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«As pessoas não são recursos»

Entrevista Especial com Peter Senge


publicada pelo Site Janela Web
Contato: jnr@mail.telepac.pt
WebSite: http://gurusonline.tv/pt/conteudos/senge_rh.asp

Peter Senge, o criador da Quinta Disciplina e conhecido guru da aprendizagem


organizacional, foi um dos oradores na conferência do Hay Group, na qual se
insurgiu contra o actual sistema económico. Numa entrevista exclusiva, dá
uma pedrada no charco e afirma-se como um "anti-recursos humanos",
classifica a actual estratégia seguida pela maioria das empresas de
"cancerígena" e defende que os empresários devem incluir na sua cadeia de
valor os investimentos no ambiente e na sociedade.

Ruben Eiras com Peter Senge


Entrevista publicada na Executive Digest

Aquando da sua intervenção na conferência, defendeu com veemência


que se considera um "anti-RH". Porquê?
PETER SENGE - Nunca achei que o termo "recursos humanos" fosse
correcto. Não é muito significativo, dado que as pessoas não são
recursos da organização, mas "a" organização. Por exemplo, você não é
um recurso da sua família, mas sim um membro dela. Se fosse apenas
um recurso, os seus familiares o veriam como uma fonte de dinheiro ou
de outra coisa qualquer. Em suma, "recurso" é uma palavra muito
limitada.
E o alcance das funções do departamento de recursos humanos também
é limitado na organização?
P.S. - Sim. Na realidade, muita da actividade dos departamentos de
recursos humanos resume-se simplesmente a carregar o fardo dos CEO
quando surgem dificuldades na gestão do pessoal e de organização da
formação. Assim, os profissionais de RH tornam-se numa espécie de
equipa de especialistas internos, para que os gestores de topo
continuem a ser técnicos e restritos na sua focalização do negócio, não
desenvolvendo as suas competências de gestão das pessoas. Além
disso, os departamentos de "recursos humanos" são tradicionalmente
departamentos de "pessoal", responsáveis pela elaboração dos planos
de reforma, contratação, despedimento e benefícios sociais, e tratam
especialmente dos aspectos financeiros do emprego, por exemplo, no
que diz respeito à estrutura dos contratos e das obrigações legais. Só
que muitas empresas já fazem "outsourcing" dessas funções. Por tudo
isto, o aspecto das pessoas trabalharem produtivamente umas com as
outras é da responsabilidade do gestor de topo e de toda a organização,
e não só do departamento de "recursos humanos".
Outra questão que frisou no seu discurso foi a relação das empresas
com o meio ambiente e a envolvente social. Parece partilhar da mesma
filosofia que Arie de Geus preconiza no seu livro "The Living Company",
sobre as empresas funcionarem numa base biológica, como sistemas
vivos...
P.S. - Exacto. Há que reconhecer que a organização é um sistema vivo
e que existe dentro de outros sistemas vivos maiores, neste caso o
ecosistema e a sociedade. Para os sistemas serem saudáveis, tem de
haver reciprocidade entre estes. Essa é a condição básica de qualquer
sistema natural. Por exemplo, o cancro é um sistema vivo que destrói o
seu hóspede, um sistema vivo muito maior. Depois de um tempo, o
cancro acaba, porque dura até que acaba com a viabilidade do outro
maior. É assim que maior parte das empresas actua hoje em dia.
Mas a maior parte das empresas encaram as questões ambientais e
sociais não como um investimento, mas sim como um custo...
P.S. - Isso irá mudar. Acontece o mesmo no caso da inovação. Quando
aparece uma, as empresas costumam dizer: não podemos fazê-la,
porque o custo é muito elevado. Mas as empresas que se esforçarem
por encontrar vias de a realizar com menos custos, vão de certeza
adquirir uma vantagem competitiva. O mesmo acontecerá no plano do
ambiente e no social.
Mas no caso da inovação do produto, esta só valerá a pena ser realizada
se o mercado a absorver. O mesmo princípio também se aplica ao
investimento das empresas no ambiente e na sociedade?
