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HOMICÍDIO

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1.1 CONCEITO, OBJETIVIDADE JURÍDICA E SUJEITOS DO


CRIME

É no art. 121 – “matar alguém: pena – reclusão, de 6 (seis) a 20 (vinte) anos” –


que o Código Penal brasileiro protege a vida humana extra-uterina. Sobre o homicídio
escreveu Nelson Hungria:

“Como diz IMPALLOMENI, todos os direitos partem do direito de viver,


pelo que, numa ordem lógica, o primeiro dos bens é o bem da vida. O
homicídio tem a primazia entre os crimes mais graves, pois é o atentado
contra a fonte mesma da ordem e segurança geral, sabendo-se que todos os
bens públicos e privados, todas as instituições se fundam sobre o respeito à
existência dos indivíduos que compõem o agregado social.”1

Homicídio é a destruição da vida humana extra-uterina, por outro homem. A


destruição da vida intra-uterina poderá configurar uma das modalidades do crime de
aborto, adiante abordado.

A vida humana tem começo e fim. Só há homicídio após o nascimento com vida
e antes da morte. Necessário, portanto, determinar esses dois momentos que delimitam
o período de existência da vida humana, protegida no art. 121 do Código Penal. A lei
não estabelece quando começa a vida; portanto, cabe à doutrina buscar o socorro da
ciência para definir esse termo.

A grande maioria dos doutrinadores concorda com a idéia de que a vida extra-
uterina começa com o início do parto. Parto é “o conjunto de processos mecânicos,
fisiológicos e psicológicos tendentes a expulsar do ventre materno o feto chegado a
termo ou já viável”2, que tem como marco inicial o rompimento do saco amniótico.

1 HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1955. v. 5, p. 26.
2 GOMES, Hélio. Medicina legal. 32. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1997. p. 602.
2 – Direito Penal II – Ney Moura Teles

Deve-se considerar iniciado o parto cirúrgico – cesariana – com a primeira incisão


realizada no corpo da gestante, pelo obstetra.

Iniciado o parto, há vida extra-uterina e sua destruição será homicídio, ou


infanticídio, como se verá adiante. Antes do início do parto, poderá haver aborto.

Não é necessário que o ser seja viável. Haverá homicídio ainda que o ser
humano não tenha viabilidade. Mesmo quando se tratar de ser incapaz de sobreviver,
ainda assim sua vida está protegida. Nasceu, ainda que venha a morrer segundos ou
minutos depois, tem a proteção do Direito. Não é necessário que tenha respirado, pois
há situações em que o ser viveu sem ter respirado.

Seres monstruosos, verdadeiras aberrações, recebem igual proteção atribuída


aos ditos seres humanos normais, daí que basta que tenha nascido de mulher para que
sejam considerados o “alguém” da norma penal incriminadora do art. 121 do Código
Penal.

De se perguntar: se um ser produzido a partir de fecundação in vitro vier a ser


gerado fora do útero de uma mulher – isto é, numa máquina que reproduza as
condições do útero – será considerado o “alguém” do art. 121? Se a resposta for
positiva, destruí-lo será homicídio.

A hipótese não é um absurdo ou apenas tema de ficção científica. Não está


muito distante o tempo em que se poderá presenciar esse progresso da ciência. Será ele
um ser humano?

Penso que seres produzidos a partir de células do que hoje é denominado ser
humano, inclusive os clones humanos, devem, em qualquer hipótese, merecer a
proteção do Direito Penal, ainda quando venham a ter algumas ou muitas
características diferentes das dos atuais humanos.

Nesse futuro, que não está tão distante, bastará à doutrina alterar o conceito
atualmente aceito de humano – ser nascido de mulher – para considerar alguém
qualquer ser originado, de qualquer modo, a partir de células obtidas, direta ou
indiretamente, de mulher. Aquele ser que tiver sido produzido a partir de células de
mulher ou de células que vieram de outro ser que adveio de mulher será humano e,
portanto, terá sua vida protegida pelo Direito Penal.

O termo final da vida é a morte. É o fim da vida. Indispensável determinar seu


momento, quando o Direito deixa de proteger a vida humana, posto que, a partir daí,
não há mais vida, apenas o cadáver, o corpo morto do homem, que também vai merecer
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proteção penal, como se verá, mais adiante.

A determinação do momento da morte é cada vez mais importante nos dias


atuais, uma vez que muito se avançou nas técnicas de transplantes de órgãos de
cadáveres para seres vivos, criando a possibilidade concreta de extração criminosa de
partes de corpo ainda vivo, o que, à evidência, constitui conduta criminosa.

O critério aceito pela Doutrina e pela Jurisprudência é o da morte cerebral ou


encefálica: a destruição anatômica do cérebro em sua totalidade. A Lei nº 9.434, de 4
de fevereiro de 1997, que dispõe sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo
humano para fins de transplante e tratamento, estabelece, em seu art. 3º, que:

“A retirada post mortem de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano


destinados a transplantes ou tratamento deverá ser precedida de diagnóstico de
morte encefálica, constatada e registrada por dois médicos não participantes
das equipes de remoção e transplante, mediante a utilização de critérios
clínicos e tecnológicos definidos por resolução do Conselho Federal de
Medicina.”

Assim dispondo, a lei definiu quando termina a vida: no momento em que


ocorre a chamada morte encefálica, determinando ao Conselho Federal de Medicina
(CFM) que, através de resolução, estabeleça os critérios clínicos e tecnológicos a serem
utilizados para sua constatação.

O CFM cumpriu a ordem legal através da Resolução nº 1.480/97, assim


dispondo:

“Art. 1º A morte encefálica será caracterizada através da realização de exames


clínicos e complementares durante intervalos de tempo variáveis, próprios para
determinadas faixas etárias.
Art. 2º Os dados clínicos e complementares observados quando da
caracterização da morte encefálica deverão ser registrados no ‘termo de
declaração de morte encefálica’ anexo a esta Resolução.
Parágrafo único. As instituições hospitalares poderão fazer acréscimos ao
presente termo, que deverão ser aprovados pelos Conselhos Regionais de
Medicina da sua jurisdição, sendo vedada a supressão de qualquer de seus itens.
Art. 3º A morte encefálica deverá ser conseqüência de processo irreversível e de
causa conhecida.
Art. 4º Os parâmetros clínicos a serem observados para constatação de morte
encefálica são: coma aperceptivo com ausência de atividade motora supra-
espinal e apnéia.
4 – Direito Penal II – Ney Moura Teles

Art. 5º Os intervalos mínimos entre as duas avaliações clínicas necessárias para


a caracterização da morte encefálica serão definidos por faixa etária, conforme
abaixo especificado:
a) de 7 dias a 2 meses incompletos – 48 horas
b) de 2 meses a 1 ano incompleto – 24 horas
c) de 1 ano a 2 anos incompletos – 12 horas
d) acima de 2 anos – 6 horas

Art. 6º Os exames complementares a serem observados para constatação de


morte encefálica deverão demonstrar de forma inequívoca:
a) ausência de atividade elétrica cerebral ou,
b) ausência de atividade metabólica cerebral ou,
c) ausência de perfusão sangüínea cerebral.

Art. 7º Os exames complementares serão utilizados por faixa etária, conforme


abaixo especificado:
a) acima de 2 anos – um dos exames citados no Art. 6º, alíneas ‘a’, ‘b’ e ‘c’;
b) de 1 a 2 anos incompletos: um dos exames citados no Art. 6º, alíneas ‘a’, ‘b’ e
‘c’. Quando optar-se por eletroencefalograma, serão necessários 2 exames com
intervalo de 12 horas entre um e outro;
c) de 2 meses a 1 ano incompleto – 2 eletroencefalogramas com intervalo de 24
horas entre um e outro;
d) de 7 dias a 2 meses incompletos – 2 eletroencefalogramas com intervalo de 48
horas entre um e outro.”
O termo final da vida foi clara e precisamente definido pelo ordenamento
jurídico brasileiro. Com a morte, portanto, não há mais ser humano, apenas o cadáver.
Sua destruição não poderá configurar homicídio, posto que não há mais “alguém”, e
sim o corpo morto do que foi alguém. Poderá caracterizar um dos crimes contra o
cadáver, descritos nos arts. 211 e 212 do Código Penal.

No passado, alguns doutrinadores entendiam que o homicídio era a destruição


violenta e injusta da vida de um homem. Evidente que esses dois componentes não
integram o tipo de homicídio. Não é indispensável que a destruição seja causada com
emprego de violência, posto que é possível cometer o homicídio sem ela. Quanto à
injustiça, é de ver que não integra o tipo de homicídio, mas é a própria ilicitude. Na
esfera da tipicidade do homicídio, não se cogita da injustiça da conduta ou do fato, o
que se resolve no âmbito da ilicitude.

Em síntese: homicídio é a destruição da vida humana extra-uterina, praticada


por outro ser humano. A destruição da própria vida é suicídio, fato atípico, e a da vida
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intra-uterina poderá ser aborto (arts. 124, 125 e 126 do Código Penal).

Sujeito ativo do homicídio é qualquer pessoa. Haverá infanticídio, se a mãe


matar o próprio filho, durante o parto ou logo após, sob influência do estado puerperal
(art. 123 do Código Penal).

Sujeito passivo do homicídio é alguém, qualquer pessoa, salvo se o recém-


nascido, morto pela própria mãe durante o parto ou logo após, sob a influência do
estado puerperal (art. 123 do Código Penal).

1.2 HOMICÍDIO DOLOSO

Contém o parágrafo único do art. 18 do Código Penal norma geral segundo a


qual, “salvo os casos expressos em lei, ninguém pode ser punido por fato previsto
como crime, senão quando o pratica dolosamente”. A ordem para o legislador é a de
construir tipos dolosos e só excepcionalmente, ao lado de alguns, criar também tipos
culposos. Assim, os tipos penais são construídos incluindo o dolo como um de seus
elementos, sendo desnecessária a menção expressa a esse elemento subjetivo. Não será
doloso o tipo quando a norma, expressamente, exigir a culpa, em sentido estrito, como
uma de suas elementares. Por isso, o tipo penal do art. 121 do Código Penal deve ser
lido assim: matar alguém dolosamente.

Dolo é a consciência e vontade de realizar o tipo legal de crime. Tratando-se de


crime de resultado, haverá homicídio doloso quando o sujeito ativo realizar uma
conduta com consciência e vontade de produzir o evento morte do sujeito passivo –
dolo direto ou determinado –, ou quando, consciente de que sua conduta é capaz de
produzir a morte, mesmo sem a desejar, o agente não se importar com sua produção,
isto é, aceitá-la, se ela acontecer – dolo eventual.

Homicídio com dolo direto é aquele em que o agente prevê que, com sua
conduta, causará a morte da vítima e a realiza exatamente com a finalidade de que a
morte ocorra. Como o dolo é a previsão do resultado (consciência) e a vontade de
produzi-lo – um elemento subjetivo, portanto, verificável no interior da psique do
agente –, sua demonstração, em algumas situações, não é tarefa das mais fáceis.

Homicídio com dolo eventual é aquele em que o agente, prevendo que sua
conduta poderá causar a morte da vítima, realiza-a sem a finalidade de matar, mas, se a
vítima morrer, esse resultado lhe será absolutamente indiferente. Não quer matar, mas,
se matar, “tudo bem”. A demonstração do dolo eventual é ainda muito mais difícil que a
do dolo direto.
6 – Direito Penal II – Ney Moura Teles

Deve o aplicador da lei realizar um raciocínio lógico com base nas


circunstâncias que cercaram o fato, para deduzir a presença do dolo. Analisar a ação
material e obter, dela, a certeza de que o agente previra o resultado e o desejara, ou,
pelo menos, nele consentira. Não é tarefa simples e fácil.

Induvidoso que aquele que, ao ver uma pessoa, pensa em disparar contra sua
cabeça ou seu tórax um projétil de arma de fogo tem plena consciência de que, se agir,
vai atingi-la, bem assim de que o ferimento causará, muito provavelmente, sua morte.
Tendo essa consciência, fazendo essa previsão, e mesmo assim agindo, só é lógico
concluir que queria produzir o resultado.

A consideração sobre o instrumento utilizado, a localização da lesão produzida,


as relações entre agente e vítima, os antecedentes do fato, o local em que se deu, e
acerca de outras circunstâncias que envolvem o acontecimento é indispensável para
que se possa concluir pela existência do dolo na conduta do sujeito.

Principalmente quando se tratar de dolo eventual, aquele em que o sujeito,


mesmo prevendo o resultado morte, e não o desejando, age aceitando-o, se ele
eventualmente acontecer. Esse dolo é de mais difícil demonstração, porque,
encontrando-se na esfera do pensamento do agente, sua atitude interna é a de não
querer a morte, mas nela consentir, aceitando-a, se ela ocorrer. É de difícil verificação,
porque muito se aproxima daquela atitude interna de prever a morte, não desejar e
confiar, sincera, mas levianamente, que ela não acontecerá, a qual não configura dolo,
mas culpa consciente.

Veja-se o seguinte exemplo: João, dirigindo seu veículo, vê à sua frente a


pedestre Maria. João pensa: “Vou assustar Maria, passando com meu carro bem
próximo dela.”

