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Hermenêutica Bíblica

- Interpretação Equilibrada
Bacharelado- em

TEOLOGIA
PASTORAL
Hermenêutica Bíblica - 2

SUMÁRIO
1- HERMENÊUTICA – GENERALIDADES ................................................................... 3
2- HISTÓRIA DA INTERPRETAÇÃO BÍBLICA ............................................................ 4
2.1. HERMENÊUTICA ENTRE OS JUDEUS ............................................................................5
2.2. HERMENÊUTICA CRISTÃ ............................................................................................9
2.3. PERÍODO PATRÍSTICO..............................................................................................12
2.4. OS PAIS LATINOS ...................................................................................................15
2.5. PERÍODO MEDIEVAL ...............................................................................................16
2.6. PERÍODO RENASCENTISTA .......................................................................................17
2.7. PERÍODO MODERNO ...............................................................................................19
2.8. A HERMENÊUTICA PÓS-MODERNA ............................................................................21
3- PRINCÍPIOS DE INTERPRETAÇÃO DA BÍBLIA .................................................... 25
3.1. PRINCÍPIO DA CRENÇA NA AUTORIDADE DAS ESCRITURAS .............................................26
3.2. PRINCÍPIO DO SENTIDO USUAL E ORDINÁRIO DAS PALAVRAS .........................................27
3.3. PRINCÍPIO DA ANÁLISE À LUZ DO CONTEXTO ...............................................................27
3.4. PRINCÍPIO DO DESÍGNIO ..........................................................................................27
3.5. PRINCÍPIO DAS PASSAGENS PARALELAS ......................................................................28
3.6. PRINCÍPIO DA ANÁLISE EXPERIENCIAL À LUZ DAS ESCRITURAS .......................................28
4- PARTES BÁSICAS DA HERMENÊUTICA BÍBLICA ................................................ 29
4.1. NOEMÁTICA ..........................................................................................................29
4.2. HEURÍSTICA ..........................................................................................................35
4.3. PROFORÍSTICA .......................................................................................................36
5- DESAFIOS DA HERMENÊUTICA PARA OS NOSSOS DIAS .................................... 37

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Hermenêutica Bíblica - 3

1- HERMENÊUTICA –
GENERALIDADES
A palavra “Hermenêutica” vem do termo grego “hermeneúo” que significa
“interpretar”. A Hermenêutica é a disciplina que ensina as regras para interpretar
um livro, um texto, e, nesse caso especial, o texto bíblico. Em uma outra definição,
J. Severino Croatto diz que “ Hermenêutica é a ciência da compreensão do sentido
que o homem traz para sua vida prática interpretando a mesma através da palavra,
de um texto ou de outras práticas... Toda ação humana se converte em sinal que
precisa ser decodificado; com maior razão se é o próprio Deus quem confere um
sentido aos acontecimentos.” Para Paul Ricoeur “ A hermenêutica é a teoria das
operações de compreensão em sua relação com a interpretação dos textos.”
A Hermenêutica abarca, de forma especial, as regras de interpretação que
procedem do estudo das características da linguagem humana em geral e de toda a
classe de escritos humanos, tanto profanos quanto sagrados. Toda linguagem
humana tem seu próprio gênio e idiossincrasias que não conseguem ser definidos
em uma tradução literal para outra língua. São modismos, provérbios, idiotismos,
peculiaridades gramaticais, referências a costumes locais, os quais poderiam
causar problemas de interpretação para aqueles que procuram entender o
significado original que o autor quis comunicar, lendo agora em outro idioma. O
problema aumenta com relação aos textos bíblicos, visto que o tempo que nos
separa dos escritos originais é grande e só há algumas décadas é que os judeus
recuperaram seu idioma a nível nacional com a instalação do novo Estado de Israel.
Assim, por muitos séculos o hebraico foi uma língua morta, embora preservada nos
círculos rabínicos graças ao desenvolvimento do texto massorético. Isto torna as
ferramentas da hermenêutica ainda mais importantes e necessárias. Ainda sobre
essa vertente, Paul Ricoeur identificou três necessidades do estudo hermenêutico,
salientando assim a sua importância:
• A palavra que em princípio foi “pregada”, “falada” e, desde então,
enquadrada em formas conceptuais, se transformou, por sua vez, em letra,
texto, o que limita-se agora ao processo de canonização. Os cristãos
possuem então não um testamento, mas dois testamentos para interpretar.
O desafio agora é o do retorno à “palavra” que está antes do texto.
• Existe uma distância cultural (já abordada acima) entre a época das
escrituras e a nossa época. Uma das funções da hermenêutica consiste em
vencer essa distância cultural para permitir a manifestação na cultura
presente daquilo que foi dito em outra cultura e que não é mais do nosso
tempo.
• Depois da influência do Racionalismo e do movimento de crítica bíblica o
que ficou do texto bíblico foi um sentido de profano ou de um texto
qualquer. Entretanto, para o cristão a Bíblia tem um valor particular e o
desafio do pós-modernismo é o de compreender e aplicar aquilo que se
constitui em “proclamação” a partir de um texto que teve suas passagens
dissecadas através do método crítico.
Acrescente-se a isto o fato de que os dias hodiernos apresentam como
característica a proliferação de “teologias” de pouca profundidade, nas quais o texto
bíblico deixa de ser o ponto de partida e se torna um mero instrumento de
confirmação de idéias preestabelecidas, gerando uma distorção da mensagem do

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Hermenêutica Bíblica - 4
texto pelo desprezo ao contexto. As partes básicas da Hermenêutica (No cap.IV,
estudaremos mais detidamente cada uma destas partes) são:
• Noemática (do grego noema, “ pensamento”, “sentido”) – constitui-se no
estudo dos diversos significados com que o pensamento bíblico é expresso;
• Heurística (do grego heurisko, “achar”, “encontrar”) – é a parte que estuda
as ferramentas que serão utilizadas para o encontro dos diversos
significados da escritura;
• Proforística (do latim profero, “tirar”, “apresentar”) – é o modo de expor os
significados contidos na Bíblia.
Filosoficamente, a Hermenêutica se desenvolveu a partir de três momentos: A
compreensão (subtilitas intelligendi), a interpretação (subtilitas explicandi) e a
aplicação (subtilitas applicandi). A expressão “subtilitas” denota que se trata muito
mais de um saber fazer (know how) que de um método propriamente, o que
demandaria não apenas um conhecimento teórico, mas também uma habilidade
especial.
Embora estes três conceitos tenham surgido e se desenvolvido
progressivamente, hoje são vistos como complementares, estando claro que os dois
primeiros são interativos e interdependentes. De acordo com Gadamer: “A
interpretação não é um ato complementar e posterior à compreensão, mas
compreender é sempre interpretar e, consequentemente, a interpretação é a forma
explícita da compreensão”. Embora distinta destes dois elementos, a aplicação é
vista hoje como tão imprescindível à Hermenêutica quanto a interpretação e a
compreensão. Isto adquire significado ainda maior quando se refere ao estudo das
Escrituras onde, muito mais do que um documento a ser dissecado, encontramos
uma mensagem a ser transmitida.
É importante também que se faça a distinção entre Hermenêutica e Exegese:
Enquanto a primeira é uma ciência que, conforme já foi visto, inclui todo o processo
que vai da leitura à aplicação, a exegese consiste na utilização prática de
ferramentas da Hermenêutica para o resgate do mundo original do texto. Segundo
Croatto, “ ...a exegese ...procura identificar o sentido do texto, perquirindo o que há
‘por trás’ ( autor, tradições, figuras literárias anteriores ), enquanto que a
hermenêutica soma a compreensão do sentido que está ‘adiante’ do texto”.5
A partir de então, deve-se examinar a história da interpretação bíblica a partir
dos primórdios do rabinismo. Para tanto, deve-se levar em consideração raízes
históricas fundamentais encontradas em Platão e em Heráclito. O primeiro, cerca
de 428 AC, em Atenas, partiu do conceito de “Mundo das Idéias”, a partir do qual
elaborou o conceito de símbolo e mito. Verdades espirituais eram representadas por
alegorias, figuras muito utilizadas também no texto sagrado. Heráclito de Éfeso,
entre 540 e 480 AC, estabeleceu o conceito de “huponóia” (sentido mais profundo),
cujo objetivo inicial era abordar as obras de Homero, fugindo das implicações
óbvias de se interpretar literalmente o que ele escreveu acerca dos deuses gregos (A
Odisséia; Ilíada). Observa-se então que a preocupação hermenêutica é antiga.
Veremos então como essas raízes históricas encontram eco nos caminhos
percorridos pelas hermenêuticas judaica e cristã.

2- HISTÓRIA DA
INTERPRETAÇÃO BÍBLICA
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2.1. Hermenêutica Entre os Judeus
Provavelmente, um dos primeiros empreendimentos do uso da Hermenêutica
entre os judeus venha da época de Esdras, conforme lido em Ne.8:1-8, onde consta
uma menção especial à leitura da Torah nunca dantes vista entre os judeus. Deve-
se levar em consideração que a extrema preocupação com a leitura da Torah deu-se
após ou a partir do exílio babilônico, por conta do sentimento de culpa nutrido
pelos movimentos deuteronomista e sacerdotal, levando assim à mente da
comunidade que o exílio era o castigo de Javé ao povo desobediente à sua Palavra.
A idéia de reunir pessoas em grupos nesse período culminou mais tarde no projeto
de sinagoga judaica (Ez.3:15;8:1;14:1;20:1).
Júlio Trebolle Barrera levanta alguns fatores que contribuíram para o
nascimento e desenvolvimento da interpretação bíblica no judaísmo a partir das
épocas persa e helenística6. Em primeiro lugar ressalta que o desenvolvimento do
cânon hebraico (Tanach) exigiu que os escritos mais tardios (literaturas sapiencial,
apocalíptica e apócrifa) representassem uma espécie de interpretação e de
reescritura de textos e tradições de épocas anteriores. Aliás, isso já era uma prática
dentro do próprio texto canônico (comparar o Decálogo em Ex.20, Dt.5 e Jr.17:21-
22; ver também a promessa incondicional a Davi que o seu reino será eterno em II
Sm.7:12-16 e I Rs.2:1-9, verificando-se como diferencial o cumprimento da Torah).
Em segundo lugar, para manter vigentes as leis e instituições do povo judeu e para
manter a própria identidade e esperança nas difíceis situações de cada época, era
necessária uma releitura e uma nova compreensão dos velhos textos legais e das
tradições históricas de Israel. Por fim, a necessidade de traduzir os textos sagrados
hebraicos para a língua aramaica falada na Palestina e na diáspora judaica oriental
e também para o grego, falado por muitos judeus na diáspora ocidental, obrigava a
um grande esforço de interpretação ou de atualização dos textos hebraicos.
Continuando nesse processo histórico, no século III AC aparece a Septuaginta
(LXX), primeira tradução escrita do AT, que tem sido também considerada uma
obra de caráter interpretativo do mesmo. Justamente por conta desse aspecto tem
sido objeto de diversas críticas, sendo que as mais freqüentes apontam para a
helenização do texto hebraico. Barrera aponta a tradução de Gn.1:2 “deserto e
vazio”, helenizado para “invisível e desorganizado”.
Já Hans W.Wolff, em sua Antropologia do AT, aponta que a LXX
descaracterizou o sentido de alguns termos designadores da antropologia judaica
tais como “Nephesh” (“goela” traduzida por “alma”) e “Ruach” (“vento”, traduzido por
“espírito”), dando um outro sentido ao leitor moderno que encontra os termos
helenizados nas traduções atuais que seguem o texto da LXX 8. Outro fator é o da
eliminação de antropomorfismos e antropopatismos. Por exemplo, em Dt.32:10,
falando da relação entre Javé e seu povo, o texto hebraico oferece a expressão:
“como a menina dos seus olhos”, enquanto que a versão grega omite o pronome
“seus” (“...como a menina de um olho” ).
Se na LXX a interpretação helenística estava embutida na tradução, nos
Targumim a interpretação se localizava na fronteira entre a tradução e o
comentário. Em estudos introdutórios já foi visto que o Targum evoluiu com a
diminuição do uso do hebraico como língua corrente e a necessidade de se traduzir
o texto nas sinagogas para o dialeto aramaico da região. Acontece que o Targum é
um jogo entre tradução e interpretação que pode acontecer de duas formas:
parafraseando uma tradução literal ou convertendo a própria tradução numa
paráfrase verdadeira. A primeira forma é a mais primitiva e corresponde à fase oral
dos Targumim (tradução-comentário); a segunda corresponde ao período de

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Hermenêutica Bíblica - 6
escritura quando apareceram Targumim famosos tais como o “ONKELOS” e o
“NEOPHYTI”. Abaixo, um exemplo de paráfrase extraído do Targum “NEOPHYTI”:
• Gn.3:15 : “Inimizade colocarei entre ti e a mulher, entre tua prole e a dela, e
ocorrerá que quando os seus filhos guardarem a Torah e colocarem em
prática os mandamentos, eles apontarão, esmagarão a cabeça e te matarão;
quando, porém, abandonarem os mandamentos da Torah, tu apontarás e
ferirás seu calcanhar e o farás adoecer; somente o filho dela terá cura e tu,
serpente, não terás remédio, pois eles estarão prontos a reconciliar-se no
futuro, no dia do Rei Messias”.
Provavelmente, os intérpretes já enfrentavam problemas tais como a
explicação de termos difíceis, a necessidade de eliminação de antropomorfismos, a
atualização de termos relativos a lugares, povos e instituições, entre outras
dificuldades. A isso soma-se o próprio desenvolvimento teológico influenciando a
tradução, como foi visto na paráfrase de Gênesis acima transcrita, onde o fator
determinante é a preocupação com a observância da Torah.
A. Hermenêutica Judaico-helenística. A interpretação utilizada pelos judeus
da diáspora difere bastante daquela utilizada pelos judeus palestinos, cuja
interpretação era centrada na prática da Torah. Para os judeus da diáspora
helenística, o Pentateuco tinha se convertido num corpo legislativo, baseado numa
determinada concepção da divindade mais próxima da razão filosófica do que da
revelação do Sinai. Esta concepção divina é demonstrada através das freqüentes
referências ao Logos e a conceitos tais como causalidade, destino, imortalidade, etc.
Assim os mandamentos bíblicos capacitavam o indivíduo para o triunfo sobre suas
paixões, libertando a alma da escravidão do corpo, podendo assim prosseguir na
busca da vida eterna no reino do imaterial. Por essa razão, alegorizava-se o
Pentateuco, transformando-se o Deus bíblico em razão pura e transcendente,
totalmente espiritual e livre de paixões ( daí a ausência de antropomorfismos e
antropopatismos na LXX).
Um outro fator determinante na hermenêutica judaico-helenística foi a
influência do Gnosticismo. A salvação na história dá lugar à salvação pela gnose,
obtida pela revelação sobrenatural dispensada unicamente aos iniciados. Os sinais
externos e visíveis do judaísmo ( circuncisão, leis alimentares e higiênicas ) dão
lugar à busca pelo conhecimento pleno e verdadeiro. Dois representantes desta
tendência merecem destaque: Fílon de Alexandria e Flávio Josefo.
Fílon, ao mesmo tempo exegeta e filósofo, se caracterizou pelo uso constante
de alegorias para interpretar a Torah. Seus estudos eram centrados na lei de Moisés
e na sabedoria, com uma adaptação da filosofia platônica, apresentando Moisés
mais como um filósofo que como um legislador. Os temas por ele desenvolvidos são
mais antropológicos, cosmológicos e psicológicos. Assim, o templo simboliza o
mundo(DE ESPECIALIBUS LEGIDUS 1:66); as quatro cores das vestimentas do
Sumo Sacerdote são símbolos dos quatro elementos naturais (DE VITA MOSIS
2:88); Adão é o símbolo da inteligência, Eva da sensibilidade, e os animais, das
paixões (LEGUM ALLEGORIA 2:8-9, 24, 35–38). Um outro exemplo de interpretação
alegórica é o texto da escada de Jacó (Gn.28:12), que significa para Fílon o ar
suspenso entre o céu e terra e também a alma situada entre a sensibilidade e o
intelecto. O fundamento filosófico para esta hermenêutica está no pensamento
platônico, que reza que ninguém deve acreditar em algo que seja indigno de Deus.
Assim, quando Fílon encontrava no texto bíblico algo que contrariava sua lógica
recorria à interpretação alegórica para explicar o texto. Segundo Battista Mondim,
Fílon foi o primeiro a procurar uma síntese entre as Escrituras e Platão.

