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AVALIACAO ESCOLAR: ALEM DA MERITOCRACIA E DO FRACASSO Marli Eliza Dalmazo Afonso de André Professora da Faculdade de Educagéo da USP RESUMO © presente texto aiscute, na primeira parte, a questio do poder @ da fungéo social da avaliagao escolar, ressaltando @ neces: sidade de analisar as mediagéos qua estéo presantes no ato avaliar, Na segunda parte, sugere um olhar altemativo para a praticas avallatvas pela observagdo formatva e pela diferen- ‘iago do onsino AVALIAGAO ESGOLAR — ENSINO DIFERENCIADO ABSTRACT SCHOOL EVALUATION: BEYOND MERITOCRACY AND FAILURE, First this paper discusses questions related to power {and the socal role of school evaluation, stressing how important 's to consider human meciations in the act of evaluating. Next, tho paper suggests an altomative way to look at evaluation practices, through the use of formative observation and teaching itirantiation, 16 Cad, Pesq., S40 Paulo, 1.99, p.16-20, nov. 1996 © PODER DA AVALIAGAO Tomo como ponto de partida o conceito de “fabrica- go da exceléncia escolar’ de Philippe Perrenoud para introduzir a questo do poder @ da funeao social, que exerce a avaliagao escolar. Segundo Perrenoud a escola, como outras inst- tuigses da sociedade, define um conjunto de normas de exceléncia que ensejam comparagbes entre os su- jeitos e, em conseqiiéncia, o estabelecimento de hie- Tarquias, segundo 0 grav de aproximagao & norma. Assim, desde as primeiras séties, os alunos se. ob- servam e se medem e dessa comparagao surgem hie- rarquias: os que iéem malhor, 08 que escrevem bem, 0s fortes" em matematica, os bons no esporte, os que sabem discutir e argumentar, os mais habeis nos desenhos. E, da mesma maneira, definem os que se saem apenas razoavelmente ou até mal nesses varios Ambitos. Essas hierarquias aparecem mais rapida- mente quando as tarefas sdo as mesmas para todos © as condigs ves, flcando mais claras as di ferencas de desempenho. De modo geral, 08 juizos dos alunos so influen- ciados pelos do professor, em razao dos quais cap- tam e interorzam as normas de exceléncia, No en- tanto, diz Perrenoud, mesmo que a escola nio tenha qualquer tipo de avaliagdo formal ou que o professor ‘se abstenha de qualquer juizo puiblico, isso nao im- pedir que os alunos se comparem e elaborem, para ‘seu uso, hierarquias informais. O professor quer quei- Ta, quer no, encama a norma. Dificimente ele con- seguira orientar 0 trabalho dos alunos sem formular implicta ou explictamente um juizo de valor. E muito dificil imaginar uma agéo pedagégica que néo origine algum tipo de hierarquia informal. Perrenoud insiste na idéia de “fabricagao" da ex- coléncia escolar para evidenciar que os juizos @ hie- rarquias, como todas as representagdes, so 0 resul- tado de uma construgdo intelectual, cultural, social. Esse proceso de fabricagéo, segundo ele, envolve procedimentos em parte codificados pela instituigao escolar ¢ em parte inventados pelo professor. E sem duvida um processo artesanal, diz ele, cabendo lugar destacado a intuigio, mesmo quando os juizos esto apoiados em instrumentos objetivos como provas, tex- tos ou escalas de avaliagao. © autor justifica ainda 0 uso do termo “fabricagdo” ‘como uma metéfora para chamar a atengio ao poder que tém as organizacdes para construir uma repre- sentagdo da realidade © impé-la a sous membros ‘como se fosse a tinica definigao da realidade. Em ne- hum momento o julzo da escola aparece como um dos pontos de vista, entre muitos possiveis acerca do aluno. E ele afirma: © poder da organizagao escolar, que evidente- mente deriva do sistema politico, consiste em fa- zer de uma crianga que se equivoca com as re- fas, que no concorda 0 verbo com o sujeito ou nao domina o pretérito simples, um “mau aluno" (Perrenoud, 1990. p.18) Avaliagao escolar. © importante a destacar aqui é que essas normas critérios so fruto de uma construgéo social, mas 40 difundides como se fossem a tinica forma possi vel de conceber a realidade. E a partir deles sao to- madas decisdes ¢ definidas agdes que afetam o des- tino social dos individuos. José Gimeno