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A ATUAÇÃO DO MÚSICO, A LEGITIMIDADE DO SEU CONTROLE PELO

ESTADO E A VALIDADE DAS DISPOSIÇÕES REGULADORAS DESTA RELAÇÃO


NA LEI 3.857/60.

Considerando a proteção e promoção do interesse público a serem

desempenhados pelo Poder Público, conferida lhe é a prerrogativa de restringir liberdades,

definindo o direito legítimo de exercê-las, sendo esta uma das faces do que se chama poder de

polícia do Estado. Avaliando que materialmente estaria este interesse público no ordenamento

jurídico positivado, partiu-se à análise das liberdades ligadas ao exercício profissional do músico,

estudando-se as disposições constitucionais correspondentes e traçando-se em abstrato um esboço

de onde deveria, concretamente, conter-se o Estado na restrição das referidas liberdades.

O que se intentará, agora, é, por meio da análise da Lei 3.857/60, surgida

para regulamentação da atividade do músico, frente ao novo ordenamento constitucional,

responder em que medida é legítima tal regulação.

Há que ressaltar que a atuação do músico referida neste trabalho é aquela de

cunho eminentemente artístico. Estão excluídas as atuações vislumbráveis, por exemplo, no

magistério da música.

A Lei 3857/60, reguladora da atividade do músico

Nos termos do art. 1° da Lei 3.857/60, foi criada a Ordem dos Músicos do

Brasil, com o desiderato, entre outros, de fiscalizar as atividades profissionais do músico:

Art 1º Fica criada a Ordem dos Músicos do Brasil com a finalidade de


exercer, em todo o país, a seleção, a disciplina, a defesa da classe e a
fiscalização do exercício da profissão do músico, mantidas as atribuições
específicas do Sindicato respectivo. (grifou-se)

A exemplo da Ordem do Advogados do Brasil e dos Conselhos

Profissionais, tais como o Conselho Federal de Medicina, Conselho Federal de Engenharia e

Arquitetura e o Conselho Federal de Contabilistas, trata-se a Ordem do Músicos de autarquia

federal com regime jurídico especial, conforme prevêem os dispositivos seguintes:

Art 2º A Ordem dos Músicos do Brasil, com forma federativa, compõe-se do


Conselho Federal dos Músicos e de Conselhos Regionais, dotados de
personalidade jurídica de direito público e autonomia administrativa e
patrimonial.

Art 3º A Ordem dos Músicos do Brasil exercerá sua jurisdição em todo o país,
através do Conselho Federal, com sede na capital da República.

[...]

Após definir, nos artigos seguintes, as formalidades concernentes às funções

do Conselho Federal e Regionais, bem como sua formação e constituição de seu patrimônio,

estabelece a lei, ainda em seu primeiro capítulo, que

Art 16. Os músicos só poderão exercer a profissão depois de regularmente


registrados no órgão competente do Ministério da Educação e Cultura e no
Conselho Regional dos Músicos sob cuja jurisdição estiver compreendido o
local de sua atividade. (grifou-se)

Art 17. Aos profissionais registrados de acôrdo com esta lei, serão entregues as
carteiras profissionais que os habilitarão ao exercício da profissão de músico
em todo o país.

Ou seja, trata-se de definição de poder de polícia para a entidade, que

condicionaria o exercício da profissão de músico ao registro nos órgãos mencionados. Habilitaria o

músico, na prática, à atuação profissional, a carteira a ser expedida pelo Conselho Regional

respectivo.
Em seguida, estabelece a lei previsão de sanções à inobservância das

formalidades por ela estabelecidas como indispensáveis pelo músico que pretenda atuar:

Art 18. Todo aquêle que, mediante anúncios, cartazes, placas, cartões
comerciais ou quaisquer outros meios de propaganda se propuser ao exercício
da profissão de músico, em qualquer de seus gêneros e especialidades, fica
sujeito às penalidades aplicáveis ao exercício ilegal da profissão, se não estiver
devidamente registrado.

Art 19. As penas disciplinares aplicáveis são as seguintes:

a) advertência;
b) censura;
c) multa;
d) suspensão do exercício profissional até 30 (trinta) dias;
e) cassação do exercício profissional ad referendum do Conselho Federal.