P.S. - Claro que muito deste processo dependerá das preferências
sociais. Se as pessoas não se interessarem e só comprarem um produto
amigo do ambiente se este custar o mesmo do que outro que não o
seja, será muito difícil para a empresa ganhar rentabilidade. Mas não há
dúvida de que precisamos de novos produtos, que utilizem menos
energia e quando estão consumidos, são devolvidos ao produtor para
serem reciclados. Existem dois grandes estágios neste processo de
transformação para uma indústria amiga do ambiente. No início as
empresas vão-se centrar na diminuição de custos, para aumentar a
eficácia da utilização dos recursos na produção. Actualmente, muitos
dos processos que são destrutivos do ambiente parece que poupam
dinheiro, mas na verdade causam muito desperdício. A segunda fase
virá quando se criarem produtos que ainda não existiam, novas imagens
no mercado, novas relações com os clientes e um novo tipo de
credibilidade empresarial, em boa parte alicerçada na protecção do
ambiente. Tomemos como exemplo os automóveis. Hoje é de todo
possível criar um carro que consuma 4 litros aos 100 km e com a
mesma performance dos modelos existentes actualmente no mercado.
Mas o desenvolvimento de novos modelos automóveis exige um
investimento de montante considerável e as grandes empresas estão
orientadas para economias de escala, o que implica produzir milhares de
automóveis. À partida isto parece ser um investimento proibitivo. Talvez
a liderança no fabrico destes novos veículos surja em empresas mais
pequenas, onde se realizam investimentos em escala menor e assim se
possa demonstrar que o mercado valoriza produtos amigos do
ambiente. Aqui as grandes empresas serão provavelmente seguidoras e
não líderes, porque não querem arriscar a realização de grandes
investimentos. Acho que muitas pessoas ficariam satisfeitas se
comprassem um carro que consumisse 4 litros aos 100 km e com uma
performance comparável aos tradicionais. A questão é como trazer
esses carros para o mercado e demonstrar que existe procura.
E no caso da responsabilidade social, que vantagens emergem para as
empresas que a colocarem na sua estratégia de negócio?
P.S. - As vantagens imediatas é que passam a ser honestas. Hoje têm
que mentir a todo o momento. Querem demonstrar que ninguém se
preocupa com o contributo da empresa para a melhoria da vida da
sociedade, mas de facto as pessoas preocupam-se. Por isso, há uma
contradição quando as empresas afirmam desejar que as pessoas
estejam comprometidas, motivadas e engajadas no seu trabalho,
quando na verdade, a actividade laboral é só serve para fazer dinheiro.
Os seres humanos interessam-me mais do que só fabricar dinheiro, e
por isso estamos basicamente a mentir a nós próprios.
Então defende que o objectivo das empresas não deve ser o somente o
lucro.
P.S. - O que defendo é que quando as empresas e as pessoas escolhem
o objectivo de fabricar dinheiro, então definem um mundo muito
pequeno. Assim temos trabalhadores que não estão muito motivados,
estão comprometidos no mínimo e para os quais o trabalho não tem
sentido. Não conseguem explicar aos seus filhos o que fazem e não se
afirmam com orgulho nas suas comunidades. Ao definir um alvo
pequeno e limitado, obtém-se pessoas pequenas para alcançá-lo. Há
meditar sobre esta situação e agir. Mas estou certo que crescentemente
a sociedade exigirá às empresas o desenvolvimento de uma visão mais
alargada, onde as empresas que liderarem estas mudanças obterão uma
maior credibilidade nas suas sociedades.
Neste plano, concorda que a mudança do poder da esfera dos governos
para as grandes corporações empresariais em alguns sectores também
implica uma transferência da responsabilidade social?
P.S. - Correcto. Se os grupos empresariais não assumirem essas
responsabilidades, serão vistos com grande suspeição pela sociedade. E
se calhar, iremos ver o poder mudar de novo para os governos ou para
outras organizações. Por exemplo, estamos a assistir a um enorme