É previsível, como é óbvio, que com a conduta que pretende realizar poderá,
sem desejar, atropelar Maria. E João faz essa previsão. A seu lado, está José, que o
adverte do perigo. Provado está, portanto, que João fez a previsão. Todavia, João pode
tomar duas atitudes internas: 1ª Responde para José: “Sei que é possível atingi-la, mas
não se preocupe, José, eu não vou atropelá-la. Sou exímio motorista. Não há perigo.”
Em seguida, João impulsiona seu veículo e, sem desejar, nem aceitar, acaba por
atropelar Maria, causando-lhe a morte. 2ª Responde para José: “Sei que é possível
atingi-la, não quero, mas se acontecer, aconteceu. Não me importo.” Em seguida João
movimenta seu veículo e acaba por atropelar e matar Maria.

Na primeira hipótese, João agiu sem dolo eventual. Na segunda, agiu


dolosamente, pois, tendo previsto o que poderia acontecer, aceitou o resultado que, de
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fato, aconteceu.

No exemplo dado, com os desdobramentos possíveis, ficou fácil demonstrar a


atitude interna do sujeito, graças à presença de uma testemunha do fato, que poderá
relatar exatamente o que se passou na cabeça do agente. Na realidade, todavia, uma
testemunha presencial honesta e sincera nem sempre comparece em juízo para facilitar
a tarefa do julgador.

Analisando o mesmo exemplo, tal qual ocorreu, porém sem a testemunha


presencial, a tarefa do julgador será mais difícil. Como poderá o juiz identificar a
presença ou a ausência do dolo eventual?

Primeira indagação importante: João e Maria eram conhecidos? Eram amigos?


Se eram conhecidos, é possível crer na hipótese de que João pretendia, mesmo, aplicar
um susto em Maria. Se não eram conhecidos, não se pode, com segurança, crer nisso.
Se conhecidos e amigos, não tendo João nenhum motivo para causar algum mal para a
vítima, é possível concluir que ele não tenha aceitado, anuído, consentido na morte. Se,
porém, eram conhecidos e inimigos, ficará difícil acolher a alegação de não-aceitação
do resultado por parte de João.

Em qualquer caso, penso, a atitude de João de promover uma brincadeira –


divertir-se – com algo tão perigoso impõe sua compreensão como hipótese de
desconsideração para com o bem jurídico, afastando, assim, a própria idéia de não-
aceitação do resultado morte.

Analise-se o caso do atirador de facas, do circo, que tem como parceira do


espetáculo sua própria mulher. Há anos, apresentam-se em público, sem que jamais
tenha ocorrido qualquer acidente. Até que um dia, ao atirar uma das facas, ele atinge e
mata sua esposa. Há homicídio doloso ou culposo?

Como descobrir a presença ou ausência de dolo? Tarefa difícil, mas não


impossível.

As investigações podem levar ao conhecimento da informação de que, nos


últimos dias, o marido desconfiava de que ela o traía, tendo-a visto nos braços do
trapezista, na noite anterior ao fato. Uma testemunha vira-o presenciando o encontro
dos amantes, que nada perceberam. Levada essa informação à autoridade policial, esta
pode concluir que na verdade o atirador aproveitou-se da situação para simular um
acidente, a fim de fugir da acusação de homicídio doloso. Novas investigações levarão à
verdade.

Se, porém, nada se descobrir acerca da existência de um motivo para a prática


do homicídio, a conclusão inexorável haverá de ser a de que o atirador nem quis, nem
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consentiu na morte da esposa que tanto amava. Nesse caso, não haverá dolo. Ausente o
dolo, poderá haver homicídio culposo ou um indiferente penal.

Importante discussão, que nos dias atuais ganha cada vez maior importância,
diz respeito aos homicídios praticados no trânsito, especialmente aqueles provocados
por condução perigosa por parte de jovens que se dão à prática dos chamados “rachas”.
O grande problema é saber: quem provoca morte durante os “rachas” age dolosa ou
culposamente?

No passado, doutrina e jurisprudência eram quase sempre unânimes em


concluir pela ausência de dolo, simplesmente por ter sido praticado o homicídio no
trânsito, com o uso de um veículo automotor, o que, à evidência, não correspondia à
própria realidade desses infaustos acontecimentos, nem atendia às necessidades de
proteção do bem jurídico.

É certo que a grande maioria dos homicídios praticados no trânsito é, mesmo,


culposa, por terem seus agentes se conduzido com negligência, imprudência ou
imperícia, não querendo, nem aceitando, portanto, o resultado morte. Em muitas
situações, nem mesmo a previsão é feita pelo condutor do veículo, de modo que aí não
se pode falar em culpa consciente, mas culpa inconsciente.

Na situação em que o agente participa de um “racha”, todavia, a situação é bem


outra. Não se trata de mera inobservância do dever de cuidado objetivo, que ocorre
quando condutores de veículos desrespeitam o limite de velocidade, realizando
manobras imprudentes ou comportando-se com imperícia ou negligência.

No “racha”, as pessoas organizam-se para uma competição sem qualquer outra


motivação como ocorre no tráfego de veículos nas cidades. Querem simplesmente
extravasar certos sentimentos de frustração pessoal. O objetivo é se exibirem, e nada
mais.

Ora, essa atitude interna é, por si só, reveladora da profunda desconsideração


dos praticantes de “rachas” para com os bens jurídicos que se colocam a sua frente:
vidas humanas, integridades corporais e mesmo bens materiais. O simples fato de se
dedicarem a esse pretenso “esporte” em via pública já é suficiente para demonstrar que
não estão preocupados com a possibilidade de agredirem algum bem jurídico. Não o
valorizam, não se preocupam com sua provável lesão. Não se importam com sua
preservação. Move-lhes apenas a busca do prazer individual, ainda que, para alcançá-
lo, outros sejam prejudicados.

Daí que não se pode concluir que aqueles que praticam tais condutas estejam
imbuídos daquela atitude interna de não-aceitação, sincera porém leviana, da
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possibilidade da causação do resultado lesivo indesejado. Deve-se, ao contrário,


concluir no sentido de que, tendo-se conduzido com indiferença para com os bens
jurídicos em sua volta, que podem ser atingidos pelos movimentos que produzem com
seus veículos, estão, com esse comportamento, aceitando a possibilidade concreta de
lesioná-los, daí que sua conduta é dolosa, com dolo eventual.

Nesse sentido, vem posicionando-se o Superior Tribunal de Justiça:

“Não se pode generalizar a exclusão do dolo eventual em delitos praticados no


trânsito. Na hipótese de ‘racha’, em se tratando de pronúncia, a desclassificação
da modalidade dolosa de homicídio para a culposa deve ser calcada em prova
por demais sólida. No iudicium accusationis, inclusive, a eventual dúvida não
favorece os acusados, incidindo, aí, a regra exposta na velha parêmia in dubio pro
societate.

O dolo eventual, na prática, não é extraído da mente do autor mas, isto sim, das
circunstâncias. Nele, não se exige que resultado seja aceito como tal, o que seria
adequado ao dolo direto, mas isto sim, que a aceitação se mostre no plano do
possível, provável.

O tráfego é atividade própria de risco permitido. O ‘racha’, no entanto, é – em


princípio – anomalia extrema que escapa dos limites próprios da atividade
regulamentada.”3

Como já se disse, embora o dolo – direto ou eventual – esteja na cabeça do


agente, cabe ao juiz, analisando as circunstâncias que envolvem o fato, emitir seu juízo
valorativo acerca da atitude interna do sujeito ativo do crime.

Não basta que este afirme não ter desejado nem aceitado o resultado, é preciso
que o juiz disso se convença, com base na análise profunda de todas as circunstâncias
fáticas.

Evidente que ao julgador caberá emitir sua conclusão acerca dos fatos, e sua
decisão será passível de reexame pela instância superior, afastando, assim, o perigo de
julgamento injusto. O que não se pode aceitar é que, pelo simples fato de ter sido a
morte causada no trânsito, chegue-se à generalização de que é culposa.

1.2.1 Homicídio simples

3 DJ de 21 out. 2002, p. 381.


10 – Direito Penal II – Ney Moura Teles

No caput do art. 121 está o tipo fundamental do homicídio, denominado


homicídio simples.

O homicídio é um crime comum, material, simples, de dano, instantâneo de


efeitos permanentes e de forma livre. Diz-se que é um crime comum, porque pode ser
praticado por qualquer pessoa, não se exigindo, ademais, qualquer qualidade
diferenciada do sujeito passivo.

É crime material, porque há no tipo a descrição de uma conduta, com a


exigência, para sua consumação, de que o resultado morte seja produzido pela conduta
do agente.

Simples, porque atinge um único bem jurídico, a vida humana extra-uterina, e


de dano, pois destrói o bem jurídico protegido.

É instantâneo de efeitos permanentes, porque consuma-se no momento da


morte da vítima e suas conseqüências perduram por todo o tempo.

É um crime que pode ser praticado pelas mais diversas formas de execução, por
ação stricto sensu ou por omissão, daí que se diz ser um crime de forma livre.

O homicídio por ação, ou comissivo, é aquele praticado através de uma conduta


positiva do agente, que realiza um movimento corporal final, como disparar uma arma
de fogo, desferir um golpe de faca, arremessar uma pedra ou uma barra de ferro,
empurrar a vítima no precipício, ministrar-lhe veneno, constringir seu pescoço,
impedindo a respiração.

A ação pode ser física, como nos exemplos dados, mas também pode ser moral,
como a de assustar uma pessoa cardíaca ou fragilizada física ou mentalmente, visando
a que ela morra.

O homicídio por omissão, chamado omissivo comissivo ou comissivo por


omissão, é o praticado apenas pelos chamados garantes, aqueles que têm o dever de
agir para impedir o resultado e que, omitindo-se, permitem, com isso, a morte da
vítima (art. 13, § 2º, CP). Assim a mãe que deixa de amamentar o filho para que ele
morra e o salva-vidas que permanece inerte diante do afogamento, desejando que o
afogado venha a óbito.

Conquanto a lei tenha construído outros tipos derivados do homicídio simples –


os privilegiados no § 1º e os qualificados no § 2º do mesmo artigo –, haverá homicídio
simples quando não for nem privilegiado, nem qualificado. Em outras palavras, para
saber se há homicídio simples, deve-se raciocinar por exclusão. Somente será homicídio
simples, se não tiver sido nem privilegiado, nem qualificado, nem qualificado-
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privilegiado. Se o fato não se ajustar a nenhuma das circunstâncias privilegiadoras ou


qualificadoras, será homicídio simples.

1.2.2 Homicídio privilegiado

Se é verdade que a destruição da vida humana por ação dolosa de outra pessoa
constitui um dos crimes mais graves de nosso ordenamento jurídico, é preciso verificar
que o desvalor da conduta pode ser diferente em cada situação.

Se no homicídio o resultado é sempre o mesmo – a morte da vítima –, a


conduta do agente nem sempre pode ser qualificada igualmente, pois se entremostra,
muitas vezes, diferenciada uma de outras.

Por essa razão, ao lado do homicídio simples, a lei fez derivar, no § 1º do art. 121
do Código Penal, algumas espécies de homicídio que, por circunstâncias especiais em
que é praticado, são merecedores de reprovação menor do que a conferida ao homicídio
simples. “Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou
moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da
vítima”, a pena deverá ser reduzida de um sexto a um terço.

Há decisões jurisprudenciais e opiniões doutrinárias respeitáveis no sentido de


que a redução da pena é mera faculdade do juiz. Sustentam essa tese a forma literal
“poderá” contida no § 1º do art. 121 do Código Penal .

Penso que a diminuição da pena não é uma faculdade do juiz, mas um direito
subjetivo do acusado que tiver a seu favor reconhecida uma circunstância
privilegiadora, pelo Tribunal do Júri – que é o órgão competente para julgar os crimes
dolosos contra a vida.

No inciso XXXVIII do art. 5º da Carta Magna está consagrada a “soberania dos


veredictos do júri”, isto é, de todas as suas decisões, as quais, por essa razão, não são
meras indicações ou recomendações para o juiz, mas determinações que devem ser,
necessariamente, atendidas.

Seria um contra-senso o júri afirmar o privilégio e o juiz não ficar vinculado a essa
decisão, o que, a meu ver, constitui agressão à soberania do tribunal popular,
assegurada constitucionalmente. DAMÁSIO DE JESUS ensina: “Reconhecido o
privilégio pelos jurados, não fica ao arbítrio do julgador diminuir ou não a pena. A
faculdade diz respeito ao quantum da redução.”4

4 Direito penal. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 1992. p. 56.


12 – Direito Penal II – Ney Moura Teles

A dúvida foi espancada com a nova redação do art. 492, inciso I, alínea “c”, do
Código de Processo Penal, dada pela Lei nº 11.689, de 2008, que obriga o juiz, no caso
de condenação, a prolatar sentença na qual imporá as diminuições da pena admitidas
pelo júri.

Há homicídio privilegiado pelas seguintes circunstâncias: (a) por motivo de


relevante valor social; (b) por motivo de relevante valor moral; e (c) sob o domínio de
violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima (art. 121, § 1º do
Código Penal).

As duas primeiras figuras dizem respeito à motivação do agente, a última, a seu


estado psíquico emocional provocado por atitude da vítima.

1.2.2.1 Homicídio por motivo de relevante valor social

Homicídio por motivo de relevante valor social é aquele em que o agente age
impulsionado por uma razão de grande importância social. Por valor social deve-se
entender o que diz respeito aos objetivos da coletividade, a ser aferido segundo critérios
objetivos e de acordo com a consciência ético-social geral. Além disso, o valor social que
motiva a ação deve ser relevante, vale dizer, de grande importância, digno da maior
consideração por parte de todos.