Definidas outras formalidades sobre como as deliberações corporativas se

dariam no corpo da instituição, disposições transitórias a cerca da adaptação dos músicos à

incidência da lei que viria a produzir efeitos, instalação do órgão, e outras atribuições a serem

assumidas pela Ordem, como a instituição de cursos, concursos e prêmios, no segundo capítulo a

lei elenca, efetivamente, as “condições para o exercício profissional”.

Prevê o art. 28 da Lei:

Art 28. É livre o exercício da profissão de músico, em todo o território nacional,


observados o requisito da capacidade técnica e demais condições estipuladas
em lei;

a) aos diplomados pela Escola Nacional de Música da Universidade do Brasil


ou por estabelecimentos equiparados ou reconhecidos;

b) aos diplomados pelo Conservatório Nacional de Canto Orfeônico;

c) aos diplomados por conservatórios, escolas ou institutos estrangeiros de


ensino superior de música, legalmente reconhecidos, desde que tenham
revalidados os seus diplomas no país na forma da lei;

d) aos professôres catedráticos e aos maestros de renome internacional que


dirijam ou tenham dirigido orquestras ou côros oficiais;
e) aos alunos dos dois ultimos anos, dos cursos de composição, regência ou de
qualquer instrumento da Escola Nacional de Música ou estabelecimentos
equiparados ou reconhecidos;

[...]

g) os músicos que forem aprovados em exame prestado perante banca


examinadora, constituída de três especialistas, no mínimo, indicados pela
Ordem e pelos sindicatos de músicos do local e nomeados pela autoridade
competente do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio.

[...]

Como se pode verificar, o artigo exige para quem pretenda obter a

mencionada habilitação profissional que torne legalmente apto o músico a exercer seu trabalho,

basicamente, ou um dos referidos diplomas (alíneas a, b e c), ou aprovação em exame específico,

conforme se lê na alínea g.

No restante de seu texto, preocupa-se a lei com outros aspectos da

regulamentação como classificação dos músicos, atribuições de cada classe, ainda no segundo

capítulo; após, dos capítulos III ao VII, regulamentação do trabalho dos músicos estrangeiros e

sobre a fiscalização do trabalho (obrigações dos empregadores), além das penalidades (multas) e

disposições transitórias.

Importa à análise aqui pretendida, as duas exigências previstas nos artigos 16

e 28, que materializam a manifestação policial estatal de controle da atividade do músico: (a)

registro na regional da OMB e (b) preenchimento de requisitos técnicos para a obtenção deste

registro. Como conseqüência, são atingidos os artigos 17 (que prevê o documento de habilitação) e

18 (que prevê a sujeição de penalidades aos que não observarem as formalidades respectivas a

esta habilitação).
Duas análises são aqui pretendidas: há legitimidade neste tipo de controle?

São válidos estes artigos da Lei 3.857/60?

3.3. Análise da legitimidade do controle da atuação profissional do músico e da (in)validade dos


artigos 16, 17, 18 e 28 da Lei 3.857/60 perante a Constituição Federal

Tendo sido examinado (i) o que é o poder de policia, o seu fundamento (ii),

seus limites, e (iii) seus âmbitos de incidência legítima de acordo com a Constituição Federal,

após definido o interesse público, em suma, como um conjunto de direitos cujo conteúdo se

verifica no direito positivo legítimo, cumpre se verificar, no direito positivo brasileiro, a validade

das mencionadas normas constantes da Lei 3.857/60: é possível ao Estado exigir habilitação

específica do músico para que este possa atuar profissionalmente?

Em princípio, não. Desmembrando os principais aspectos jurídicos que se

visualizam nos termos dos artigos comentados e cotejando-os um a um com o que foi abordado

neste trabalho mediante análise doutrinária dos institutos pertinentes e da Constituição Federal,

fundamentar-se-á esta conclusão, em conjunto com análise do tratamento jurisprudencial que

vem sedimentando este entendimento.