crescimento de ONG's que surgiram em resposta ao abuso do poder dos
grupos económicos. Organizações como a Greenpeace têm um impacto
enorme, são muito influentes. Isto porque tiram vantagem da suspeita
que as pessoas têm sobre os grandes grupos económicos. As ONG's são
um processo de equilíbrio natural da sociedade. De facto, continuará a
existir um guerra entre as ONG's e as grandes empresas enquanto estas
não aprenderem que a vida será muito melhor para nós, que a
humanidade será mais feliz e muito mais bem sucedida a nível produtivo
e financeiro, se o ambiente for preservado e o meio social desenvolvido.
Isto não é idealismo, é o novo sistema que terá de nascer para que a
humanidade não se auto-destrua.
Passemos à questão da mudança organizacional. Porque é que afirma
que os processos conduzidos a partir do topo redundam em fracasso?
P.S. - Uma das principais razões prende-se com o facto das
organizações continuarem a ser encaradas como máquinas. No
pensamento maquinal, tudo é feito a partir de cima: quando chega um
novo patrão, este diz ao empregado o que vai acontecer e depois o
subordinado muda. Algumas coisas podem mudar desta forma, mas não
são mudanças profundas. A mudança liderada do topo pode gerar
alguma energia, mas é como uma onda que morre na praia, porque cria
uma atitude complacente na organização: a iniciativa tem que vir
sempre de cima. A verdadeira aprendizagem acontece no dia-a-dia,
pelas acções que as pessoas executam e nas redes de relações que
constroem. Todavia, a aprendizagem depende do nível de compromisso
das pessoas e das interpretações que fazem das coisas.
E como se poderá alterar essa mentalidade "mecânica"?
P.S. - Não se pode mudar uma mentalidade, mas pode-se cultivar uma
nova. Suponho que continuarão sempre a existir muitas pessoas a
pensar que o chefe é o úinco a mandar na organização. É como uma
criança na escola: há alguém responsável por tudo na sala de aula - o
professor. É um conceito que nos é impregnado desde a tenra idade. E
por isso é que pensamos os CEO como os seres "iluminados" que
conduzem a mudança. Não estou a dizer com isto que eles não têm um
grande impacto no processo de mudança. O problema é a crença
subjacente de que a pessoa no topo é a única que está a conduzir o
processo de mudança. A forma de mudar esta estrutura de pensamento
é pôr a nu as limitações nesta prática. Vamos raciocinar um pouco.
Como podemos ordenar alguém para mudar os valores da outra pessoa?
Isso não acontece, nunca acontece. Os seres humanos são autónomos e
não se pode forçar alguém a mudar os seus valores. E quando tal
acontece, mais as pessoas tendem a operar da forma como sempre o
fizeram. Por isso, a gestão de topo tem de encontrar uma forma de
equilibrar o processo de mudança com equipas locais nas várias
camadas da organização, adicionando apenas alguma coordenação no
processo.
Então, para construir um clima de aprendizagem e mudança dentro da
empresa, será necessário um novo contrato social entre os patrões e os
empregados?
P.S. - Novo é um termo relativo. Depende da cultura e dos países. É
muito difícil de falar sobre isto como simples regras. Tem muito a ver
com o tipo de relações de confiança e de responsabilidade que se
estabelecem nas organizações. Nas ditas tradicionais, hierárquizadas, as
pessoas estão sempre à espera do patrão para que lhes diga o que deve
fazer. Há um sentido muito fraco de responsabilidade mútua. O patrão
define os objectivos e as pessoas não têm que responder pelos
resultados. Se os resultados são maus, a culpa é do patrão. Portanto,
não há muita responsabilidade para mover com a organização para a
frente, senão com o cumprimento destes alvos pré-determinados. É
claro que as pessoas não se sentirão muito inspiradas no seu trabalho,
se este se restringir a alcançar os alvos que outra pessoa definiu. Por
outro lado, o CEO também tem as suas responsabilidades e é obrigado a
estabelecer objectivos. A questão é a seguinte: que processo escolher