Nos dias de hoje, em que a criminalidade violenta e organizada, especialmente o


tráfico ilícito de entorpecentes, subjuga amplos setores sociais, mormente bairros e
favelas, pode-se reconhecer o privilégio na conduta daquele que, com a exclusiva
intenção de combater a criminalidade, mata o chefe da quadrilha que domina sua
região. Move-o a busca da paz e da tranqüilidade social, que são, a toda evidência, de
enorme relevância social.

1.2.2.2 Homicídio por motivo de relevante valor moral

Já no homicídio por motivo de relevante valor moral, cuida-se de uma


motivação por valor de natureza moral. Tais valores são particulares, individuais, do
próprio agente e devem, igualmente, ser de grande importância. Não contempla,
portanto, qualquer valor individual, mas aquele que é considerado, ética e
objetivamente, de grau elevado pela consciência social. Seria, por exemplo, o caso do
pai que mata o autor do estupro contra sua filha menor. Já se entendeu também que o
marido traído que mata a mulher adúltera comete o crime por motivo de relevante
Homicídio - 13

valor moral; todavia, melhor é compreendê-lo, em algumas situações, como homicídio


privilegiado por violenta emoção, adiante comentado.

A eutanásia é considerada pela doutrina dominante um homicídio privilegiado


por motivo de relevante valor moral. Segundo Nelson Hungria, homicídio eutanásico é
aquele praticado para abreviar piedosamente o irremediável sofrimento da vítima, e a
pedido ou com o assentimento desta. O sofrimento irremediável da vítima, portanto,
constitui o valor moral de relevância que, impelindo o agente, torna-o menos
severamente punível.

O tema é fascinante e mereceu profundas discussões no seio da Comissão de


Reforma do Código Penal de 1997/1999, quando se tratou da eutanásia e da
ortotanásia. A proposta da comissão foi considerar a eutanásia uma espécie de
homicídio privilegiado e a ortotanásia uma causa de exclusão da ilicitude. Ficaram
assim redigidas as duas propostas:

Eutanásia: “Se o autor do crime é cônjuge, companheiro, ascendente,


descendente, irmão ou pessoa ligada por estreitos laços de afeição à vítima, e agiu por
compaixão, a pedido desta, imputável e maior de dezoito anos, para abreviar-lhe
sofrimento físico insuportável, em razão de doença grave e em estado terminal,
devidamente diagnosticados: Pena – reclusão, de dois a cinco anos.”

A proposta estabelece vários requisitos para o reconhecimento desse homicídio


privilegiado, regulamentando-o de modo claro e preciso.

Segundo ela, não será qualquer pessoa que poderá ser beneficiada com o
privilégio. Só o cônjuge ou companheiro, o ascendente ou descendente, o irmão ou
irmã, ou uma pessoa ligada por estreitos laços de afeição com a vítima.

A vítima deve ser, necessariamente, maior de 18 anos e imputável e deve fazer o


pedido de abreviação da vida ao agente. A motivação deste deve ser a compaixão e é
indispensável que tenha a finalidade precípua de abreviar o sofrimento físico, que deve
ser insuportável e causado por uma doença grave, estando a vítima em estado terminal,
o que deverá ser devidamente diagnosticado.

Ortotanásia: “Não constitui crime deixar de manter a vida de alguém por meio
artificial, se previamente atestada por dois médicos a morte como iminente e inevitável,
e desde que haja consentimento do paciente ou, em sua impossibilidade, de cônjuge,
companheiro, ascendente, descendente ou irmão.”

Segundo a proposta, para caracterizar a ortotanásia devem concorrer os

HUNGRIA, Nelson. Op. cit. p. 125.


14 – Direito Penal II – Ney Moura Teles

seguintes elementos: a vítima deve estar sendo mantida viva por meio artificial; sua
morte deve ser atestada como iminente e inevitável por dois médicos; é necessário o
consentimento da vítima ou, não podendo dá-lo, de seu cônjuge ou companheiro,
ascendente, descendente ou irmão.

As diferenças entre a eutanásia e a ortotanásia, conforme as duas proposições,


são claras.

Na eutanásia, a vítima deve estar experimentando, vivendo, um sofrimento


físico insuportável, causado por uma doença grave, e em estado terminal. São as dores
horríveis e o desconforto irremediáveis que acompanham certas doenças graves.

Na ortotanásia, a vítima deve estar na iminência de morrer, e mantida viva por


meio artificial, isto é, por aparelhos ou equipamentos médicos. Não é necessário haver
sofrimento físico insuportável. Não há necessidade de algum sofrimento físico, mas
deve a pessoa estar sendo mantida viva artificialmente e a morte deve ser iminente e
inevitável. Na eutanásia, a morte não precisa ser nem iminente, nem inevitável, mas a
doença grave e o estado terminal devem ser diagnosticados, e na ortotanásia a
iminência e inevitabilidade da morte devem ser atestadas por dois médicos.

A vítima, na eutanásia, deve ser maior de 18 anos e imputável, circunstância não


mencionada na ortotanásia, daí que pode ter qualquer idade e ser, inclusive,
inimputável.

Na eutanásia, o agente pratica uma ação para causar a morte da vítima, movido
pela compaixão e a pedido dela. Na ortotanásia, o agente, com o consentimento da
vítima ou de um seu familiar, realiza um comportamento omissivo, deixando de
continuar mantendo a vítima viva por meio artificial. Claro que o desligamento dos
aparelhos é uma ação, stricto sensu, mas o que se exigia antes era a continuidade da
ação de manter a vida artificialmente, e o agente deixa de realizá-la, isto é, deixa de
continuar mantendo a vida por meios artificiais.

Na eutanásia, a vida em estado terminal é destruída. Na ortotanásia, a morte


iminente e inevitável é antecipada. Na primeira, a finalidade é colocar um fim a um
sofrimento insuportável, acabando com uma vida que já se encontrava em estado
terminal, isto é, próxima do fim. Um fim ainda não iminente, nem necessariamente
inevitável, mas próximo. Por isso que a proposta a considera crime, porém privilegiado.
Já na ortotanásia, não se está mais diante de uma vida digna e independente, capaz de
manter-se naturalmente, senão por meio de sofisticados aparelhos e equipamentos
médicos. E mais, a morte é, por isso também, iminente e inevitável. Antecipar sua
chegada é um gesto de amor, daí que não pode ser considerado um crime.
Homicídio - 15

Estão corretas as propostas da comissão, uma vez que definem, com rigor, essas
duas situações concretas, impondo exigências a serem observadas pelo órgão julgador.
Os adversários dessas inovações legislativas ora defendidas são muitos. Seus
argumentos são, quase sempre, de natureza moral ou religiosa do tipo “só Deus pode
decidir quando o homem deve morrer”, ou “ninguém pode tirar a vida de outrem”.

Enquanto, todavia, o Congresso Nacional não aprovar modificações nesse ou


noutro sentido, tanto a eutanásia quanto a ortotanásia serão tratadas apenas como
circunstâncias privilegiadoras de um homicídio. O tema é fascinante e a sociedade
precisa discuti-lo sem preconceitos.

1.2.2.3 Homicídio emocional

Há homicídio sob o domínio de violenta emoção quando o agente, diante de


uma injusta provocação da vítima, se vê dominado por tamanha emoção e reage
imediatamente. São três, pois, os requisitos para sua caracterização: a injusta
provocação da vítima, a emoção violenta que domina o agente e sua reação imediata.

Injusta provocação é o comportamento da vítima capaz de, por sua natureza e,


principalmente, injustiça, desencadear um processo emotivo de grande intensidade no
agente. Pode ser uma ação ou omissão que a vítima realiza em relação ao próprio
agente ou a terceira pessoa. Não se confunde a provocação com a agressão, que, se
existente, pode ensejar uma situação de legítima defesa. A provocação é um
comportamento menos grave que a agressão, e com esta não se confunde. É uma
atitude de desvalor para com um bem jurídico.

“A provocação pode consistir em ofensas à honra, vias de fato, ameaças, riso


de escárnio ou desprezo, apelidos vilipendiosos, expressões ambíguas, indiretas
mordazes, revelação de segredos, exercício abusivo de direito, atos emulativos etc.” 5

A provocação deve ser injusta do ponto de vista objetivo, não do que sobre ela
pensa o agente. Contudo, para se considerar a injustiça da provocação, deve o
intérprete analisar as qualidades e condições pessoais de agente e vítima, de modo a
considerar presente este requisito do homicídio emocional. Há aquele que, pelos
valores que cultua, pode não sentir-se atingido com uma ofensa sobre sua honestidade
no mundo dos negócios e sentir-se afrontado com uma menção depreciativa de seus
atributos físicos ou de suas relações amorosas. Outros reagem de modo exatamente

5 HUNGRIA, Nelson. Op. cit. p. 149.


16 – Direito Penal II – Ney Moura Teles

contrário. Ofensas graves que tenham partido de uma pessoa de pouca credibilidade
podem até ser relevadas por determinada pessoa, ao passo que um simples comentário
crítico oriundo de um homem respeitado pode causar-lhe grande indignação.

Não basta, porém, que a vítima tenha realizado a provocação injusta. É


necessário que esta tenha desencadeado a violenta emoção.

Emoção, dizem os doutrinadores, é um estado afetivo, que atinge e perturba o


equilíbrio psicológico do indivíduo, alterando-lhe a maneira de pensar e, de
conseqüência, a de agir, não retirando, todavia, sua capacidade de entendimento ou de
determinação. A norma exige que a emoção seja violenta, isto é, de tal intensidade que
haja muito mais do que uma simples alteração do equilíbrio psicológico. É a verdadeira
ira ou a cólera que domina o sujeito, transformando-o por completo num ser
descontrolado capaz de realizar comportamentos agressivos que não realizaria no
estado normal.

A reação deve ser pronta e rápida, imediatamente após a provocação, pois do


contrário não se poderia atribuí-la ao estado emocional. Passado algum tempo após a
provocação, o estado psíquico alterado do agente já não será o mesmo, o furor já terá
arrefecido e sua reação só poderá ser atribuída ao desejo de vingança ou ao ódio que em
si se instalara, sentimento esse que o Direito não poderia, mesmo, premiar. Se não
reagiu no instante seguinte à provocação, em que a intensidade da emoção que lhe
arrebatou era maior, é porque ela não lhe alterou sobremaneira a capacidade de
controlar-se, logo, não pode invocar o privilégio, que não se compatibiliza com a reação
tardia.

O chamado homicídio passional – daquele que mata por ciúmes, pela traição ou
por simples suspeita, ou pelo flagrante de adultério ou, ainda, pela perda da pessoa
amada que o abandonou – tem sido objeto de muitas discussões e decisões as mais
diversas.

É preciso distinguir a situação do agente que encontra o cônjuge em flagrante de


adultério, das demais hipóteses. Não há dúvida de que a traição é um comportamento
equivalente a uma provocação injusta. Afinal, a fidelidade e o respeito mútuos são
deveres jurídicos, ainda quando não haja casamento mas só união estável. A visão dos
amantes trocando carícias amorosas é, sem dúvidas, um fator de determinação da
instalação, na mente do traído, de violenta emoção, aquela que pode desencadear a
reação imediata. Tomado de cólera, irado diante da certeza absoluta da traição, a
reação imediata com a morte de um ou de ambos ajusta-se perfeitamente à terceira
figura privilegiadora do § 1º do art. 121.
Homicídio - 17

Já os homicidas passionais que matam por ciúmes, por suspeitas de traição ou


porque foram abandonados, não estão acobertados pela norma. Não tendo havido
qualquer provocação injusta, não há falar-se naquela violenta emoção, que deve ser
causada pela ação da vítima. Ainda quando o agente esteja efetivamente perturbado ou
mesmo sob o domínio de violenta emoção, é de ver que, nesses casos, a causa da
alteração psíquica não pode ser atribuída a qualquer comportamento da vítima, mas
tão-somente a suas próprias conjecturas, a sua própria criação mental.

Dir-se-á que tais atitudes internas são decorrentes do sentimento de amor que o
agente nutre pela outra pessoa e que a sensação de perda, ou o ciúme, ou, ainda, a
suspeita de traição são capazes de produzir as alterações psicológicas que
desencadeiam o processo emotivo violento. Perderiam aí, esses passionais, a plena
capacidade de determinação e, por isso, mereceriam menor reprovação penal.

Não é assim. Se é certo que o ciúme pode até ser considerado produto do
sentimento de amor, não menos certo que ele seja principalmente fruto do sentimento
de posse ou domínio sobre pessoa, o que, se não pode ser considerado fútil, também
não pode ser entendido como motivo nobre. Daí que a perda da pessoa amada ou a
suspeita sobre sua fidelidade não se ajustam à norma que beneficia o homicida. Sem
que exista uma atuação concreta da vítima, que provoque a reação do agente, o
privilégio seria, na prática, um incentivo às construções mentais destrutivas que podem
acometer, momentaneamente, certos indivíduos.

1.2.3 Homicídio qualificado

Assim como há circunstâncias legais que impõem menor reprovação ao


homicídio, outras há que, ao contrário, exigem maior reprimenda penal. Isso vai
acontecer quando o fato é cercado por circunstâncias mais reprováveis, chamadas
qualificadoras.