A ausência do interesse público no controle da atividade do músico

Foi aqui firmado que indispensável à atuação do Estado pelo poder de

polícia é esta atribuição fundamentar-se e na promoção do interesse público. Só a avaliação do

conteúdo deste, no ordenamento jurídico vigente, permitirá, por exemplo, que se estabeleça

restrições à liberdade individual, por normas a serem expedidas pelo legislativo ou por atos da

Administração previstos nestas normas.


Verificou-se, neste sentido, em nossa tradição constitucional, ser tratada a

regulamentação profissional como exceção, já que sempre se afirmou a supremacia da liberdade

de atuação profissional, salvo os casos em que a lei estabelecesse condições para o exercício

deste direito – e assim estabelece o atual ordenamento constitucional. Não poderia ser diferente.

Afinal, a Constituição eleva a livre iniciativa como fundamento da República Federativa do

Brasil (art. 1°, IV), e arvorar-se o Estado na regulação de toda e qualquer profissão é obstar este

princípio: assim estará restringindo o ingresso do indivíduo no mercado, na medida que

estabeleça restrições ao desenvolvimento de sua atividade, além daquelas já impostas pelas

condições que lhe são externas (condições sócio-econômicas, mormente). Intenção esta que é

reforçada no parágrafo único, art. 170 da CRFB/88, quando prescreve que “é assegurado a todos o

livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos

públicos, salvo nos casos previstos em lei”.

A Comissão de Trabalho, de Administração e Serviço Público, da Câmara

Federal, em sessão de 26 de setembro de 2001, sob a presidência do Deputado Freire Júnior,

aprovou o Verbete n. 01 de sua Súmula de Jurisprudência, com supedâneo no Art. 62, inciso IX

c/c Art. 164, § 1º e inciso II do Regimento Interno da Câmara dos Deputados, consolidou seu

entendimento sobre a Regulação de Profissões, nos seguintes termos:

Verbete n.º 01/CTASP, de 26 de setembro de 2001: REGULAMENTAÇÃO


DE PROFISSÕES

O exercício de profissões subordina-se aos comandos constitucionais dos Arts.


5º, inciso XIII e 170, parágrafo único, que estabelecem o princípio da liberdade
de exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão.A regulamentação
legislativa só é aceitável, uma vez atendidos, cumulativamente, os seguintes
requisitos:
a) que a atividade exija conhecimentos teóricos e técnicos;
b) que seja exercida por profissionais de curso reconhecido pelo Ministério da
Educação e do Desporto,quando for o caso;
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c) que o exercício da profissão possa trazer riscos de dano social no tocante à


saúde, ao bem-estar, à liberdade, à educação, ao patrimônio e à segurança da
coletividade ou dos cidadãos individualmente;
d) que não proponha a reserva de mercado para um segmento em detrimento de
outras profissões com formação idêntica ou equivalente;
e) que haja a garantia de fiscalização do exercício profissional;
f) que se estabeleçam os deveres e as responsabilidades pelo exercício
profissional e,
g) que a regulamentação seja considerada de interesse social. (PAIXÃO
JÚNIOR, 2003, p. 5).

Estes requisitos bem representam o que se pode entender como relevantes ao

interesse público e quando presentes em conjunto poderão com legitimidade ensejar a restrição de

liberdade profissional mediante a regulamentação da profissão.

Definitivamente, não é o caso dos músicos.

É notório que a atividade musical prescinde de conhecimentos teóricos e

técnicos. Certamente que a teoria musical possui campo teórico amplo e profundo, bem como a

execução de qualquer instrumento pode exigir técnicas complexas. Porém, tomada como arte

produzida pelo indivíduo e objeto da manifestação de sua criatividade ou talento nato, está

separada de regras ou impedimentos, e só o seu destinatário será capaz de avaliá-la, de acordo

com o que sinta, ou seja, subjetivamente e independente de teorias ou técnicas quaisquer.

Não há qualquer bem jurídico constitucionalmente tutelado que seja

ameaçado na atuação profissional do músico. A saúde, o bem-estar, a liberdade, a educação, o

patrimônio e a segurança, citados no item c, acima, permanecem intactos qualquer que seja o

espetáculo musical, se se considera a arte em si.