para alcançá-los, de modo a construir um compromisso mútuo com os
empregados, com algum grau de negociação? Se o gestor definir
objectivos mais elevados, as pessoas irão determinar objectivos mais
exigentes. Mas será que o CEO sabe o que se passa na organização
como está a par do que se passa no mercado? Isto depende muito da
solidez das relações estabelecidas na empresa.
Um clima de confiança na organização poderá potenciar uma
aprendizagem mais efectiva?
P.S. - Sim e este constrói-se através da aprendizagem conjunta. É
verdade que a aprendizagem requer compromisso, mas também são
precisas competências. Todo o trabalho que estivemos a fazer durante
estes últimos 25 anos no MIT e na SOL (Society for Organizational
Learning) revelaram que as capacidades fundamentais de aprendizagem
no trabalho são as que incidem sobre o tratamento de temas
complexos. Para que tal aconteça, as pessoas têm que possuir auto-
consciência do seu pensamento e questionar continuamente as suas
assunções. Competências como estas necessitam de ser desenvolvidas
ao longo do tempo.
No que toca à aprendizagem e formação, muitas organizações e pessoas
cedem à tentação de copiar boas práticas. Qual é o risco?
P.S. - Muitas vezes quando copiamos as coisas, não somos bem
sucedidos. É muito difícil uma pessoa copiar a outra. Não é possível uma
pessoa pegar num violino e começar a tocá-lo, só porque se vê outra a
pessoa a tocar. Isto porque o processo de aprendizagem estende-se ao
longo do tempo. Copiar é um atalho, mas raramente produz um
resultado significativo de aprendizagem. Não se pode atalhar o processo
de tentativa-erro e de experimentação, e daí construir novas
capacidades. Isto não quer dizer que não se deve aprender de outras
pessoas. Mas o sucesso da aprendizagem depende sempre do nível de
compromisso da pessoa e da sua oportunidade para praticar.
Em resumo, quais são os princípios básicos para criar a mudança?
P.S. - Primeiro, não há uma fórmula. A expressão "criar a mudança" é
incorrecta, porque dá a entender que alguém a vai fazer em vez da
própria pessoa. As coisas estão sempre a mudar, os sistemas vivos
mudam sempre. Não é preciso criar mudança. O que fazemos é
trabalhar duramente para que a mudança não ocorra - criamos medo e
estamos sempre à espera que o patrão nos diga o que fazer. Isto são
atitudes que impedem a mudança de ocorrer. As organizações estão
sempre cheias de ideias, os seres humanos têm montes de ideias para
fazer as coisas de forma diferente. Então o que os impede de inovar e
avançar? Para ultrapassar esta situação, temos de questionar o
seguinte: o que quero mudar? O que é importante para a pessoa? Como
posso mover a energia das pessoas por pensarem naquilo que
realmente elas querem, desejam e se interessam? Qual o propósito do
negócio, quais os actuais problemas e limites? Só com as respostas a
estas questões, dentro de cada realidade organizacional, é que se
engajam as pessoas ao nível das suas equipas de trabalho.
Defende que qualquer pessoa pode ser um líder na organização. Isto
quer dizer que qualquer empregado pode ser um chefe?
P.S. - Não. A palavra líder é muito ambígua. Muitas das pessoas usam a
palavra líder como sinónimo de patrão. Será que toda a gente pode ser
patrão? Eu digo que não. Um líder é uma pessoa que participa na
organização modelando o seu futuro, que é capaz de inspirar as pessoas
à sua volta, que é capaz de fazer coisas difíceis e tentar coisas novas,
simplesmente significa andar para a frente. É tudo o que significa. E
todos os seres humanos têm capacidade para andar para a frente.
Mas isso implica uma nova estrutura de valores na empresa...
P.S. - Isso implica uma estrutura que valorize todas as pessoas na
empresa. É tão simples como isso.

Texto extraído do site: http://www.janelanaweb.com/


Ruben Eiras com Peter Senge
Entrevista publicada originalmente na Executive Digest

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