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Vedalo, 23: 165- 170, 1984 nr ASPECTOS DO CASAMENTO AFRICANO, De um modo geral, pode-se dizer que 0 processo social constitui 0 trago tipico do casamento africano. Com efeito, quando os ocidentais falam de “um ato humano”, eles entendem um ato pessoal, livremente decidido e executado, Semelhante ato supe que seu autor esteja plenamente consciente do que faz © goze plenamente de sua liberdade. E um ato pessoal, do qual o autor assume toda a responsabilidade. Assim, um contrato matrimonial no sentido ocidental do termo exige um ato humano da parte de dois personagens engajados, senflo 0 casamento € invalidado. No casamento africano, o contrato apresenta uma estrutum diferente. De infcio, o consentimento individual dos dois nubentes ngo. basta de modo algum para estabelecer um contrato matrimonial. Mesmo se, tradicionalmen- te, 0 direito de livre escolha do nubente fosse reconhecido a jovem, assim como ao rapaz (o que esté Jonge de ser sempre 0 caso), seu acordo nfo se realizaria a nfo ser que fosse revalidado pela concordancia dos grupos. Os casos em que um casal mantém sua posig%o contra a decisfo do grupo sfo extremamente raros. As vezes as jovens abandonavam definitivamente o seu cli ¢ se deixavam integrar no cli do marido. Elas se desenraizavam dos seus, era preciso se ensaizar em outra parte. Um homem sem ascendéncia, sem parentesco, sem descendéncia, é impossivel na sociedade africana; mesmo a um escravo € necessdrio um senhor. © perfeito solitario ¢ um fantasma, uma vis%o assustadora. Mesmo enraizada na linhagem ou no clf do seu marido, a jovem assim rejeitada fica Perigosamente sob a ameaga da célera dos seus parentes mais velhos: o rancor de um deles é bastante para anular a fecundidade da jovem rebelde. Para um rapaz que se re- volte, o mesmo problema se apresenta: ele deve encontrar um novo refligio, deve renascer num outro grupo. E 0 acordo dos dois grupos, conclu‘do ritualmente, que dé substfncia, realidade eficdcia ao consentimento dos nubentes, Isso vale para toda a decisio de um jovem: ela nfo é valida senfo quando endossada pelos parentes mais ve- Thos, pelo seu grupo. Um ato, devidamente assinado, atestado por testemunhas é um ato piibli- co. Uma vez realizado, ele é definitivo, imevogdvel. O contrato matrimonial ocidental ¢ um ato semelhante: assina-se e aceitam-se, diante de testemunhas, como esposa ¢ esposo, € 0 casamento € conclufdo; em princfpio, definitive, irrevogavel. O casamento africano nfo tem esse cardter legalista. Claro, é preciso marcar 0 acordo ¢, freqiientemente, h4 um ritual tfpico para simbolizar e expri- mir esse acordo: refeigfo em comum, vinho de palma presenteado e recebido, penhor sob a forma de um objeto simbélico etc. Entretanto, cada ato nflo ¢.mais que um elemento num processo que se desenrola no ato ¢ que nunca chega o termo. E uma atitude que deve crescer, desenvolver-se, amadurecer. A troca desencadeia, sustém um encontro progres- sivo. Eles af vo as apalpadelas, por sugest&es lentas, pela exibi¢go de todo um ritual cheio de sfmbolos e alustes: enviam-se “sinais”, visitam-se, mostram-se corteses, mas nJo demonstram imediatamente suas intengdes, trocam presentes etc. E todo um processo que se desenrola, muito mais do que umato quese conclui de uma vez por todas. Cede-se um direito; nfo se cedem todos os direitos sobre uma coisa ou pessoa de uma vez s6. Cede-se um direito, nfo se abre mao de to- dos os direitos sobre uma coisa ou pessoa: cede-se 0 acesso a uma mulher, 0 direi- to de coabitagdo por umanoite ou por um perfodo, os direitos domésticos de todo tipo, finalmente 0s direitos 4 progenitura, para que a mulher procrie (ou se reservam estes Ultimos ‘ direitos}. As vezes, esses ritos de transferéncia so muito simples (p. ex, a refeicfo ritual), mas comumente tratase de um longo proceso no qual distinguimos dificilmente os elementos essenciais dos acess6rios de todo que, nfo raro, é diftcil dizer quando os dois cOnjuges ultimaram 