Diametralmente oposta é a posição das profissões que relacionadas a estes

bens a que se referiu. É o caso dos que lidam com a saúde (médicos, farmacêuticos, enfermeiros,

por exemplo). Sua atuação exige amplo e intenso preparo acadêmico e prático, tal é a

complexidade dos conhecimentos científicos envolvidos. Some-se a isto o fato estar sob
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dependência direta da sua atuação correta a saúde e, não raro o maior bem jurídico, que é a vida, e

efetivamente restará configurado o interesse público no controle pelo Estado da formação e

atuação destes profissionais. Da mesma maneira, o caso dos Advogados e Engenheiros, para

ficar-se nos exemplos mais comuns: o desempenho de seus misteres exige preparo acadêmico e,

por lidarem com bens jurídicos que poderão ser prejudicados por sua atuação, como a liberdade e a

segurança, é de interesse público que haja constante fiscalização da capacidade destes

profissionais pelo poder público, a fim de impossibilitar que o mau profissional prejudique o

indivíduo.

Reflete o entendimento exposto esclarecimento formulado na sentença

proferida nos autos da Execução Fiscal, Processo n° 97.0023934-9, pela 2ª Vara Federal de

Execuções Fiscais de Curitiba, em que figuram como Exeqüente a Ordem dos Músicos do Brasil

(Conselho Regional) e como Executado Astir Müller Seraphin Drapier - também colacionado à

Justificação do verbete supra mencionado da Câmara dos Deputados, do qual se destaca:

(...) 17. Ora, atividade de regulamentação e fiscalização da espécie só se


legitima se presente justificativa razoável para tanto. Entendo que esta se
encontra presente quando se trata de profissões cujo exercício indevido possa
acarretar sérios danos à comunidade. Advogados, médicos, engenheiros, por
exemplo, podem causar danos irreparáveis aos usuários de seus serviços caso
exerçam de forma temerária sua profissão.
18. Não se justificam restrições legislativas ao exercício de atividades
profissionais sem significativo potencial lesivo. Esse é o caso dos músicos. É
certo que algum cliente pode, eventualmente, ficar insatisfeito como trabalho
desenvolvido pelo músico. No entanto, para problemas da espécie é suficiente a
lei civil ou, ainda,as leis de proteção ao consumidor, não se justificando
interferência do Poder Público através da criação de conselhos profissionais,
com funções normativas e de fiscalização. [...]

Usou-se o mesmo argumento nos julgados cujas ementas, abaixo transcritas,

trazem como entendimento central a apontada e frisada ausência de potencial ofensivo na

atividade do músico:
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ADMINISTRATIVO - MANDADO DE SEGURANÇA - INSCRIÇÃO NA


ORDEM DOS MÚSICOS DO BRASIL - DESOBRIGATORIEDADE.
I - No caso da profissão de músico, em que se trata de atividade que não se
apresenta perigosa ou prejudicial à sociedade, diferentemente das profissões de
médico, advogado ou engenheiro, que exigem controle rigoroso, tendo em vista
que põem em risco bens jurídicos de extrema importância, como a liberdade, a
vida, a saúde, a segurança e o patrimônio das pessoas, afigura-se desnecessária a
inscrição em ordem ou conselho para o exercício da profissão. [...] (TRF 3ª
Região, 2001).

CONSTITUCIONAL. MÚSICO. EXERCÍCIO PROFISSIONAL.


EXIGÊNCIA DE INSCRIÇÃO NA ORDEM DOS MÚSICOS DO BRASIL.
INTERPRETAÇÃO DO ARTIGO 5°, INCISO XIII, DA CONSTITUIÇÃO
FEDERAL. NÃO RECEPÇÃO DA LEI N 3.857/60 PELA CONSTITUIÇÃO
FEDERAL DE 1.988.
1. É necessária a demonstração de interesse público para disciplinar o exercício
de determinada profissão mediante o estabelecimento de qualificações
profissionais.
2. A ausência de potencial ofensivo retira o interesse do estado em fiscalizar o
mau exercício da profissão de músico.
3. A proibição do exercício profissional de músico em face do não pagamento
das anuidades configura medida desproporcional em relação aos fins da lei n°
3.857/60. (TRF 4ª Região, 2001a).