Sacristan (1992) diz que a institu (980 escolar dota de significado ao que entendemos por realidade educativa e, por meio de seus procedi- mentos, entre os quais a avaliagao, dota de sentido real 0s préprios conceitos com que pensamos a pré- tica. A avaliagdo, por sua vez, dota de contedo a idéia de “exceléncia escolar” que serve para falar do {que funciona melhor ou pior. £ a base, segundo Per- renoud, para manifestar desigualdades que so cons- truidas entre os sujeitos. Gimeno Sacristin (1992. p.366) argumenta que ‘as fungdes sociais que a avaliagao cumpre séo a base de sua existéncia como pratica escolar. Diz ele: Em uma sociedade om que 0 nivel de escolari- dade alcangado, ou 0 grau de rendimento que se ‘obtém nos estudos, tem a ver com os mecanis- mos e oportunidades de entrada em grande parte do mercado de trabalho, a certidao de “valia” que as instituigdes escolares expedem aos alunos cumpre um papel social fundamental. E ainda Gimeno Sacristn (1992. p.367) quem diz que a capacidade de certificagao que tém as institu (gOes escolares e seus professores desencadeia toda uma dinamica intera de ritos de avaliagao reiterados que acabam desembocando em uma qualificagao fi- rial, cuja transcendéncia pessoal e social nao pode deixar indiferentes pais, alunos, professores, adminis tradores e geradores de omprego. Ele conclui entao que’ Sair da instituigdo melhor ou pior “qualificado” teré Inevitavelmente suas consequéncias. Uma socie- dade hierarquizada @ meritocrética reciama a classificagao dos individuos em funpéo de sua ‘aproximagao a exceléncia. Quanto maior a apro- ximagao, maior o mérito individual. Naturalmento essa prética ndo se originou na escola, mas 6 ali que se aplicam os procedimentos técnicos que a legitimam, ocultando os valores a que serve. A forma técnica de concretizar a fungao seletiva e hierarquizadora da avaliagao é pela comparacao dos alunos, estabelecendo sua posigéo dentro do gru- po (quem & 0 melhor) ou apelando para um critério de competéncia em relagao a certs conhecimentos @ habilidades (quem é competente). Entretanto essas consideragdes so sempre ma- tizadas pela opinidéo pessoal do professor, pelas suas atitudes favoraveis ou destavoraveis em relagéo ao aluno, por seus preconceitos. Isso é um efeito das percepgdes humanas @ 6 delas que se nutre a ava- liago. Por isso, diz Gimeno Sacristén (1992. p.347), a objetividade 6 impossivel. Reconhecer essas mediages 6 um passo impor- tante. Mas € preciso ir mais além e reconhecer que 7 tanto 0 objeto avaliado quanto o proceso de valora- {940 so construides e que, portanto, sdo ambos afe- fados por processos psicolégicos, componentes axio- légicos, marcos institucionais e sociais. Desse reco- hecimento é preciso partir para uma atitude de au- tocritica, de explicitagao dos valores assumidos e en- to relativizar a “autoridade” da avaliagdo e tentar amenizar 0 desastre que ela costuma produzir nas re- lagdes escolares. LANGANDO UM OLHAR ALTERNATIVO PARA AS PRATICAS AVALIATIVAS Pensar a avaliagdo numa perspectiva democratica @ libertadora vai exigir a dendncia desses mocanismos, muitas vezes ocultos, que permeiam as praticas edu- cativas © a construgao de uma outra mentalidade que modifique fundamentalmente os processos e relagdes escolares, Perrenoud (1992) afima que mudar a avaliagao significa mudar a escola, senéo totalmente pelo me- nos © suficiente “para que nao nos envolvamos inge- nuamente na mudanga das praticas de avaliago sem nos preocuparmos com 0 que as torna possiveis ou as limita’ (9.156). Trabalhar no sentido de uma ava- liagao mais democratica implica trabalharmos, simul- taneamente, nos campos da avaliagéo, da didatica, da relagao entre professor e aluno, da organizagao pe- dagégica da escola, diz ele ‘Saul (1994) também analisa a questao da avalia- ¢40 no conjunto das mudangas pelas quais a escola deve passar. A avaliagdo precisa deixar de ser o grande viléo da escola brasileira para ser pensada como uma grande janela, diz ela, através da qual se entra para alterar as agdes e relagdes da escola, ou e)a, 0 projeto pedagésico, Que projeto serd esse? Quais suas