0 casa- mento. Mesmo depois que a coabitacdo tornou-s¢ regra, as trocas de presentes continuam, as prestagdes obrigatérias se repetem, muitas vezes até o nascimento- do primeiro ou das primeiras criangas, e mesmo além, até as dividas da morte Quando o pracesso é interrompido ¢ 0 casamento se acaba, o direito prescrva exatamente © que deve ser devolvido dos presentes ou dos bens de dotes jd entregues. Nesse sentido, 0 casamento africano nfo € um ato, ¢ mais uma suces- so de atos para estabelecer, etapa por etapa, uma nova situacdo, tanto para os cOnjuges como para seus pais respectivos. Antes de tudo sao estabelecidas alian- gas. Um dos tragos mais marcantes e, portanto, dos mais debatidos na literatu- 1a, especializada ou nfo, é certamente a transferéncia dos bens do dote. Muito jd se escreveu sobre a questo dos dotes na Africa. Muitas teorias foram propos- tas para explicé-los, justificd-los ou surpimidos. Tentaram fazer deles o funda- mento de todo contrato matrimonial na Africa, a unica garantia de dignidade ¢ estabilidade do casamento. As vezes, cafram num outro extremo, reduzindo toda transferéncia de bens relacionados 20 dote numa transag4o comercial pura ¢ simples. As discussSes tratam tanto do termo a empregar para traduzir essa realidade africana como sobre a funcfo precisa dessa instil uig4o. Nos anos de 19293) toda uma seqiiéncia de astigos foi publicada na revista Man discy tindo o problema do dote na Africa. Uma segunda fonte € 0 Survey of African marriage and family life, de A. Phillips, ed. Londres, 1953, e. finalmente. 4jrican Aspectos do Casamento Afroano 165 Systems of kinship and marriage, de Radctiffe-Brown ¢ Daryl Forde, ed., Oxford University Press. Em todas as Brandes revistas encontramos, evidentemente, artigos que tratam do mesmo assunto. © que sobressai de todas essas andlises € que a instituigao do dote ¢ uma instituigdo social, Nao se trata de uma transagdo individual. Jd evocamos 0 caré- ter social do processo matrimonial: dois grupos de parentesco entram em, Telagdo pela troca. Portanto, a natureza do dote dependerd da natureza dos dois grupos Ou sociedades, A diferenga fundamental entre o grupo matrilinear e © grupo pa- trilinear consiste na fitiago diferente das criangas. No sistema matrilinear a Grianga pertenee ao grupo materno, Se 0 casamento, nesse aso, € matrilocal, © maride nde goza sento dos direitos sexuais, de alguns direitos domésticus, mas no de diteitos in genetricem, A situagio € bastante Precdria, os lagos que unem mulher ¢ seus inmaos a seus tios maternos so mais fortes, mais vivos e mais eficazes do que os que a ligam a0 marido ¢ a sua parentela, O que vemos nesses casos? O grupo do marido ndo paga o dote. O bem que faz parte dele se limita a alguns presentes tradicio. nais (p. ex., algumas cabagas de vinho de palmeira), de modo que temos nessas condipdes, casamentos, podemos dizer, sem date (sobretudo casamentds prefe- tenciais). Se um casamento num grupo matrilinear ¢ virilocal, os direitos do mari- do se afirmam mais facilmente: direitos sexuais, direitos domésticas, bem defini- dos, mas nfo direitos in genetricem. A autoridade sobre as criangas é, muitas vezes, partithada entre 0 pai ¢ 0 tio materno. Nesse caso, hd regularmente a trans- feréncia dos bens de dotes mais substanciais, um ritual mais desenvolvido e um Proceso para o divércto mais estreito e difteil de obter. E evidente que toda va- rlagdo na estrutura eoncreta do parentesco leva a variantes andlogas na constitui- Sao do dote: 0 vinho de palma ou a carne de caga sett substitu dos por cabegas de gado numa sociedade de criadores, ¢ o dote partilhard o sentido ea fungdo de Bado nessa sociedade. Os grupos patrilineares reconhecem os direitos do grupo patemo sobre a Progenitura: o esposo reccbe todos os direitos sobre a mulher: direitos Sexuais, direitos domésticos ¢ direitos it genetricem. Os bens do dote transmitidos 20 Brio que entrega a mulher (os “doadores” da mulher) erescem de volume, © ritual se desentola, o disércio & menos freqiiente. Em eral, esses grupos conhe- cem 0 dote mais elevado. Constatamos, portanto, que a forma do dote esté intimamente ligada a estrutura social do grupo: um casamento estruturalmente estdvel provoca uma tasnferéncia de bens de dotes cada vez mais notéveis: é uma questo de confian- 6a, de presttgio, de importancia econémica, Toda a linhagem estd interessada, sada membro reclama seu presente. O grupo inteiro 6 atingido pelo dote, seja contribuindo para sua constituicao, seja recebendo uma parte quando de sua dis- tribuiggo. O casamento é um assunto grupal, um assunto Profundamente social, intimamente ligado a estrutura da propria sociedade. 166 Kabengele Munange Ao contrdrio, um casamento estruturalmente fraco, por isso tendente a instabilidade, provoca uma transferéncia de bens de dotes cada vez menos va- liosos, até quase o seu completo desaparecimento. Os bens de dotes tornam-se menos importantes, perdem seu valor de prestigio social e seu alcance econdmi- co. Toda sorte de nuangas se estabelece entre os dois extremos, Eis os pontos onde estdo as discussdes dos antropdlogos. De um modo geral, podemos dizer que o sentido do dote ndo pode ser expresso numa Unica frase, que varias significagdes podem ser superpostas umas ds outras e que a fun- go e 0 sentido dependem, ao menos particularmente, da estrutura da sociedade. As discuss6es sobre o dote em geral, sem nenhuma especificagao, seriam, portan- to, intiteis. Existe, pois, um elemento comum em todas as formas de unifo matrimo- nial na Africa — € 2 troca’. Achamos que o elemento é essencial, mesmo onde nfo existe um dote. propriamente dito. Parece que toda troca nas sociedades tradicionais tem um sentido especffico, um sentido que os antropdlogos muitas vezes exprimem com 0 termo, alids equivoco, “mistico”. Recordemos que o ser humano, nas sociedades bantos, assim como em outras sociedades tradicionais, estd integrado num sistema de dinamismo, de forgas que o afetam na realidade mais profunda, em sua propria existéncia. OQ homem ¢ concebido como um ser dindmice, quer dizer, existindo de acordo com graus de intesidade varidvel: é forte ou fraco, ele se sente “salvo” ou morrendo; ele poderd fortalecer os mais mogos e depende, ele prdprio, de seus mais velhos: pais ou antepassados. Comu- nica sua prdpria subsisténcia, sua vida e sua forga a sua progenitura, ao seu grupo, a tudo que possui, o que manipula ete. B com 0 apoio dos objetos mate- riais que o homem entra em comunhio vital com os outros: é o objeto transmiti- do que conduz sua existéncia, sua vida, sua realidade pessoal. O chao onde ele se assenta, o utensflio que ele cmprega, o p6 que ele pisa, a roupa que usa e, com mais forte razfo, tudo o que lhe pertence corporalmente — unhas, cabelos, crostas de ferida etc., tudo est4 impregnado da sua realidade. Através desses ‘objetos materiais pode-se exercer um poder real sobre a propria vida da pessoa que estava em contato mais ou menos {ntimo com eles. Essa transferéncia pode operar para o bem do receptor — ele ser fortalecido, curado, sustentado — ou para o mal, e a forga transmitida o destruird, trabalhando para a sua destruigdo no coragdo da sua propria existéncia (p. ex,, aquele que vai ao mercado e se recu- sa a dar a mo a qualquer um, com medo que o tormem incapaz de vender sua mercadoria; aquele que vai a caga ou a guerra e nfo aceita nada da m&o de um estrangeiro, com medo de perder sua forga de cagador ou guerreiro, etc). E sobre o fundo desse sistema de pensamento que ¢ preciso compreen- der 0 sentido exato do “dom” nog meios ditos “arcaicos”, e os residues dessas 1 Ver, a propésito, LEV]-STRAUSS, C. Les structures elémentaires de la parenté. Paris, Mouton, 1967. Aspectos do Casamento Africana 167 ee concepgoes se traduzem em certas formas de comportamentos das sociedades atuais. O dom é uma comunhdo de vida entre o doador e aquele que recebe. © homem se dé a si proprio no objeto transferido. Baseando-se, principalmente, se bem que nfo exclusivamente, no