivalentes e divergentes (quanto ao significado), embora
homogêneos no sentido: Em At. 13:33, alude-se à ressurreição de Cristo; em Hb.
1:5 à divindade de Cristo e em Hb. 5:5 à sua posição de superioridade em relação
ao modelo humano representado pelo sumo-sacerdote.
Outra tendência é indicar, além do sentido literal, o sentido "típico" das
Escrituras. O tipo é uma espécie de metáfora que não consiste meramente em
palavras mas em atos, pessoas ou objetos que designam semelhantes atos, pessoas
ou objetos no porvir, apontando, portanto, para uma realidade futura. Foi bastante
enfatizado pelos pais apostólicos. De acordo com Tuya e Salguero são necessárias
para a configuração do sentido típico, as seguintes características:
• Uma realidade histórica ou literária. O fundamento do tipo possui uma
realidade histórica anterior, independente do próprio tipo, realidade essa
que, utilizada por Deus, vem a significar outra coisa. Por exemplo, a
serpente levantada no deserto (Nm.21:9 e Jo. 3:14 ). Do ponto de vista
literário aparece um texto curioso que, contrariando o padrão judaico de
narrativa sobre um personagem histórico no qual o personagem é sempre
identificado pela sua genealogia, apresenta Melquisedeque apenas como "rei
de Salém” e sacerdote do Deus altíssimo "(Gn. 14:18). Por conta disto, o NT
o apresenta como "tipo" do sacerdócio eterno de Cristo (Hb. 7:3) pois se
"assemelha" (do grego afomoiomenos) ao Filho de Deus. É natural que
Melquisedeque tivesse pai e mãe pois foi sacerdote e rei, entretanto o texto
omite essa informação. Por isso a relação de um texto com o outro torna-se
espiritual.
• A partir desta idéia, se requer uma semelhança entre o tipo e o antítipo. O
tipo deve ser uma imagem sensível e menos perfeita que a realidade
espiritual que ilustra, o que significa dizer que existe uma relação de
proporção e análoga entre eles. Esta analogia não significa que deve haver
uma adequação entre o tipo e o antítipo em todas as suas partes. Um só
aspecto dessa relação basta para caracterizar esta tipologia (comparar Ex.
12:46 com Nm. 9:12 e Jo. 19:33-36 ).
• A mais importante característica do tipo está no fato de que a realidade que
ele representa vem da sobrenatural escolha de Deus. O escritor não tem
como ou por que saber se o que ele escreve é usado por Deus para
representar outra realidade no futuro.
Em suma, o sentido literal não significa necessariamente literalismo (leitura ao
pé da letra) mas aquilo que o autor quis efetivamente dizer, usando para isto
palavras no seu sentido denotativo ou de forma retórica, lançando mão das figuras
de linguagem, numa espécie de "sentido literal-figurado". Por isso torna-se
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Hermenêutica Bíblica - 31
importante o conhecimento dos tipos mais freqüentes de figuras de linguagem
existentes no texto bíblico:
• Metáfora ("levar mais além") - é uma figura comparativa na qual um objeto é
assemelhado a outro, afirmando ser o outro ou falando de si como se fosse
o outro, ressaltando assim suas qualidades ou características ( Is. 40:6; Sl.
18:2; Mt. 5:13; Lc. 13:32; Jo. 6:48; Jo. 10:7 e 9; Jo. 10:11 e 14 ). São
considerados como tipos secundários de metáforas os antropomorfismos e
os antropopatismos. Nos primeiros atribui-se a Deus formas humanas e
atividades físicas ( Sl. 33:18; Sl. 34:16; Tg. 5:4 ); nos últimos atribui-se a
Deus sentimentos e paixões humanas (Gn. 6:6; Dt. 13:17; Ef. 4:30).
• Símile - é uma figura comparativa na qual um objeto é assemelhado a
outro, existindo aí a cláusula comparativa ( "como", "tal qual", "assim
como", "tal como"). Na metáfora a comparação está implícita e na símile,
explícita. Assim, em I Pd. 1:24 temos uma símile e em Is. 40:6 uma
metáfora. Outros exemplos de símile podem ser encontrados em Lc. 10:3 e
Sl. 1:3-4.