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Flávio Josefo é conhecido como historiador judeu no primeiro século d.C. e,
apesar de receber esta designação, demonstra agir hermeneuticamente com relação
aos textos bíblicos. Dentro de seu projeto de apresentar a história dos judeus ao
público greco-romano a partir de uma retórica helenística, ele resume, sistematiza,
amplia e dramatiza as narrações bíblicas. Por exemplo, no prólogo de
“Antigüidades”, Josefo se aproxima de Fílon (OPIFICIO MUNDI) explicando o fato da
narração sobre a criação preceder o relato da entrega da Torah: a ordem dos relatos
tem por objetivo preparar a obediência daqueles que vão receber a Torah. Da
mesma forma, Flávio Josefo e Fílon interpretam alegoricamente a tríplice divisão do
Tabernáculo: terra, mar e céus.
B. Hermenêutica Rabínica. Para uma compreensão mais adequada do
rabinismo, é necessário conhecer primeiro os conceitos básicos da interpretação
escriturística a partir do período persa:
MIDRASH (comentário, investigação) – é a prática da exposição exegética das
Escrituras, com finalidade homilética e hagádica. É a ponte que liga a escritura à
literatura rabínica. Apresenta-se em três classes: Halakah, Hagadah e Pesher.
HALAKAH (caminhar, guiar) – representa o desenvolvimento da legislação
mosaica específica, contendo leis não existentes no texto canônico (ex: 39 tipos de
trabalho e outras atividades cujo exercício era proibido no sábado). No próprio texto
canônico temos um exemplo de Halakah na proibição do casamento de judeus com
mulheres estrangeiras (Esdras capítulos 8 e 10). A Halakah pretenda governar
todos os âmbitos da vida de um judeu, desde o amanhecer até o anoitecer, desde o
nascimento até a morte. Deu origem ao legalismo judaico.
HAGADAH (narração) – representa a tendência hermenêutica mais livre e
edificante, a qual abrange todas as partes não legalistas da Escritura,
caracterizando-se mais ilustrativa e menos exegética. Por meio de aperfeiçoamento
das narrativas e profecias bíblicas, fomentava-se a fé e a esperança judaicas.
PESHER (interpretação, comentário) – se propõe a atualizar os oráculos
proféticos, ligando eventos ou personagens do passado a semelhantes eventos e
personagens do presente, dando-lhes um sentido de cumprimento.
MISHNAH (repetição) – constitui-se no resultado escrito da evolução da
Halakah, ou seja, gerações de intérpretes identificados com os fariseus desde 150
AC desenvolveram leis orais codificando-as por volta de 180 DC . É a primeira
coleção oficial de doutrina judaica pós bíblica de caráter predominantemente
jurídico, constando de 73 tratados distribuídos em seis divisões, escritos em
hebraico. Evoluiu para a GUEMARA.
GUEMARA (complemento) – Por volta de 550 DC os rabinos elaboraram um
comentário complementar à MISHNAH em aramaico como um tipo de suplemento
em duas versões: a Guemara Palestinense e a Guemara Babilônica, esta última, a
mais completa.
TALMUD (doutrina, ensino) – O Talmud é o resultado final do desenvolvimento
da MISHNAH e da GUEMARA, cujo trabalho ficou pronto por volta do final do
século IV d.C. É toda uma síntese de tradições, leis bíblicas, comentários sobre a
Torah, resultantes do processo hermenêutico iniciado pela MIDRASH.
• As Escolas de Hillel e Shammay – Através do conhecimento prévio da
hermenêutica judaico-helenística dos conceitos básicos da hermenêutica
rabínica, pode-se entender melhor as interpretações de Hillel e Shammay.
Hillel, vindo da Babilônia e de uma cultura helenística no primeiro século
a.C., deu pouco ou quase nenhum valor ao fervor apocalíptico e ao

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messianismo radical de caráter político desenvolvido entre os zelotas.
Assim, todo o seu ensino vinha mais da dedução racional que da tradição,
servindo-se do jogo de pergunta e resposta próprio do método socrático.
Criou sete regras de interpretação, as quais dão ênfase ao estudo exegético
das escrituras, deixando de lado a tradição oral. Dentre essas regras,
destacam-se: uso do contexto, dedução do especial para o geral (implicações
gerais deduzidas de uma passagem), inferência por analogia (palavras que
têm significação idêntica poderão ser tratadas igualmente, mesmo que
estejam ligadas a declarações muito diferentes), uso comparativo de outras
passagens. Percebe-se, então, que Hillel tinha a preocupação sempre nova
de atualizar a Torah para os judeus das diversas situações (diáspora,
palestinos), o que lhe valeu a acusação de modificador da Torah e de criador
de novas leis (Taqqanot). A sua forma de interpretação estava mais afinada
com a Halakah, momento em que convertia usos e costumes próprios do
seu relativismo, conferindo-lhes valor sagrado.
• Shammay, um outro importante rabino, mais fechado e conservador, e
seguidor da tradição, demonstra, em determinados momentos, ser mais
aberto e flexível que Hillel na interpretação da Torah. Não aceitando o
influxo do contexto e das exigências da modernidade sobre o texto bíblico,
demonstra, segundo A. Guttmann (citado por Barrera), a “preocupação em
salvaguardar os princípios fundamentais e não tanto uma intransigência
absoluta na aplicação prática da lei.”11 Por exemplo, na interpretação do
texto de Dt.24:1, sobre o divórcio, o termo “coisa vergonhosa”, com relação
à mulher como motivo fundamental para o divórcio significava para Hillel
qualquer coisa que desagradasse ao marido (infidelidade, uma palavra mal
dirigida, o encontro de uma mulher mais agradável, etc.) enquanto que para
Shammay representava apenas a infidelidade conjugal.
• Apesar das grandes discussões e acusações, o debate rabínico estava
sempre inacabado e aberto a reconsiderações, correspondendo mais ao
estilo dialógico, o que permitia que opiniões contrárias pudessem ser
consideradas igualmente verdadeiras e dignas de inspiração. Talvez seja
este o motivo por que a teologia judaica nunca tenha chegado a assumir o
caráter de dogma, a não ser em momentos em que se viu na tarefa de
defender-se de algumas ameaças tais como o Gnosticismo, momento em
que fez afirmações sobre o monoteísmo e sobre a bondade da criação.
• Judeus Caraítas – Caraítas ou “beni mikra” (filhos da leitura), oriundos do
século IX d.C., cuja seita representa uma reação contra a influência do
maometismo no rabinismo judeu e na tradição, defendendo a escritura
como única autoridade em matéria de fé, aplicando nos seus estudos
métodos de investigação gramatical e lexicográfica, chegando à produção de
comentários escritos. Graças a isso, foram apelidados de “os protestantes
dentre os judeus”. A palavra que os designa ( caraítas ) vem do nome da
cidade onde se originou o movimento: Qayrawan, no Egito. Do ponto de
vista hermenêutico são eles os que mais se aproximam dos essênios,
defendendo o princípio da primazia da lei escrita, a ênfase na esperança
messiânico-apocalíptica, e determinadas práticas, tais como: a celebração
da festa de Pentecostes, a monogamia e rituais de sepultamento dentro da
liturgia de Qumram. Provavelmente os caraítas descendem de uma ala
conservadora dos saduceus, os zadoquitas. Estudos e descobertas
arqueológicas recentes mostram que os zadoquitas também habitaram o
mosteiro de Qumram. A reação dos rabinos ao movimento caraíta culminou
na conclusão do texto massorético.
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Hermenêutica Bíblica - 9
• Judeus Cabalistas – A palavra Qabbalah significa recepção e designa o
conjunto de doutrinas judaicas de caráter esotérico, místico e mágico. O
movimento teve sua origem na Espanha e na Alemanha por volta do século
XIII, como uma reação contra a filosofia racionalista. Os cabalistas
conferiam valor sobrenatural a cada palavra, letra ou mesmo sinal do texto
massorético, fazendo combinações numéricas, superposições e
substituições de letras e sinais, na busca de sentidos ocultos.

2.2. Hermenêutica Cristã


Como ponto de partida para o estudo da hermenêutica cristã, deve-se levar em
consideração que o cânon do AT ainda não se encontrava cristalizado quando os
livros do NT estavam sendo escritos. De acordo com Barrera, os primeiros cristãos
utilizaram os princípios e métodos da exegese judaica com uma única diferença: a
leitura cristológica do AT. A seguir, algumas das características dessa leitura:
A. Seleção temática de passagens do AT. Para desenvolver o tema “Cristo-
Pedra” (I Pd 2:6; Ef 2:20; Mt 21:42; At 4:11), a igreja editou os textos de Is 28:16; Sl
118:22 e Is 8:14. Essa técnica é denominada de “testimonia”. Essa prática não foi
exclusiva da igreja cristã. Em Qumram há um manuscrito repleto desta prática
(4QTest); um destes testimonia edita as passagens de Dt 5:28s; 18:18s; Nm 24:15s
e Dt 33:8-11:
“Um profeta suscitarei para eles do meio de seus irmãos, como a ti, e porei
minhas palavras na sua boca. E ele lhes comunicará tudo o que eu lhe mandar. Eu
mesmo pedirei contas a quem não escutar as palavras que ele pronunciar em meu
nome. E pronunciou sua mensagem e disse: Oráculo de Balaão, filho de Peor,
oráculo do homem de olhar penetrante, oráculo de quem ouve as palavras de Deus
e conhece os pensamentos do altíssimo, que vê as visões do poderoso, cai em êxtase
e tem os olhos abertos. Vejo-a mas não é agora, contemplo mas não está perto: uma
estrela se levanta de Jacó e um cetro se eleva de Israel, quebra as têmporas de
Moab e o crânio de todos os filhos de Set.”
B. Perspectiva Escatológica. A redenção de Deus realiza-se na história, donde
vem a idéia de que a geração presente se encontra às portas da consumação final
dessa história de salvação iniciada e concluída por Jesus. Essa divisão da história
(sem o cristocentrismo) é compartilhada por cristãos e judeus Qumramitas.
C. Leitura Tipológica. Há a compreensão dos elementos do AT como tipos dos
elementos que se apresentam no novo pacto. Por exemplo, a criação e a salvação (o
segundo Adão) e a aliança através do novo êxodo. Um outro bom exemplo é a leitura
que o livro de Hebreus faz do AT.
D. Princípio da Personalidade Corporativa (Corporate Personality). Essa
realidade na comunidade de israelitas no AT é transposta para a igreja cristã na
sua auto-interpretação como “corpo de Cristo”(Rm.15; I Cor.12:12-31). Os estudos
na área de Antropologia do AT feitos por Weler Robinson no início do Século XX
mostram com mais detalhes que no AT o indivíduo inteiro está na comunidade e a
comunidade inteira está no indivíduo, ou seja uma figura individual pode englobar
todas que com ela se relacionam. Essa concepção permite a Paulo falar da
existência de todos os homens “em Adão”, ou dos israelitas “em Abraão”. .
E. Jesus e o AT. A primeira coisa a ser trabalhada nesta matéria é o
entendimento da escolha textual pela qual Jesus citou o AT visto que em sua época
eram conhecidos o texto grego da LXX e o texto hebraico palestinense. Na maior
parte das vezes o texto que está nos lábios de Jesus corresponde ao da LXX
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Hermenêutica Bíblica - 10
(Mt.15:8-9; Mc.7:6-7 comparado a Is.29:13); outras vezes corresponde ao texto
hebraico (Mt.11:10 e Lc.7:27 comparado a Ml.3:1 e Is.40:3); outras vezes não
corresponde a qualquer texto conhecido (Lc.4:18-19 comparado a Is.61:1-2, no qual
omite e acrescenta termos). Esse tipo de ocorrência levantou a atenção para uma
questão há muito discutida mas que conta com poucas evidências. Como se sabe,
Jesus, os discípulos e a Igreja palestinense falavam aramaico, mas os evangelhos
foram escritos em grego. A existência de inúmeros aramaísmos no texto grego é um
forte indício de que um texto primitivo aramaico contendo os “Logia” de Jesus teria
sido traduzido para o grego, utilizando assim preferencialmente passagens do AT
oriundas do texto da LXX. Entretanto, é muito provável também que o próprio
Jesus tenha modificado ou selecionado partes do texto (conforme visto em
Lc.4:18s), o que poderia explicar a falta de relação com a LXX ou com o texto
hebraico.
No que diz respeito à sua visão do AT, Jesus considerou as escrituras
inspiradas, sem no entanto aceitar a idéia do ditado verbal, conforme fica claro em
Mc. 12:36: “Davi mesmo disse no Espírito Santo...” ( as palavras são de Davi, ainda
que inspiradas pelo Espírito Santo ). Além disso, deu ao texto diferentes graus de
valorização, na medida em que ajuizou a permanência do casamento, estabelecida
em Gn. 2:24, superior à lei, permitindo o divórcio (Dt. 24: 1- 4), conforme Mateus
19.
A partir desta compreensão de sua relação com o AT, é possível estabelecer a
forma da hermenêutica de Jesus. Houve momentos em que Jesus modificou o texto
para que a profecia tivesse sentido em sua pessoa. Por exemplo, comparar Mt.26:31
e Mc.14:27 com Zc.13:7; em outros momentos Jesus utilizou a forma “Pesher”
(relação de um texto do AT com acontecimentos ou personagens da época
escatológica que o intérprete crê estar vivendo) conforme formulação em Lc.4:21.
Nas questões de ordem moral e religiosa Jesus foi categórico ao usar a forma literal
da letra do texto (como em Mt.15:4 e Mc.7:10) mas também, em outros momentos,
utilizou a “Midrash” (a expressão “quanto mais” em Mt.7:11; Lc.11:13; típica de
Hillel).
Jesus criticou duramente a tradição (conforme visto nos “logia” – sermão do
monte) mas, em outros momentos, não hesitou em usar ensinamentos do
rabinismo que viriam a constar no Talmud , aplicando-os dentro de sua visão
“antropo-teocêntrica” , conforme Mt. 7:12 . Essa maneira flexível de Jesus usar as
Escrituras permite-lhe também, ao mexer com a tradição mais antiga, construir
uma seqüência lógica de argumentos a partir da própria história judaica para
apoiar o seu ensinamento, como em Mt. 12:1-8, na questão do “Sábado”.
Jesus estabelece ainda, no sermão da montanha, que suas leis iam além das
leis do AT. Enquanto que os fariseus e escribas interpretavam as leis como
proibitivas de ações externas, Jesus buscava um sentido mais profundo, que
refletisse as atitudes do coração. Por exemplo, não bastava retrair-se do adultério
ou do crime; o homem deve retrair-se da cobiça e da raiva.
De acordo com Viertel, “Jesus usou algumas formas de expressão dos rabinos,
mas o conteúdo dos seus ensinos era diferente. Ele engrandeceu a presença do
Reino de Deus em vez da lei. Ele identificou-se como o cumprimento da profecia ao
invés de apontar a vinda do Messias. Ele interpretou o Velho Testamento à luz de
uma nova era que raiava, em vez de enfatizar a interpretação de sentenças,
cláusulas, frases e até mesmo palavras simples, independentemente do contexto ou
da ocasião histórica”.13 O fundamental nesse estudo é ver que se a Igreja cristã
primitiva construiu uma hermenêutica cristocêntrica, esta nasceu também graças
ao uso que o próprio Jesus fez das Escrituras.