As que qualificam o homicídio constituem, em relação aos demais crimes,


circunstâncias que sempre agravam a pena, as quais serão consideradas pelo juiz após a
fixação da pena-base. No homicídio, entretanto, já serão consideradas para a imposição
de maior reprimenda no momento da fixação da pena-base. Estão contidas nos incisos I
a V do § 2º do art. 121 do Código Penal.

A Lei nº 8.930, de 6 de setembro de 1994, que deu nova redação ao art. 1º da


Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990, incluiu, dentre os crimes hediondos, todos os
homicídios qualificados, consumados ou tentados. Incluiu também o homicídio
simples, “quando cometido em atividade típica de grupo de extermínio, ainda que por
18 – Direito Penal II – Ney Moura Teles

um só executor”.

Ora, no ordenamento penal brasileiro não existe a figura típica de “grupo de


extermínio”, daí que a norma é inaplicável, por força do princípio constitucional da
legalidade, por falta da definição legal utilizada. Por outro lado, é impossível um
homicídio praticado pelos vulgarmente chamados grupos de extermínio não ser,
necessariamente, qualificado por uma das circunstâncias do § 2º do Código Penal, o
que torna essa norma absolutamente desnecessária.

A pena cominada para os homicídios qualificados é reclusão, de 12 a 30 anos.

A premeditação não é uma circunstância qualificadora do homicídio. Também


não o é a relação de parentesco próximo entre agente e vítima. A premeditação, por si
só, não revela um grau de perversidade ou de torpeza. Tanto é possível o agente
premeditar um crime por motivo de relevante valor moral, quanto fazê-lo impelido por
uma motivação fútil. O mesmo se diga em relação ao homicídio do ascendente pelo
descendente, ou deste por aquele. Nesta última situação, há uma circunstância
agravante da pena (art. 61, II, e, do Código Penal).

A premeditação, se evidenciada, pode ser levada em conta pelo juiz, no


momento da fixação da pena-base como uma circunstância judicial desfavorável ao
agente.

As circunstâncias qualificadoras do homicídio dizem respeito (1) aos motivos


determinantes do crime, (2) aos meios empregados, (3) à forma ou ao modo de
execução ou (4) à conexão teleológica ou conseqüencial com outro crime.

Nos incisos I e II do § 2º do art. 121 do Código Penal estão descritas as


circunstâncias qualificadoras que dizem respeito aos motivos do crime: paga, promessa
de recompensa ou outro motivo torpe e motivo fútil.

O inciso III descreve circunstâncias que se referem aos meios empregados pelo
agente: veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura, ou outro meio insidioso ou cruel, ou do
qual possa resultar perigo comum.

Formas ou modos de execução qualificadores do homicídio estão contemplados


no inciso IV, que assim considera a traição, a emboscada, a dissimulação e outro
recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido.

Finalmente, também qualifica o homicídio a conexão finalística ou


conseqüencial, relacionada no inciso V: homicídio praticado para assegurar a execução,
ocultação, a impunidade ou a vantagem de outro crime.
Homicídio - 19

1.2.3.1 Paga, promessa de recompensa ou outro motivo torpe

Motivo é a força psíquica que impele alguém a fazer ou deixar de fazer alguma
coisa.

Aquele que age impelido pelo recebimento de um pagamento, um valor


pecuniário ou uma promessa de recompensa demonstra sua profunda desconsideração
para com o bem jurídico mais importante. Considera o valor monetário ou o bem
material ou imaterial que receberá mais importante do que a vida humana. Demonstra
frieza e insensibilidade diante do sofrimento da vítima e, mais grave, das conseqüências
da morte de um ser humano. Como se fora um deus, decide, por uma motivação abjeta,
pôr fim a uma vida humana simplesmente para auferir um ganho monetário ou uma
vantagem patrimonial, econômica ou de qualquer natureza. É o cúmulo do egoísmo.
Interromper toda uma vida pela simples razão de obter um ganho pessoal.

Discute-se se qualificadora alcançaria tanto o autor executor do procedimento


típico, quanto o autor intelectual, o que promete a recompensa ou que efetua o
pagamento, dizendo uma parte da doutrina que sim, uma vez que tanto a conduta de
um quanto a do outro merecem a mesma reprovação social.

Noutro sentido é a opinião de FLÁVIO AUGUSTO MONTEIRO DE BARROS:

“Observe-se, ainda, que o homicídio mercenário é crime bilateral, exigindo o


concurso de duas pessoas: o mandante e o executor. Indaga-se se o homicídio
seria ou não qualificado para o mandante, respondendo uns afirmativamente,
argumentando que a paga e promessa de recompensa são elementares do delito,
comunicando-se ao partícipe, nos termos do art. 30 do CP, enquanto outros
respondem negativamente, asseverando que o fundamento da qualificadora é
punir a cobiça, o móvel de lucro, na maioria das vezes ausente naquele que
manda matar. Esta última orientação é mais certeira, pois, como sustenta
Heleno Cláudio Fragoso, ‘não se exclui que mediante a ação de um sicário
pratique alguém um homicídio por motivo de relevante valor social ou moral. A
qualificação do homicídio mercenário justifica-se pela ausência de razões
pessoais por parte do executor (indício de insensibilidade moral) e pelo motivo
torpe que o leva ao delito. O mandante busca a impunidade e a segurança,
servindo-se de um terceiro’ (Lições de Direito Penal, Parte Especial, pág. 68,
Forense, 1989). Se, por exemplo, o pai pagar um pistoleiro para matar o
estuprador da filha, a solução, a nosso ver, será a seguinte: o pai (mandante)
responderá por homicídio privilegiado pelo relevante valor moral; o pistoleiro
(executor), por homicídio mercenário (CP, art. 121, § 2º, II). Anote-se que a paga
20 – Direito Penal II – Ney Moura Teles

e a promessa de recompensa não constituem elementares do delito e, sim,


circunstâncias qualificadoras. Seria sumamente injusto imputar a qualificadora
ao mandante. Sobremais, trata-se de circunstância subjetiva (motivo de paga ou
promessa de recompensa), sendo incomunicável ao partícipe, nos termos do art.
30 do CP.” 6

Não creio que essa seja a melhor solução, nem tampouco que a busca da
vontade da lei, nesse caso, deva ser feita à luz da norma do art. 30 do Código Penal.

A conduta do mandante, ainda que impelido por motivo de relevante valor


moral, não pode ser considerada apenas como a de quem pretende a impunidade e a
segurança, senão como a de quem não teve a coragem moral para, por suas próprias
mãos e arrostando todas as conseqüências de seu gesto, destruir a vida de quem, a seu
ver, merecia a morte. Longe de merecer tratamento diferenciado, há de receber, do
Direito, a mesma consideração dada ao que agiu impelido pelo fim da obtenção da
vantagem material, monetária.

Quem, pretendendo a morte de outrem, procura esconder-se atrás da ação do


executor, buscando impunidade e segurança, é tão vil quanto o que friamente executa a
morte de alguém sem qualquer outra motivação pessoal, senão a da obtenção do
recebimento do valor ou da vantagem ajustada. Aquele é o covarde que confia na
possibilidade de, não executando o procedimento típico, jamais ser alcançado pelo
aparelho estatal repressor. A busca da impunidade ou da segurança, longe de beneficiá-
lo, é, a meu ver, razão para maior censura penal. Se tivesse um motivo de relevante
valor moral e executasse ele próprio o homicídio, aí sim mereceria a diminuição da
pena, na forma do § 1º do art. 121, não incorrendo na majoração decorrente de
qualificadora. Se, mesmo tendo uma motivação relevante do ponto de vista moral ou
social, prefere pagar a outrem para que mate alguém, não pode merecer censura menor
do que aquele que não teve medo, nem buscou segurança ou impunidade. Pensar o
contrário é homenagear a covardia, e isso não é compatível com o Direito.

Também é possível ver, no que recebe a paga ou a promessa de recompensa,


uma motivação de relevante valor moral, quando o faz para proporcionar alimentos a
seus filhos famintos. Nos dias de hoje, em que a miséria e a fome grassam pelos rincões
deste rico país, não é desarrazoado reconhecer no gesto de um sicário destes um fiapo
de valor moral. Sicário sim, mas, em algum caso, por motivo de relevante valor moral.

A descrição típica do inciso I do § 2º do art. 121 não deve ser lida apenas em

6 Crimes contra a pessoa. São Paulo: Saraiva, 1997. p. 28.


Homicídio - 21

relação ao executor, mas também ao mandante, independentemente de se considerá-la,


ou não, circunstância elementar do tipo de homicídio. É que, ao descrevê-la como
“mediante paga ou promessa de recompensa”, a norma buscou alcançar a totalidade
de um contrato bilateral que, por sua própria natureza jurídica, envolve direitos e
obrigações para ambas as partes, e não apenas uma motivação pessoal exclusiva do
contratado.

O escopo da norma não é, simplesmente, o de reprovar mais severamente o fim


de lucro que moveu o executor, mas, também e antes, a conduta de ambos, executor e
mandante: celebrarem um pacto cujo objeto é a destruição de uma vida humana. Ou
seja, um contrato entre duas pessoas que visa à destruição do bem jurídico mais
importante. Um porque encomendou a morte de um homem, o outro porque aceitou a
encomenda. Ambos, igualmente, tiveram motivação torpe, abjeta, repugnante. O
primeiro porque, dispondo de dinheiro, sentiu-se à vontade para buscar alcançar a
destruição de uma vida humana, por mãos alheias. O outro porque, simplesmente por
dinheiro, não teve qualquer condescendência com a existência de um semelhante.

Se a vontade da lei fosse a de considerar qualificada apenas a atitude do


executor, não utilizaria a expressão “mediante paga ou promessa de recompensa”,
mas escolheria outra fórmula específica, exclusiva ou própria do executor, como “para
(ou com o fim de) obter paga ou promessa de recompensa”. A expressão mediante
significa aquilo que medeia. O verbo mediar significa ficar no meio de dois pontos, no
espaço, ou de duas épocas, no tempo. Assim, ao utilizar essa expressão, a lei vinculou
as duas partes, o mandante e o executor. A paga ou a promessa de recompensa é o elo
que liga as duas pessoas, é o que medeia as duas vontades e suas motivações. Logo, o
que medeia duas condutas a ambas se agrega, razão por que ambos praticam homicídio
qualificado.

Esta é uma solução acima de tudo justa, porquanto tanto repugna o gesto de
quem executa a morte, quanto o de quem a encomendou. O pagamento feito macula
tanto o que o fez, quanto o que o recebeu. O primeiro por não ter considerado a vida
humana senão uma coisa, passível de ser destruída por força do poder de quem dispõe
de numerário capaz de seduzir quem dele precisa. Este, por tê-lo considerado mais
importante que a vida humana.

Ambos, portanto, responderão na forma qualificada do homicídio.

Quanto à possibilidade de um dos dois, mandante e executor, ou até mesmo de


ambos terem agido, ao mesmo tempo, por motivo de relevante valor moral, nada obsta
seu reconhecimento também pelo órgão julgador, o Tribunal do Júri.
22 – Direito Penal II – Ney Moura Teles

Assim, o pai que manda matar o estuprador da filha poderá ter a seu favor
reconhecido o privilégio, que pode, perfeitamente, harmonizar-se com a qualificadora
em questão. Será, pois, apenado por um homicídio ao mesmo tempo qualificado e
privilegiado, figura perfeitamente compatível com a vontade do Direito. Terá sua pena,
de 12 a 30 anos, diminuída, de um a dois terços, sem qualquer dificuldade.

O mesmo se diga do que executou a morte para obter numerário destinado a


comprar alimentos para saciar a fome de seus filhos menores.

Essa sim a solução mais justa, porque reconhece, a um só tempo, a presença de


uma circunstância que aumenta a reprovação e outra que a diminui. Sua convivência
em nada agride o sistema de leis do Estado.

A mesma norma do § 1º do art. 121 utiliza, aqui, da interpretação analógica,


equiparando à paga ou promessa de recompensa qualquer outro motivo torpe. A
motivação do agente que se assemelhar à daquele que contrata a morte de alguém, ou
do que mata, mediante paga ou promessa de recompensa, será considerada torpe, isto
é, abjeta, repugnante.

Serão torpes todos os motivos que, à semelhança do fim de lucro, ou da


contratação de alguém para destruir uma vida humana, impelirem o sujeito a matar
alguém. São os motivos indignos, que contrastam com os valores morais.

É torpe a força que impele o filho a executar ou a contratar a morte dos pais,
com a finalidade de se livrar de sua presença na sua vida, de suas orientações, dos
corretivos normais, para alcançar a liberdade plena, para viver sem controle ou limites
aceitáveis em sociedade. Mais torpe ainda, quando o fim é a obtenção de valores
materiais, a título de herança.

A torpeza, como disse NELSON HUNGRIA, revela um grau particular de


perversidade7.

A vingança, porém, não é, necessariamente ou por si só, um motivo torpe. Tanto


que a lei a ela não se referiu. A vingança pode dar-se até mesmo por um motivo
razoável, não justificado, é óbvio, mas não abjeto ou repugnante. É preciso analisar os
motivos que levaram o sujeito a promover sua vingança. Estes podem, sim, ser torpes
ou não.