• Metonímia (metonomazo - "denominar de outra maneira") - emprega-se esta
figura quando a causa é tomada pelo efeito ou vice-versa, ou o símbolo pela
realidade que ele indica. Baseia-se numa relação mental. Por exemplo, em
Lc. 16:29 o termo "Moisés e os profetas" significa o conjunto de textos do
AT; em I Co. 10:21 o termo "cálice do Senhor" refere-se ao conteúdo do
cálice mas não ao cálice em si mesmo; em At. 7:8 a circuncisão é chamada
de concerto porque é um sinal do concerto; em I Jo. 1:7 a palavra "sangue"
indica toda a paixão e morte expiatória.
• Sinédoque ("receber juntamente") - é a substituição da parte pelo todo
ou do todo pela parte. Assemelha-se à metonímia mas a relação em que
se encontra é mais física que mental. Por exemplo, em Lc. 2:1 "todo o
mundo..." se refere apenas à parte do mundo que César Augusto governava,
ou seja, o Império Romano; em Pv. 1:16 a sentença "os seus pés correm
para o mal" não significa que apenas os pés deles correm para o mal mas
eles mesmos. Os pés são a parte que representa o todo – “eles”. Outros
textos: Rm. 1:16; 16:3-4.
• Prosopopéia - usa-se esta figura quando se personificam as coisas
inanimadas atribuindo-lhes ações de pessoas. Exemplos: Sl. 85:10-11; Is.
35:1; I Co. 15:55; Tg. 5:4; I Pd. 2:8.
• Eufemismo - consiste na substituição de uma expressão desagradável,
pesada ou injuriosa por outra inócua ou suave. A Bíblia fala da morte dos
cristãos como um adormecimento (Ex.1:5, Is.6:2b, Ez.16:26, At. 7:60 e I Ts.
4:13-15). Eufemismos podem também ocorrer nas traduções e não apenas
no texto original (o termo esterco – “peresh” traduzido por “imundície” em
Ml.2:3)
• Hipérbole (hiperballos - "sobrepor, colocar acima") - apresenta uma coisa
grandemente aumentada ou grandemente diminuída do seu tamanho real
para apresentá-la viva à imaginação ( I Samuel 18:7; Sl. 6:6; Sl. 119:136;
Miquéias 6:7; Mt. 23:24; Mc. 10:25; Lc. 6:42; Jo. 21:25 ). Algumas vezes
quando a hipérbole reduz demasiadamente ou deprecia, como em Nm.
13:33 e I Co. 15:9, recebe o nome "lilote".
• Ironia (do grego eironeia - "simulação") - faz-se uso da ironia quando se
expressa o contrário do que se quer dizer mas sempre de tal modo que se
faz ressaltar o sentido verdadeiro. A ironia é uma maneira de ridicularizar
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Hermenêutica Bíblica - 32
indiretamente sob a forma de elogio. Com freqüência vem marcada pelo tom
de voz de quem fala, o que torna difícil, às vezes, distinguir uma ironia num
texto a não ser que o contexto ajude. Exemplos: II Sm. 6:20; I Rs. 18:27; Jó
12:2; Am. 4:4-5; II Co. 11:5.
• Pleonasmo - consiste na repetição de palavras ou no acréscimo de palavras
semelhantes que em nossa língua parecem redundantes. Exemplos: Jó
42:5; Mt. 2:10; At. 2:30 ).
• Paradoxo - é uma afirmação aparentemente absurda e contrária ao bom
senso. Caracteriza-se pela união de duas idéias opostas numa mesma
sentença de forma proposital. Por isso não é o mesmo que contradição.
Exemplo: Mc. 8:35.
• Paronomásia - Consiste no emprego das mesmas palavras ou de palavras de
sons semelhantes para produzir sentidos diferentes. Às vezes é chamada de
“jogo de palavras” ou “trocadilho”. Ex. Mt. 8:22; É muito bonita quando
aparece na língua original. Por exemplo, Isaías utilizou palavras de sons
parecidos para produzir um impacto verbal nos ouvintes ou leitores de Is.