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Hermenêutica Bíblica - 11
F. Paulo como Intérprete. Dentro do estudo da Hermenêutica paulina vale
ressaltar algumas de suas características:
• Paulo usa com muita freqüência o texto do AT quando escreve para
comunidades de origem judaica (Rm., Gálatas e I/II Co.), mas não o utiliza
quando escreve a comunidades com predominância gentílica (Colossenses,
Filipenses e I/II Tessalonicenses), o que torna Paulo um exegeta por
excelência. Fato mais interessante é que das 93 citações que faz do texto do
AT, modifica o texto em 52 casos (ex.: comparar Rm.9:17 com Ex.9:16).
Seria, como dizem alguns14, uma evidência de que Paulo citava textos de
memória, ou que era influenciado pela sua tradição rabínico-midráxica ?
• Como Hillel, procurou adaptar o texto bíblico aos problemas de seu tempo,
contextualizando-o (comparar Rm.9:25 com Os.2:21-23).
• Paulo busca elementos de diversas correntes religiosas e filosóficas do seu
tempo, dialogando com as mesmas e dando-lhes roupagem cristocêntrica.
Abaixo, eis algumas dessas correntes:
G. Essênios. Todos os homens pecaram (Rm.3:23 comparado a I Qh.1:22 ou a
Ec.7:20). O texto de I Qh.1:22 é parte da coleção de Hinos ou hodayôt encontrados
nas descobertas do Mar Morto15. O homem não pode obter o perdão de Deus pelas
obras ou pelo cumprimento da Torah (Gl.2:16 comparado a I Qh.4:30).
H. Rabinismo. Em I Cor.10:1-4, ao relacionar o batismo cristão com a
passagem do Mar Vermelho, Paulo alude a textos rabínicos da Gemara Babilônica
que justificam o batismo de prosélitos à luz do Êxodo.
I. Fílon. Tal qual Fílon, Paulo apela para a retórica grega (At.19:8; 28:23) e
moderadamente para o uso alegórico (I Cor.9:9-10; Gl.4:21-31).
J. Doutrina Cristã. Sem dúvidas que um dos méritos de Paulo está no fato que
ele é um dos responsáveis pela sistematização da doutrina cristã, a partir do que
outros, como Agostinho, fundamentam suas interpretações, as quais até hoje são
tidas pela igreja cristã (tanto católica quanto protestante) como inspiradas, visto
que muito daquilo que se tem como “doutrina bíblica” passa pelo filtro patrístico.
Paulo lançou mão da tipologia para estabelecer a relação entre o AT e Cristo (
o servo sofredor, de Isaías 53, representa Cristo; as promessas de Deus a Abraão e
seus descendentes tornaram-se as promessas de Deus aos crentes em Cristo, que
são o novo Israel ). Em outro texto, Adão é considerado como um “ tipo de um que
devia vir ” ( Rm. 5:14 ). Sua interpretação do AT é cristocêntrica: Cristo é o
cumprimento do AT.
Paulo utiliza a alegoria com um aspecto distintivo em relação aos gregos e
rabinos. Enquanto aqueles buscavam a alegoria ou para explicar mitos sobre os
deuses ou para dar sentido a algo que contraria sua lógica ( concepção do “indigno
de Deus” em Platão ), e estes usavam as alegorias na busca dos significados
ocultos, Paulo encontra nos relatos do A.T. fatos que, sem perder sua veracidade
histórica, possuem um sentido espiritual que será encontrado por meio da alegoria (
exemplo disso é a interpretação da história de Agar e Sara, aplicada a Israel escravo
e livre, em Gl. 4:22-26 ).
Em Paulo temos o fundamento do conceito de AT , embora a concepção
canônica de A . T. só seja estabelecida após a consolidação dos 27 livros do NT. Isto
fica evidente em sua declaração de que as escrituras permaneceram encobertas até
que o véu foi removido por Cristo ( II Cor. 3: 13 – 15 ).

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Hermenêutica Bíblica - 12
2.3. Período Patrístico
Após o período apostólico, entram em cena os herdeiros e continuadores da
tradição apostólica, conhecidos historicamente como os pais da Igreja. Estes se
notabilizaram a partir do 2º século da era cristã.
A. A Hermenêutica no 2º Século. Este período caracterizou-se, na história da
Igreja, por um grande conflito: a falta de consenso quanto à aceitação do AT como
um livro cristão. Por um lado, havia o desenvolvimento da cultura helenizada como
forma e expressão legítima da fé cristã e até mesmo a rejeição do AT ( como se vê no
pensamento de Marcião, em 144 d.C.). Por outro lado, a não interpretação
cristológica do texto vetero-testamentário, sendo ele valorizado como escritura
única da Igreja, como se vê no ebionismo, que leva a Igreja à assimilação das
práticas legalistas do judaísmo. Provavelmente nesta época, surgiu o último texto
do NT, a 2ª Epístola de Pedro. Nele, é interessante notar a inclusão das cartas de
Paulo com escritura ( 3:16 ), o que pode ter tido a finalidade de enfocar a relação
entre o Antigo e o NT ( tão presente nos escritos paulinos ). Embora o conflito
judaico-cristão remonte aos primeiros tempos da Igreja ( At 15; Rm 14; Gálatas ), é
no segundo século e, principalmente a partir de Marcião, que ganha dimensão de
debate sistematizado e confronto escrito. Quando Marcião rejeita o AT, ele o faz
porque sua interpretação do texto é literal. Da mesma forma, Clemente Romano,
nem chega a utilizar a interpretação tipológica, como fazia o apóstolo Paulo,
optando também pelo literalismo. Esta interpretação literal do AT torna as leis de
Israel vazias e sem aplicação para os tempos modernos.
Esta rejeição do AT também foi forte entre os gnósticos. Valentino aplica a
passagem de Jo. 10:8 aos profetas: “ Todos os que vieram antes de mim eram
ladrões e assaltantes”; Ptolomeu, mais moderado, divide o Pentateuco em três
partes, quanto a sua origem: a primeira parte devida a Deus ( o decálogo ), a
segunda atribuída a Moisés ( as leis do Deuteronômio ) e a última atribuída aos
anciãos ( as leis ritualísticas, de pureza e da guerra santa ). Em sua carta a Flora,
condena essas últimas, as quais conduzem o homem ao mal e, reduz o valor das
leis ritualísticas ao tempo para o qual foram escritas. Quanto aos nomes de Deus
encontrados no AT ( Elohim, El Shaddai, Javé Tsevaoth ), os gnósticos os
interpretam como referindo-se a deuses distintos, subordinados ao Deus Pai
desconhecido ( o criador ).
Diante das tendências marcionitas e gnósticas, a alternativa para a Igreja
cristã quanto à utilização do AT foi a leitura tipológica. Para Justino, o mártir ( em
DIÁLOGO COM TRIFON e APOLOGIAS ), em dura crítica a Marcião, a lei é “ tipos ”
da realidade futura de Cristo e da igreja. Já a carta de Barnabé é rica em alegorias
do AT: os sete dias da criação simbolizam os seis mil anos de duração do mundo,
sendo o sábado símbolo do descanso escatológico. O autor dessa epístola ensina
que o judaísmo cumpriu a sua missão e que a igreja é herdeira de suas
prerrogativas e livros sagrados. Também emprega a GEMATRIA, método no qual as
letras das palavras eram convertidas em valores numéricos para uma aplicação
escatológica.
Outro pai apostólico, Irineu de Lyon, no final do 2º século, assume um tipo de
“exegese de situação” contra o gnosticismo. Se, diante dos judeus, Irineu tende a
ser literalista na interpretação cristológica das profecias e alegórico na interpretação
da lei e história de Israel, diante dos gnósticos ele é alegórico na interpretação
cristológica do AT para poder uni-lo ao NT e tornar Cristo relevante.
Concluindo, pode-se afirmar que a grande questão hermenêutica do
cristianismo no 2º século dizia respeito à aceitação do A T e mesmo à sua
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Hermenêutica Bíblica - 13
incorporação ao cânon, questão que voltou a ecoar muitas vezes ao longo da
história do cristianismo. A aceitação do AT pelos cristãos não teve um propósito
meramente apologético (apontar provas a favor do NT) mas resultou da visão do AT
como canal de interpretação da morte e ressurreição de Cristo. De fato, a Igreja se
apropriou do AT, interpretando-o como promessa e profecia do Novo.
É interessante perceber o paralelo existente entre a concepção judaica da
relação Torah-Profetas e a visão cristã da relação Antigo-NTs. A idéia rabínica
concebia a Escritura como Lei e os profetas como intérpretes da lei (razão pela qual
Jesus justifica sua atitude liberal em relação ao sábado citando a postura de Davi
em I Sm 21:7 ). Semelhantemente, os cristãos vêem o NT como interpretação do
Antigo. Nota-se um indício desta percepção até mesmo na ordem dos livros no AT:
enquanto na Bíblia judaica a Torah é seguida dos profetas (NeVI’IM) e escritos
(KETUBHIM), na Bíblia cristã, os profetas vêm depois da Torah e dos Escritos,
numa ratificação de sua relação com o NT, onde se verifica seu cumprimento.
Esta visão remonta ao início do cristianismo, cuja hermenêutica já se
caracterizava por este elemento diferencial (veja-se a hermenêutica de Jesus e de
Paulo). É, porém, no segundo século, com o desenvolvimento de alguns
questionamentos e dentro do processo de definição do cânon, que estes conceitos
voltam à tona. Outra idéia presente na visão cristã do A T é sua interpretação
tipológica, a partir da visão do N T como cumprimento do A T.
B. A Hermenêutica no 3º Século. Até o que se tem visto até agora, o problema
hermenêutico do segundo século tem sido a leitura do AT e sua interpretação como
livro cristão, problema esse que a Igreja resolveu através da apropriação das
escrituras judaicas e de suas profecias. Entretanto, a partir do Século III levanta-se
uma outra questão que é o problema hermenêutico da interpretação bíblica em si
mesma caracterizada na luta entre o literalismo e o simbolismo e notabilizada
através da escola alexandrina, com Clemente e Orígenes, os quais exaltaram a
postura hermenêutica de Fílon, no extremo uso da alegoria, em função do conceito
platônico do “indigno de Deus”.
O primeiro a enfatizar essa linha hermenêutica foi Clemente de Alexandria
(150 – 215 d.C.). Para ele existe um sentido oculto de face cristológica em cada
palavra ou até mesmo cada sinal gráfico do texto sagrado. É essa linguagem
misteriosa que precisa ser decodificada através da alegoria. Compreende,
entretanto, que as escrituras têm diversos sentidos: literal e teológico, profético e
tipológico, filosófico e psicológico e, finalmente, um sentido místico. Como exemplo
do sentido místico, Clemente dizia que a figura da mulher de Lot era símbolo do
apego às coisas terrenas que impediam a alma de reconhecer a verdade16. Insistia
ainda que a alegoria revelava a verdade ao verdadeiro discípulo, mas a escondia de
outros, pois o objetivo de Deus era ocultar a verdade17.
Um outro pai eclesiástico da época, Orígenes, se notabilizou por ser o mais
erudito de seu tempo. Valeu-se do princípio da racionalidade para interpretar
passagens bíblicas que, muitas vezes parecem inacreditáveis, como por exemplo as
narrativas de Gênesis (onde existem muitos antropomorfismos e relatos míticos da
criação), as quais eram interpretadas por muitos de forma literal. Para Orígenes
esses eram os mais simples, que não tinham a capacidade intelectual de
compreender o sentido espiritual escondido no texto bíblico através de suas
metáforas, símbolos e alegorias. Orígenes crê, no entanto, que existem passagens
das escrituras com características literais mas que todas as passagens das
escrituras possuem uma vertente espiritual e que a única maneira de se reconhecer
o mistério escondido ou a mensagem espiritual é através do uso do método
alegórico de interpretação. Orígenes adaptou a tricotomia platônica à interpretação

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Hermenêutica Bíblica - 14
das escrituras, seguindo os passos de Fílon e de Clemente, através da seguinte
divisão:
• Sentido Corpóreo (somatikon) – carne – interpretação literal – para
principiantes.
• Sentido Psíquico (psiquikon) – alma – para os que já fizeram algum
progresso.
• Sentido Espiritual (pneumatikon)– espírito – interpretação alegórica – para
os perfeitos, os que são espirituais.
O valor de Orígenes para o seu tempo está no fato que ele elevou a fé cristã
ante as críticas externas, as quais enfatizavam a imoralidade do AT bem como a
falta de uma explicação lógica e racional da fé em Cristo. Pode-se dizer que ele
conseguiu o respeito de não cristãos do seu tempo.
C. A Reação do Literalismo-Histórico do Século IV. Se em Alexandria houve
uma grande ênfase da interpretação alegórica das escrituras, em Antioquia, a partir
do quarto século houve o rechaço desta tendência e a valorização gramatical e
histórica com o retorno da interpretação literal. Essa maneira dentro da igreja síria
de interpretar o texto foi grandemente influenciada por exegetas judeus locais e teve
como principais expoentes Deodoro de Tarso, Teodoro de Mopsuéstia e João
Crisóstomo. Teodoro, por exemplo, excluiu do cânon livros tais como Jó, Crônicas,
Esdras, Neemias e Cânticos, por não encontrar neles elementos proféticos,
messiânicos ou históricos. Alguns dos princípios defendidos pela escola antioquena
foram os seguintes:
• Abordagem Gramático-Histórica, com ênfase na literalidade textual;
ressaltavam a historicidade da narrativa e procuravam, em seguida,
descobrir o sentido teológico da mesma. Assim, Adão era realmente Adão e
o paraíso era realmente o paraíso, contrariando assim o conceito platônico
do “Indigno de Deus”. Contra os alexandrinos, Teodoro pergunta: “Desde
que não há acontecimentos reais, visto que Adão não foi realmente
desobediente, como então entrou a morte no mundo e qual o significado de
nossa salvação?”
• Com alguma cautela defendiam que algumas passagens podem conter um
sentido metafórico, típico, mas de forma diferente do pensamento
alexandrino. Por exemplo, em Gl. 4:21-31 o apóstolo Paulo usa o termo
“alegoria” para falar dos dois pactos simbolizados em Sara e Agar. No
entendimento dos antioquenos, apesar de Paulo usar o termo, a sua forma
de interpretar foi diferente, ou seja, ele não esvaziou o sentido histórico de
Sara e de Agar, mas fez analogias e pontes de ligação com o seu tempo.
• Conceito de “theoria” (“observar”, “contemplar”) em oposição à “alegoria”.
Nesse conceito estuda-se o estado mental dos profetas quando recebiam
suas visões. Para os antioquenos, os profetas, ao receberem suas visões,
não viam o futuro, mas o presente, sendo que essa visão era um canal
condutor de uma tipologia futura ou ainda de acontecimentos messiânicos.
O diferencial aqui é que essa tipologia é considerada a partir do profeta e
não de quem o interpreta.
• Buscavam determinar a intenção do autor do texto, pela atenção ao sentido
histórico das palavras em seu contexto original.
No final do quinto século, a escola antioquena entrou em decadência, depois
de perseguições e contradições internas, como por exemplo, Nestor, considerado
herege pela sua doutrina das duas naturezas de Cristo. Entretanto, ainda hoje
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Hermenêutica Bíblica - 15
percebe-se uma influência dos princípios da escola de Antioquia nos modelos
ortodoxos da interpretação bíblica na igreja cristã.

2.4. Os Pais Latinos


A Hermenêutica nos Séculos IV e V d.C. Se do lado oriental a hermenêutica foi
direcionada para a vertente especulativa, na igreja ocidental a preocupação
hermenêutica atingiu questões relacionadas à prática diária dos cristãos,
envolvendo a ética e estabelecendo a partir de então o cânon como regra de fé
(“regula fidei”). Essa foi a principal preocupação dos pais latinos nos Séculos IV e V
d.C., assim chamados por escreverem em latim. Os mais influentes teólogos dessa
tendência foram Jerônimo (347-420 d.C. - Palestina), Ticônio (400 d.C. – norte da
África) e Agostinho (354-430 d.C. - Hiponna, África). Torna-se importante
estabelecer uma diferença entre os dois mais notáveis: Jerônimo era conhecedor
das línguas bíblicas, o que lhe permitiu ser mais exegeta, produzindo trabalhos e
comentários com notas históricas e lingüísticas, culminando na formação do seu
mais famoso trabalho, a Vulgata. Agostinho, ao contrário, não conhecia o hebraico
e entendia o grego com dificuldades. Notabilizou-se, não como exegeta, mas como
sistematizador de doutrinas cristãs. Abaixo, características fundamentais da
hermenêutica dos pais latinos:
• Usavam com mais freqüência a interpretação literal. Jerônimo, no início de
sua vida eclesiológica, adotava prioritariamente a postura alegórica
alexandrina, mas influenciado por rabinos palestinenses, converteu-se ao
método literal. Agostinho, em sua interpretação do Gênesis busca uma
linha histórico-literal.
• Com base nessa idéia os pais latinos preocuparam-se com o contexto
histórico da passagem. O ambiente do autor original com seus traços
lingüisticos e culturais devia ser levado em consideração pelo intérprete,
antes de poder aplicar o texto às questões diárias de sua época.
• Apesar da ênfase na interpretação literal também alegorizavam o AT. Aqui
há uma semelhança com os antioquenos na medida em que consideravam a
existência de um sentido oculto na passagem sem desmerecer sua
historicidade, e uma outra semelhança com os alexandrinos, no momento
em que se alegorizava quando a passagem parecia contrária a Deus ou à
moral cristã (dessa forma procedeu Agostinho em seu comentário ao pedido
de Deus para Abraão sacrificar Isac em Gn.22). Esse é o reflexo da
convicção antiga que o NT está oculto no AT e que este é iluminado por
aquele.
• A preocupação com questões eclesiológicas de caráter jurídico ou prático
numa época em que a igreja cristã estava se estabelecendo como religião
oficial do império romano. A tendência aqui é a de “fechar” uma
interpretação única como sendo oficial, baseada inclusive na tradição de
intérpretes anteriores que pensavam da mesma forma que eles (isso foi
muito comum em Jerônimo). Ora, a partir dessa época, o elemento
dogmático começa a desenvolver-se na igreja. Agostinho deu grande
contribuição com a sistematização de doutrinas, tais como a da Trindade,
que até hoje são assimiladas pela cristandade tanto católica quanto
protestante, com atribuição de valor inspirativo.
Ora, do que se pode perceber das tendências hermenêuticas dos cristãos do
período patrístico, extrai-se o grande conflito entre o literal e o simbólico, apesar de
que cada extremo sempre permitia de alguma forma a possibilidade para outra
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Hermenêutica Bíblica - 16
interpretação ainda que de forma diminuta. A apropriação do AT pelos cristãos
trouxe consigo grandes questões hermenêuticas que se arrastaram nos séculos
seguintes. Aliás, o apóstolo Paulo já falava do problema da oposição entre a “letra e
o espírito”, em Gl.3:6, problema existente ainda nos dias hodiernos.

