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Ensaio sobre a Naturezae a Fungao do Sacrificio (1899)' Henti Hubert @ Marcel Mauss Neate trabatho propusemo-nos definir a natureza ¢ 8 ee sal do sacrificio. Ambicioso seria o empreend Bo sero tivesse sido preparado pelat pesquisss dos ag, Robertson Smith e dos Frazer. Sabenos 0 quanto oofas outros estudos permitem-nos propor, uma fos parece mais comprcensiva. Aliis, ‘pensamos em apresentéia send como’ hipétese Brow msanmeatéria tio. vasta ¢ ‘fo complexa, novas infor- pao podem deixar do levar-nos, no futuro, & Mero: Tone (aias atuais. Mas, com cstas reservas Expressas, Pensamos que poderia ser til Goordenar os fates clepon'veis PMiardhes uma concepgio de conjunto. "A. histéria das concepg6es antigns € populares do ucrificiodom, do sacrificigalimento, do sacriffelo-contrato peefstado dos contragolpes que porventure susciteram fovriteal nfo nos deters, qualquer que possa ser seu inseresse, A ‘teorias do sacrificio $20 velhas como 9s religies; mas fara encontrar eguma que tenha caréicr cients, € mister pare rats estes ditimos anos. Coube 2 escola antropologice desert tudo a seus representantes ingleses o mérito de tas elaborado. Sob a inspiragao paralela de Bast Darwin, Tylor?, comparando fatos ti Petizagees diferentes, imaginou uma gencse das formas do cnficio. © sacrificio, segundo este autor, & originariamente tin dom que o selvagem fox a sores sobrenaturals, a quem Utveisa apegarse. Depots, quando os deuses avullaram © Le wrtaldo do Année sootiogigue, 2. fOreere, v1 DP. 48-01 Set ea. f: BER gtinttoe Emit SAIO N ZA EA FUNCAO... 143 iB SS ae ENSAIO SOBRE A NATUREZ/ Gi Restava explicar por que a vitima, primitivamente di- ida ¢ comida pelos fitis, era geralmente destruida por mpleto nos piacula. E que, a partir do momento em que antigos totens foram suplantados pelos animais domés- icos no culto dos povos pastores, s6 raramente figuraram nos ‘picrtivios, e em cireunstincias pacticularmente graves. Por onsepuinic, apareceram como demasiado sagrados para que profanos’ pudessem tocar neles: s6 os sazerdotes comiam es, ou entio so Fazia desaparecer tudo, Neste caso, a reima santidade da vitima acaba por converierse em pureze: o carder ambiguo das coisss sagradas, que R. ith iluminow to admiravelmente, permitiathe explicar fa- Imente como wma tal transformagio pudera produzir-se. De oiitr Isdo, quando o parenteseo dos homens e dos animais Ueixou de’ ser inteligivel para os semitas, 0 sactificio hu- bstituiu o sacrificio animal; pois dai por diante meio de estabelecer uma troca direta do sangue “onire 0 cli € 0 deus. Mas cniéo as idéias © os costumes que provegiam na sociedade a vida dos individuos, pros- ftevendo a antropofagia, fizeram cair no desuso 0 tepasio sactilical. De outro taco, 20s poucos, 0 carter sagrado dos. ani Inais domésticos, cotidianamente profanados para a alimen- lugio do homem, também foi desaparecendo. A divindade eparouse de sues formas onimais. A vitima, distancian- lose do deus, aproximouse do homem, proprictério do rebanho. Foi cntao que, para explicar a oferenda que dela fe fazia, se passou a representéla como um dom do ho- mem aos deuses. Assim nasceu sactificiodom. Ao mes- mo tempo, a semelhanga dos ritos da punicio e do tito facrifical, « confuséo do sangue que se encontrava de ambos (5 lados ‘deu um carter penal &s comunhdes piaculares da forigem ¢ transformou-os em sacrificios expiatérios. se distanciaram do homem, @ necessidade de continuar transmitirthes este dom fez nascer os ritos sacrificais, vinados a fazer chegar até esles sores espirituais as cols espiritualizadas. Ao dom sucedeu a homenagem onde 0 no exprimiu mais nenhum desejo de retorno. Daf, que 0 sacrficio se tornasse abnegacdo € reniincia, no’ mais do que um pass0; desta forms, a evolugao fez p © ito, dos presentes do selvagem, a0 sacrificio de Mas se esta teoria descrevia muitas fases do desenvolviment moral do fenémeno, no Ihe