5:7. Nesse texto, o Senhor buscava “juízo”.
Além do conhecimento das figuras de linguagem, torna-se igualmente
importante o estudo dos diferentes gêneros literários e de sua utilização no texto
das escrituras. Por gêneros literários entende-se o modo de expor por escrito um
pensamento. Em geral, estão ligados a grupos de textos maiores, sejam orações ou
unidades distintas. O pressuposto que fundamenta o estudo dos gêneros literários é
a concepção de que o autor se expressa dentro das categorias literárias que lhe
sejam comuns, familiares e adequadas ao seu propósito. Quando se estuda a
cultura de um povo percebe-se que quando ele tem algo a dizer sobre si mesmo e
sobre os seus dramas ele o faz sempre dentro de formas próprias nas quais possa
entender-se e ser entendido. Existe melhor forma de entender o drama do homem
nordestino senão pela literatura de cordel? Assim também o drama teológico do
homem bíblico, expresso dentro de várias formas (aqui uma contribuição da crítica
das formas) e gêneros literários. Entretanto, persiste a tentativa de tentar "salvar" o
texto bíblico desses gêneros com o objetivo de perpetuar determinadas posturas
teológicas ou de proteger aquilo que se pretende por "Palavra de Deus", sempre na
ótica de grupos ou pessoas que demonstram ter o monopólio da verdade unívoca.
Os gêneros literários são mais caracterizados na forma de orações e textos
maiores, entretanto há alguns que os classificam também em unidades menores,
quer sejam palavras ou frases. Este último estudo foi feito no item anterior, o qual
trata das figuras de linguagem ou de retórica. No que diz respeito às unidades
maiores, os principais gêneros literários são os seguintes:
Parábola (do grego parabállein - "colocar junto, confrontar") - É um tipo de
história criada a partir de uma montagem feita pelo autor com base em fatos
fictícios em um cenário extraído da vida real, sempre com o objetivo de ilustrar uma
verdade moral ou espiritual, utilizando como recurso principal a comparação , às
vezes implícita no texto, outras vezes explícita ( a cláusula "O reino dos céus é
semelhante ..."). Devido ao fato da parábola estar montada sempre na égide da
verdade central, deve-se tomar bastante cuidado ao usar os detalhes que compõem
a história para criar doutrinas e ensinamentos, quer seja através da alegorização,
quer seja pela comparação direta (O local onde estavam o rico e Lázaro é o mesmo
Sheol do AT ou o mesmo inferno e céu do NT ? - Lc.16:19 ss ).
• Alegoria (do grego Allos-agoreúo - "dizer outra coisa" ) - Consiste em um
conjunto de várias metáforas ou uma metáfora continuada numa narrativa
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Hermenêutica Bíblica - 33
em que as expressões adquirem sentido figurado sempre por intenção do
autor. Muitas vezes confunde-se a Parábola com a Alegoria. Na Parábola, o
autor mostra-se interessado em comparar ou assemelhar de forma clara e
explícita (símile ampliado), enquanto que na Alegoria, o sentido ao qual
quer se referir o autor está implícito, residente nos elementos que usa de
forma figurada (metáfora ampliada). Uma segunda distinção é que enquanto
a Parábola possui geralmente um só elemento principal de comparação, a
Alegoria contém vários (Vide Sl. 80:8-16); em terceiro lugar, enquanto a
Parábola apresenta um evento factível, na Alegoria não há essa
caracterização . Outros textos: Ezequiel 17:1-10; Is. 5:1 ss; Mt. 3:12; 23:4;
• Fábula - É uma narrativa que se caracteriza principalmente pela atribuição
de qualidades humanas a seres irracionais ou mesmo inanimados. Há
sempre na Fábula a preocupação com a emissão de um juízo de valor ou de
um ensinamento moral. Exemplos: Dt. 9:8-15; II Rs. 14:9; II Cr. 25:18. No
que diz respeito ao estudo de unidades de texto ainda maiores, alguns
textos formando livros inteiros, observa-se a existência de diversos gêneros
literários, dos quais pode-se relacionar os mais freqüentes:
• Jurídico ou Nomístico - Associado a uma boa parte dos cinco primeiros
livros da Bíblia. Esses textos compreendem dois tipos de leis: apodíticas e
casuísticas. Nas leis apodíticas, os mandamentos são iniciados com uma
cláusula proibitiva - a palavra não - como acontece no Decálogo (Ex. 20:3-
17). Nas sentenças casuísticas, as leis são apresentadas por uma condição
que origina determinada situação. São leis dadas para situações específicas
(Lv. 20:9-18, 21; Dt. 15:7-17).