potlatch dos indios ida América do Norte ¢ no kul dos habitantes das ilhas Trobriandesas — descrito longamente por Malinowski no Argonauts of the Western Pacific —,M. Mauss desenvolveu essas id ne seu Essai sur le don; forme et raison de )’échange dans les societés archaiques?. Ele encontra um sistema andlogo de traca na Polinésia, entre os Maori, os Andamans, na Melanésia, e descobre a sobrevivéncia desses princi- pios nos direitos antigos, nas economias antigas. Diversas ingtituigdes, por exem- plo, entrega de penhor, refeiggo em comum e propriedade comum, provémn das mesmas concepgBes: a participagdo entre os objetos ¢ as pessoas. Se dois.gru- pos trocam dons, pode-se presumir que a mesma idéia est subjacente ao rityal seguido. Um liame espiritual, quer dizer, real, se estabelece entre as dois grupos. “Recusarse a dar, negligenciar de convidar, como recusar-se a receber, equivale a declarar guerra, é recusar a alianga e a comunhdo. Por conseguinte, d4-se por- que se é forgado a isto, porque o donatdrio tem uma espéeie de direito de pro- priedade sobre tudo o que pertence ao doador. Esta propriedade se exprime e ve concebe como um liame espiritual’’*. Os presentes selam 0s casamentos, formam um parentesco entre os parentes dos dois casais. Os presentes dao aos dois lados a mesma natureza e essa identidade de natureza é bem patenteada pela interdiggo que, doravante, constitui tabu, desde o primeiro compromisso de noivado até © fim de seus dias, para os dois grupos de parentes, que trocam presentes perpé- tuos, Essa comunhio entre os dois grupos — que eram estranhos um ao outro 2, pois, inimigos em potencial-se caracteriza por sentimentos ambivalentes: intimidade e medo. B esse caréter ambivalente que se exprime nos tabus (p. ex., entre genro ¢ sogra, entre nora ¢ sogro) ou na terminologia do parentesco particular (p. ex., © grupo que recebe a mulher serd sempre inferior em relag#o ao grupo doador). Assim é preciso colocar aqui a observagdo de Robert Mckinley, segundo © qual as terminologias de parentescos tam propriedades ideolégicas que sfio fre- quentemente utilizadas para conciliar certas contradig6es bésicas inerentes a sistemas sociais particulares*. Que essas iddias nao sejam alheias a tranaferéncia de bens dotais no sistema africano parece resultar de certas conseqiiéncias do processo matrimonial. Nor- malmente, hd sempre transferéncia de tutela das jovens de mfo de seus pais ou tics a0 marido e seus mais velhos, Por esse fato, a moga entra num outro “campo de forgas”, ela entra numa dependéneia vital de outres pessoas, vives 2 MAUSS, M, Sociologie 6 Anthropologie. Paris, PUF, 1950. p. 144 et segs. 3 MAUSS, M. Op. cit, p. 1623. 4 McKINLEY, ROBE! A critic of the reflections theory of kinship terminobgy; the Crow/Omaha case. Man. 6 (2): 228, jun. 1971, “om eee ¢ mortas, e mais totalmente quando ela se junta ao cla de seu marido e af é inte- grada como membro, num grau minimo, por assim dizer. Entre os Baluba, essa dependéncia da mulher face a seu marido é ilustrada pelo ditado “mulume obei vidye obe” (‘‘seu marido é seu espirito tutelar”)* ; entre os Basanga, ela se expri- me por um ditado, “o homem é o pai-da mulher no lar”. Sabemnos que a depen- déncia da crianga face a seus pais ¢, por assim dizer, total. Como um espirito tu- telar, o ancestral sustenta © protege seu cliente, o faz viver ¢ Ihe fornece o neces- sdclo para nutrir e preservar sua vida, do mesmo modo que os pais no sentido estrito e no sentido mais amplo do grupo doader da vida procriam ¢ fazem cres- cer a crianga, Essa dependéncia fundamentat da crianga comesponde ao amor € A afeig%o que os pais nutrem por seus descendentes. Como os ancestrais so doa- dores de vida, assim so 08 pais. A unidade vital do grupo, do qual os ancestrais formam as rafzes © as fontes, ¢ a condigdo essencial da vida e do bem-estar do individuo, especialmente a unidade vital entre pais e filhos. A esposa passada para a tutela do marido entra numa dependéncia andloga: © amor do