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O Primeiro Olhar

©Márcio Buriti

ELE no Ginásio, ela no Admissão. Ele estudava à tarde, ela de manhã.


E de manhã, cedinho, ele se levantava para vê-la passar, a caminho da
escola. No começo, via com a janela entreaberta; mas, aos poucos ele foi
escancarando-a para, livremente, ver passar a estrela das suas manhãs.
Guardava em segredo o sonho de ganhar o seu olhar. E quando ouvia os
passos da mãe no corredor, saltava-se ao sofá e se punha a folhear a Contigo
sempre na mesinha de centro.
Aí não dava outra: a mãe saía à janela e ele esticava o braço e baixava o
som da radiola, que tocava The Beatles sem parar. Isso porque a mãe iria elevar
Anamaria entre as nuvens e os anjos: “Que chique é a Anamaria!” — dizia a
mãe. — “Olha o camiseiro dela! Os punhos, a pala dos bolsos, a gola... Tudo a
condizer com a risca mais clara. E olha a fita de cetim no rabo de cavalo... Gente
do céu!”.
E toda vez que ela passava, ele pensava no que fazer por um olhar.
Pensava muitas coisas. Até em fazer em seus olhos castanhos o olhar azul de
Paul Newman, ele pensava.
Ele pensava muitas loucuras, pensa você que não? Por exemplo: queria
ser James Dean, rodando um extravagante automóvel na rua onde ela passava.
Pode umas coisas dessas?! Ah! E quanto se quis ser Roberto, e cantar “Eu Te
Darei o Céu”, ajoelhado à frente dela, quando ela passasse!
Mas os dias passam correndo. Os dias vão-se somando, e formam um
bolo de dias, e outros bolos cresceram e se cobriram de bolor porque Anamaria
já não passava na rua.
Não passava, vírgula; passou. Foi num domingo de sol. Nesse dia não lhe
foi preciso saltar-se ao sofá e folhear a Manchete com a Sandra Bréa na capa
sempre na mesinha de centro. Também não lhe foi preciso esticar o braço e
baixar o som do 3EM1, que tocava “Say You, Say Me” sem parar. Isso porque já
não se ouviam os passos da mãe no corredor.
Mas se os ouvisse, e se sua mãe saísse à janela, ela iria elevar Anamaria
entre as nuvens e os anjos: “Que chique é a Anamaria! Olha a cintura marcada,
e as fendas do seu vestido verde-lima... Nossa! Os acessórios são dourados, os
olhos bem pintados e o batom castanho-escuro... Gente do céu!”.
Ela, que não o olhava, viu-o. Foi o primeiro olhar. E ele que pensava em
milhões de coisas para ter o seu olhar, jamais pensou que aquele momento ia-
lhe doer tanto. Isso porque Anamaria, ao segurar o cabelo do vento, mostrou-
lhe, involuntariamente, a aliança dourada que o sol fez brilhar aos seus olhos e
coração. E, depois de se olharem por um instante, ela se foi.
Ela se foi, deixando-lhe o tempo parado. Não que ela assim o quisesse.
Foi o tempo em que eles deveriam trocar o olhar que esperou demais. E,
cansado de esperar, parou. Então, ele se fez mais lógico e desligou a música e
foi-se deitar. Não se soube, porém, a loucura que fez de não acordar.

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