bases e fun- damentos? Mais uma vez recorto as proposigdes de Perre- oud que mesmo se referindo ao contexto da escola publica suiga apresenta uma série de idéias provoca~ tivas que me parecem totalmente pertinentes a nossa realidade, tais como: Como superar o fracasso escolar ainda to presente em nossas escolas? E possivel atender adequadamente & diversidade dos alunos que frequentam a escola publica hoje? E a partir delas propde uma pedagogia das diferencas na escola. Perrenoud (1995) argumenta que toda situacao didética proposta ou imposta de maneira uniforme a todos os alunos seré fatalmente inadequada para um grupo deles. Para alguns, fécil demais, para outros, dificil demais. Mesmo que a situagao esieja adequada em relagdo ao nivel de desenvolvimento cognitivo dos. alunos, ela pode parecer sem sentido para uns, som valor ou sem interesse para outros, a ponto de nao fengendrar nenhuma atividade intelectual notdvel e, portanto, no promover construgao de conhecimentos novos. Dai a importancia do ensino diferenciado, Di- ferenciar 0 ensino, diz Perenoud, € “organizar as in- 18 teragdes e atividades de modo que cada aluno se de- fronte constantemente com situagées didéticas que the sejam as mais fecundas” (p.28), Isso_no significa condenar a uniformidade de contetidos, explica ele, pois pode-se atingir as mesmas competéncias por ca- ‘minhos diversos. Diferenciacao, (diz ele], nao é si- ‘iénimo de individualizagao do ensino. E evidente que ndo se pode falar em diterenciagao sem ges- {a0 individualizada do processo de aprendizagem, ‘mas isso nao significa que os alunos vdo traba- thar individualmente, 0 que acontece 6 que o acompanhamento @ os percursos so individual zados. (p.29, grifos meus) AA diferenciagao nao desconhece a forga do grupo ‘como oportunidade de educagao mitua e de apren- dizagem. Ao contrario, diz Perrenoud, 0 professor deve, como animador, ajudar o grupo a construir a sua identidade coletiva, a aprender a trabalhar coo- perativamente, a tomar consciéncia de suas diferen- gas e desigualdades © a agir em razao delas (p.36) Estimular uma relagao interpessoal mais estreita entre os préprios alunos e entre alunos e professores no implica, por si s6, menor distancia cultural ou uma, relago mais positiva entre o professor e os alunos com maiores dificuldades, explica Perrenoud. Ao con- trério, uma interagao social mais intensa pode acirrar diferengas culturais, econ6micas, pessoais, atitudes do rejeicdo, competicao, confltos de toda sorte. E pre- ciso trabalhar essas attudes e confltes. A diferencic {G80 vai exigit tomada de consciéncia @ respeito as d- ferencas, direitos de se exprimirlivemente © de ser couvido, possibilidade para cada um de ser reconhe- cido pelo grupo quaisquer que sejam suas competér cias escolares ou seu nivel cultural Além disso, a diferenciacao val exigir ainda uma grande pesquisa sobre atividades e situagdes de aprendizagem que sejam signficativas e mobilizado- ras, diversificadas em razdio das diferengas pessoas @ culturais existentes na sala de aula A diferenciagao nao pode se limitar a uma meto- dologia, a um nivel de idade, a uma categoria de con- tetidos ‘ou de competéncias. Trata-se de uma idéia muito ampla que envolve 0 acompanhamento indivi- dualizado dos processos e dos caminhos de aprendi- zagem, Trata-se, segundo Perrenoud, de algo que vai romper com a indiferenga &s diferengas, rompendo um dos mecanismos mais eficazes de produgao do fra- casso escolar. ‘As formas de concretizar a diferenciagéo do en- sino podem variar muito de acordo com uma varieda- do de fatores: os recursos de que se dispbe, 0 grau do liberdade que se tem, 0 tipo de insttuigdo em que se trabalha, a linha pedagégica ou as teorias que se quer seguir. Perrenoud afirma que a histéria das ter tativas de diferenciacao & marcada pela precipitaga or concepgdes muito estreitas de ensino e aprendi- zagem e por uma fragilidade dos modelos explicativos mobiizados. Dai a importéncia, segundo ele, de que se analise a complexidade, as contradigdes, as am: Cad, Pesa., 0.99, nov. 1996

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