marido serd, dai por diante, a condigSo de sua vida ¢ prosperidade. Ela se submeterd a sua autoridade e a seu status superior para softer sua influén- cia vivificante, O marido esté numa relag3o de “‘paternidade” em face de sua mu- ther; ele € 0 doador da vida como um espfrito tutelar: eis 0 ideal. Outro aspecto do casamento africano deve ser sublinhado aqui, o aspecto sagrado, religioso. A linhagem ¢ 0 cld no se compdem apenas de membros vivos, mas também, e, dirfamos mesmo, primordialmente, de membros mortos. Oa mortos em geral ¢ os que atingem 0 sfarus de ancestral em particular apresentam condigdo de parentes mais velhos, de forga superios na comunidade dos vivos. Os mortos estfo presentes; eles continuam a viver na interagdo com o clfi. Se dois clas se unem pelo casamento, nfo ¢ 36 a parte “viva” que estd em jogo, 6 toda a comunidade. Sao pois, tanto os mortos quanto os vivos que vfo se unir e confia- rem-se uns aos outros. Os que recebem uma esposa devem reconhecer, respeitar , muitas vezes, aceitar o mundo ancestral do grupo que a deu; mesmo se a joven estiver desligada do seu grupo ¢ fortemente integrada no grupo de seu marido, ela continua sob a protegdo dos seus ancestrais. Segundo as estruturas préprias 2 cada sociedade, os lagos criados pelo casamento sé enrafzam cada vez mais no mundo do além. No processo cont nuo de fusfo nos pilares mais profundos, do mesmo modo que no nivel social, #@ encontram o dinamismo das sociedades africanas, sua estabilidade, sua segu- Tanga ¢ as ameacas de sua desintegracdo. O dote ¢, portanto, uma representagfo abstrata de uma muther pubere nfo-disponfvel no momento da transagHo. O dote simboliza e significa, em pri- meira Instancia, uma pessoa humana. £ & precisamente essa fungfo que Ihe con- fere seu carater sagrado ¢ a diferencia radicalmente de uma transagao comercial. § THEUWS. 3}. Neftre ot mourtr dans te rituct Lube. Zate, 14 (1): 3, 1961. Aspectox do Casamento Africana 169 Além desse valor simbélico, que nem sempre transparente, 0 dote exerce uma fungao sociolégica real. Esta deve ser considerada em relagdo 4 estrutura social particular de cada comunidade. Assim como toda instituigdo humana, o sistema matrimonial por dote traz, na propria esirutura, os germes da decadéncia. C. Meillassoux demonstra, claramente, como as contradigdes no mecanismo da circulagdo do dote desviam- no da verdadeira fungdo, dandodhe um valor de verdadeira troca®, Se cada dote fosse Identificado com a mulher para o qual se transferisse, ela deveria ser guardada pelo arrendador de mulheres, até que, recebendo uma esposa, em contrupartida, ele a restitufsse ao devedor. Nesse caso, 0 dote seria tHo-somente uma caugio, Nao faria sendo sancionar acordos bilaterais, sera thes permitir aumentar. Haveria, em depésito, tantos dotes quanto o nimero de mu- Iheres transferidas, sem contrapartida imediata. Se as transagSes matrimoniais se sucedessem no tempo, na ordem das necessidades sucessivas das comunidades, uma nica unidade dotal seria suficiente para assegurar a citculagdo de todas as mulheres, Na realidade, evidentemente, no é assim, ¢ diversas circunstincias favorecem a produgdo ¢ a colocagdo em circulag4o de novas dotes: varias trans- feréncias podem ocorrer simultaneamente no seio do conjunto matrimonial; uma familia a quem se entrega uma csposa pode nao possuir outras filhas a propor nem dotes que elas recebam. O nidmero de dotes postos em circulago 6 maior quando hd poucas mogas imediatamente disponiveis. Ora, 0 carga de pro- duzir o dote ¢ da comunidade que, desprovida de mogas ndbeis, contrata a tran- sagio com uma comunidade atrendatéria de mutheres. Quando essa comunidade, por seu lado, prové uma mulher em troca da que the havia sido dada por conta, um dote Ihe é entregue. Chegando as maos de um devedor de mulheres, 0 dote desfaz uma divida. Deveria entao set simuitaneamente destrufdo ou neutraliza- do, Mas, om razo da sua materialidade ¢ de seu contetido de bens durtveis ¢ prestigiosos, o dote perdura além