1.2.3.2 Motivo fútil

7 Op. cit. p. 162.


Homicídio - 23

Fútil é o motivo ínfimo, insignificante, mesquinho, vazio, leviano, frívolo,


extremamente desproporcionado ou de somenos importância, que impele o sujeito a
matar, revelando, assim, a intensa insensibilidade que o domina. É o motivo banal.

O agente que mata a vítima porque esta lhe pisou o pé, o que mata o garçom
porque este derramou vinho na roupa de sua acompanhante, bem assim o que atinge o
torcedor que comemorou a vitória de seu clube de futebol agem impelidos por
motivação fútil.

A futilidade nasce da prepotência e da intolerância que caracterizam certos


indivíduos. São os que se consideram seres superiores, pela força do poder econômico,
ou pela superioridade nos planos físico, intelectual ou moral. Contrariados em qualquer
pretensão, enchem-se de ira e voltam-se violentamente contra os mais fracos ou
desavisados. Não aceitam o “não”. Não toleram a crítica, não convivem com nada que
lhes incomode. Não sendo agredidos, nem tampouco provocados, mas, simplesmente,
não recebendo o que querem, não ouvindo o que gostariam, ou não vendo o que
desejavam, reagem e matam.

E porque se consideram verdadeiros deuses, ai de quem, em sua frente, se


postar como, a seu próprio juízo, responsável ou culpado pela não-realização de seus
desejos. Chegam a matar e nessas circunstâncias receberão reprovação penal mais
severa.

Ciúme, já se disse há pouco, é um sentimento que não justifica qualquer


conduta típica, nem tampouco, por si só, é capaz de ensejar uma causa de diminuição
da pena. Ainda assim não é um motivo torpe, posto que derivado de um estado afetivo.
Não é, por isso, abjeto, nem repugnante. Seria fútil?

Também não. Mesmo que se possa considerá-lo fruto de um sentimento


retrógrado, inaceitável, de posse sobre uma pessoa, ainda que querida ou amada, não
pode ser incluído entre os motivos insignificantes. O só fato de nascer, como
efetivamente nasce, também do sentimento do amor, é revelador, senão de sua
nobreza, pelo menos de sua importância. Logo, não pode ser ínfimo, nem desprezível
ou banal.

O ciúme não é causa de justificação da conduta, nem circunstância


privilegiadora, todavia, não pode ser considerado motivo fútil, posto que, ainda que não
se lhe reconheça qualquer nobreza, não se pode tê-lo como mesquinho.

Os humanos, não sei se infelizmente, têm, para com alguns de seus


semelhantes, esse sentimento intenso, de tê-lo como seu, de querê-lo para si, de
exclusividade no relacionamento, mormente o afetivo e sexual e, só por isso, é de se
24 – Direito Penal II – Ney Moura Teles

compreender o ciúme como um estado relevante, ainda que incompatível com a plena
liberdade individual e o respeito que todos a ela devem dedicar.

A embriaguez seria compatível com a motivação fútil?

Essa é outra questão à qual se dedicam os estudiosos do Direito Penal. Para uns,
o estado de embriaguez do sujeito ativo do crime é absolutamente incompatível com a
futilidade, por não lhe ser possível formular um juízo de proporção entre o motivo e a
conduta. Já outros entendem plenamente harmonizável a alteração psíquica decorrente
da ingestão de substância embriagante com a avaliação do motivo que impele o agente
a praticar o crime.

Não há receituário preciso para o problema. Importa verificar, em primeiro


plano, o grau de embriaguez. Se for completa, é evidente que não está o sujeito com a
capacidade de discernir sobre a proporção entre a provocação e a conduta. Como já se
disse anteriormente, a responsabilidade penal, nos casos de embriaguez voluntária ou
culposa, é objetiva, por força da teoria da actio libera in causa, adotada pelo
ordenamento penal. Rigorosamente, há, nessas hipóteses, ausência de conduta, por
absoluta falta de consciência ou vontade. Fazer incidir, ademais, a circunstância
qualificadora do motivo fútil é, a meu ver, responsabilizar o indivíduo, objetivamente,
duas vezes. É bastante que ele seja apenado, mas aí deve-se contentar com a tipicidade
do homicídio simples.

Dividem-se, doutrina e jurisprudência, acerca da ausência de motivo ser


equiparada, ou não, ao motivo fútil. Penso que correto é o entendimento segundo o
qual, se o agente praticar o fato sem qualquer motivo, deverá responder pela forma
qualificada, uma vez que não poderia merecer menor reprovação do que aquele que
agiu por um motivo banal. Se é certo que o motivo fútil é o pequeno demais, o motivo
nenhum a ele deve equiparar-se, porque, inexistente, é como se fora ainda menor.

1.2.3.3 Veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura ou outro meio


insidioso ou cruel, ou de que possa resultar perigo comum

No inciso III do § 2º do art. 121 do Código Penal estão considerados


determinados meios empregados pelo agente, os quais, por sua natureza insidiosa ou
cruel, revelam a extrema perversidade com que o crime é praticado, daí que não
poderia ser considerado um homicídio simples. Se o homicídio já é, por si só, um crime
extremamente grave por destruir o bem jurídico mais importante, a utilização de certos
meios, que infligem maior sofrimento à vítima, constitui circunstância que o torna mais
severamente punido.
Homicídio - 25

A Toxicologia, ciência que estuda os venenos ou substâncias tóxicas, não


apresenta um conceito unânime de veneno, uma vez que determinadas substâncias
perigosas para a vida da maioria das pessoas, em alguns casos, apresentam-se, em
relação a outras vidas, absolutamente inócuas. O açúcar, alimento para quase todos,
para o diabético pode ser letal.

Isso porque, segundo HÉLIO GOMES, “entre alimento, medicamento e veneno


nem sempre se pode fazer distinção rigorosa. SOUZA LIMA, em sua notável
Toxicologia, primeiro livro escrito no Brasil sobre o assunto, diz:

“Por exemplo, o álcool, que em pequena dose é reputado um alimento


respiratório (como se dizia na antiga filosofia); em dose mais elevada é um
medicamento excitante difusivo, e, além de certos limites, torna-se veneno
estupefaciente. A mesma substância é, pois, um alimento enquanto concorre
para a nutrição e para a vida, um medicamento quando cura ou modifica
favoravelmente a marcha e terminação das moléstias, e um veneno quando
produz desordens graves na economia e a morte.”8

É do mesmo SOUZA LIMA a seguinte definição de veneno:

“substância estranha à categoria dos agentes vulnerantes e patogênicos, que,


introduzida ou aplicada de qualquer modo ao corpo humano em certa
quantidade, relativamente grande, produz mais ou menos rapidamente
acidentes graves na economia, que podem terminar pela morte, ou deixar
defeitos permanentes e irremediáveis”.

Para NELSON HUNGRIA, veneno é “a substância que, introduzida no


organismo, é capaz de, mediante ação química ou bioquímica, lesar a saúde ou
destruir a vida”9.

Neste último sentido, também deve ser considerado veneno o vírus, que é um
elemento gerador de doença, por sua característica de contagiosidade, e que pode ser
introduzido no corpo humano causando lesões ou a própria morte.

O veneno pode ser introduzido no organismo pela via gastrointestinal, pelas


vias respiratórias, pela via endérmica ou hipodérmica, pela pele ou pelas mucosas e
diretamente no sistema circulatório. Sua atuação ocorrerá quando atingir o sistema
arterial e capilar, que é seu campo de ação.

A qualificadora incidirá apenas quando o veneno é ministrado de modo

8 Op. cit. p. 434.


9
Op. cit. p. 162
26 – Direito Penal II – Ney Moura Teles

insidioso, isto é, dissimulado. A vítima é ludibriada pelo agente, e não percebe sua
intenção criminosa.

Se o agente utiliza-se de violência ou grave ameaça para que a vítima seja


exposta ao contato com o veneno, ingerindo-o ou inalando-o, e tenha, por isso,
consciência da ação lesiva que a substância vai produzir em seu organismo, o homicídio
será qualificado pela crueldade, uma vez que importará em grande sofrimento.

O uso do fogo sobre o corpo humano provoca enorme sofrimento. O calor


produzido pela combustão e as chamas que dela decorrem importam em dores
horríveis, além da consciência de que os órgãos do corpo estão sob um violento e rápido
processo de destruição, consumindo-se. A exposição do corpo a temperaturas elevadas
produz modificações de sua matéria que vão chegar até a carbonização. É meio
crudelíssimo.

A norma não se referiu à exposição do corpo humano a temperaturas


extremamente baixas, que podem levá-lo ao congelamento. Com certeza porque tal
fenônemo natural não seja próprio de nosso espaço geográfico. Todavia, um homicídio
cometido com a submissão da vítima ao frio intenso, produzido artificialmente, será,
induvidosamente, qualificado pela crueldade.

Explosivo, para os fins da norma em comento, é qualquer corpo, aparelho ou


substância capaz de produzir explosão. Explosão é a expansão violenta de gases, em
forma de calor, acompanhada de estrondo e pressão disruptiva, causada por repentina
liberação de energia decorrente de uma reação química muito rápida, ou de uma reação
nuclear, ou do escape de gases ou vapores sob grande pressão. Com a explosão, as
matérias próximas, inclusive corpos humanos, sofrem a ação da enorme força
expansiva dos gases liberados, recebendo seu impacto, o que pode ser letal.

Asfixia é a supressão da respiração, com a cessação das trocas orgânicas,


reduzindo-se o teor de oxigênio, aumentado o de gás carbônico no sangue arterial. São
várias as modalidades de asfixia.

A chamada sufocação direta é aquela produzida por uma ação que impede a
entrada do ar no aparelho respiratório através das vias aéreas superiores ou de seus
orifícios externos. Com as mãos ou certos objetos moles, como um travesseiro ou
cobertor, o agente fecha os orifícios superiores do aparelho respiratório. É a chamada
oclusão direta das narinas e da boca. Para ser concluída, é necessário que haja
desproporção de força entre os sujeitos do crime. Ocorre muito nos casos de
infanticídio.

Pode a sufocação direta dar-se através da oclusão dos orifícios da faringe e da


Homicídio - 27

laringe, que se realiza com a introdução de panos, papel, rolha ou outros objetos
adequados, na boca da vítima, obstruindo aqueles órgãos, dando início à supressão do
processo respiratório.

Há sufocação indireta quando a vítima é impedida através de uma força externa


de realizar os movimentos de inspiração e de expiração. O peso excessivo do agressor
sobre o tórax da vítima é uma dessas situações. É também chamada de compressão
torácica.

Asfixia por enforcamento decorre da constrição do pescoço exercida por meio


de um laço, fixado num ponto superior ao corpo, cujo peso atua como força constritora.
As vias respiratórias são obstruídas e a morte pode demorar geralmente de cinco a dez
minutos.

O estrangulamento consiste na constrição do pescoço, também por laço;


todavia, a força atuante, diferentemente do enforcamento, não é o próprio peso da
vítima. Se o agente utilizar-se das próprias mãos para efetuar a constrição, a asfixia se
denomina esganadura.

Confinamento é uma forma de asfixia na qual a vítima é mantida presa num


ambiente fechado, sem a necessária e adequada renovação de ar, de tal modo que as
quantidades de oxigênio e de remoção do gás carbônico não sejam adequadas ao
processo respiratório. O sofrimento da vítima é indizível, porque, à medida que o
tempo passa, vai sentindo os efeitos da diminuição do oxigênio e do aumento da
umidade e da temperatura ambiente.

“À medida que o tempo passa, a situação vai se agravando e duas síndromes


vão se instalando simultaneamente: hipóxia e exaustão térmica. Ambas levam a uma
fase de reação com hiperpnéia, taquicardia, elevação da pressão arterial e início de
pânico. Mais adiante, vem o desespero, grande agitação e perda da consciência com
ou sem convulsões. Segue-se estado de coma, que evolui para o estado de choque e a
morte por asfixia.” 10

O soterramento é a asfixia em que a vítima fica coberta completamente por


escombros ou por terra. Dá-se quando, por exemplo, é provocado um desabamento ou
quando a vítima é enterrada viva. A morte poderá se dar pela compressão torácica ou
por sufocação direta.

Também há asfixia no afogamento. Nesse caso, ocorre a penetração de grande

10 GOMES, Hélio. Op. cit. p. 519.


28 – Direito Penal II – Ney Moura Teles

quantidade de líquido, água ou outro, nos pulmões, através das vias respiratórias.

Qualquer que seja a modalidade, a asfixia é um meio cruel, porque impõe um


sofrimento desnecessário para a vítima, daí a razão de ser uma circunstância
qualificadora do homicídio.

Também qualifica o homicídio o uso de tortura em sua execução. É a utilização


de tormentos, físicos ou mentais, para executar a morte da vítima. A expressão tortura,
do inciso III do § 2º do art. 121 do Código Penal, não corresponde à idêntica expressão
utilizada na construção dos tipos legais de crime de tortura definidos na Lei nº 9.455,
de 7 de abril de 1997. No homicídio, significa um dos meios cruéis, utilizados pelo
agente na execução do homicídio.

A definição dos crimes de tortura é uma exigência mundial, antes mesmo de ser
uma ordem constitucional. A Declaração Universal dos Direitos do Homem, em seu art.
V, estabeleceu que “Ninguém será submetido à tortura ou a tratamento ou castigo
cruel, desumano ou degradante”.

A Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas adotou, em 10 de


dezembro de 1984, a Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos Penais
Cruéis, Desumanos ou Degradantes, que foi aprovada pelo Congresso Nacional pelo
Decreto Legislativo nº 4, de 22 de maio de 1989 e promulgada pelo Presidente da
República pelo Decreto nº 40, de 15 de fevereiro de 1991, a qual, na Parte I, art. 1º,
estabelece:

“Para os fins da presente Convenção, o termo tortura designa qualquer ato


através do qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são infligidos
intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de uma terceira pessoa,
informações ou confissões; de castigá-la por ato que ela ou uma terceira pessoa
tenha cometido ou seja suspeita de ter cometido; de intimidar ou coagir esta
pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer motivo baseado em discriminação de
qualquer natureza; quando tais dores ou sofrimentos são infligidos por um
funcionário público ou outra pessoa no exercício de funções públicas, ou por sua
instigação, ou com o seu consentimento ou aquiescência. Não se considerará
como tortura as dores ou sofrimentos que sejam conseqüência unicamente de
sanções legítimas, ou que sejam inerentes a tais sanções ou delas decorram.”11

Em nenhuma hipótese, a tortura é admitida, como se vê do art. 2º da mesma


Convenção, o qual, em seu item 2, dispõe: “Em nenhum caso poderão invocar-se

11 BRASIL. Diário Oficial da União, de 18 fev. 1991, p. 3012-3015.


Homicídio - 29

circunstâncias excepcionais tais como ameaça ou estado de guerra, instabilidade


política interna ou qualquer outra emergência pública como justificação para
tortura.”

A Lei nº 9.455/97, no art. 1º (caput e §§ 1º e 2º), descreveu seis condutas


típicas de tortura (a tortura-prova, a tortura como crime-meio, a tortura racial ou
discriminatória, a tortura-pena ou castigo, a tortura do encarcerado e a omissão
frente à tortura). Já no § 3º cuidou do crime qualificado pelo resultado, preterdoloso, e
no § 4.º previu causas de aumento de pena.

ALBERTO SILVA FRANCO, acerca do conflito entre a qualificadora do


homicídio e os tipos da Lei de Tortura, assim se expressou:

“Mas qual seria o tipo de relacionamento entre a tortura e o homicídio? Aqui,


a questão apresenta um enfoque diverso. Se o resultado morte não foi querido
pelo torturador, mas advém como conseqüência da ação torturadora, a
solução da matéria já se acha na própria Lei 9.455/97 que prevê a hipótese de
tortura qualificada e lhe comina pena reclusiva de oito a dezesseis anos. Mas,
se o agente está praticando a tortura e, num dado momento, decide eliminar a
vida do torturado, é evidente que, nessa situação concreta, houve duas
violações, representando a segunda um desvio em relação à primeira: o
agente quis torturar e depois, quis matar. Em verdade, são duas ações
completas e bem definidas a configurar dois delitos, em concurso material: a
tortura e o homicídio.”12

Três são as possibilidades. Na primeira, o agente age dolosamente realizando


um dos tipos legais de tortura e sobrevém, por culpa, stricto sensu, o resultado morte.
Aí há crime de tortura seguida de morte. É crime preterdoloso. Há dolo na ação
material de realizar a tortura, com o elemento subjetivo respectivo, e culpa na produção
do resultado morte.

Na segunda, o agente tem o dolo de realizar um crime de tortura e, no decorrer


de sua ação, resolve matar a vítima. Nesse caso, há dois crimes, tortura e homicídio, em
concurso material.

Uma terceira hipótese: o agente quer, desde o início, cometer um crime de


tortura e também matar a vítima. Quer infligir intenso sofrimento físico ou mental, com
o fim de obter uma confissão da vítima e, também, deseja sua morte. Aí haverá
concurso formal entre um crime de tortura e outro de homicídio qualificado, com a

12 Tortura – Breves anotações sobre a Lei nº 9.455/97, Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 19, p. 65.
30 – Direito Penal II – Ney Moura Teles

aplicação cumulativa de pena, porquanto resultantes de desígnios autônomos.

Assim, a tortura que qualifica o homicídio é o suplício violento que o agente


inflige à vítima, como meio para a obtenção do resultado morte, que não se confunde
com qualquer dos crimes de tortura, que, muito embora constituam, igualmente,
intenso sofrimento físico ou mental para a vítima, devem, para perfazer-se, realizar os
outros elementos do respectivo tipo.

Para alcançar outras condutas igualmente reprováveis, a norma do inciso III do


§ 2º do art. 121 utiliza, outra vez, o mecanismo da interpretação analógica, a fim de que
o intérprete, diante do caso concreto, faça a comparação entre o meio efetivamente
utilizado pelo agente e um dos já explicados (veneno, fogo, explosivo, asfixia e
tortura). Se o meio concretamente usado tiver sido, à semelhança desses, insidioso ou
cruel, ou do qual possa resultar perigo comum, a qualificadora incidirá.

Meio insidioso é aquele dissimulado em sua influência maléfica. Através dele, o


agente emprega um ardil ou um artifício qualquer, de modo a ludibriar a boa-fé do
agente. Como no caso da propinação de veneno, a vítima não percebe a intenção
criminosa. Vale-se o agente de determinado estratagema ou de armadilha para realizar
o intento criminoso. O meio insidioso é como a dissimulação, mencionada no inciso IV
do mesmo § 2º, adiante comentada, porém deve guardar maior similitude com a
utilização do veneno, quando a vítima até colabora com a ação do agente. Tanto na
insídia quanto na dissimulação, a vítima fica privada da possibilidade de resistir à ação
criminosa, mas naquela dá alguma contribuição, ainda que passiva, para o evento, ao
passo que na dissimulação não dá qualquer colaboração.

A diferença está, ainda, em que a insídia consiste no meio utilizado, ao passo


que a dissimulação encontra-se no modo como o fato é praticado, o que se vai
demonstrar adiante.

Meio cruel é todo aquele que importa para a vítima um padecimento físico ou
mental além do necessário e suficiente para a consumação do homicídio. É o
sofrimento desnecessário, inútil. Muitos podem imaginar que a reiteração ou o excesso
de golpes perpetrados pelo agente contra a vítima constitui meio cruel de execução do
homicídio. Não necessariamente. Pode ocorrer que já ao primeiro golpe a vítima perca
os sentidos ou mesmo venha a óbito, o que, à evidência, não importa em sofrimento
desnecessário ou excessivo.

Matar a vítima através de reiterados e sucessivos cortes em seu corpo,


produzindo, lentamente, hemorragia e deixando-a sem qualquer socorro até que a
morte ocorra é uma forma extremamente cruel de homicídio. Revela a absoluta falta de
Homicídio - 31

piedade do agente, extrema frieza e insensibilidade, que provocam enorme e desumano


sofrimento para a vítima. Bater num idoso ou num enfermo, minando-lhe,
paulatinamente, as forças até que sobrevenha a morte, é igualmente matar por meio
cruel. Manter alguém em cárcere privado privando-o de água ou de alimento para que
ele, com o tempo, venha perder suas forças e, lenta e dolorosamente, morrer é outra
induvidosa hipótese de homicídio por meio cruel.

A crueldade do meio deve ser interpretada à semelhança da tortura ou da


asfixia, nas quais a vítima é morta depois de algum tempo de enorme sofrimento, físico
ou moral.

Haverá homicídio qualificado por um meio de que possa resultar perigo


comum quando a conduta do agente puder causar, além da morte da vítima, uma
situação de perigo para a vida ou para a saúde de outras pessoas. A verificação deve ser
feita com recurso da interpretação analógica, comparando-se o meio utilizado
efetivamente pelo agente com as hipóteses de utilização de fogo ou de explosivo, já
comentadas. Tanto na utilização do fogo quanto na do explosivo existe a possibilidade
concreta de que outras pessoas venham sofrer as conseqüências da ação delituosa. A
fórmula genérica ora comentada permitirá ao julgador considerar também qualificado
o homicídio utilizado através de incêndio ou de inundação provocados pelo agente com
vistas na morte de determinada pessoa.

Assim, se o agente, sabendo que seu desafeto encontra-se em determinado local,


resolve causar um incêndio ou um desabamento do prédio, com o fim de provocar um
acidente e sua morte, incidirá essa qualificadora.

É certo que se ele souber da presença de outras pessoas, fizer a previsão da


morte de alguma ou de várias delas e, pelo menos, mostrar-se indiferente a um desses
eventos letais, e uma daquelas pessoas vier a ser atingida e morrer, haverá dois
homicídios dolosos, em concurso formal imperfeito. Inaceitável que, tendo feito a
previsão da morte de qualquer dos demais, possa ter agido apenas com culpa
consciente. Haverá dolo eventual.

Desconhecendo o agente a presença, ainda que previsível, de outras pessoas nas


imediações e, portanto, agindo sem dolo em relação à morte ou à lesão corporal de
qualquer delas, a solução é outra. Se não resultar morte ou lesão corporal de qualquer
dos circunstantes, haverá então concurso formal perfeito entre o crime de homicídio
qualificado e o crime de perigo comum. Se resultar morte ou lesão corporal de qualquer
deles, haverá concurso formal perfeito entre o crime de homicídio qualificado realizado
e homicídio culposo ou lesão corporal culposa.
32 – Direito Penal II – Ney Moura Teles

1.2.3.4 Traição, emboscada, dissimulação ou outro recurso que


dificulta ou impossibilita a defesa do ofendido

O inciso IV do § 2º do art. 121 do Código Penal descreve circunstâncias


qualificadoras que dizem respeito às formas ou modos de execução do homicídio, todas
elas insidiosas, traiçoeiras, ardilosas, dissimuladas, nas quais a vítima vê dificultada ou
impossibilitada sua capacidade defensiva. Só por isso impõe-se a reprimenda mais
severa, por isso que há homicídio qualificado.

Traição é o ataque súbito e sorrateiro, que colhe a vítima desavisada, tranqüila.


É a ação inesperada, que estava fora da cogitação da vítima, a qual não tinha qualquer
possibilidade de perceber o gesto homicida. Constitui traição matar a vítima pelas
costas, isto é, quando ela, desatenta, não pode pressentir o ataque letal. Não se deve
confundir a ação pelas costas com o disparo ou golpe efetuado nas costas, que pode
ocorrer apenas porque, no momento de seu desfecho, a vítima vira as costas para o
agente, ainda que para empreender fuga.

Emboscada é o mesmo que tocaia. É a espera da vítima que, despreocupada,


não está preparada para um ataque criminoso. O agente, escondido, aguarda sua
passagem para só então, com plena segurança, desencadear a ação que a fulminará.
Tanto quanto na traição, a vítima não está em condições de esboçar qualquer gesto
defensivo, porque desconhece o intento do agente e, quase sempre, ignora sua própria
presença nas imediações.

Dissimulação é o comportamento anterior do agente consistente em disfarçar,


ocultar ou esconder a intenção de matar. Age de modo a que a vítima não perceba seu
fim homicida. Procura, por várias formas, conquistar a confiança da vítima, inspirando
nela até mesmo o sentimento de amizade para, quando esta mostrar-se absolutamente
confiante e despreocupada, só aí executar o homicídio. Conheci um homicida
profissional que utilizava a dissimulação como modo de executar suas vítimas. Delas se
aproximava, tornava-se amigo, íntimo até, para, depois de dias de relacionamento
amistoso, convidá-las para jantar em sua residência onde, horas depois, com a vítima
totalmente tranqüila, executava-a friamente, tranqüilamente, sem qualquer
possibilidade de reação.

Também incidirá essa qualificadora quando o agente utilizar outro recurso que
dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido. Outra vez o Código Penal determina
ao intérprete que realize uma interpretação analógica. Deve analisar o modo como o
homicídio foi praticado e, se concluir que esse modo é análogo à traição, à emboscada
Homicídio - 33

ou à dissimulação, deverá impor a qualificadora. Em outras palavras, a traição, a


emboscada e a dissimulação são recursos que dificultam ou impossibilitam a defesa do
ofendido. Assim, qualquer outro recurso que, à semelhança desses, tornar impossível
ou difícil a defesa da vítima, será uma circunstância qualificadora do homicídio. É o
caso do homicídio cometido mediante surpresa, que se assemelha a traição, emboscada
e dissimulação. Haverá surpresa quando a vítima não tiver razão para suspeitar ou
esperar a intenção do agente.

O homicídio cometido quando a vítima encontrava-se dormindo ou embriagada


ajusta-se a essa fórmula genérica, porquanto ela, nessas condições, não tinha qualquer
possibilidade de defender-se.

1.2.3.5 Execução, ocultação, impunidade ou vantagem de outro


crime

Finalmente, no inciso V do § 2º do art. 121, encontram-se as circunstâncias que


qualificam o homicídio por sua conexão teleológica ou conseqüencial com outro crime.
O agente mata alguém para assegurar a execução de outro crime. Há conexão
teleológica.

Quando mata para garantir a ocultação, a impunidade, ou para assegurar a


vantagem obtida com o outro delito, há conexão conseqüencial.

Essas qualificadoras, segundo JOSÉ FREDERICO MARQUES, são espécies de


motivo torpe e sua relevância está no elemento subjetivo, bastando que se apure a
conexão em sentido meramente psicológico. Isto é, basta que o sujeito tenha praticado
o homicídio com uma daquelas finalidades para que sua reprovabilidade seja maior. A
torpeza é evidente em qualquer das hipóteses.