2.5. Período Medieval


A partir do trabalho hermenêutico de Agostinho, iniciou-se um novo período,
marcado pela ortodoxia e pelo pouco desenvolvimento da hermenêutica. Prevaleceu,
neste período, a concepção de que a interpretação da Bíblia teria que se adaptar à
tradição eclesiástica, o que levou a uma ênfase à interpretação alegórica, ao aspecto
prático e à fidelidade aos dogmas da igreja. Isto limitou até mesmo a produção
literária de textos interpretativos da Bíblia além de impedir o surgimento de
qualquer contribuição nova; o trabalho dos intérpretes consistia em repetir os
dogmas já estabelecidos pela igreja. Este dogmatismo chegou ao extremo de
estabelecer como única tradução considerável o texto da Vulgata.
Depois de um período de quase nenhuma produção nesta área, o final do
século XI e o século XII já apresentam o início de certo entusiasmo quanto ao
estudo das Escrituras. Nesta fase, diversos comentários surgiram que, embora de
pouca inovação teológica, representaram uma boa contribuição ao estudo da Bíblia.
É, porém, a partir do século XIII, com o escolasticismo, que significativas
construções teológicas começam a surgir. Vale a pena lembrar que o movimento
conhecido como escolástica deriva seu nome do surgimento de escolas de teologia
nas catedrais, onde se estudava a Bíblia mais academicamente.
As produções deste período apresentavam como características: a riqueza de
detalhes, a pouca profundidade nos aspectos histórico e filológico, e um grande
valor doutrinal, como reflexo de seu direcionamento. A Bíblia era considerada um
livro cheio de mistérios, só podendo ser entendida misticamente. Essa orientação
para a leitura espiritual da Bíblia conduz para o fato de que a exegese não é tanto
uma investigação sobre o significado de palavras, senão a busca de um sentido
para a vida. Por isso, a leitura medieval atualiza imediatamente o texto em estudo,
passando a seu valor dogmático sem considerar, necessariamente, seu contexto
original, ou o sentido que dele se depreenderia. Uma outra tendência dessa
hermenêutica é considerar que se uma passagem do NT interpretava um texto do
AT como prefiguração de Cristo, apenas este sentido era considerado verdadeiro,
rejeitando-se a idéia original do texto ( por exemplo, o texto de Oséias 11:1, aplicado
em Mt. 2:15 em relação a Cristo, é visto na interpretação dogmática medieval sem
que se considere a possibilidade de o profeta estar originalmente se referindo ao
povo de Israel ). Preservavam, também, a concepção agostiniana dos quatro
sentidos da Bíblia: literal ( histórico ), alegórico ( cristológico ), tropológico ( moral ) e
anagógico (escatológico ).
Entre os expoentes do período escolástico, vale a pena destacar o trabalho de
Tomás de Aquino, cujos comentários nasceram de seu trabalho como mestre. Em
seu trabalho exegético, admite a existência de apenas dois sentidos no texto bíblico:
o literal, ou histórico, e o espiritual, ou alegórico. Quanto à questão da
multiplicidade do sentido literal, já presente em Agostinho, Tomás de Aquino parece
rejeitar essa possibilidade, admitindo muito mais facilmente a multiplicidade do
sentido espiritual. De acordo com seu modo de ver, o texto do AT já prefigurava
Cristo, sendo, portanto a interpretação alegórica a única forma de encontrar o
sentido desejado, uma vez que na concepção original do texto já estava presente o
sentido tipológico. Esta preocupação com a interpretação alegórica não impediu, no

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Hermenêutica Bíblica - 17
entanto, sua preocupação com a busca do sentido literal como parte do processo de
interpretação.
No período da Idade Média houve, portanto, algum avanço quanto à
preocupação com o estudo literal-histórico, embora a limitação imposta pelo
dogmatismo e o interesse meramente doutrinal abrissem pouco espaço ao avanço
teológico. Houve, inclusive, uma significativa contribuição dos filólogos,
principalmente nos séculos XIII e XIV. Esta preocupação, no entanto, começou a
decair, lentamente, no final do século XV, quando a interpretação místico-alegórica
levou a um descuido do trabalho exegético. Somente no século XVI, a exegese
propriamente dita, começa a ganhar um novo espaço.

2.6. Período Renascentista


Depois do longo período medieval, onde a reflexão hermenêutica foi tolhida e
limitada para dar lugar ao dogma e ao monopólio da igreja, os séculos XV e XVI
assistem ao retorno da preocupação com os textos originais própria do espírito
renascentista. Este movimento, de caráter humanista, originou-se na Itália e
estendeu-se por toda a Europa, caracterizando-se principalmente por uma volta aos
clássicos da antigüidade greco-romana e, do ponto de vista religioso, por uma volta
à patrística. Este tipo de postura trouxe de partida três conseqüências rápidas:
primeiro, a preocupação com os textos hebraico e grego provocou o surgimento da
crítica textual, notabilizando-se aí Johan Reuchlin ( aprox. 1518 ), com a
publicação da primeira gramática e dicionário da língua hebraica, e Erasmo de
Roterdã ( aprox. 1530 ), com a publicação do NT grego com notas explicativas;
segundo, a diluição dos múltiplos sentidos da Bíblia em um único sentido, o
gramático histórico; terceiro, as traduções antigas, como a LXX e a Vulgata, têm o
monopólio ameaçado pelo surgimento de novas versões, mais relacionadas aos
textos originais.
A nova tendência da crítica textual representa, na verdade, uma influência do
renascimento cultural sobre a hermenêutica bíblica. Aqui a idéia é que os escritores
bíblicos poderiam ser lidos da mesma forma que qualquer outra obra de caráter
profano, sendo submetidos aos métodos críticos como defendia Hugo de Groot,
calvinista holandês ( 1583 – 1645 ). Baruc Spinoza ( 1632 – 1677 ) já negava a
autoria mosaica do pentateuco e falava em compilação, interpolação e erros de
cópia. Esta leitura da Bíblia, que mais tarde vai influenciar a hermenêutica
moderna, foi rejeitada pelos reformadores graças à sua ênfase na infalibilidade das
Escrituras.
A. Hermenêutica da Reforma. É neste momento e contexto histórico que
desponta o trabalho hermenêutico dos reformadores. Notabilizaram-se, nesse
aspecto, Melanchton, Lutero e Calvino, este último considerado o maior exegeta da
Reforma, principalmente em função de sua coerência entre as convicções
doutrinárias e a postura prática. Embora apresentassem algumas diferenças
quanto à interpretação de determinados textos, sua hermenêutica trazia alguns
princípios comuns:
• A interpretação das Escrituras não deve ser monopólio da igreja e seu
colegiado Em lugar disso, é estabelecido o princípio de que a Bíblia é
interpretada pela própria Bíblia; Lutero declara que “ se são obscuras num
lugar são claras em outros” . Isto indica a tentativa de harmonização de
passagens difíceis.

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Hermenêutica Bíblica - 18
• As Escrituras são inspiradas e, por isso, infalíveis; concepção que reforçou
a tese da inerrância do texto bíblico. Por isso, não podem receber o
tratamento crítico como se fossem um livro qualquer sobre religião.
• Se as Escrituras são inspiradas, para entendê-las o homem não pode
prescindir da iluminação do Espírito Santo por causa do estado de cegueira
espiritual resultante da queda.
• Os reformadores reconhecem também ao lado da natureza divina das
Escrituras uma face humana, a qual obriga o indivíduo a estudá-las e
pesquisá-las, principalmente no que diz respeito a alguns textos obscuros
que necessitam de uma maior atenção para serem interpretados. Mais uma
vez, alude-se aqui ao princípio de que a Bíblia é interpretada pela própria
Bíblia, o que requer do exegeta um conhecimento mais amplo e profundo de
todo o texto.
• O estudo das Escrituras remete o indivíduo à procura da intenção do autor
original, o que significava geralmente o sentido literal da passagem, a
menos que o próprio autor indicasse o contrário. Essa tendência indica que
o método hermenêutico da Reforma dá ênfase ao sentido literal, gramático-
histórico, o que não significa que não existam passagens com sentido
figurado. Entretanto para uma passagem requerer uma interpretação
simbólica ela deve ter um influxo do seu próprio contexto, ou de um outro
texto da Bíblia que indique claramente esse sentido.
O princípio da interpretação da escritura pela própria Escritura e a
compreensão da necessidade de harmonização de passagens, levaram Lutero,
inclusive a questionar o cânon estabelecido, ao considerar a carta de Tiago como
“epístola de palha”, não merecendo seu lugar na Bíblia, por apresentar uma teologia
das boas obras incongruente com a mensagem paulina da justificação pela fé (
pedra de toque da teologia reformada ). O interessante aqui é perceber um princípio
hermenêutico visto como regra para o questionamento do próprio cânon, o que
deixa em aberto a questão: a que escritura exatamente Lutero se referia, ao
considerá-la infalível: ao cânon já estabelecido ou a um novo cânon?
Apesar da rejeição ao monopólio da igreja e da tradição na interpretação
bíblica na proposta hermenêutica dos reformadores, a história apresenta um
curioso paradoxo, pois uma vez ocorrida a reforma e a oficialização de seus
conceitos em alguns Estados europeus, voltou-se ao escolasticismo medieval, e o
confessionalismo e a imposição de limites doutrinários à liberdade de investigação
mais uma vez esteve presente. Neste período, conhecido como pós-reforma,
verificou-se a tentativa de sufocar qualquer interpretação que fosse diferente da dos
mentores reformistas. Esta postura, em combinação com o fracionamento do
protestantismo, fez com que a hermenêutica passasse a ser usada mais uma vez
como um instrumento a serviço do dogmatismo. Berkhof define assim esse fato: “A
exegese se tornou serva da dogmática, e degenerou em mera busca de textos-
provas”.
B. Confessionalismo. Surge justamente da reintrodução do escolasticismo
cristão medieval dentro da academia pós-reformista, com ênfase ao
sobrenaturalismo e à inspiração verbal das escrituras. Primeiro porque a falta de
um intérprete único e infalível da Bíblia (posição até então ocupada pela igreja )
possibilitou o surgimento de inúmeras interpretações diferentes dentro do
protestantismo. A partir da controvérsia, nasceu a tendência à sistematização e ao
dogmatismo, como reação de defesa de cada movimento.

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Hermenêutica Bíblica - 19
C. Puritanismo. Este movimento teve sua origem na insatisfação com a
reforma (considerada incompleta ), principalmente na Inglaterra. Ali, como a
história registra, os aspectos políticos foram muito mais decisivos que os
doutrinários no rompimento com o catolicismo romano. De fato, Henrique VIII não
deixou de ser católico em suas convicções. Por isso, a gênese do movimento
puritano ocorreu ainda no século XVI, embora seu auge tenha ocorrido no século
XVII. Em vários aspectos, a hermenêutica puritana se assemelhava aos
pressupostos da reforma: a rejeição da tradição, a aceitação da escritura como
única verdade válida e a interpretação cristológica do A.T. Mas a ênfase principal da
interpretação puritana era a prática da Escritura; a "consciência puritana" era sua
característica mais marcante.
"Eles eram escrupulosos em seu desejo de saber qual era a verdade, não
simplesmente para que tivessem um conhecimento teórico sobre ela, mas a fim de
que a levassem a cabo e a pusessem em prática a qualquer custo ".21 A partir desta
postura, as doutrinas mais enfatizadas eram a da Graça e a Teologia Pastoral.
Forneceram uma grande produção de comentários e textos de interpretação,
embora não consistissem num grupo coeso em suas idéias. O problema é que sua
interpretação era também controlada pela posição teológica, o que relembra os
sérios problemas da hermenêutica na Idade Média. Em síntese, pode-se citar as
principais características de sua postura:
• Valorização da Escritura;
• Rejeição da tradição;
• Uso da alegoria;
• Interpretação cristológica;
• Papel da iluminação na interpretação da Escritura;
• Valorização do sentido literal como o sentido básico;
• Aplicação das Escrituras nas experiências do dia-a-dia.

2.7. Período Moderno


O período moderno, caracterizado pelo surgimento do Iluminismo, movimento
surgido no início do século XVIII 22, tem na verdade seus antecedentes no
Racionalismo do século XVII. Este, por sua vez, representa o desenvolvimento do
Renascimento Cultural. Como o próprio nome indica, o Racionalismo abandonou a
idéia do sobrenatural, optando pelo uso exclusivo da razão, a partir do que se
rejeita qualquer possibilidade de interferência divina na história, a qual passa a ser
vista sob o prisma do secularismo onde a autonomia humana é priorizada e a
revelação e a ação divina são anuladas. A tendência natural desta postura de ordem
primariamente filosófica é o esvaziamento do sagrado dentro da Bíblia; milagres e
manifestações especiais de Deus (teofanias, epifanias) são desacreditados como
eventos históricos.
Como tentativa de unir a religião à razão, surge na Inglaterra o Deísmo, que foi
representado, na França pelo filósofo Voltaire. Seu pressuposto básico é que Deus,
ao criar o mundo e o ser humano, os entregou à sua própria sorte. Assim, o
conhecimento de Deus só é possível a partir do próprio homem, através do uso da
razão e da filosofia. O texto bíblico tem sua autenticidade questionada e a autoria
mosaica do pentateuco é posta abaixo (Spinoza, em 1670, e Richard Simon, em
1712). John Semler (1780), considerado como o mais autêntico autor do
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Hermenêutica Bíblica - 20
racionalismo bíblico,23 principalmente por tê-lo elevado à categoria de sistema,
negou a inspiração da Bíblia e a origem divina da Escritura, considerando-a como
um livro humano cheio de erros e que, por isso, deveria ser submetido aos métodos
humanos de interpretação. De acordo com Semler, Cristo teria sido um homem
comum, que soube se aproveitar da expectativa messiânica do seu tempo para
apresentar-se como Messias; os evangelhos seriam lendas que, posteriormente,
idealizaram a figura histórica de Jesus. Que valor teria então a Bíblia na ótica do
racionalismo ? Segundo o mesmo John Semler, o valor primordial da Bíblia é o do
aperfeiçoamento moral do ser humano, e os livros que possuem essa característica
devem ser autorizados. Um século antes dele, Baruc Spinoza não era tão
conservador: para ele, a Bíblia apela tão somente para as emoções religiosas do
homem e seu movimento é o da obediência e submissão mas não o da verdade, a
qual só pode ser alcançada pelo uso da razão. Assim a religião torna-se um
instrumento nas mãos dos intelectuais para a manipulação de massas.
Uma outra ala de teólogos racionalistas se caracterizou por uma abordagem
mais gramatical das Escrituras e tem como representante máximo John Ernesti
(1707 – 1781). Ele tentou por um fim às lutas primitivas entre interpretação literal e
interpretação alegórica; rejeitou o sentido múltiplo das Escrituras e defendeu que a
interpretação alegórica só pode ser aceita quando existe no próprio texto uma
indicação do autor nessa direção. Isto equivale a dizer que Ernesti fez uma opção
pela interpretação literal do texto. Dentre as diversas características do período
moderno destacam-se:
A. Com o avanço da secularização as idéias de revelação, inspiração das
escrituras e do sobrenatural foram negadas, pois a ênfase agora é de caráter
histórico, onde a autonomia e autodeterminação humanas guiam a história e não
determinadas ações de Deus em série, tais quais intervenções a favor de seu povo.
Como conseqüência, os relatos de milagres na Bíblia, principalmente os de Jesus
nos evangelhos, são negados (Johann Eichorn e David Strauss, Sec.XIX).
B. A postura do tipo “leia o Novo para entender o Antigo” foi posta abaixo
através da gradual separação dos dois testamentos. Essa tendência surgiu a partir
do momento em que foi constatado o fim da unidade teológica não só dos
testamentos (um em relação ao outro), mas também do testamento em relação a si
mesmo24. Há uma procura em entender sobre aquilo que Israel afirmou sobre si
mesmo e sobre sua fé. Por conseguinte, há um maior dinamismo no estudo bíblico e
na multiplicidade de suas tradições (Ernesti e Semler).
O iluminismo era, em vários aspectos, uma revoltacontra o poder da religião
institucionalizada e con tra a religião em geral.
Por exemplo, o conceito pecado-culpa e sua evoluçã o nas diferentes partes do
AT; o conceito de justificação e o conflito fé versus obras em Paulo e em Tiago no
NT.
C. As idéias de inspiração e de inerrância das escrituras foram abandonadas a
partir da compreensão do cânon como resultado de um processo histórico. O texto
bíblico teria um valor local, para a comunidade que o produziu e o recebeu, sem
uma ligação com o presente (Semler).
D. Uma forte reação contra o dogmatismo e o controle da exegese pela teologia
sistemática; aqui a busca do exegeta é, em primeiro lugar, entender o homem, o
pensamento, a cultura, a teologia que estava por trás do texto, utilizando para isso
o instrumento da razão, que é a crítica bíblica, tal qual trabalhada nas suas
diversas escolas, conforme descritas a seguir:

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Hermenêutica Bíblica - 21
• Crítica das Fontes. Como o próprio nome sugere, o objetivo desse método é
o de identificar as fontes escritas (e orais) de que se serviram os escritores
para compor o texto bíblico. Uma vez identificadas, a preocupação volta-se
para a compreensão da teologia de cada fonte ou de cada bloco de escritos.
Os exemplos mais famosos são: a hipótese documentária (Graff-Wellhausen)
a qual atribui a autoria do Pentatêuco a 04 estratos-fontes , identificados
pelas letras “J” (Javista), “E” (Eloísta) , “D” (Deuteronomista) e “S”
(Sacerdotal) . Segundo a hipótese documentária cada estrato possui
características, formas e teologias próprias; os evangelhos sinópticos
(Mateus, Marcos e Lucas) cuja curiosidade básica não foi levantada em
torno do conteúdo que os três possuem em comum, mas naquilo em que
diferem um do outro. Uma das conclusões foi que 95 % do conteúdo de
Marcos está espalhado entre Mateus e Lucas. Uma segunda constatação foi
que existem materiais que só são encontrados em apenas um dos três e não
são comuns. Com base no percentual e na influência de Marcos, concluiu-
se também que este evangelho, e não Mateus, foi o primeiro a ser escrito.
Essas são algumas contribuições da Crítica das Fontes.
• Crítica das Formas. A preocupação principal desta escola é a fase do texto
bíblico conhecida como “pré-história” do texto. Nessa compreensão, o texto
bíblico se apresenta dentro de formas ou gêneros (sagas, ditos, lendas,
etiologias, entre outros) que nasceram dentro de uma determinada
“situação de vida” ou sitz im leben , um contexto vital, quando a
comunidade de fé experimentava o futuro texto na via oral. As formas que
essas histórias antigas adquiriram ajudaram a preservação das mesmas na
vida do povo sendo mais tarde redigidas. Herman Günkel (AT) e Rudolf
Bultmann (NT) são os nomes mais conhecidos desta escola.
• Crítica da Redação. Aqui a atenção não se dirige em princípio às fontes,
nem à pré-história oral do texto, mas ao escritor. O que teria levado os
escritores a escolherem ou selecionarem fontes, unindo-as num mesmo
trabalho? Agora, eles são visto, não como simples escritores, mas como
redatores-teólogos. A tarefa da Crítica da Redação é descobrir a teologia
desses escritores que, em última análise, é a teologia de sua comunidade.

2.8. A Hermenêutica Pós-Moderna


Mesmo durante o período moderno já estava ocorrendo uma espécie de
insatisfação por parte de alguns filósofos e teólogos com o reducionismo
racionalista. Dentre eles destaca-se a pessoa de Emanuel Kant, o qual questionou
com fortes argumentos contra o racionalismo do Sec.XVIII. Segundo ele é um erro
reduzir a religião à razão, pois a religião encontra lugar não no que é puramente
racional, mas no que é ético: “nós, seres humanos, somos por natureza seres
morais e com base nessa moralidade inata é possível provar a existência de Deus e
da alma, a imortalidade, a liberdade e a vida futura”25. Com sua influência, Kant
levantou a atenção para outros aspectos da vida do ser humano que não os
meramente racionais, dando instrumentos a teólogos posteriores para outras
reflexões, como por exemplo, Schleiermacher, o qual será estudado mais tarde.
A. Características do Período Pós-moderno. O que teria influenciado a
mudança da hermenêutica moderna para a pós-moderna? Utilizaremos aqui o
esboço de Augustus Nicodemus Lopes26, o qual cita Ricardo Gouveia, apontando
as principais características do período pós-moderno:

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Hermenêutica Bíblica - 22
• A rejeição dos chamados “mitos modernos”: o cientificismo, o tecnologismo
e o economismo, ídolos de um período utópico, esbarraram na impotência
do ser humano, antes otimista, mas depois de duas guerras mundiais,
desiludido.
• O Pluralismo inclusivista – O pluralismo não é uma novidade pós-moderna.
A partir do movimento iluminista enfatizou-se um tipo de pluralismo que
visava a convivência amigável e tolerante das diferentes visões e formas
opostas. O pluralismo pós-moderno não quer apenas tolerância mas quer
inclusivismo, ou seja, espera-se que as opiniões cedam espaço umas às
outras. Diante dessa nova situação, todo discurso que tem a pretensão de
impor-se como superior e único é rejeitado, significando, por exemplo, no
campo teológico, um golpe no exclusivismo denominacional e no
fundamentalismo. É interessante lembrar que os movimentos de estudo
bíblico e de representatividade extra-eclesiástica de caráter
interdenominacional surgiram um pouco antes da metade do século,
portanto dentro desse novo espírito, onde o elemento doutrinário que
diferencia um grupo do outro é substituído por crenças básicas gerais.
• A narrativa e o problema da linguagem – Para o pós-modernismo não há
nenhum discurso que se aplique indiscriminadamente através de barreiras
culturais e não há nenhum absoluto que transcenda diferenças culturais.
Tudo o que há são narrativas intracomunitárias, válidas dentro dos limites
de suas tradições culturais. O pós-modernismo questiona discursos
unívocos e que apresentam o autor como “autoridade” e o leitor ou
destinatário como aprendiz. O sentido do texto é determinado no momento
da leitura, à medida em que ele interage com o depósito discursivo e ideário
do leitor.
B. Vertentes formadoras das hermenêuticas bíblicas atuais.
• A vertente teológico-psicológica – O personagem principal desta linha
hermenêutica foi, sem dúvida, Friedrich Schleiermacher (1768-1834), o
qual seguindo os passos de Kant, também desvinculou a religião da razão.
Para ele, a religião não é um conhecimento, como pretendiam os
racionalistas e os ortodoxos, nem mesmo uma moral (Kant); antes, a melhor
palavra que pode defini-la é “afeto” (do alemão gefühl ) . Para ele, esse afeto
é religioso e não algo que apela aos sentimentos ou a uma emoção
passageira de uma expressão de culto, mas que está ligado fortemente ao
sentimento que nos permite, em primeiro lugar, tomar consciência da
existência daquele que é superior à própria existência e base dela; em
segundo lugar, o “afeto” é o sentimento que nos leva a reconhecer nossa
dependência absoluta de Deus. Essas duas definições de “afeto” nos levam
ao pensamento que em Schleiermacher a religião constitui-se no gosto pelo
infinito. A função da teologia consiste em expor e atualizar essa idéia da
dependência divina. A distinção entre o que é natural e o que é
sobrenatural deve ser rejeitada, não porque se oponha à ciência moderna,
mas porque limita o nosso sentimento de dependência de Deus àqueles
momentos em que se manifestam as coisas sobrenaturais. O modelo
utilizado por Schleiermacher foi o estudo psicológico das escrituras através
do entendimento das idéias dos seus autores, que eram humanos.
Deixando para trás o conceito de inspiração das escrituras, defendia que a
Bíblia reflete tão somente as idéias de seus autores e só pode ser entendida
porque existe uma unidade do espírito humano que liga homens de todas
as épocas e de todos os lugares uns aos outros. Ao valorizar a experiência
religiosa do caráter universal e residente no indivíduo, Schleiermacher
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Hermenêutica Bíblica - 23
reduziu o cristianismo a uma experiência subjetiva e centralizou a teologia
no homem deixando de lado a revelação através da Palavra. Com isso, abriu
caminho para hermenêuticas centradas no leitor, como por exemplo, a
vertente filosófica de Gadamer.
• A vertente Exegética – Aparece aqui a pessoa de Rudolf Bultmann (1884-
1976), considerado um dos maiores eruditos em NT do Século XX.
Notabilizou-se a partir de sua exegese da demitização . O que seria a
demitização em Bultmann? Ricoeur, interpretando Bultmann, diz que
demitizar “consiste em desfazer a engrenagem conceptual por meio da qual
foi constituída uma visão do mundo que já não é mais a nossa, visto que
pertence à uma época pré-científica”28. Para chegar ao seu conceito de
demitização, Bultmann parte do princípio que toda a interpretação da
revelação pressupõe uma pré-compreensão e esta, por sua vez, implica
essencialmente uma filosofia. Ora, é justamente essa pré-compreensão dos
primeiros discípulos de Cristo caracterizada pela visão místico-metafísica29
que Bultmann acreditava ser incompreensível e absurda para o homem
moderno, mais dirigido pela mentalidade científica e pela orientação
existencial. A partir daí, Bultmann pregava a necessidade de demitização da
mensagem cristã, tirando aquela roupagem místico-metafísica, traduzindo-a
em categorias existenciais, as quais constituem a pré-compreensão do
homem moderno. Por isso, se o pregador moderno não quiser expor a
mensagem cristã à falência total, deverá procurar descobrir o significado
mais profundo que está escondido sob as concepções mitológicas e
interpretar tais concepções servindo-se da auto-compreensão que o homem
do Século XX tem de si mesmo. A hermenêutica de Bultmann foi
influenciada pela filosofia existencialista de Heiddeger (seu colega de
classe), o qual defendia que a hermenêutica significa simplesmente o
processo de interpretar o ser. Essa maneira de interpretar não dá atenção à
perspectiva do autor, mas àquilo que se expressa no texto, independente do
autor. Para Bultmann, no processo de leitura acontece a auto-interpretação
do leitor, que se processa no nível de suas preposições. Segundo Bultmann,
a pré-compreensão místico-metafísica caracteriza-se pelo uso predominante
da referências às potências sobrenaturais e a um mundo habitado por
espíritos, deuses, potestades, os quais sempre intervêm na história dos
homens; um mundo dividido em três andares: o céu, ndeo habitam Deus e
os seres celestiais; o inferno, como o mundo subterrâneo e lugar da pena
divina; a terra, como p alco dos acontecimentos naturais e cotidianos, mas
também como campo de batalha entre Deus, os seres celestiais e Satanás e
seus demônios.
• A vertente Lingüística - Os lingüistas em geral concordam que o estudo da
lingüística é uma coisa antes e outra depois de Ferdinand de Saussure
(1857-1913), lingüista suíço que deu à lingüística status de ciência.30 A
partir da descoberta do Sânscrito, na segunda metade do Século XVIII,
Saussure desenvolveu uma teoria segundo a qual existe uma estrutura
lingüística comum a todos os povos e que consiste na elaboração feita pelo
cérebro de um sistema fechado de códigos que se organizam de acordo com
um padrão universal. Muito embora existam idiomas diferentes, todos eles
operam a partir de uma base estrutural que se desenvolve a nível
inconsciente.31 Mesmo que o autor de uma passagem tenha escrito com
uma intenção consciente, transmitiu inconscientemente uma série de
outros sentidos através desta base estrutural que governa todas as línguas.
A tarefa principal do lingüista (exegeta bíblico) é estudar esta estrutura. As

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Hermenêutica Bíblica - 24
idéias de Saussure estão condensadas através de dicotomias, das quais as
mais importantes são:
o Língua versus fala (langue versus parole) - A língua é um conjunto de
hábitos lingüísticos que permitem a uma pessoa compreender e fazer-
se compreender. Do ponto de vista funcional é encarada como um
sistema de signos distintos correspondentes a idéias distintas, mas de
tal forma organizados para atingir a um determinado fim, ou seja,
palavras unidas com normas de combinação para traduzir idéias. Já a
fala é o lado executivo da língua cujo domínio é da inteligência e da
vontade do indivíduo, o qual manipula combinações de forma que
intenta exprimir seu pensamento pessoal.
o Sincronia versus diacronia - o objetivo aqui é distinguir no estudo da
língua uma visão descritiva de uma visão histórica. Saussure
procurou despertar a consciência daqueles lingüistas que para
explicar determinados fenômenos recorriam ao passado e à evolução
da língua. Tais métodos eram diacrônicos pois se preocupavam
excessivamente com a história do texto, seu surgimento, seu
desenvolvimento, seu contexto, sua gramática; a análise sincrônica,
por outro lado, procura ver o texto em si mesmo, sem relação com o
progresso histórico do qual faz parte. O exegeta neste caso concentra-
se na presença literária do texto como um todo no mundo de narrativa
construído pelo autor. Por exemplo, os autores dos evangelhos
pintaram quadros e criaram mundos de narrativas, buscando causar
efeitos nos leitores.
• A vertente Filosófica - Desde os tempos mais antigos, a luta entre o que é
alegórico e o que é literal dentro da igreja cristã tem movimentado o
ambiente da hermenêutica, notadamente pela influência do platonismo,
presente na escola alexandrina e do aristotelismo, próprio da escola
medieval. No início do século XX, houve uma mudança na forma de pensar
sobre as relações existentes entre o escritor, o texto e o destinatário. Isso se
deve ao trabalho do filósofo alemão Hans Georg Gadamer, cujo fundamento
principal é a hermenêutica do tipo Reader Response, cujos conceitos
básicos são:
o O conceito de fusão de horizontes - "Horizontes" são os mundos vivos
do autor e do leitor que se fundem quando ambos se encontram no
texto. O leitor expande o horizonte do texto ao apropriar-se dele em
uma nova situação histórica; o texto, em troca, impulsiona o leitor a
desafiar e expandir as estruturas e pressuposições que traz consigo.
Em resumo, a hermenêutica de Gadamer se move do autor e do texto
para uma união entre o texto e o leitor com raízes no presente em vez
do passado: interpretar é aplicar.
o O conceito da importância das pressuposições do leitor - Aduz-se aqui
a dicotomia de Saussure sobre diacronia e sincronia. O sentido de um
texto não é encontrado na pesquisa diacrônica em busca do sentido
original e histórico do texto, mas através do diálogo com o texto no
presente sem nenhuma preocupação com a intenção do autor, como
faziam os exegetas da escola da crítica da redação. Agora,
contrariando a perspectiva negativa que o racionalismo tinha sobre as
pressuposições do leitor na interpretação, Gadamer afirma que essas
pressuposições são a chave para a compreensão de um texto. Esse
conceito veio mais tarde influenciar as hermenêuticas de libertação.