• Narrativo - Neste gênero, tem-se uma espécie de história, cuja idéia não é
mesma da maneira de se fazer história própria do historiador moderno, o
qual trabalha a partir de uma visão científica. Na narrativa bíblica a história
é contada com o intuito de transmitir uma mensagem, uma teologia. Por
exemplo, um leitor desavisado crerá que I e II Crônicas são uma cópia
idêntica do texto de II Samuel, principalmente no que diz respeito à vida de
Davi. Ora, lendo os capítulos 11 a 21 de II Samuel tem-se um claro sentido
de que ao relatar as falhas de Davi, o autor queria ilustrar o fato de que o
pecado produz conseqüências devastadoras, combinando com a mensagem
dos livros de Deuteronômio e I e II Reis, os quais foram produzidos num
ambiente de culpa dos exilados na Babilônia quando se via na infidelidade
espiritual do povo a causa principal da catástrofe de 586 a.C. Entretanto, I
e II Crônicas omitem os pecados de Davi, dando ênfase ao seu fulgor real,
aos sacerdotes e ao templo. Essas obras se encaixam perfeitamente numa
época de restauração física e espiritual dos judeus, no retorno do cativeiro
babilônico, quando o povo se queixava da perda de seus símbolos
nacionais, conforme está implícito em Ag. 2:3. I e II Crônicas encorajam o
povo a manter-se na fidelidade ao Senhor, na promessa de que a linhagem
de Davi e o templo seriam preservados.
Existem vários tipos de narrativas, dentre as quais se destacam: Epopéia,
Épico, Etiologia e Tragédia. Na Epopéia aparece a narrativa sobre os feitos e a vida
de um herói nacional ou protagonista, uma pessoa que por vezes torna-se padrão
para os outros como por exemplo, Abraão, Gideão e Davi. No gênero épico aparecem
as narrativas contendo uma série de episódios centralizados numa pessoa ou num
grupo de pessoas com façanhas militares e eventos de milagres. Um bom exemplo é
o período de peregrinação dos israelitas no deserto e a conquista de Canaã. A
Etiologia é uma narrativa cujo propósito é o de justificar uma realidade a partir de
causas encontradas em tradições orais bem antigas. Para justificar o domínio sobre
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os cananeus, os israelitas incluíram em sua narrativa das origens o episódio da
nudez de Noé e da maldição imposta a Cam e sua descendência, conforme Gn.9:22-
27. Existem etiologias ligadas ao culto para explicar a importância de lugares
sagrados. Já a Tragédia é a história da decadência de um indivíduo, do apogeu ao
desastre (Sansão, Saul e Salomão).
• Poético - Não se pode limitar a poesia hebraica apenas aos livros de Jó,
Salmos, Provérbios, Eclesiastes e
• Cânticos. Há poesia no Pentatêuco e também nos livros proféticos. Na
poesia ocidental existe a força da métrica e da rima; na poesia oriental
repetição e ritmo se unem para tornar uma passagem duplamente
memorável. A esta característica dá-se o nome de Paralelismo, muito
comum no livro de Provérbios. Observa-se no texto bíblico vários tipos de
Paralelismo dentre os quais destacam-se o sinônimo, o antitético e o
sintético. No Paralelismo sinônimo duas sentenças repetem com palavras
diferentes uma mesma idéia na mesma ênfase e sentido (Pv. 5:1); no
Paralelismo antitético, a segunda sentença apresenta uma declaração
oposta à primeira, mas sempre numa relação dimetral (Pv. 10:1); no
Paralelismo sintético, uma segunda ou terceira sentença complementam a
idéia da primeira, levando-a adiante sem repeti-la com palavras diferentes
(Sl. 27:1; 1:3; 103:1).