A primeira figura é a do que mata com o fim de tornar possível ou mais fácil a
realização de outro crime, não sendo indispensável que este venha a ser executado.
Basta que o agente tenha matado com a finalidade de assegurar a execução do outro
crime. Esse crime pode, inclusive, ser outro homicídio, já que a lei não restringiu essa
possibilidade.

Se o agente mata alguém para assegurar a execução de um furto, isto é, de uma


subtração de coisa alheia móvel, não incidirá a qualificadora, mas sim a norma do art.
157, §§ 1º e 3º do Código Penal, chamado latrocínio, solução, aliás, mais gravosa.

E se o crime-fim for um crime impossível ou um delito putativo, imaginário, a


qualificadora incidirá?
34 – Direito Penal II – Ney Moura Teles

A norma fala em execução, daí que é de se perguntar se a qualificadora incidirá


na hipótese em que o agente tenha praticado o homicídio para assegurar não a
execução, mas a consumação de outro crime.

Vejam-se os exemplos:

a) Carlos, desejando matar Maria, casada com Joaquim, ingressa no quarto do casal,
imaginando que estariam dormindo, quando é surpreendido com o marido acordado;
mata-o, então, para, em seguida, disparar vários tiros de revólver contra Maria que,
nada obstante Carlos imaginá-la dormindo, já estava morta em virtude de um ataque
cardíaco ocorrido duas horas antes;

b) Eduardo, crendo que o incesto é crime e desejoso de manter relações sexuais


consentidas com sua filha, Cláudia, maior de 18 anos, mas sabendo que sua mulher,
Célia, poderia descobri-los, resolve matá-la, a fim de obter seu intento libidinoso;

c) João, com dolo de matar, dispara arma de fogo contra Manoel, que não morre
imediatamente. Pedro socorre Manoel e vai levá-lo ao hospital quando João o mata,
para assegurar a consumação do homicídio contra Manoel.

Qual solução se deve dar para essas três situações? Na primeira, o homicídio é
cometido com a finalidade de cometer um crime impossível, porque o objeto é
absolutamente impróprio. Maria não era mais alguém. Não havia Maria. Havia o corpo
de Maria. E o agente cometeu o homicídio contra Joaquim, para assegurar a prática de
um crime cuja consumação era impossível.

No segundo exemplo, Eduardo comete o homicídio contra Célia, para assegurar


a execução de um não-crime, mas que, em sua mente, constituía um delito. Um crime
putativo por erro de proibição.

No último exemplo, o agente mata alguém para assegurar não a execução, mas a
consumação de outro crime.

Se é certo que as normas penais incriminadoras, especialmente as que


impõem maior censura penal, não podem ser interpretadas extensivamente, não
incidirá essa qualificadora. O crime impossível não é crime, mas uma tentativa
inadequada, inidônea, de crime, e conquanto a norma em comento faça menção
expressa a um “crime”, tornar-se-ia necessário ampliar seu significado para alcançar
também o crime impossível. O mesmo em relação ao delito putativo. Dever-se-ia,
igualmente, ampliar o significado de execução para alcançar também a consumação?

Penso que a melhor solução é não aceitar a interpretação extensiva da norma


incriminadora, para não fazer qualquer concessão a esse expediente, ainda que por um
Homicídio - 35

motivo de busca da solução mais justa. Mesmo porque não há necessidade, nas três
situações, de utilizá-la, uma vez que os três homicídios serão igualmente qualificados,
já que, nas três situações, dúvidas não podem restar de que a motivação dos agentes, ao
matarem as vítimas, é, nas três hipóteses, induvidosamente torpe, abjeta, repugnante,
aplicando-se-lhes, por isso, a qualificadora do inciso I, e não a do inciso V, do § 2º, do
art. 121.

Também são qualificados os homicídios cometidos para assegurar a ocultação


ou a impunidade de outro crime. Ocultação e impunidade se distinguem. DAMÁSIO
explica:

“Na ocultação, o sujeito visa a impedir a descoberta do crime. Ex.: o incendiário


mata a testemunha do crime. Na impunidade, o crime é conhecido, enquanto a
autoria é desconhecida. Ex.: o sujeito mata a testemunha de um desastre
ferroviário criminoso. Como vimos, existe diferença entre ocultação e
impunidade. Na ocultação, o outro delito não é conhecido; na impunidade, o
crime é conhecido, a autoria, entretanto, não é conhecida.” 13

Impõe-se maior reprovação porque, nas duas situações, o sujeito busca um fim
abjeto, repugnante, desvalorizando uma vida humana por puro egoísmo, para livrar-se
da aplicação da lei penal.

A última figura dessa qualificadora é a prática do homicídio com a finalidade de


assegurar vantagem de outro crime. Essa vantagem pode ser de qualquer natureza,
patrimonial ou moral. Assim, nela incide o que mata o parceiro do furto, para ficar com
a res furtiva.

Não é necessário que o outro crime tenha sido praticado pelo mesmo sujeito do
homicídio. Ele pode matar alguém para assegurar a execução de um crime a ser
perpetrado por outro, ou para assegurar a ocultação, impunidade ou vantagem de
crime praticado por terceira pessoa.

O homicídio e o outro crime são dois crimes conexos, e não um crime complexo
– como é a hipótese de latrocínio –, daí que o agente, na hipótese de ter sido também o
autor ou partícipe do outro crime, responderá por ambos os delitos, em concurso
material.

Se o crime conexo com o homicídio, teleológica ou conseqüencialmente, tiver


sua punibilidade extinta, a qualificadora, ainda assim, prevalecerá, consoante dispõe a

13 Op. cit. p. 60-61.


36 – Direito Penal II – Ney Moura Teles

norma do art. 108 do Código Penal.

1.2.3.6 Anteprojeto de Código Penal

No já mencionado anteprojeto de Código Penal, dois novos incisos estão


incluídos no § 2º do art. 121, que contém novas circunstâncias qualificadoras.

A primeira delas: “por preconceito de raça, cor, etnia, sexo ou orientação


sexual, condição física ou social, religião ou origem” – diz respeito aos motivos que
impelem o agente, os quais, poderiam dizer os críticos, são todos torpes, sendo
desnecessária sua explicitação na norma. Não creio que seja assim. Fala-se que o
brasileiro não é um povo racista, mas a realidade mostra, muitas vezes, o contrário.
Quase ninguém tem a coragem de assumir, em público, uma postura racista, mas no
dia-a-dia são ainda muitos os que se comportam com atitudes que levam à exclusão de
muitos indivíduos, exatamente por sua raça, cor, etnia, sexo ou orientação sexual,
condição física ou social, religião e também por sua origem.

A intolerância de muitos, inclusive de pessoas que se organizam em grupos


formados para a prática de crimes inspirados por esses motivos, vem crescendo e é
dever do legislador procurar, sempre que necessário e possível, ampliar o alcance da
norma incriminadora, de modo claro e preciso, em respeito ao princípio da legalidade.
Sempre que possível, melhor não deixar para o julgador a tarefa interpretativa,
mormente quando se tratar de temas dessa natureza.

A explicitação dessas novas figuras qualificadas, longe de ser desnecessária, por


já estarem, implicitamente, contempladas na categoria de “motivo torpe”, é uma
exigência imposta pela necessidade de conferir melhor e maior proteção às minorias
dentro da sociedade, contra os ataques homicidas de pessoas intolerantes.

A outra inovação é a qualificação do homicídio quando cometido “por grupo de


extermínio”. Nos últimos tempos, tem sido cada vez mais comum a prática de
homicídios perpetrados por grupos de pessoas que se organizam exatamente com a
finalidade de matar, pelas mais diversas motivações, seja mediante paga ou por outro
motivo torpe. A nova qualificadora é de natureza objetiva. O grupo de extermínio é uma
espécie de quadrilha, portanto deve ter o mínimo de quatro integrantes, e ser
constituído para cometer homicídios.

1.2.4 Homicídio qualificado-privilegiado

Doutrina e jurisprudência divergem quanto à possibilidade de um homicídio ser


Homicídio - 37

ao mesmo tempo qualificado e privilegiado.

Uma corrente entende ser impossível a convivência de privilégio com


qualificadora, porquanto o primeiro é uma mera causa de diminuição da pena e que,
situado topograficamente, no § 1º do art. 121, diz respeito, exclusivamente, ao
homicídio simples, descrito no caput do artigo. Logo, se o homicídio é qualificado,
ainda que cometido por relevante valor moral, não poderá ser aplicada, em hipótese
alguma, a diminuição da pena.

Outra corrente, que admite a possibilidade do concurso de qualificadora


objetiva e circunstância privilegiadora, considera, entretanto, que esta é preponderante,
isto é, afasta a incidência daquela, por força do que dispõe o art. 67 do Código Penal.
Para essa corrente, ainda que cometido à traição, o homicídio cometido por relevante
valor social será tão-somente privilegiado, diminuída a pena de seis a vinte anos à razão
de um a dois terços.

As duas correntes não são aceitáveis. A ordem de colocação topográfica das


circunstâncias, privilegiadoras e qualificadoras, no interior do art. 121 não significa que
as primeiras destinam-se a regular apenas o preceito incriminador do caput. Ambos os
parágrafos dizem respeito ao tipo básico, fundamental. As qualificadoras não
constituem tipos autônomos, nem circunstâncias elementares de um novo tipo de
homicídio. Se o legislador entendeu de, para as primeiras, determinar a redução da
pena, e, quanto às segundas, de cominar pena abstrata autônoma, nem por isso se pode
concluir que teve a lei a vontade de impedir sua harmonia. Esta deve ser buscada com
base na razão de ser do art. 121 em sua totalidade, em seus fins. Direito é, acima de
tudo, bom-senso e coerência.

A individualização da pena, garantia constitucional inarredável, busca o


encontro da pena justa, e esta deve ser conhecida com base na consideração de todas as
circunstâncias que envolvem o fato. Todas elas: as elementares do tipo, as judiciais, as
privilegiadoras e as qualificadoras, as agravantes e as atenuantes.

Assim, toda e qualquer circunstância que estiver presente num fato, que nele se
intrincar, seja ela própria do agente, seja do crime em si, deve ser considerada pelo
julgador. E só não o será por força de um mandamento legal expresso, como é o caso da
preponderância das atenuantes de caráter pessoal sobre as agravantes. Existe aí norma
nesse sentido, a do art. 67 do Código Penal.

A segunda corrente, muito embora invoque a mesma norma do art. 67 para


ditar que as circunstâncias subjetivas devem preponderar sobre as objetivas, esquece-se
de que referida norma diz respeito apenas às circunstâncias atenuantes e agravantes,
38 – Direito Penal II – Ney Moura Teles

não aos casos de aumento de pena e circunstâncias qualificadoras.

É certo que se pode admitir interpretação extensiva de norma penal explicativa


ou da que, de qualquer modo, beneficiar o réu; todavia, isso só deve ser possível
quando a interpretação chegar a um resultado harmônico no seio do sistema. Penso
que o resultado concreto de uma interpretação nesse sentido não realiza os fins da lei,
que é o do encontro da pena mais justa para o caso real. O que se busca, sempre, é a
solução mais justa, e ela não está em nenhuma das duas correntes.

O que não se admite, porém, é a convivência de circunstâncias que se excluem,


por absoluta incompatibilidade lógico-jurídica.

Assim, não é possível um homicídio por motivo fútil ser cometido por motivo de
relevante valor moral ou social. Não é possível ser ao mesmo tempo insignificante e
relevante. Mas, viu-se, é possível um homicídio mediante paga ser cometido por motivo
de relevante valor moral, em situação excepcionalíssima. Normalmente, entretanto, o
que repugna não pode ser importante do ponto de vista dos valores sociais.

Por isso a razão está com os adeptos da terceira corrente, ao admitirem a


possibilidade de um homicídio ser privilegiado e qualificado a um só tempo. Não é,
todavia, possível em qualquer situação. É incomportável, em regra, a convivência das
qualificadoras de natureza subjetiva com as privilegiadoras, todas de natureza pessoal.
Todavia, é possível um homicídio qualificado por uma circunstância objetiva ser, a um
só tempo, também privilegiado.

Assim, é possível matar alguém à traição, de emboscada, mediante


dissimulação, com a utilização de veneno, fogo, asfixia, tortura, meio insidioso ou cruel,
por motivo de relevante valor moral ou social.

Claro que não é possível matar alguém, de emboscada, à traição ou mediante


dissimulação, estando o sujeito ativo sob o domínio de violenta emoção, logo após
injusta provocação da vítima, porque a reação do agente deve ser imediata à
provocação, e essas qualificadoras exigem que o sujeito encontre a vítima desavisada ou
despreocupada. No entanto, esse privilégio pode conviver harmonicamente com a
utilização de meio cruel, ou da asfixia.

Em síntese, quando for possível a convivência coerente, lógica e harmônica


entre circunstâncias privilegiadoras e as qualificadoras – o que se dá com quase todas
qualificadoras objetivas –, o homicídio será qualificado-privilegiado.

O homicídio qualificado é considerado hediondo. O homicídio privilegiado não


o é, porquanto o art. 1º da Lei nº 8.072/90, com a redação dada pela Lei nº 8.930/94,
a ele não se referiu. Nem podia porque, apesar de não existir um conceito legal de
Homicídio - 39

hediondez, não se pode imaginar que um homicídio cometido por motivo de relevante
valor moral seja equiparado aos crimes de maior gravidade, como o são todos os
rotulados de hediondos. A relevância moral ou social e o estado emocional decorrente
de uma provocação injusta da vítima não se compatibilizam com a hediondez.