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Hermenêutica Bíblica - 25
o O conceito subjetivista - Gadamer não estabelece qualquer critério
para definir se uma interpretação é falsa ou verdadeira. Segundo ele,
todas são verdadeiras para quem lê, numa clara demonstração de
relativização da verdade e de subjetivismo, onde cada nova leitura
pode produzir sentidos diferentes e inovadores até para o mesmo
leitor, e nenhum deles conflitante com os demais.
o Desconstrucionismo - Outro expoente da vertente filosófica é o francês
Jacques Derrida (nascido em 1930 e falecido em 8.10.2004),
considerado como o pai do desconstrucionismo. Segundo esta linha
hermenêutica, surgida em meados da década de 1960, não há uma
única verdadeira interpretação de um fato, de um texto ou discurso
mas muitas interpretações igualmente válidas. Esta postura é, na
verdade, uma ampliação do princípio do pluralismo que, neste caso,
vai além do inclusivismo e propõe não apenas a aceitação e
assimilação de pensamentos diferentes, mas a inexistência de uma
verdade absoluta. A desconstrução surgiu nos textos de Derrida como
parte de uma crítica abrangente ao pensamento ocidental. Ela é um
dos termos de uma equação filosófica complexa elaborada em vários
livros. Trata-se de uma estratégia “subversiva” de leitura que parte do
princípio de que qualquer texto, por mais que almeje à clareza e ao
rigor, sempre contém pontos cegos ou módulos de ambigüidade que,
devidamente explorados, permitem desfazer as amarras lógicas do
raciocínio, inverter suas premissas, anular sua hierarquia de idéias. O
desconstrucionismo abriu portas para minorias que se sentiam
marginalizadas por aquilo que consideravam o “substrato autoritário e
opressor do pensamento ocidental”, como por exemplo, as feministas.
Entretanto, para Derrida, há coisas que não podem ser
desconstruídas, a saber, justiça, amizade e democracia.

3- PRINCÍPIOS DE
INTERPRETAÇÃO DA BÍBLIA
No decorrer da história da Hermenêutica foram se formando as diversas
tendências de interpretação da Bíblia, aliadas a alguns princípios de utilização na
tarefa sempre nova e desafiadora de atualização do texto. Geralmente os teólogos
dividem essas tendências em quatro escolas de interpretação: a escola gramatical, a
escola histórica, a escola teológica e a escola crítica. A escola gramatical lida com o
sentido das palavras ora isoladamente (sentido etmológico), ou então com o texto
como um todo, levando ainda em consideração questões relativas ao contexto
lingüistico, histórico, social, político e religioso. É nesse aspecto que se confunde
com a escola histórica, a qual lida com o ambiente em que foi formado o texto
bíblico. Esse ambiente é o ambiente do autor e do seu povo. Aqui, o lugar, o tempo,
as circunstâncias e as concepções do ambiente formador da Bíblia são vistos como
importantes para a interpretação dos textos. Como afirma Louis Berkhof ao utilizar-
se desses princípios, o interprete transporta-se mentalmente para a época em que o
texto foi escrito. Já a escola teológica, zela pelo princípio "escriturístico" da Bíblia,
ou seja, o caráter místico da Bíblia, enquanto Palavra de Deus. A tendência dessa
escola é tornar os testamentos como uma unidade principalmente no que diz
respeito à doutrina da redenção que une tanto israelitas no AT quanto gentios do
NT. Uma das marcas desse caráter místico da Bíblia é a interpretação tipológica das
escrituras, a qual será estudada no próximo capítulo. Aqui mística-tipo-símbolo
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Hermenêutica Bíblica - 26
constituem uma realidade inseparável. Finalmente, a escola crítica, a qual possui
seus precedentes na busca de um diálogo entre a linguagem científica e a
linguagem religiosa própria dos séculos XVII e XVIII, tem, como uma de suas
características principais, a utilização de métodos científicos na interpretação dos
textos. Identificando-se com a escola histórica, a escola crítica busca conhecer o
texto a partir do autor e do seu ambiente, respeitando a antropologia do momento e
as categorias sociais; identificando-se também com a escola gramatical, procura
identificar categorias de linguagem próprias da cultura local através do método da
história das formas, da crítica textual e da história da redação. Do ponto de vista
teológico, ao contrário da escola chamada teológica, a escola crítica procurar
entender a teologia enquanto evolução na história, seccionando períodos e
tendências teológicas, desistindo assim da idéia da unidade dos testamentos, visto
que, segundo ela, na Bíblia encontram-se diversas teologias. O diferencial da escola
crítica é a sua proximidade da Psicologia, da Antropologia, da Filosofia e
principalmente da Sociologia. O texto é entendido primeiramente no seu ambiente
formador e, depois, por analogia, é entendido em um novo momento, sempre numa
ênfase nova onde a perspectiva da comunidade é determinante na interpretação do
texto.
Ao estudarem as escolas de interpretação bíblica, os teólogos geralmente
dividem os princípios hermenêuticos, separando-os por tendência, quer seja
gramatical, quer seja histórica, quer seja teológica, quer seja crítica. Em nossa
abordagem evitaremos as classificações, sugerindo apenas alguns princípios válidos
para a leitura de textos bíblicos. No contato com o estudante da Bíblia em
laboratório, faremos as devidas identificações.
Os princípios que sugerimos são os seguintes:

3.1. Princípio da Crença na Autoridade das


Escrituras
O primeiro princípio a ser abordado é o da crença na autoridade das
Escrituras. Se a Bíblia é submetida à razão ou mesmo à tradição ela deixa de ter
autoridade sobre a vida de uma pessoa. Por exemplo, o que o catolicismo ensina
sobre Maria é uma leitura das Escrituras a partir da influência da tradição34, o que
pressupõe que a crença na autoridade da tradição é superior à da autoridade das
Escrituras, embora a nível teórico se afirme o contrário. Entretanto, pretende-se
aqui dar um novo sentido à autoridade das Escrituras, visto que tem sido, usada
por linhas tidas como "biblicistas" para consolidar ensinos por demais alienadores.
A autoridade da Bíblia não existe para fundamentar princípios de história geral,
matemáticos e científicos. Daí a incapacidade da Igreja de conviver com descobertas
científicas que "abalaram" a crença na autoridade das Escrituras, tais como as de
Copérnico e de Galileu Galilei. A autoridade das Escrituras não existe para defender
as Escrituras em si mesmas, a sua inerrância ou a sua infalibilidade, mas para
revelar ao ser humano a vontade de Deus, sua misericórdia, seu amor, trazendo ao
homem novamente a condição de amigo de Deus (II Co. 5:18-19), existindo ainda
para conceder a esse ser humano princípios para viver de acordo com a vida de
uma nova criatura em Jesus Cristo. Em suma, o que se quer dizer é que a
autoridade das Escrituras existe em matéria de fé.

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Hermenêutica Bíblica - 27
3.2. Princípio do Sentido Usual e Ordinário das
Palavras
É de suma importância tomar as palavras no seu sentido usual e ordinário. O
primeiro passo para se determinar o sentido de uma palavra é a busca do seu
significado, o qual é o valor denotativo da palavra. Um bom exemplo é a palavra
"cordeiro" em Ex. 12:3 e em Jo. 1:29, onde significa o animal reservado ao
sacrifício. No passo seguinte, a palavra em questão é interpretada à luz das
palavras ou sentenças que precedem ou seguem à mesma. Por isso, pode-se dizer
que em Ex. 12:3 a palavra "cordeiro" possui um sentido próprio ao significado e em
Jo. 1:29 possui um sentido metafórico 35. Outro exemplo é a palavra "Fé",
geralmente entendida como "Confiança". Esta palavra tem em Gl. 1:23 o sentido de
"crença", "doutrina"; em Rm. 14:23, "convicção"; em Hebreus 11, "confiança" nas
promessas divinas atestada pelo testemunho dos que crêem. Outro termo é a
palavra "carne" que em Rm. 3:20 traz a idéia de "pessoa"; em Ezequiel 36:26 tem o
sentido de uma "disposição maleável à obediência"; em Ef. 2:3, "desejos licenciosos
oriundos da velha natureza"; em I Tm. 3:16 tem o sentido de "forma humana".

3.3. Princípio da Análise à Luz do Contexto


Além de buscar o contexto literário, analisando a palavra dentro das demais
palavras ou sentenças, é essencial estudar o texto à luz do ambiente que o
produziu, ou seja, à luz do seu contexto histórico, socio-cultural, religioso, político e
geográfico. É intrigante para a pessoa que lê o evangelho pela primeira vez o texto
de Jo. 4:9, no texto que relata o encontro entre Jesus e a mulher samaritana, onde
aparece uma observação dizendo que os judeus não se davam com os samaritanos.
Entretanto o texto não diz porque. Sugere no verso 20 uma briga religiosa.
Entretanto as razões dessa briga são esclarecidas pelo contexto histórico-religioso, o
qual leva o estudante da Bíblia para o ambiente pós-exílico do IV século a C., com a
repatriação dos judeus em meio à povoação de árabes e de pessoas oriundas das
misturas raciais advindas da invasão assíria no reino do norte cerca de 700 a C.,
culminando com divisões políticas na família sacerdotal judaica e a construção de
um templo no Monte Gerizim para competir com o Templo de Jerusalém. A postura
de Jesus diante do ódio dos judeus exposta no corpo do texto do capítulo 4 de João
representa uma quebra de fortes paradigmas na medida em que se conhece o
contexto.

3.4. Princípio do Desígnio


É preciso levar em consideração o desígnio ou objetivo do livro ou passagem
onde ocorrem as palavras. Por exemplo, o estudo geral das cartas de Paulo aos
Gálatas e aos Colossenses com o conhecimento do contexto das mesmas, revela o
ambiente de confusão doutrinária causado pelos erros dos judaizantes que queriam
subverter o evangelho da liberdade em Cristo Jesus, reduzindo-o à Lei com a
observância de dias e cerimonias judaicas e da falsa filosofia. Nesses casos durante
todo o corpo do texto aparecem com freqüência palavras que denunciam esse
ambiente. A insistência do autor em usar alguns termos, como por exemplo, o
termo "rudimentos do mundo" em Gl. 4:3,9,11. Se lido isoladamente, o termo pode
sugerir algum tipo de prática oriunda do paganismo e da carnalidade própria do
velho homem, mas quando lido à luz do contexto e do livro como um todo, o termo

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Hermenêutica Bíblica - 28
apontará para as práticas legalistas que eram colocadas pelos judaizantes como
obrigatórias e integrantes para o verdadeiro cristão.

3.5. Princípio das Passagens Paralelas


Com bastante cuidado é importante consultar passagens paralelas. O
conjunto de passagens que combinam entre si podem levar o estudante ao
conhecimento de uma doutrina ou idéia. As "marcas de Cristo" reclamadas por
Paulo em II Co. 4:10, II Co. 11:23-25 e Gl. 6:17, são alusões que o apóstolo faz dos
seus sofrimentos e das perseguições advindas de sua opção a favor do evangelho de
Cristo.
A partir deste princípio pode-se assumir que o texto bíblico, na verdade,
possui um único sentido, a saber, o literal. O sentido literal não é o sentido "ao pé-
da-letra", mas é o sentido da intenção do autor. E o autor pode ter usado palavras
com formas metafóricas, ou formas próprias ao seu signi ficado. O sentido literal é o
que o autor quis dizer.

3.6. Princípio da Análise Experiencial à Luz das


Escrituras
De acordo com W.A. Henrichsen 36, deve-se interpretar a experiência pessoal
à luz das Escrituras e não as Escrituras à luz da experiência pessoal. E aqui temos
uma delicada premissa que, quando comparada às afirmações da Hermenêutica
pós-moderna pode levar o princípio a duas vertentes. Por um lado, admite-se que
não é recomendável imprimir sobre o texto e o seu resultado hermenêutico, ou seja,
sua interpretação local, a experiência da pessoa, no sentido de fazer o texto
significar o que ela queira que ele signifique ou mesmo o que ela precise que ele
signifique. É justamente aqui que nascem as interpretações de conveniência tão
comuns à época em que vivemos. Por outro lado, existe aquilo que R. Lapointe 37
chama de "Circularidade Hermenêutica", ou seja, a mútua iluminação entre o
acontecimento fundamental (primeiro) e o acontecimento derivado, ou ainda entre o
primeiro e a sua "palavra". Por exemplo, se a Igreja Primitiva interpretou Jesus a
partir das Escrituras, estava também interpretando as Escrituras a partir do
acontecimento de Jesus ( acontecimento: Jesus; palavra: NT ) . Em termos práticos,
pode-se tentar uma conciliação entre partes aparentemente contrárias. Se o
Dêutero-Isaías fala no capítulo 61 sobre uma pessoa sobre a qual repousa o
Espírito do Senhor para libertar cativos, curar aflitos, tirar cegos da escuridão e
apregoar o ano aceitável do Senhor, ele pode estar falando de si mesmo como
pessoa, ou até mesmo do povo liberto do cativeiro da Babilônia para exercer esse
ministério diante dos povos, ou até mesmo de um outro profeta (o que é menos
provável). Entretanto, nada há que impeça o texto a ter uma nova leitura na pessoa
de Jesus Cristo, mas sempre de forma tal que venha a parecer que o Dêutero-Isaías
estava falando para uma outra época, a do porvir, onde sua pregação teria um
sentido de vaticínio. É o que temos em Lucas 4, onde Jesus afirma que "se cumpriu
hoje" diante das pessoas ali presentes o que falara o profeta. "Desobedecendo" um
pouco a idéia de que profecia cumprida jamais se repete, nada há que impeça a
interpretação de que no mundo hodierno, a Igreja de Jesus Cristo deve assumir o
ministério que no AT pertenceu ao profeta ou à sua comunidade e que no NT
cumpriu-se em Jesus Cristo.

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Hermenêutica Bíblica - 29

4- PARTES BÁSICAS DA
HERMENÊUTICA BÍBLICA
O estudo da Hermenêutica requer um adequado conhecimento de seus
elementos fundamentais. São esses elementos que comporão cada etapa do
processo de interpretação e aplicação do texto em estudo. Conforme apresentado na
Introdução do presente trabalho, são três as partes básicas da Hermenêutica,
voltadas para o sentido do texto: A Noemática ( do grego noema, "pensamento,
sentido" ) aponta o sentido presente no texto; a Heurística ( do grego eurisko,
"achar, encontrar") estuda as ferramentas utilizadas para se determinar o sentido
do texto; e a Proforística ( do grego profero, "mostrar, expor" ) trabalha com o modo,
a maneira, de expor os sentidos contidos na Bíblia.