• Apocalíptico - Carregado de simbolismos, imagens, visões e revelações, este
tipo de literatura aparecia com mais freqüência em momentos de grande
perseguição contra judeus ou cristãos. Nele percebe-se um estado de tensão
entre justos e ímpios, reino de Deus e reino dos homens, com resultados de
recompensa para ambos. No AT aparece nos livros de Daniel e Zacarias e no
NT, no Apocalipse de João. Entretanto, no período intertestamentário,
houve uma proliferação deste tipo de literatura aparecendo livros tais como
o de Henoc e outros considerados pseudepígrafos. A literatura apocalíptica,
muito mais que previsões, contém verdadeiros tratados de fé com o objetivo
de confortar os fiéis perseguidos e exortá-los a permanecerem firmes. Em
síntese, o apocalipse é um documento da resistência dos fiéis.
• Sapiencial - Alguns podem confundir poesia com sabedoria. Toda literatura
sapiencial tem caráter poético, mas nem todo texto poético pertence à
literatura sapiencial. Pode-se encontrar um tipo de sabedoria dos simples, a
sabedoria cotidiana (Provérbios); uma sabedoria que reflete a crise da idéia
de Deus (Jó) ; uma sabedoria que reflete a crise na própria sabedoria
(Eclesiastes). Muito mais do que os profetas, os sábios incomodaram as
estruturas religiosas do seu tempo e até hoje incomodam àqueles que
realizam uma leitura moralista do AT.
• Evangelhos (do grego euangellion - "boa notícia") - Essas narrativas não
podem ser consideradas simplesmente como uma biografia de Jesus e, por
isso, históricas sob o ponto de vista estrito da palavra "história". Isso fica
evidente na conclusão do Evangelho de João (21:25). Aqui o verdadeiro
Jesus é o Cristo, Filho de Deus. Os evangelhos contêm algum material
biográfico sobre Jesus, mas apresentam muito mais o que ele significou
para a comunidade que guardou as suas palavras e o conteúdo de doutrina
que dele ficou (Lc. 1:1-4). Representam, na verdade, a pregação sobre Jesus
Cristo encarnada na atividade da Igreja primitiva, com ações de louvor.
• Epistolar - Esse tipo de literatura era muito comum no império romano e
tornou-se depois útil dentro dos objetivos canônicos. Uma epístola não é
simplesmente uma carta, que é mais curta em seu conteúdo e tem um
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caráter pessoal. Numa epístola, existe uma variedade de temas, abordados
de maneira sistemática, na forma de uma circular dirigida a várias
comunidades. A epístola aos Gálatas por exemplo, é dirigida não apenas a
uma comunidade mas às igrejas da Galácia. Entretanto, a prática de
algumas igrejas de usarem coletivamente cartas menores dirigidas a
indivíduos (Por exemplo, a carta de Paulo a Filemom, lida e conservada pela
igreja de Colossos) fez desaparecer essa distinção entre carta e epístola,
principalmente em virtude da autoridade crescente do apóstolo Paulo sobre
essas comunidades.
4.2. Heurística
De acordo com que o próprio termo sugere, a tarefa da Hermenêutica é
"encontrar" os sentidos do texto bíblico, mediante procedimentos científicos. Um
deles é o da investigação, o qual desembocará na exegese. Diante do texto, o
investigador defronta-se com várias questões. É como se o exegeta estivesse
perguntando ao texto. As questões que mais se destacam diante do pesquisador são
as seguintes:
A. Crítica Textual - O que há de mais original no texto? O texto atual é
resultado de um desenvolvimento redacional? As variantes encontradas são
acidentais ou substanciais? 41
B. Autoria do livro - Através do estilo literário e do conteúdo do livro, coletam-
se dados que podem conduzir ao autor do livro (ou autores), seu meio ambiente,
sua família, tendências teológicas, sua profissão, sua cultura. São notáveis a
diferenças entre o linguajar poético do autor do livro de Jó, o estilo rústico e
agressivo de Amós e Jeremias, e linguagem elegante do livro do Profeta Isaías.