Consoante se expôs, verifica-se a inexistência de potencial danoso na

atuação do músico, porquanto não incida sobre qualquer bem jurídico atingível por seu

desempenho, caracterizando-se induvidosamente a ausência de interesse público no controle

desta atividade profissional. A desnecessidade de formação teórica e técnica para o músico atuar,

outrossim, confirma esta conclusão, inobstante seja decorrente da subjetividade inerente às

manifestações artísticas.

Não estando presente o interesse público, portanto, carece de legitimidade a

restrição do Estado à liberdade de ação profissional, neste caso.


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O cerceamento do direito à liberdade de expressão artística

Entre as categorias de liberdades, propõe a sistematização de José Afonso da

Silva aqui utilizada, está a liberdade de pensamento, da qual estão como decorrentes as liberdades

de expressão artística e de expressão cultural. Tais liberdades, como exposto, são ligadas entre si e

têm os direitos correspondentes ao seu exercício insculpidos na Constituição, nas garantias

individuais e nas disposições sobre a Ordem Social que versam sobre o pleno exercício dos

direitos culturais.

De acordo com a Lei 3.857/60, no art. 16, é vedado ao músico exercer sua

profissão se não estiver regularmente registrado no órgão competente do Ministério da Educação e

da Cultura e no Conselho Regional com jurisdição sobre sua área de atividade.

Ainda que se entendesse legítimo tal controle, considerando-se válida esta

disposição como uma restrição à liberdade profissional amparada pela ordem constitucional

vigente, nos termos da CFRB/88, art. 5°, XIII, não é difícil se perceber que o comando legal

pereceu frente a afirmação da liberdade de expressão artística, que é expressamente garantida,

independentemente de censura ou licença, conforme não poderia ser mais clara e induvidosa a

redação do inciso IX deste mesmo artigo da Lei Maior.

De acordo com este entendimento manifestou-se o Judiciário nesta decisão,

conforme revela a ementa:

ADMINISTRATIVO. ORDEM DOS MÚSICOS DO BRASIL. LICENÇA


PARA O EXERCÍCIO DA PROFISSÃO DE MÚSICO - INEXIGIBILIDADE. A
Constituição Federal, em seu artigo 5º, IX, assegura a livre expressão da
atividade intelectual e artística, independentemente de censura ou licença,
restando, de aí, obstaculizada a exigência imposta pela Lei nº 3.857/60, aos fins
de exigir registro para o exercício da profissão de músico. (TRF 4ª Região,
2001b).

No mesmo diapasão, a concisa inteligência transcrita a seguir:


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CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. ORDEM DOS MÚSICOS DO


BRASIL. LICENÇA PARA ATIVIDADE DE MÚSICO.
A atividade de músico, por força da Carta Política de 1988, não depende de
qualquer registro ou licença, não podendo ser impedida a sua livre expressão
por interesses da Ordem dos Músicos do Brasil. . (TRF 4ª Região 2001c)

Lembre-se ainda que, além do impedimento do direito à livre expressão

artística previsto no art 5°, IX da Constituição Federal, constitui também a previsão do art. 16 da

Lei 3.857/60 oposição ao conteúdo do art. 215 da Constituição. Vai contra o apoio e o incentivo

da difusão das manifestações culturais exigir do músico, para que se apresente, o cumprimento de

formalidades quaisquer, ainda mais se estas envolvem preparação acadêmica (desnecessária,

como frisado) e condições econômicas favoráveis – a manutenção da inscrição na OMB, a

exemplo de outros conselhos profissionais, exige o pagamento de anuidades.

Desta feita, caracterizada a obstrução ao direito de livre expressão artística e

o exercício dos direitos culturais, bem como à difusão das manifestações culturais, conclui-se,

outrossim, pela ilegitimidade do controle da atuação do músico pelo Estado também neste

fundamento.