4.1. Noemática
Para a compreensão deste elemento, é imprescindível o entendimento do
conceito de SENTIDO, bem como a sua distinção de SIGNIFICADO: enquanto este é
o que uma palavra, em seu valor denotativo, pode significar, aquele é o significado
que a palavra recebe pelo influxo do autor ou mesmo até do intérprete. Segundo
Georges Mounin, citado por Fernando Castin, 38 o sentido é o valor preciso que um
significado adquire num contexto. Pierre Guiraud, também citado por Castin no
mesmo texto, defende a dinâmica das relações da palavra com as outras palavras
do contexto. Tais relações são determinadas pela estrutura do sistema lingüístico, o
que equivale a dizer que palavras isoladas não possuem sentido mas significado,
somente adquirindo sentido dentro de um determinado contexto. Um exemplo disto
pode ser visto no provérbio "Quem tem boca vai a Roma ". O significado das
palavras isoladas nos traz uma frase sem nexo, mas o valor que cada palavra
adquire na frase nos levará a um sentido, qual seja: podemos ir a qualquer lugar
desconhecido e longínquo desde que estejamos dispostos a pedir orientação ou a
perguntar.
Entrando no campo bíblico, chegamos à histórica questão hermenêutica da
busca do sentido original do texto, o que deu origem às célebres controvérsias entre
interpretação alegórica e literal, e às mais variadas propostas quanto à
multiplicidade dos sentidos do texto bíblico: sentidos anagógico, tropológico,
escatológico, etc. Uma das tendências hermenêuticas é achar que só existe na
Bíblia um único sentido, o literal, seja ele próprio ou metafórico. Por sentido literal
entende-se aquele sentido do domínio direto e consciente do autor em seu momento
histórico. É aquilo que ele intenta dizer independente da forma ( estilo, gênero, etc.
); por exemplo: O cordeiro pascal em Ex. 12:3 e em Jo. 1:29 deve ser entendido em
sentido literal; em ambos os casos, a palavra cordeiro tem um só significado ( o
animal sacrificado no rito de expiação ) e um só sentido, embora próprio no
primeiro caso e metafórico no segundo. Como fundamento, admite-se que se Deus
fala aos homens através da Escritura, Ele o faz através de homens que, por sua vez,
não escreveram para não dizer nada, mas possuem uma intenção através das
palavras que usam.
Entretanto, outros teólogos defendem, ao lado deste, um outro sentido literal
chamado de pleno, também conhecido como sensus plenior. Compreende-se aqui
que Deus coloca uma consistência mais profunda no conteúdo expresso pelo autor,
ainda que seu pensamento se limite ao seu momento histórico, pois o sentido pleno
está fora do seu alcance intelectivo ou visual. O sensus plenior não é, portanto, do
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Hermenêutica Bíblica - 30
domínio do autor. Algumas das profecias messiânicas encontradas em Isaías e em
Malaquias são interpretadas a partir do sensus plenior, cujas características gerais
são as seguintes:
• Está incluído na letra do texto, apesar de ser desconhecido do escritor;
• É da alçada divina e de sua intenção;
• Só pode ser descoberto à luz de uma revelação ou ensinamento posterior;
• É homogêneo em seu conteúdo.
Manuel de Tuya e Jose Salguero apresentam um exemplo de homogeneidade
do sentido pleno: Em Sl. 2:7 a expressão "Tu és meu filho; hoje te gerei" tem relação
com a entronização do messias vetero-testamentário. Entretanto, o sentido pleno do
texto encontra-se centrado na pessoa de Jesus Cristo em três textos do NT, nos
quais os sentidos são polivalentes e divergentes (quanto ao significado), embora
homogêneos no sentido: Em At. 13:33, alude-se à ressurreição de Cristo; em Hb.
1:5 à divindade de Cristo e em Hb. 5:5 à sua posição de superioridade em relação
ao modelo humano representado pelo sumo-sacerdote.
Outra tendência é indicar, além do sentido literal, o sentido "típico" das
Escrituras. O tipo é uma espécie de metáfora que não consiste meramente em
palavras mas em atos, pessoas ou objetos que designam semelhantes atos, pessoas
ou objetos no porvir, apontando, portanto, para uma realidade futura. Foi bastante
enfatizado pelos pais apostólicos. De acordo com Tuya e Salguero são necessárias
para a configuração do sentido típico, as seguintes características:
• Uma realidade histórica ou literária. O fundamento do tipo possui uma
realidade histórica anterior, independente do próprio tipo, realidade essa
que, utilizada por Deus, vem a significar outra coisa. Por exemplo, a
serpente levantada no deserto (Nm.21:9 e Jo. 3:14 ). Do ponto de vista
literário aparece um texto curioso que, contrariando o padrão judaico de
narrativa sobre um personagem histórico no qual o personagem é sempre
identificado pela sua genealogia, apresenta Melquisedeque apenas como "rei
de Salém” e sacerdote do Deus altíssimo "(Gn. 14:18). Por conta disto, o NT
o apresenta como "tipo" do sacerdócio eterno de Cristo (Hb. 7:3) pois se
"assemelha" (do grego afomoiomenos) ao Filho de Deus. É natural que
Melquisedeque tivesse pai e mãe pois foi sacerdote e rei, entretanto o texto
omite essa informação. Por isso a relação de um texto com o outro torna-se
espiritual.
• A partir desta idéia, se requer uma semelhança entre o tipo e o antítipo. O
tipo deve ser uma imagem sensível e menos perfeita que a realidade
espiritual que ilustra, o que significa dizer que existe uma relação de
proporção e análoga entre eles. Esta analogia não significa que deve haver
uma adequação entre o tipo e o antítipo em todas as suas partes. Um só
aspecto dessa relação basta para caracterizar esta tipologia (comparar Ex.
12:46 com Nm. 9:12 e Jo. 19:33-36 ).
• A mais importante característica do tipo está no fato de que a realidade que
ele representa vem da sobrenatural escolha de Deus. O escritor não tem
como ou por que saber se o que ele escreve é usado por Deus para
representar outra realidade no futuro.
Em suma, o sentido literal não significa necessariamente literalismo (leitura ao
pé da letra) mas aquilo que o autor quis efetivamente dizer, usando para isto
palavras no seu sentido denotativo ou de forma retórica, lançando mão das figuras
de linguagem, numa espécie de "sentido literal-figurado". Por isso torna-se
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Hermenêutica Bíblica - 31
importante o conhecimento dos tipos mais freqüentes de figuras de linguagem
existentes no texto bíblico:
• Metáfora ("levar mais além") - é uma figura comparativa na qual um objeto é
assemelhado a outro, afirmando ser o outro ou falando de si como se fosse
o outro, ressaltando assim suas qualidades ou características ( Is. 40:6; Sl.
18:2; Mt. 5:13; Lc. 13:32; Jo. 6:48; Jo. 10:7 e 9; Jo. 10:11 e 14 ). São
considerados como tipos secundários de metáforas os antropomorfismos e
os antropopatismos. Nos primeiros atribui-se a Deus formas humanas e
atividades físicas ( Sl. 33:18; Sl. 34:16; Tg. 5:4 ); nos últimos atribui-se a
Deus sentimentos e paixões humanas (Gn. 6:6; Dt. 13:17; Ef. 4:30).
• Símile - é uma figura comparativa na qual um objeto é assemelhado a
outro, existindo aí a cláusula comparativa ( "como", "tal qual", "assim
como", "tal como"). Na metáfora a comparação está implícita e na símile,
explícita. Assim, em I Pd. 1:24 temos uma símile e em Is. 40:6 uma
metáfora. Outros exemplos de símile podem ser encontrados em Lc. 10:3 e
Sl. 1:3-4.
• Metonímia (metonomazo - "denominar de outra maneira") - emprega-se esta
figura quando a causa é tomada pelo efeito ou vice-versa, ou o símbolo pela
realidade que ele indica. Baseia-se numa relação mental. Por exemplo, em
Lc. 16:29 o termo "Moisés e os profetas" significa o conjunto de textos do
AT; em I Co. 10:21 o termo "cálice do Senhor" refere-se ao conteúdo do
cálice mas não ao cálice em si mesmo; em At. 7:8 a circuncisão é chamada
de concerto porque é um sinal do concerto; em I Jo. 1:7 a palavra "sangue"
indica toda a paixão e morte expiatória.
• Sinédoque ("receber juntamente") - é a substituição da parte pelo todo
ou do todo pela parte. Assemelha-se à metonímia mas a relação em que
se encontra é mais física que mental. Por exemplo, em Lc. 2:1 "todo o
mundo..." se refere apenas à parte do mundo que César Augusto governava,
ou seja, o Império Romano; em Pv. 1:16 a sentença "os seus pés correm
para o mal" não significa que apenas os pés deles correm para o mal mas
eles mesmos. Os pés são a parte que representa o todo – “eles”. Outros
textos: Rm. 1:16; 16:3-4.
• Prosopopéia - usa-se esta figura quando se personificam as coisas
inanimadas atribuindo-lhes ações de pessoas. Exemplos: Sl. 85:10-11; Is.
35:1; I Co. 15:55; Tg. 5:4; I Pd. 2:8.
• Eufemismo - consiste na substituição de uma expressão desagradável,
pesada ou injuriosa por outra inócua ou suave. A Bíblia fala da morte dos
cristãos como um adormecimento (Ex.1:5, Is.6:2b, Ez.16:26, At. 7:60 e I Ts.
4:13-15). Eufemismos podem também ocorrer nas traduções e não apenas
no texto original (o termo esterco – “peresh” traduzido por “imundície” em
Ml.2:3)
• Hipérbole (hiperballos - "sobrepor, colocar acima") - apresenta uma coisa
grandemente aumentada ou grandemente diminuída do seu tamanho real
para apresentá-la viva à imaginação ( I Samuel 18:7; Sl. 6:6; Sl. 119:136;
Miquéias 6:7; Mt. 23:24; Mc. 10:25; Lc. 6:42; Jo. 21:25 ). Algumas vezes
quando a hipérbole reduz demasiadamente ou deprecia, como em Nm.
13:33 e I Co. 15:9, recebe o nome "lilote".
• Ironia (do grego eironeia - "simulação") - faz-se uso da ironia quando se
expressa o contrário do que se quer dizer mas sempre de tal modo que se
faz ressaltar o sentido verdadeiro. A ironia é uma maneira de ridicularizar
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Hermenêutica Bíblica - 32
indiretamente sob a forma de elogio. Com freqüência vem marcada pelo tom
de voz de quem fala, o que torna difícil, às vezes, distinguir uma ironia num
texto a não ser que o contexto ajude. Exemplos: II Sm. 6:20; I Rs. 18:27; Jó
12:2; Am. 4:4-5; II Co. 11:5.
• Pleonasmo - consiste na repetição de palavras ou no acréscimo de palavras
semelhantes que em nossa língua parecem redundantes. Exemplos: Jó
42:5; Mt. 2:10; At. 2:30 ).
• Paradoxo - é uma afirmação aparentemente absurda e contrária ao bom
senso. Caracteriza-se pela união de duas idéias opostas numa mesma
sentença de forma proposital. Por isso não é o mesmo que contradição.
Exemplo: Mc. 8:35.
• Paronomásia - Consiste no emprego das mesmas palavras ou de palavras de
sons semelhantes para produzir sentidos diferentes. Às vezes é chamada de
“jogo de palavras” ou “trocadilho”. Ex. Mt. 8:22; É muito bonita quando
aparece na língua original. Por exemplo, Isaías utilizou palavras de sons
parecidos para produzir um impacto verbal nos ouvintes ou leitores de Is.
5:7. Nesse texto, o Senhor buscava “juízo”.
Além do conhecimento das figuras de linguagem, torna-se igualmente
importante o estudo dos diferentes gêneros literários e de sua utilização no texto
das escrituras. Por gêneros literários entende-se o modo de expor por escrito um
pensamento. Em geral, estão ligados a grupos de textos maiores, sejam orações ou
unidades distintas. O pressuposto que fundamenta o estudo dos gêneros literários é
a concepção de que o autor se expressa dentro das categorias literárias que lhe
sejam comuns, familiares e adequadas ao seu propósito. Quando se estuda a
cultura de um povo percebe-se que quando ele tem algo a dizer sobre si mesmo e
sobre os seus dramas ele o faz sempre dentro de formas próprias nas quais possa
entender-se e ser entendido. Existe melhor forma de entender o drama do homem
nordestino senão pela literatura de cordel? Assim também o drama teológico do
homem bíblico, expresso dentro de várias formas (aqui uma contribuição da crítica
das formas) e gêneros literários. Entretanto, persiste a tentativa de tentar "salvar" o
texto bíblico desses gêneros com o objetivo de perpetuar determinadas posturas
teológicas ou de proteger aquilo que se pretende por "Palavra de Deus", sempre na
ótica de grupos ou pessoas que demonstram ter o monopólio da verdade unívoca.
Os gêneros literários são mais caracterizados na forma de orações e textos
maiores, entretanto há alguns que os classificam também em unidades menores,
quer sejam palavras ou frases. Este último estudo foi feito no item anterior, o qual
trata das figuras de linguagem ou de retórica. No que diz respeito às unidades
maiores, os principais gêneros literários são os seguintes:
Parábola (do grego parabállein - "colocar junto, confrontar") - É um tipo de
história criada a partir de uma montagem feita pelo autor com base em fatos
fictícios em um cenário extraído da vida real, sempre com o objetivo de ilustrar uma
verdade moral ou espiritual, utilizando como recurso principal a comparação , às
vezes implícita no texto, outras vezes explícita ( a cláusula "O reino dos céus é
semelhante ..."). Devido ao fato da parábola estar montada sempre na égide da
verdade central, deve-se tomar bastante cuidado ao usar os detalhes que compõem
a história para criar doutrinas e ensinamentos, quer seja através da alegorização,
quer seja pela comparação direta (O local onde estavam o rico e Lázaro é o mesmo
Sheol do AT ou o mesmo inferno e céu do NT ? - Lc.16:19 ss ).
• Alegoria (do grego Allos-agoreúo - "dizer outra coisa" ) - Consiste em um
conjunto de várias metáforas ou uma metáfora continuada numa narrativa
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Hermenêutica Bíblica - 33
em que as expressões adquirem sentido figurado sempre por intenção do
autor. Muitas vezes confunde-se a Parábola com a Alegoria. Na Parábola, o
autor mostra-se interessado em comparar ou assemelhar de forma clara e
explícita (símile ampliado), enquanto que na Alegoria, o sentido ao qual
quer se referir o autor está implícito, residente nos elementos que usa de
forma figurada (metáfora ampliada). Uma segunda distinção é que enquanto
a Parábola possui geralmente um só elemento principal de comparação, a
Alegoria contém vários (Vide Sl. 80:8-16); em terceiro lugar, enquanto a
Parábola apresenta um evento factível, na Alegoria não há essa
caracterização . Outros textos: Ezequiel 17:1-10; Is. 5:1 ss; Mt. 3:12; 23:4;
• Fábula - É uma narrativa que se caracteriza principalmente pela atribuição
de qualidades humanas a seres irracionais ou mesmo inanimados. Há
sempre na Fábula a preocupação com a emissão de um juízo de valor ou de
um ensinamento moral. Exemplos: Dt. 9:8-15; II Rs. 14:9; II Cr. 25:18. No
que diz respeito ao estudo de unidades de texto ainda maiores, alguns
textos formando livros inteiros, observa-se a existência de diversos gêneros
literários, dos quais pode-se relacionar os mais freqüentes:
• Jurídico ou Nomístico - Associado a uma boa parte dos cinco primeiros
livros da Bíblia. Esses textos compreendem dois tipos de leis: apodíticas e
casuísticas. Nas leis apodíticas, os mandamentos são iniciados com uma
cláusula proibitiva - a palavra não - como acontece no Decálogo (Ex. 20:3-
17). Nas sentenças casuísticas, as leis são apresentadas por uma condição
que origina determinada situação. São leis dadas para situações específicas
(Lv. 20:9-18, 21; Dt. 15:7-17).
• Narrativo - Neste gênero, tem-se uma espécie de história, cuja idéia não é
mesma da maneira de se fazer história própria do historiador moderno, o
qual trabalha a partir de uma visão científica. Na narrativa bíblica a história
é contada com o intuito de transmitir uma mensagem, uma teologia. Por
exemplo, um leitor desavisado crerá que I e II Crônicas são uma cópia
idêntica do texto de II Samuel, principalmente no que diz respeito à vida de
Davi. Ora, lendo os capítulos 11 a 21 de II Samuel tem-se um claro sentido
de que ao relatar as falhas de Davi, o autor queria ilustrar o fato de que o
pecado produz conseqüências devastadoras, combinando com a mensagem
dos livros de Deuteronômio e I e II Reis, os quais foram produzidos num
ambiente de culpa dos exilados na Babilônia quando se via na infidelidade
espiritual do povo a causa principal da catástrofe de 586 a.C. Entretanto, I
e II Crônicas omitem os pecados de Davi, dando ênfase ao seu fulgor real,
aos sacerdotes e ao templo. Essas obras se encaixam perfeitamente numa
época de restauração física e espiritual dos judeus, no retorno do cativeiro
babilônico, quando o povo se queixava da perda de seus símbolos
nacionais, conforme está implícito em Ag. 2:3. I e II Crônicas encorajam o
povo a manter-se na fidelidade ao Senhor, na promessa de que a linhagem
de Davi e o templo seriam preservados.
Existem vários tipos de narrativas, dentre as quais se destacam: Epopéia,
Épico, Etiologia e Tragédia. Na Epopéia aparece a narrativa sobre os feitos e a vida
de um herói nacional ou protagonista, uma pessoa que por vezes torna-se padrão
para os outros como por exemplo, Abraão, Gideão e Davi. No gênero épico aparecem
as narrativas contendo uma série de episódios centralizados numa pessoa ou num
grupo de pessoas com façanhas militares e eventos de milagres. Um bom exemplo é
o período de peregrinação dos israelitas no deserto e a conquista de Canaã. A
Etiologia é uma narrativa cujo propósito é o de justificar uma realidade a partir de
causas encontradas em tradições orais bem antigas. Para justificar o domínio sobre
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Hermenêutica Bíblica - 34
os cananeus, os israelitas incluíram em sua narrativa das origens o episódio da
nudez de Noé e da maldição imposta a Cam e sua descendência, conforme Gn.9:22-
27. Existem etiologias ligadas ao culto para explicar a importância de lugares
sagrados. Já a Tragédia é a história da decadência de um indivíduo, do apogeu ao
desastre (Sansão, Saul e Salomão).
• Poético - Não se pode limitar a poesia hebraica apenas aos livros de Jó,
Salmos, Provérbios, Eclesiastes e
• Cânticos. Há poesia no Pentatêuco e também nos livros proféticos. Na
poesia ocidental existe a força da métrica e da rima; na poesia oriental
repetição e ritmo se unem para tornar uma passagem duplamente
memorável. A esta característica dá-se o nome de Paralelismo, muito
comum no livro de Provérbios. Observa-se no texto bíblico vários tipos de
Paralelismo dentre os quais destacam-se o sinônimo, o antitético e o
sintético. No Paralelismo sinônimo duas sentenças repetem com palavras
diferentes uma mesma idéia na mesma ênfase e sentido (Pv. 5:1); no
Paralelismo antitético, a segunda sentença apresenta uma declaração
oposta à primeira, mas sempre numa relação dimetral (Pv. 10:1); no
Paralelismo sintético, uma segunda ou terceira sentença complementam a
idéia da primeira, levando-a adiante sem repeti-la com palavras diferentes
(Sl. 27:1; 1:3; 103:1).
• Apocalíptico - Carregado de simbolismos, imagens, visões e revelações, este
tipo de literatura aparecia com mais freqüência em momentos de grande
perseguição contra judeus ou cristãos. Nele percebe-se um estado de tensão
entre justos e ímpios, reino de Deus e reino dos homens, com resultados de
recompensa para ambos. No AT aparece nos livros de Daniel e Zacarias e no
NT, no Apocalipse de João. Entretanto, no período intertestamentário,
houve uma proliferação deste tipo de literatura aparecendo livros tais como
o de Henoc e outros considerados pseudepígrafos. A literatura apocalíptica,
muito mais que previsões, contém verdadeiros tratados de fé com o objetivo
de confortar os fiéis perseguidos e exortá-los a permanecerem firmes. Em
síntese, o apocalipse é um documento da resistência dos fiéis.
• Sapiencial - Alguns podem confundir poesia com sabedoria. Toda literatura
sapiencial tem caráter poético, mas nem todo texto poético pertence à
literatura sapiencial. Pode-se encontrar um tipo de sabedoria dos simples, a
sabedoria cotidiana (Provérbios); uma sabedoria que reflete a crise da idéia
de Deus (Jó) ; uma sabedoria que reflete a crise na própria sabedoria
(Eclesiastes). Muito mais do que os profetas, os sábios incomodaram as
estruturas religiosas do seu tempo e até hoje incomodam àqueles que
realizam uma leitura moralista do AT.
• Evangelhos (do grego euangellion - "boa notícia") - Essas narrativas não
podem ser consideradas simplesmente como uma biografia de Jesus e, por
isso, históricas sob o ponto de vista estrito da palavra "história". Isso fica
evidente na conclusão do Evangelho de João (21:25). Aqui o verdadeiro
Jesus é o Cristo, Filho de Deus. Os evangelhos contêm algum material
biográfico sobre Jesus, mas apresentam muito mais o que ele significou
para a comunidade que guardou as suas palavras e o conteúdo de doutrina
que dele ficou (Lc. 1:1-4). Representam, na verdade, a pregação sobre Jesus
Cristo encarnada na atividade da Igreja primitiva, com ações de louvor.
• Epistolar - Esse tipo de literatura era muito comum no império romano e
tornou-se depois útil dentro dos objetivos canônicos. Uma epístola não é
simplesmente uma carta, que é mais curta em seu conteúdo e tem um
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caráter pessoal. Numa epístola, existe uma variedade de temas, abordados
de maneira sistemática, na forma de uma circular dirigida a várias
comunidades. A epístola aos Gálatas por exemplo, é dirigida não apenas a
uma comunidade mas às igrejas da Galácia. Entretanto, a prática de
algumas igrejas de usarem coletivamente cartas menores dirigidas a
indivíduos (Por exemplo, a carta de Paulo a Filemom, lida e conservada pela
igreja de Colossos) fez desaparecer essa distinção entre carta e epístola,
principalmente em virtude da autoridade crescente do apóstolo Paulo sobre
essas comunidades.