C. Época e finalidade do livro - O que estava acontecendo por ocasião da
escrita do livro ? Há uma íntima relação entre a ocasião e a finalidade de um texto
pois não há texto sem propósito. O que pode acusar a época e a finalidade do livro
está dentro do próprio texto. A partir da insistência do uso de alguns termos,
mesmo que não seja uma indicação explícita da intenção do autor, pode-se perceber
uma finalidade que, por sua vez, indica um drama de época. Por exemplo, as várias
referências à Lei, aos "rudimentos do mundo" e à escravidão que a Lei provoca ,
revelam em Gálatas uma clara intenção de resolver os problemas e estragos
causados pela infiltração de judaizantes na igreja primitiva. Outras vezes o autor
indica de forma clara e explícita a sua finalidade ao escrever o livro, como em Pv.1:
1-6, Lc.1:1-4 e Jo. 20:30-31.
D. Condições ambientais do autor - O autor é filho de seu tempo e do
ambiente em que vive. Expressa-se numa mentalidade correspondente a si e aos
seus leitores. Por sua vez, essa mentalidade reproduz determinadas condições
ambientais, que podem ser de natureza cultural, físico-geográfica e histórica. Do
ponto de vista cultural, por exemplo, é imprescindível o estudo da língua e do estilo
literário para uma correta interpretação do pensamento do autor. Cada língua tem
sua própria dinâmica e seus próprios idiomatismos. Outro instrumento importante
é o estudo das religiões comparadas. Uma das contribuições desse estudo é a
separação entre aquilo que é teológico e aquilo que é cultural dentro de um ponto
de vista global. Como exemplo de determinantes físico-geográficos existe a
caracterização da Palestina como uma terra seca e estéril, onde a água e a
fertilidade eram uma necessidade constante. A relação entre o homem e a terra
passa de geográfica para religiosa. O livro de Gênesis descreve enfaticamente essa
relação nos seus primeiros capítulos para falar do pecado das origens com a
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divinização dos elementos naturais, o que constitui uma reação da religião de Israel
contra as propostas da religião agrária dos cananeus.
4.3. Proforística
A Proforística é a terceira parte básica da Hermenêutica e de acordo com o
significado do nome no grego ( mostrar, expor, levar adiante ), sua finalidade é a de
expor a Bíblia. Como se expõe as Escrituras? Algumas das formas mais comuns são
as seguintes:
A. Versões - Pode parecer estranho que uma tradução da Bíblia seja uma
exposição da mesma. A versão se apresenta como uma tradução bem feita, talvez a
melhor. Muitas vezes, entretanto, está a serviço de uma determinada tendência
hermenêutica. Já foi visto no primeiro capítulo como a Septuaginta e os Targumim
fizeram esse papel. Um outro exemplo muito interessante, mais para dentro do
nosso tempo é o Salmo 116:15 onde a palavra "preciosa" pode sugerir um real
interesse de Deus pela morte do fiel, quando no original indica mais um alto custo
ou uma tristeza de Deus por estar agora "perdendo" o contato com o fiel pela sua
morte (conforme doutrina do Sheol no AT). Aqui, um real interesse em ligar o Salmo
à expectativa cristã da ressurreição e do encontro com Cristo após a morte do fiel,
não existente no texto original. Outro bom exemplo é a tradução da palavra
hebraica “ ‘al’mah” – mulher jovem, moça em Is.7.14 por virgem que em hebraico é
“na’arah”. Menciono ainda um arranjo na numeração de versículos separadas por
unidades vistas em alguns textos como por exemplo em Ef.5.21-22. Como exercício,
observe as diferenças deste texto nas versões NVI, ALMEIDA, NTLH, BJ e outras.