explicava © mecanismo. suma, no fezia mais do que reproduzir numa Ting definida as velhas concepedcs populares. Néo hé dai de que tinha, em si mesma, uma parte de verdade histOric E € certo que os sactificios foram geralmente, em ce greu,, dons? que conferiam ao fiel diteiios sobre seu des Serviram assim para alimentar as divindades. Mas nao by tava consiatar 0 fato; era preciso explicé-lo, Na realidade, R. Smith‘ foi o primeiro que tenlo uma explicagio légica do sactificio. Inspirou-o a des eoente do totcmismo®, Do mesmo modo que a organi do cli totémico th: havia explicedo a familia arabe & a origem do sactificio. No totemismo, 0 totem ou o det € parente de seus adoradores; eles tém 2 mesma carne e ‘mesmo sangue; o rito tem como objeto entreter e garanti esta vida comum que 0s anima e a associagao que os lige Em caso de necessidace, restabelece a unidade. A “ali pelo sangue” © a “refcigéo em comum” sio os meios m simples para alcangar este resultado, Ora, o secrificio se distingue destas priticas aos olhos de’ R. Smith. Pi ele, era uma refeiceo em que os fitis, comendo o tot © assimilavam a si, e se The assimilavam, alievam-se ent sie com ele, A morte sacrifical nio tinha outro obj senio 0 de permitir a consumaggo de um animal sagt por conseguinte, ido. Do sacrificio comunial Smith deduz 08 sactificios expiatérios ou propiciatérios, iste 6 08 piacula ¢ 05 sactificiosdons ou honorirics. A expiagia rio é, segundo ele, sendo o restabelecimento da alianga ida; ora, © sacrifcio totémica tinha todos os efeitos ‘um ito expiatério. Aliés, Smith reencontra esta virtud em todos os sacrificios, mesmo depois do desaparecimento. total do totemisme A estas pesquisa ligam-se, de uma parte, os trabalhos de Frazer e, de outro, as teorias de Jevons. Com maior cit- cunspeccio sobre certos pontos, estas tltimas constituem, fm geral, © exagero teolGgico da doutrina de Smith". Quan- (o 6 Frazer, acrescenta um desenvolvimento importante. A txplicagio do sacrificio do deus era resto rudimentar em Smith, Sem desconhecer © scu caréter naturalista, fozia isto um piaculum de ordem superior. A idéia antiga do pparentesco da vitima totémica © dos deuses sobrevivia para explicar os sacrificios anuals: comemoravem e reeditavam um drama cujo deus era a vitima. Frazer reconheceu a emelhanga existente entre estes deuses sacrifieados e 0s 3., Neg, me vrcotinra um poue superticlal de MC. Nitmeh da, und’ seufen'den Ooverbetten cl ast” ert fora” sincera suipdca Mere ee Ma Ney Shey nid edexte Teepend” of (ole, tap. 32) "8 shor ap nod, eat, “T yrasar, Golden honph tap. Et 00 3 6 ah evbie, MB “eta aia uaa Worsip", rorewignsiy a. Kinship and Morrtape in Korly AreDtd, 1804, Cambeiage. uae ENSAIOS DE SOCIOLOGIA doménios agritios de Mannhardt®, Aproximou do ficio totémico a morie ritual dos genios da vegetacao; trou como do sactificio e do repasto comunitirio, on sion julpava asemelhurse aos deuss, sito sco rio onde, para aliarse ao deus dos campos no fit stm vida anal eat aus or toto © depo como, tatou 20 mesmo tempo que, com freqiiéncia, 0 velho assim sacrifieado parecia, falvez por causa’ dos tabiss que era carregado, levar consigo a doenca, a morte, 0 cado, desempenhava a fungio de vitima expiatotia, bode’ expiatério. Mss, embora a idéia de expulsio fo marca nests scrfcis, « expiagio persia sinda sae comunhio, Frazer nropésse antes completcr a Smith do que discutla. cones” © grande defeito deste sistema € 0 de querer red as {6rmulas tio miltiplas do sacrficio & unidade de principio arbitrariamente escolhido, Em primeito.higer tuniversalidade do totemismo, ponto de partida de toda teoria, é um postulado. O totemismo s6 aparece em e puro em alguinas tribos isoladas da Austrdlia e da. Améri Colocé-lo na base de todos os cultos teriomérficos & form lar uma hipStese, talvez inGtil e, em todo caso, impose de verificar. Sobretmdo, & dificil encontrar sactiffcios prlamente totémicos. O proprio Frazer reconheoeu