4.2. Heurística
De acordo com que o próprio termo sugere, a tarefa da Hermenêutica é
"encontrar" os sentidos do texto bíblico, mediante procedimentos científicos. Um
deles é o da investigação, o qual desembocará na exegese. Diante do texto, o
investigador defronta-se com várias questões. É como se o exegeta estivesse
perguntando ao texto. As questões que mais se destacam diante do pesquisador são
as seguintes:
A. Crítica Textual - O que há de mais original no texto? O texto atual é
resultado de um desenvolvimento redacional? As variantes encontradas são
acidentais ou substanciais? 41
B. Autoria do livro - Através do estilo literário e do conteúdo do livro, coletam-
se dados que podem conduzir ao autor do livro (ou autores), seu meio ambiente,
sua família, tendências teológicas, sua profissão, sua cultura. São notáveis a
diferenças entre o linguajar poético do autor do livro de Jó, o estilo rústico e
agressivo de Amós e Jeremias, e linguagem elegante do livro do Profeta Isaías.
C. Época e finalidade do livro - O que estava acontecendo por ocasião da
escrita do livro ? Há uma íntima relação entre a ocasião e a finalidade de um texto
pois não há texto sem propósito. O que pode acusar a época e a finalidade do livro
está dentro do próprio texto. A partir da insistência do uso de alguns termos,
mesmo que não seja uma indicação explícita da intenção do autor, pode-se perceber
uma finalidade que, por sua vez, indica um drama de época. Por exemplo, as várias
referências à Lei, aos "rudimentos do mundo" e à escravidão que a Lei provoca ,
revelam em Gálatas uma clara intenção de resolver os problemas e estragos
causados pela infiltração de judaizantes na igreja primitiva. Outras vezes o autor
indica de forma clara e explícita a sua finalidade ao escrever o livro, como em Pv.1:
1-6, Lc.1:1-4 e Jo. 20:30-31.
D. Condições ambientais do autor - O autor é filho de seu tempo e do
ambiente em que vive. Expressa-se numa mentalidade correspondente a si e aos
seus leitores. Por sua vez, essa mentalidade reproduz determinadas condições
ambientais, que podem ser de natureza cultural, físico-geográfica e histórica. Do
ponto de vista cultural, por exemplo, é imprescindível o estudo da língua e do estilo
literário para uma correta interpretação do pensamento do autor. Cada língua tem
sua própria dinâmica e seus próprios idiomatismos. Outro instrumento importante
é o estudo das religiões comparadas. Uma das contribuições desse estudo é a
separação entre aquilo que é teológico e aquilo que é cultural dentro de um ponto
de vista global. Como exemplo de determinantes físico-geográficos existe a
caracterização da Palestina como uma terra seca e estéril, onde a água e a
fertilidade eram uma necessidade constante. A relação entre o homem e a terra
passa de geográfica para religiosa. O livro de Gênesis descreve enfaticamente essa
relação nos seus primeiros capítulos para falar do pecado das origens com a
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divinização dos elementos naturais, o que constitui uma reação da religião de Israel
contra as propostas da religião agrária dos cananeus.

4.3. Proforística
A Proforística é a terceira parte básica da Hermenêutica e de acordo com o
significado do nome no grego ( mostrar, expor, levar adiante ), sua finalidade é a de
expor a Bíblia. Como se expõe as Escrituras? Algumas das formas mais comuns são
as seguintes:
A. Versões - Pode parecer estranho que uma tradução da Bíblia seja uma
exposição da mesma. A versão se apresenta como uma tradução bem feita, talvez a
melhor. Muitas vezes, entretanto, está a serviço de uma determinada tendência
hermenêutica. Já foi visto no primeiro capítulo como a Septuaginta e os Targumim
fizeram esse papel. Um outro exemplo muito interessante, mais para dentro do
nosso tempo é o Salmo 116:15 onde a palavra "preciosa" pode sugerir um real
interesse de Deus pela morte do fiel, quando no original indica mais um alto custo
ou uma tristeza de Deus por estar agora "perdendo" o contato com o fiel pela sua
morte (conforme doutrina do Sheol no AT). Aqui, um real interesse em ligar o Salmo
à expectativa cristã da ressurreição e do encontro com Cristo após a morte do fiel,
não existente no texto original. Outro bom exemplo é a tradução da palavra
hebraica “ ‘al’mah” – mulher jovem, moça em Is.7.14 por virgem que em hebraico é
“na’arah”. Menciono ainda um arranjo na numeração de versículos separadas por
unidades vistas em alguns textos como por exemplo em Ef.5.21-22. Como exercício,
observe as diferenças deste texto nas versões NVI, ALMEIDA, NTLH, BJ e outras.
Muitas vezes o pesquisador percebe que o texto foi modificado
substancialmente em função de acréscimos ou de retiradas ou modificações feitas
no decorrer da história. Const ata isto geralmente quando possui duas ou mais cópi
as de manuscritos do mesmo texto. Geralmente aí vê-se uma série de interesses de
ordem teológica ou particular. Entretanto, muitas varia ntes ocorrem devido a
acidentes, ou seja, falhas de copistas quando da ocasião de trans crição de textos
de um manuscrito antigo para outro novo.
B. Comentários - É uma forma sistemática de estudo e de exposição de um
livro bíblico ou de parte dele. Aí se lança mão de vários recursos, alguns deles já
expostos no estudo sobre Noemática e Heurística. Os comentários representam
posições teológicas de pessoas ou escolas de estudos bíblicos das mais diversas
tendências hermenêuticas. Cada vez mais instituições procuram um maior
aprofundamento, principalmente nas questões lingüísticas-históricas visando a
uma interpretação mais próxima do sentido do texto. Outras formas de comentários
são as chamadas notas de rodapé constantes em bíblias especiais ou bíblias de
estudo. Percebe-se, por exemplo, na Bíblia de Scofield, uma inclinação tendenciosa
em suas notas (em Daniel, Ezequiel, Mateus e Apocalipse, entre outros) para a
defesa de uma escatologia de tendência dispensacionalista, futurista e pré-
milenista. Um outro exemplo interessante é a nota de rodapé da Bíblia de
Jerusalém, um dos mais importantes textos surgidos nas últimas décadas, para o
texto de Mt. 1:25, no qual se percebe uma determinante dogmática sobre a
interpretação do mesmo.
C. Teologia Bíblica - Alguns acham que a teologia bíblica não é uma
interpretação em si, mas o resultado da interpretação. Entretanto isso pode ser
questionável, pois "fazer Teologia" significa também interpretar. Aquilo que se
chama de forma analítica da teologia bíblica é o caminhar histórico e evolutivo da
exposição da temática religiosa e bíblica, separando a Teologia bíblica em partes e
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unidades distintas e independentes. Assim, os escritores são vistos como
intérpretes e teólogos ao mesmo tempo. Outra forma de teologia segue o método
lógico, o qual está relacionado com os sistemas nos quais a Teologia é apresentada,
existindo assim o chamado elemento doutrinário ou dogmático.

5- DESAFIOS DA HERMENÊUTICA
PARA OS NOSSOS DIAS
Para Augusto Nicodemus um dos desafios atuais da Hermenêutica é saber até
que ponto as ferramentas do método histórico-crítico podem ser úteis na
interpretação do texto sagrado visto que utilizam pressupostos por vezes
antagônicos à convicção de que a Bíblia é a Palavra de Deus. Um desses exemplos e
a busca pelo Jesus histórico. A leitura dos evangelhos dentro dessa ótica sem a
tradicional roupagem moralista geralmente atribuída a Jesus, tira muitos mitos
sobre o Cristo-homem e, de uma certa forma, deixa para trás o dogma e a Teologia
Sistemática. Nessa abordagem se conhece o Cristo que desafiou estruturas
familiares e sociais : ele rejeita o casamento, deixa sua família e sai pelo mundo
reunindo pessoas que escolhe como seus familiares; o Cristo amigo do povo, dos
excluídos e dos bem-de-vida: seus amigos são cobradores de impostos (inimigos dos
judeus), homens ricos, pescadores, beberrões e prostitutas; o Cristo nada
"religioso", ou seja, que desafia estruturas da religião constituída : ele cura e desafia
o monopólio da religião dominada pelos sacerdotes e pelos escribas. É o Cristo do
sorriso que afaga crianças e as toma em seus braços; mas também é o Cristo
aborrecido que expulsa cambistas do templo. Esse Cristo é Senhor. Como conciliar
essas tendências e como aplicá-las hoje, construindo pontes de relação entre a
situação enfrentada por Jesus e a situação que ora enfrentamos? Poder-se-ia aqui
traçar algumas linhas de tratamento para o problema:
• Com grande probabilidade, pode-se encontrar tanto no método histórico-
crítico quanto na proposta biblicista elementos positivos em suas
respectivas propostas hermenêuticas, desde que não haja um radicalismo
de ambas as partes. Trabalhos como o de Gerhard Maier43 tem mostrado
algumas deficiências do método histórico-crítico a partir da realidade
alemã. É a luta entre o conceito "razão" e a "Palavra de Deus".
• O relativismo teológico tem se constituído em um dos principais resultados
finais do método histórico-crítico e também num elemento questionador da
proposta de formação de igrejas devidamente fundamentadas em doutrinas
bíblicas. A necessidade de um esteio, um "cânon espiritual" não tem servido
apenas como fator de segurança individual do crente em sua fé, mas
também a nível coletivo, no sentido de identificar o grupo diante da
secularidade, sendo útil inclusive para servir de referencial ao não-crente.
• Entretanto, não há como menosprezar os resultados da pesquisa histórico-
crítica. É praticamente impossível negar a falta da unidade "doutrinária"
existente nos testamentos, quer seja do testamento em relação a si mesmo,
quer seja de um testamento em relação ao outro testamento. É óbvio, por
exemplo, que os próprios profetas, porta-vozes de Deus, se encontravam
sempre na tarefa nova de contestar posturas doutrinárias antigas que, por
vezes, eram utilizadas para legitimar posturas antiéticas do povo que ia sob
o nome do Senhor. São notórias as posturas de alguns profetas contra o
sacrifício ( Is. 1:11-12), o cerimonialismo (Is. 1:13-14), a eleição de Israel
(Am. 3:1-2 e 6:1; Am. 9:7 contrariando Jeremias 47:4 ), o Dia do Senhor
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como dia do favor divino ao seu povo (Am. 5:18). É igualmente significativo
como o livro de Jó questiona a íntegra da doutrina da retribuição e do
individualismo ético, entrevisto em Ezequiel 18, o qual, por sua vez,
representa uma reação contra antigos pressupostos do Anátema44 e da
Guerra Santa. Pode-se assumir, entretanto, que a Bíblia possui uma
unidade central de tema: o que se vê de Gênesis a Apocalipse é a idéia de
um Deus que ama o ser humano e que vai buscá-lo em sua indignidade e
de um ser humano que foge desse Deus e de seu amor.
• Provavelmente, um dos maiores desafios da Hermenêutica para os tempos
hodiernos é a leitura de "conveniência" que existe da Bíblia. Esse tipo de
leitura é seletiva e parte, quase sempre, de idéias pré-concebidas. Por
exemplo, como ler o texto dos "Cântico dos Cânticos"? Alegoricamente ou
naturalmente ? 45 É alegórico quando fere o pudor moralista; é natural
quando se precisa de um argumento litúrgico-especial, uma cerimônia de
casamento. Outro elemento, o da Teologia da Prosperidade, é quase sempre
um discurso nos lábios de pessoas que atingiram situação econômica
privilegiada e sentimento de culpa para aqueles que ainda não saíram do
ocaso financeiro ou ainda que não “digeriram” o ser parte de uma classe
média decadente.
• Dessa leitura advém um problema, o do conflito entre a complacência da
aceitação das opiniões dos outros de uma espécie de “ditadura da mídia”,
que impõe o “politicamente correto”, e aquilo que a Bíblia ensina nas suas
bases de fé (graça, culpa, condenação eterna, salvação, arrependimento,
mudança de vida, santidade, etc)
• Gostaria de deixar alguns temas para discussão em classe. Entre eles, o
problema da “razão sensível” (questão estética). Os desafios de um mundo
globalizado e transcultural movido cada vez mais pelas informações obtidas
da Internet. A necessidade de uma releitura do princípio do “Sola Scriptura”
e a leitura fixista da Bíblia cada vez mais comum nos meios
fundamentalistas.

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