Muitas vezes o pesquisador percebe que o texto foi modificado
substancialmente em função de acréscimos ou de retiradas ou modificações feitas
no decorrer da história. Const ata isto geralmente quando possui duas ou mais cópi
as de manuscritos do mesmo texto. Geralmente aí vê-se uma série de interesses de
ordem teológica ou particular. Entretanto, muitas varia ntes ocorrem devido a
acidentes, ou seja, falhas de copistas quando da ocasião de trans crição de textos
de um manuscrito antigo para outro novo.
B. Comentários - É uma forma sistemática de estudo e de exposição de um
livro bíblico ou de parte dele. Aí se lança mão de vários recursos, alguns deles já
expostos no estudo sobre Noemática e Heurística. Os comentários representam
posições teológicas de pessoas ou escolas de estudos bíblicos das mais diversas
tendências hermenêuticas. Cada vez mais instituições procuram um maior
aprofundamento, principalmente nas questões lingüísticas-históricas visando a
uma interpretação mais próxima do sentido do texto. Outras formas de comentários
são as chamadas notas de rodapé constantes em bíblias especiais ou bíblias de
estudo. Percebe-se, por exemplo, na Bíblia de Scofield, uma inclinação tendenciosa
em suas notas (em Daniel, Ezequiel, Mateus e Apocalipse, entre outros) para a
defesa de uma escatologia de tendência dispensacionalista, futurista e pré-
milenista. Um outro exemplo interessante é a nota de rodapé da Bíblia de
Jerusalém, um dos mais importantes textos surgidos nas últimas décadas, para o
texto de Mt. 1:25, no qual se percebe uma determinante dogmática sobre a
interpretação do mesmo.
C. Teologia Bíblica - Alguns acham que a teologia bíblica não é uma
interpretação em si, mas o resultado da interpretação. Entretanto isso pode ser
questionável, pois "fazer Teologia" significa também interpretar. Aquilo que se
chama de forma analítica da teologia bíblica é o caminhar histórico e evolutivo da
exposição da temática religiosa e bíblica, separando a Teologia bíblica em partes e
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unidades distintas e independentes. Assim, os escritores são vistos como
intérpretes e teólogos ao mesmo tempo. Outra forma de teologia segue o método
lógico, o qual está relacionado com os sistemas nos quais a Teologia é apresentada,
existindo assim o chamado elemento doutrinário ou dogmático.
5- DESAFIOS DA HERMENÊUTICA
PARA OS NOSSOS DIAS
Para Augusto Nicodemus um dos desafios atuais da Hermenêutica é saber até
que ponto as ferramentas do método histórico-crítico podem ser úteis na
interpretação do texto sagrado visto que utilizam pressupostos por vezes
antagônicos à convicção de que a Bíblia é a Palavra de Deus. Um desses exemplos e
a busca pelo Jesus histórico. A leitura dos evangelhos dentro dessa ótica sem a
tradicional roupagem moralista geralmente atribuída a Jesus, tira muitos mitos
sobre o Cristo-homem e, de uma certa forma, deixa para trás o dogma e a Teologia
Sistemática. Nessa abordagem se conhece o Cristo que desafiou estruturas
familiares e sociais : ele rejeita o casamento, deixa sua família e sai pelo mundo
reunindo pessoas que escolhe como seus familiares; o Cristo amigo do povo, dos
excluídos e dos bem-de-vida: seus amigos são cobradores de impostos (inimigos dos
judeus), homens ricos, pescadores, beberrões e prostitutas; o Cristo nada
"religioso", ou seja, que desafia estruturas da religião constituída : ele cura e desafia
o monopólio da religião dominada pelos sacerdotes e pelos escribas. É o Cristo do
sorriso que afaga crianças e as toma em seus braços; mas também é o Cristo
aborrecido que expulsa cambistas do templo. Esse Cristo é Senhor. Como conciliar
essas tendências e como aplicá-las hoje, construindo pontes de relação entre a
situação enfrentada por Jesus e a situação que ora enfrentamos? Poder-se-ia aqui
traçar algumas linhas de tratamento para o problema:
• Com grande probabilidade, pode-se encontrar tanto no método histórico-
crítico quanto na proposta biblicista elementos positivos em suas
respectivas propostas hermenêuticas, desde que não haja um radicalismo
de ambas as partes. Trabalhos como o de Gerhard Maier43 tem mostrado
algumas deficiências do método histórico-crítico a partir da realidade
alemã. É a luta entre o conceito "razão" e a "Palavra de Deus".