do crédito abstrato que representa. Se se admi- tise que o dote ainda tenha cotaco na emissio do fechamento do circuito matrimonial, o sistema seria falsificado. Assim, a recolocagdo em circulagio de um dote, tendo, direta ou indiretamente, fechado seu ciclo de adiantamento ¢ restituigg de mulheres, inverte a natureza desse dote: representagzo de uma divida extinta, toma-se crédito ativo. Se 0 dote, pelo seu retomno as mfos do produtor, the permite adquirir uma esposa sem ter cedido uma filha, deixa de ser um bem mediato. Adquire um valor para si mesmo pelo seu conforto direto com © Gnico termo subsistente da troca idéntica: uma esposa, Ele se toma a expresso. de um valor fixo, equivalente ao de uma mulher piibere e convencional, pols reconduz 4 convengfo dotal. O dote, dentro dos limites da circulagao matrimo- nial, adquire um vaior de trova. 6 MEILLASSOUX, C. Femmes, grenters et capitaux. Pasis. 170 Kabengele Munanga Outros elementos surgem a fim de darem a esse valor a possibilidade de variar, portanto, de adquirir a virtude de medirem as equivaléncias, Quando no 4 a propria esposa o objeto iiltimo da transagZo matrimonial, mas sua progeni- tura, a fungdo de crédito fixo que o dote exerce acrescenta-se a de sangao da rea- lizaco de casamento, isto ¢, do cumprimento das fungbes procriadoras espera- das. Estando 0 potencial criador da mulher ligado ao perfodo fecundo, o matri- ménio e o volume dotal se estendem durante um perfodo que vai, normalmente, da puberdade a menopausa. Se o date sanciona a realizagdio do casamento, deve- r& sex proporcional a esse tempo ¢ 20 némero de filhos. E na pritica que se ob- serva quando ha depésitos progressivos de bens matrimoniais, Com iss0, o dote tende a tonar-se a contrapartida da progenitura da esposa, como indices diversog_ © confirma: reembolso de fragdo do dote em caso de ruptura do casamento, se os filhos voltarem com a m4e; presentes suplementares do esposo aos sogros em cada nascimento; dote inferior depositado por uma mulher que se casa de novo etc. Ao mesmo tempo em que varia em proporgio da progenitura, o dote reflete também a opuléncia da comunidade. Para que sejam conjugadas essas rmiltiplas contradigdes latentes no sistema dotal, a fim de que o valor nao se intromcta na circulagfo, é preciso ou que os dotes sejam produzidos por um poder central que Ihes regeria a circulacdo, ‘ou ent&o que sejam destruidos quando termina 0 crédito, isto é, no momento em que retornam as mos daquele que 08 pés om circulagio. No quadro de uma sociedade doméstica, sem poder centralizado, excluise a primeira solucto. A destruigf#o ov a neutralizagao dos bens que compdem © dote em mios dos que se situam ao mesmo tempo na origem e no término de seu ciclo de crédito é 0 Gni- co meio de restabelecer o dote nas suas fungGes. Poréin, se tal destruig#o nao ocorre precisamente no momento em que cessa cada divida, resta a possibilidade de gozar da sua virtude nova e funtastica de valor de troca”. Tal perigo se tora palpavel quando os objetos tradicionais de cardter ritual e de simbologia muitas vezes eloqiiente dao lugar a valores monetérios ou objetos utilitérios. N&o é preciso ser um grande fildsofo para ver os inconvenientes que podem surgir na mudanga. Se antigamente certos casamentos jd deviam ser mais ou menos forcados a fim de que se pudesse dispor de um nGmero suficiente de dotes, em vista de outros matriménios ou para esgotar dfvidas frente a um pa- rentesco que nuncs s¢ cansa de apresentar a8 exigéncias do sistema, entdo nfo é de se admirar demais que 0 dinheiro Ifquido, as moedas sonantes, meio soberbo de forga, prest(gio, gozo transformem o valor simbélico do dote em um vil cal- culo pecunidrio. O sentido original do dote certamente nfo foi esse. KABENGELE MUNANGA Museu de Arqueologia e Etnologia - USP 7 MEILLASSOUX, C. op. cit,..p. 97-118. publicagdo anual NO 23 1984 museu de arqueologia e etnologia universidade de s#o paulo sdo paulo, brasil

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