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Luft Trabalhar e sofrer Edy seatns enodrece” € uma dessas frases feitas que a gente repete sem refletir no que significam, fico reza automatizada. ‘Outra €"A quem Deus ama, ele faz so- free", que fala de uma divindade cruel, fra, que ndjo mereceria uma vela acesa sequer. Sinto muito: nem sempre trabalhar nos toma mais nobres, nem sempre a dor nos deixa mais justos, mais genero- sos. O tempo para contemplagao da arte e da natu- rezii, ou curtigio dos afetos, por exemplo, deve ‘enobrecer bem mais. Ser feliz, viver com alguma harmonia, hd de nos tornar methores do que a des graga. A ilusio de que o trabalho e 0 softimento nos aperfeicoam é uma ideia que deve ser reavalia- dda e certamente desmascarada. (0 trabalho tem de ser 0 primeiro dos nossos valores, nos ensinaram, colocancdo & nossa frente ccartazes pintados que impedem que a gente enxer- ‘gue além disso, Eu prefiro a velha dama esquecida ‘hum canto feito uma mala furada, que se ‘cham ética, Palavra refinada para di- Zer 0 que esté ao alcance de qual- Assim como o sofrimento pode nos tornar amargos e até emocionalmente estéreis, 0 trabalhor ” pode aviltar, humilhar, explorar e solapar qualquer dignidade” quer um de nds: decéncia, Prefiro, a0 mito do trabalho como tinica sal- ‘yagi, ¢ da dor como cursinho de aperfeigoamen- {0 pessoal, a realidade possivel dos amores ¢ dos valores que nos tomariam mais humanos, Para que se trabalhe com mais forga ¢ fmpeto ¢ se viva ‘com mais esperanca. © trabalho que dé valor ao ser humano ¢ al- gum sentido & vida pode, por outro lado, deformar e destruir, O desprezo pela alegria e pelo lazer es- palha-se entre muitos de nossos conceitos, ¢ nos sentimos culpados se nao estamos em atividade, nna cultura do corre-corre e da competéncia pela competéncia, do poser pelo poder, por mais tolo que ele seja. ‘Assim como 0 softimento pode nos tomar ‘amargos ¢ até emocionalmente estéreis, 0 traba- Iho pode aviltar, humithar, explorar e solapar oa wer qualquer dignidade, roubar nosso tempo, satide e possibilidade de crescimento, Na verdade, o que ‘enobrece ¢ a responsabilidade que os deveres, in Clulndo 0s de trabalho, razem consigo. O que nos pode tornar mais bondosos e tolerantes, eventual ‘mente, nasce do sofrimento suportado com digni- dade, quem sabe com estoicismo. Mas um ser hhumano decente € resultado de muito mais que {sso: de genética, da familia, da sociedade em que estd inserido, da sorte ou do azar, e de escolhas pessoais (essas a gente costuma esquecer: quei- Xxar-se € to mais facil) ‘Quanto tempo o meu trabalho — se é que te mos escolha, pois a maioria de nés di gragas a Deus se consegue trabalhar por um salério vil ‘mo permite para lazer, ou 0 que eu de verdade quero, se € que paro para refleti sobre isso? Quan- to tempo eu me du para viver? Quanto sobra para ‘meu crescimento pessoal, para tentar observar 0 ‘mundo e descobrir meu lugar nele, por menor que seja, ou para entender minha cultura e mina gen- te, para amar minha famslia? IE, se 0 luxo desse tempo existe, eu o emprego para Ser, para viver, ou para correr atrés de mais ‘um trabalho a fim de pagar dividas nem sempre necessérias? Ou apenas ‘no me sinto bem flcando sem atividade, tenho deme gitar sem vontade, rir ‘sem alegria, gritar sem entuslasmo, correr na esicira além do indis- pensével para me man- {er sadio, vagar pelos shoppings quando nada tenho a fazer ali e jf ccomprel todo 0 possfvel — muito mais do que pre- ciso, no maior numero de prestagdes que me ofereceram? E, quando tenho ‘momentos de alegria, curto isso ou me preocupo: algo deve estar errado? Servos de uma culpa generalizada, fabrica- ‘mos caprichosamente cada elo do circulo infer- nal da nossa infelicidade e alienagdo. Essas fra- ses feitas, das quais aqui citei s6 duas, podem parecer banais, Até rimos delas, quando alguém nos leva a refletira respeito. Mas na verdade stio instrumento de dominagZo de mentes: sofra e no se queixe, nio se poupe, nao se dé folga, ‘mate-se trabalhando, sea Iumilde, seja pobre, sofer € nosso destino, dards a luz com dor — e todo 0 resto da tola e desumana lavagem cerebral de muitos séculos, que a gente em geral nem questiona mais, 2H) DETANENRO, 2010 | VO

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