• O relativismo teológico tem se constituído em um dos principais resultados
finais do método histórico-crítico e também num elemento questionador da
proposta de formação de igrejas devidamente fundamentadas em doutrinas
bíblicas. A necessidade de um esteio, um "cânon espiritual" não tem servido
apenas como fator de segurança individual do crente em sua fé, mas
também a nível coletivo, no sentido de identificar o grupo diante da
secularidade, sendo útil inclusive para servir de referencial ao não-crente.
• Entretanto, não há como menosprezar os resultados da pesquisa histórico-
crítica. É praticamente impossível negar a falta da unidade "doutrinária"
existente nos testamentos, quer seja do testamento em relação a si mesmo,
quer seja de um testamento em relação ao outro testamento. É óbvio, por
exemplo, que os próprios profetas, porta-vozes de Deus, se encontravam
sempre na tarefa nova de contestar posturas doutrinárias antigas que, por
vezes, eram utilizadas para legitimar posturas antiéticas do povo que ia sob
o nome do Senhor. São notórias as posturas de alguns profetas contra o
sacrifício ( Is. 1:11-12), o cerimonialismo (Is. 1:13-14), a eleição de Israel
(Am. 3:1-2 e 6:1; Am. 9:7 contrariando Jeremias 47:4 ), o Dia do Senhor
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Hermenêutica Bíblica - 38
como dia do favor divino ao seu povo (Am. 5:18). É igualmente significativo
como o livro de Jó questiona a íntegra da doutrina da retribuição e do
individualismo ético, entrevisto em Ezequiel 18, o qual, por sua vez,
representa uma reação contra antigos pressupostos do Anátema44 e da
Guerra Santa. Pode-se assumir, entretanto, que a Bíblia possui uma
unidade central de tema: o que se vê de Gênesis a Apocalipse é a idéia de
um Deus que ama o ser humano e que vai buscá-lo em sua indignidade e
de um ser humano que foge desse Deus e de seu amor.
• Provavelmente, um dos maiores desafios da Hermenêutica para os tempos
hodiernos é a leitura de "conveniência" que existe da Bíblia. Esse tipo de
leitura é seletiva e parte, quase sempre, de idéias pré-concebidas. Por
exemplo, como ler o texto dos "Cântico dos Cânticos"? Alegoricamente ou
naturalmente ? 45 É alegórico quando fere o pudor moralista; é natural
quando se precisa de um argumento litúrgico-especial, uma cerimônia de
casamento. Outro elemento, o da Teologia da Prosperidade, é quase sempre
um discurso nos lábios de pessoas que atingiram situação econômica
privilegiada e sentimento de culpa para aqueles que ainda não saíram do
ocaso financeiro ou ainda que não “digeriram” o ser parte de uma classe
média decadente.
• Dessa leitura advém um problema, o do conflito entre a complacência da
aceitação das opiniões dos outros de uma espécie de “ditadura da mídia”,
que impõe o “politicamente correto”, e aquilo que a Bíblia ensina nas suas
bases de fé (graça, culpa, condenação eterna, salvação, arrependimento,
mudança de vida, santidade, etc)
• Gostaria de deixar alguns temas para discussão em classe. Entre eles, o
problema da “razão sensível” (questão estética). Os desafios de um mundo
globalizado e transcultural movido cada vez mais pelas informações obtidas
da Internet. A necessidade de uma releitura do princípio do “Sola Scriptura”
e a leitura fixista da Bíblia cada vez mais comum nos meios
fundamentalistas.