que, quer 0 trate de cspécic doméstica, da capa preferida ol #0 contriio, da espécie particularmente temida. Seria ni cessiria pelo menos uma cescrigdo minuciosa de um ca ngmero destas ceriménias; ora, ¢ precisamente 0 que fal Mas, accitemos por um instante esta primeira hipétee por meis contestével que seja. A propria marcha da di Monstragio estd sujeta & critica. O ponto delicado da dou trina € a sucessio hist6rica ¢ a derivagao Iégica que Smith Pretende estabelecer entre 0 sacrificio comunitério ¢ og ‘outros tipos do secrificio. Ora, nada ¢ mais duvidoso. Todo © ensaio de cronologia comparada dos. sactificios Arabes, bebreus ou outios que ele estuidava,¢ fetalmente ruinoso. AS formas que parecem es mais simples $6. s80 conhecidas textos recentes. Sua simplicidade pode ainda resultar da. suficiénela de documentos. Em todo cazo, nfo implica ne= nhuma prioridade. Se nos ativermos aos dados da histéria, © da etnografia, encontraremos em toda parte o piaculura 80 Indo da comunhio. Alids, ests termo vago de piaculum permite a Smith descrever, sob a mesma rubrica ¢ nos mes- ‘mos termos, putificaydes, propiciagies e expiagbes, e & esta 2.,.Manmharas. Watt Fetahuite, 4 vol. Berl, 175 soleus Titschungen, Bitabunghs haga > BARB ITE Ad Mie PNSAIO SOBRE A NATUREZA E A FUNCAO... 145 onciliagdo com o deus; um banguete sacrificel, uma io de sangue, uma ungéo restabelecem a alianga, Para , & nestes rilos comunitérios que reside a virtude pro- NGria destes tipos de sacrificios; a idéia do expiagdo 6, anto, absorvida pela idéia de comunhao. Sem davida, feonsiata, em algumas formas extremas ou simplificadas, 1a coisa que nio ousa ligar & comunhio, uma espécie ‘exorcismo, de expulsio de um caréter mau, Mas, se- milo cle, trataso de processos mégicos que nada tém de 1] ¢ Smith explica com basiante erudigao e engenho TIntroduczo tardia destes processos no mecanismo do sacri- (Ora, ¢ precisamente © que podemos conceder. Um ps objetivos deste trabalho € o de mostrar que a climinagio lum caréter sagrado, puro ou impuro, ¢ uma engrenagem mitiva do sacrficio, 130. primitiva e t8o irredutivel quan- ‘\ comunhao. Se o sistema sacrifical tem sua unidade, Ja deve ser procurada alhures, © erro de R. Smith foi sobretudo um erro de método, vez. de analisar em sua complexidade original 0 6 tito semitico, dedicouse antes a agrupar gencalogica- ente os fatos segundo as relagdes de analogia que julgava oeber entre eles. Aliés, 6 um trago comum dos antro- logos ingleses que s© preocupam, antes de tudo, em acu- “mnular c classificar documentos. Quanto a nés, no queremos fazer, por nosso turno, uma enciclopédia que nos seria Jmposstvel tornar completa ¢ que, vindo depois das deles, seria til, "Dedicar nor-emos a0 estude ecurado dos fatos Uipicos. ‘Tomaremos estes fatos particularmente dos textos Hlinscritos e da Biblia. Estamos longe de ter sobre os sacri- {icios gregos e romanos documentos do mesmo valor. Com- pparando as informagées esparsas, fornecidas pelas inscrigées © pelo autores, ndo se chege a constituir algo mais do que tum ritual hetezogéneo. Ao contririo, temos na Biblia e hos textos hindus corpos de doutrinas que pertencem a luma €poca determinada. O documento 6 dircto, redigido pelos proprios autores, em sua lingua, no proprio espirito fm que realizavam os ritos, € com uma consciéncia sempre bem clara da origem e do motivo de scus ates. Sem divide, quando se trata de distinguir as formas simples © olementares de uma instituico, € inoportuno to- mar como ponto de partida © pesquisa dos rituais compli- ccados, recentes, comentados © provavelmente deformados por uma teologia erudite. Mas, nesta ordem de fatos, 6 va toda a pesquisa puramente histérica. A antiguidade dos tex- tos ou dos fatos referidos, a rclativa barbiric dos povos, a aparente simplicidade dos ritos so indicios cronolégicos en- ginadores. E excessivo procurar num rosério de versos da

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