A revogação dos artigos 16, 17, 18 e 28 da Lei 3.857/60 pela Constituição Federal e a
inconstitucionalidade de seu conteúdo11

Pelo que foi visto, caracterizados o (a) cerceamento à liberdade de ação

profissional, (CRFB/88, art. 5°, XIII) e o (b) impedimento à livre expressão artística (CRFB/88,

art. 5°, IX), devem ser interpretados como revogados pela Constituição Federal os artigos, 16, 17,

18 e 28 da Lei 3.857/60, por serem contrários à Lei Maior, a estes superior hierarquicamente e

posterior, ainda.
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Neste sentido, a jurisprudência:

ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. MANDADO DE


SEGURANÇA. CONSELHO REGIONAL DA ORDEM DOS MÚSICOS.
DESNECESSIDADE DE REGISTRO. DIREITO A LIVRE
MANIFESTAÇÃO DA ARTE. ART. 5º DA CF. DISPENSÁVEL A
ARGÜIÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI REVOGADA.
1. A garantia constitucional do artigo 5º, inciso IX, da Constituição da
República resguarda a qualquer um o direito de, livremente, manifestar a arte.
2. A atividade a ser fiscalizada deve ser potencialmente lesiva, justificando a
atuação no sentido de proteger a sociedade. Compreendida assim a função dos
conselhos profissionais, transparece a inadequação de sua atuação na
fiscalização dos músicos.
3. A Constituição Federal permite restrições pela lei ordinária, todavia não
é toda e qualquer restrições. O legislador não poderá impô-las
indiscriminadamente, deverá observar outros princípios constitucionais,
preponderantemente o princípio da proporcionalidade e da razoabilidade,
com suporte material na cláusula do devido processo legal, ou seja, no art.
5º, LIV da Constituição Federal/1988.
4. Referente a Lei 3.857/1960, por ser anterior a Constituição Federal de
1988, é dispensável a argüição de inconstitucionalidade perante o Plenário
deste Tribunal, pois, segundo o entendimento do STF, a incompatibilidade
entre lei infraconstitucional e a Constituição, quando aquela é anterior a
esta, se 'circunscreve ao âmbito da revogação' e não da
inconstitucionalidade.
5. Improvido o apelo e a remessa oficial. (TRF 4ª Região - AMS - APELAÇÃO
EM MANDADO DE SEGURANÇA – 78895 Processo: 200172000080420 - SC)

Há ainda que se frisar, paralelamente à constatação de revogação, com

fundamento nas mesmas disposições constitucionais e jurídicas, a manifesta irrazoabilidade dos

dispositivos não recepcionados, caracterizando o excesso do poder legislativo a presença, no

ordenamento jurídico válido, destas normas. O julgado acima trouxe este entendimento, também.

Ensina o constitucionalista Clèmerson Merlin Clève:

Pode ocorrer também a inconstitucionalidade material quando a norma, embora


disciplinando matéria deixada pelo Constituinte à ‘liberdade de conformação do
legislador’, tenha sido editada ‘não para realizar os concretos fins
constitucionais, mas sim para prosseguir outros, diferentes ou mesmo de sinal
contrário àqueles’; ou, tendo sido editada para realizar finalidades apontadas na
Constituição, ofende a normativa constitucional por fazê-lo de modo

11
Toma-se como desnecessário tecer-se considerações, a esta altura, sobre a supremacia da Constituição e sua
característica de marco fundante do Estado.
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inapropriado, desnecessário, desproporcional ou, em síntese, de


modo não razoável. Trata-se, no primeiro caso, da hipótese
tratada como desvio ou excesso de poder legislativo; no segundo
manifesta-se ofensa ao princípio da razoabilidade dos atos do Poder
Público, e aqui, do Poder Legislativo. (CLÈVE,
1995,
p.
36/37
).

Ora, por tudo que foi exposto, salta aos olhos a

incompatibilidade das disposições em tela com o atual ordenamento constitucional,

restando configurada sua revogação.

A ilegitimidade da exigência de habilitação para a atuação do

músico, ainda, cabe frisar, por caracterizar-se irrazoável e desprovida de interesse

público, marca com a inconstitucionalidade a ação estatal neste sentido, ou seja:

um ato legislativo posterior à Constituição, neste sentido, seria inválido.

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