E o homicídio qualificado-privilegiado? Pelas mesmas razões que um homicídio


privilegiado não pode ser tido como hediondo, também não o pode o homicídio
qualificado-privilegiado. Primeiro porque a lei expressamente não o incluiu no rol dos
hediondos. Segundo porque a circunstância privilegiadora afasta a qualificação de
hediondez, que só pode ser vista nos crimes repugnantes, abjetos, que exigem grande
reprovabilidade penal.

1.2.5 Causa especial de aumento de pena

O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990) deu


nova redação ao § 4º do art. 121, para acrescentar uma causa de aumento de pena:
“Sendo doloso o homicídio, a pena é aumentada de um terço, se o crime é praticado
contra pessoa menor de 14 (quatorze anos).” A Lei nº 10.741, de 1º de outubro de
2003, deu nova redação: “Sendo doloso o homicídio, a pena é aumentada de 1/3 (um
terço) se o crime é praticado contra pessoa menor de 14 (quatorze) ou maior de 60
(sessenta) anos.”

O aumento incidirá em todos os casos de homicídio doloso, simples, privilegiado,


qualificado ou qualificado-privilegiado, afastando, é lógico, a agravante genérica do art.
61, II, h, do Código Penal, aplicável a todos os demais crimes cometidos contra criança
e idosos. Claro, pois a mesma circunstância não poderia ser considerada duas vezes,
num bis in idem inaceitável.

A razão de ser dessa circunstância majorante da pena é a maior reprovabilidade da


conduta praticada contra o menor de 14 anos e o maior de 60 anos, os quais, por suas
características pessoais, têm menor capacidade de defender-se. Protege-se, assim, de
modo mais severo, a vida humana ainda distante do pleno estágio de desenvolvimento
físico e mental e aquela mais próxima do seu fim.

É unânime o pensamento da doutrina mais consistente de que a idade da vítima


deve entrar na esfera da consciência do agente, isto é, deve ser abrangida pelo dolo. Se
o agente não sabia, nem podia saber, que a vítima tinha menos de 14 ou mais de 60
anos, o aumento não incidirá, por erro de tipo inevitável.
40 – Direito Penal II – Ney Moura Teles

1.2.6 Homicídio e nexo de causalidade

Não basta a existência de uma conduta dolosa e um resultado morte. Entre ambos
deve haver nexo de causalidade. É a relação de causa e efeito indispensável para atribuir, ao
agente da conduta, a responsabilidade pela causação da morte da vítima.

O Código Penal brasileiro adotou, no art. 13, a teoria da equivalência das condições –
conditio sine qua non – para resolver o problema do nexo causal, restringindo-a com a
norma do § 1º, que manda excluir a imputação do resultado quando uma causa
superveniente relativamente independente tiver, por si só, produzido o resultado.

Causa é aquilo de que uma coisa depende para existir, é o que determina a
existência da coisa. Todos os antecedentes causais – a condição: que permite a uma
causa produzir seu efeito, seja como instrumento ou meio, seja afastando obstáculos à
produção do resultado; a ocasião: uma circunstância acidental que cria condições que
favorecem a produção do resultado; a concausa: a confluência ou concorrência de mais
de uma causa na produção do mesmo resultado – são equivalentes, todavia, o julgador
deve partir da conduta do agente, desconsiderando todos os antecedentes desta, que
não guardam qualquer relação com o resultado. O marco inicial é a conduta
examinada. Tudo que a antecede, não importa. Não fora assim, a imputação do
resultado alcançaria até mesmo o vendedor e o fabricante da arma utilizada no
homicídio.

São considerados, portanto, apenas os antecedentes causais contemporâneos e


subseqüentes à conduta objeto da averiguação feita pelo intérprete.

Na determinação da relação de causalidade entre conduta e resultado, devem-se


utilizar dois raciocínios. O primeiro é o procedimento hipotético de eliminação, de
Thyrén, segundo o qual se deve examinar a série causal excluindo, mentalmente, a
conduta do agente e verificar o que acontece. Se o resultado, apesar da supressão da
conduta, ainda assim acontecer, da forma como ocorreu, a conclusão é a de que a
conduta não é a causa do resultado.

Em outras palavras, se, diante de um fato concreto, o intérprete excluir a ação do


agente disparando os tiros em direção à vítima e, mesmo assim, concluir que a morte
desta ainda assim ocorreria, como ocorreu, deve concluir que a ação do sujeito ativo
não foi a causa da morte, porque ela, mesmo com a consideração de que o agente não
tivesse disparado seu revólver, ainda assim teria acontecido.

Se, pelo mesmo exercício de abstração mental realizado, o intérprete, excluindo a


ação do agente, verificar que a morte da vítima não teria ocorrido, concluirá que a
morte só ocorreu em razão dos disparos efetuados. Logo, a conduta terá sido,
Homicídio - 41

necessariamente, a causa da morte, que, portanto, será imputada ao agente.

Imagine-se um fato com a seguinte série causal: Álvaro dispara um tiro de revólver
contra a pessoa de Alfredo, atingindo seu tórax. Seguem-se: socorro a Alfredo numa
ambulância, onde desmaia; instalação de um processo hemorrágico; perda de sangue;
chegada ao hospital; internação; submissão à cirurgia para retirada do projétil instalado no
pulmão e combate ao processo infeccioso decorrente dos vários ferimentos produzidos pela
trajetória do projétil; morte da vítima, atestada como pneumonia bilateral, de estase
severa, secundária a ferimento por projétil de arma de fogo.

Pelo procedimento hipotético de eliminação, excluído, mentalmente, da série


causal, o disparo da arma de fogo, concluirá o intérprete que a morte da vítima não
ocorreria. A conclusão a que deve chegar é a de que a conduta do agente, disparando
sua arma, foi a causa da morte da vítima.

Outra série causal: Marcos dispara uma arma de fogo contra Antonio, que
sobrevive. Paulo, seu desafeto, sem saber da conduta de Marcos, entra no local onde o
ferido se encontrava e efetua um disparo contra sua cabeça, vindo Antonio a morrer,
imediatamente. Eliminando-se, mentalmente, a conduta de Marcos, chegará o
intérprete à conclusão de que, mesmo assim, o resultado morte teria ocorrido, daí que
não pode ser imputado à conduta de Marcos, mas sim à de Paulo.

A limitação imposta pelo legislador à teoria da equivalência das condições – a


superveniência de causa relativamente independente, que por si só produz o resultado
– vai resolver outras situações em que, por imposição de absoluta justiça, o agente da
conduta não responderá pelo resultado.

Veja-se o exemplo: Fausto dispara um tiro de revólver contra Augusto,


produzindo-lhe lesões abdominais graves, com comprometimento dos intestinos,
estômago e pulmões e infecção que começa a generalizar-se. Mesmo assim, a vítima
não morre imediatamente. É socorrida e transportada para um hospital onde,
internada, é vítima de queimaduras e envenenamento, provocados por um incêndio,
criminoso ou acidental, falecendo em decorrência de intoxicação causada pela inalação
de gases produzidos pela queima de materiais utilizados na construção do prédio do
hospital.

Eliminando-se, mentalmente, a conduta de Fausto, o resultado morte não


ocorreria, uma vez que não fosse o ferimento provocado, Augusto não teria sido
transportado ao hospital, nem internado. Logo, não estaria no nosocômio quando da
irrupção do incêndio. Não haveria a morte pela intoxicação. A conclusão, portanto,
seria a de que Fausto deve responder pela morte.
42 – Direito Penal II – Ney Moura Teles

Se é certo que Fausto desejava, pretendia, queria matar, tanto que disparou a arma
contra Augusto, não menos certo é que, efetivamente, realmente, não conseguiu matá-
lo. Não foi, realmente, o ferimento causado por Fausto que produziu a morte da vítima.
Dir-se-á que, de qualquer modo, a vítima morreria, uma vez que os ferimentos e as
lesões deles decorrentes eram, mesmo, de molde a produzir a morte. Ainda que se
concordasse com essa afirmação, é de ver que, todavia, antes que tal ocorresse, outra
causa interveio no processo causal e produziu a morte.

Augusto morreria de qualquer modo?

Não se sabe, com absoluta certeza, e nunca se saberia. Nenhuma ciência, nenhum
equipamento, nenhuma máquina, nem tampouco um humano podem afirmar, com
total e absoluta certeza, que a morte ocorreria de qualquer modo. Só Deus poderia
afirmá-la, mas ele não é operador do Direito dos homens.

Impossível tal certeza por uma razão muito simples: antes do processo causal
inaugurado pela conduta de Fausto ter sua continuidade e conclusão, culminando com
a morte de Augusto, outra causa, autônoma, com potencialidade própria, com eficiência
independente, determinou a produção da morte, modificando o primeiro processo
causal inaugurado pela conduta delituosa. A nova causa alterou o primeiro processo
causal que, tudo indica, levaria ao evento letal, e instalou um novo processo causal que
levou à morte, impedindo o primeiro processo de concluir-se. De modo que ficou
impossível afirmar que o primeiro processo chegaria a seu termo com resultado
idêntico.

Houve uma alteração no curso do processo causal originalmente desencadeado,


por outro processo causal que foi o produzido a partir do incêndio: chamas, labaredas,
energia térmica excessiva, produção de gases tóxicos, asfixia e queimaduras, o qual, por
si só, deu causa ao evento morte.

Esta aconteceu de modo e com características completamente diferentes das que


existiriam se não fosse a causa superveniente, o incêndio. Não fosse este, a vítima
jamais morreria intoxicada ou asfixiada, ou em razão de queimaduras, mas sim em
decorrência do processo infeccioso instalado mediante as lesões nos intestinos,
estômago e pulmões, ou de uma das suas possíveis conseqüências. Em outras palavras,
a vítima acabou morrendo diferentemente do que teria morrido, se não fosse essa nova
causa.

Em hipóteses como essa, incide a norma do § 1º do art. 13 do Código Penal:

“A superveniência de causa relativamente independente exclui a imputação


quando, por si só, produziu o resultado; os fatos anteriores, entretanto,
Homicídio - 43

imputam-se a quem os praticou.”

Assim, realizada uma conduta, inaugurada e desencadeada uma série causal,


pode ocorrer de uma causa superveniente interpor-se no curso daquela série,
conformando um novo caminho causal, um novo percurso, com outras características,
decorrentes de sua própria eficiência e determinando o resultado morte. Nessa
hipótese, ao agente da conduta não poderá ser atribuída a morte da vítima. É que não
foi ela sua causa, posto que outra, mais eficaz ou eficaz de modo mais rápido, ou eficaz
simplesmente, produziu a morte antes da outra. Antecipou-se a ela. E, por isso, a essa
causa superveniente e a seu produtor é que a morte deve ser atribuída. Não ao agente da
conduta, ainda quando seu dolo tenha sido o de matar, pois o crime não é só o dolo, não
é só a intenção, mas esta, exteriorizada e acompanhada, necessariamente, do nexo de
causa e efeito com o resultado produzido.

Dúvidas não há, portanto, de que a causa superveniente relativamente


independente que por si só tiver produzido o resultado excluirá a imputação deste ao
agente da conduta.

Debatem doutrinadores acerca das causas concomitantes e preexistentes, que


também sejam relativamente independentes da conduta do sujeito ativo do crime e que
tiverem, por si sós, produzido o resultado. Nessas situações, a quem deverá ser
atribuído o resultado? Ao agente ou ao responsável, se houver, pela causa concomitante
ou preexistente? Exemplos de causas chamadas preexistentes: a condição de hemofílico
ou de fragilizado fisicamente da vítima, que, após a conduta do agente, com esta
interage dando causa, por si só, ao resultado morte. Exemplo de causa concomitante: o
infarto sofrido pela vítima no momento dos disparos praticados pelo agente, levando à
morte, por si só.

Ao ver da Doutrina, são causas que já tinham existência, anterior ou


simultaneamente, à conduta, e, mesmo que tenham, por si sós, produzido o resultado,
não afastam sua imputação ao agente, porque a norma assim não o quis.

O Código foi expresso e claro. Apenas as causas supervenientes, relativamente


independentes da conduta do agente, podem excluir a imputação do resultado ao
sujeito ativo do crime. Silenciou quanto às que a Doutrina denomina causas
preexistentes e concomitantes. Se a elas não se referiu, dizem, é porque não quis excluir a
imputação do resultado ao agente. Ou a omissão legal não teria essa significação? Seria
possível interpretação extensiva ou uso da analogia, para abarcar também essas
hipóteses?

O problema, penso, deve ser resolvido tendo em conta os fins da norma.


44 – Direito Penal II – Ney Moura Teles

A razão de ser do § 1º do art. 13 do Código Penal é limitar a aplicação da teoria


da equivalência das condições. É buscar a solução mais precisa possível para a
problemática da imputação do resultado. O objetivo é atribuí-lo exclusivamente a quem
lhe deu causa.

Se a morte decorreu de outra causa, preponderante, mais forte, decisiva, o


agente por ela não deve responder. Por isso, a expressão clara contida no preceito: por
si só. Não é, portanto, qualquer causa superveniente que exclui a imputação do
resultado ao agente da conduta, mas apenas aquela que por si só tenha produzido-o.
Por si só, quer dizer aquela que, por suas próprias potencialidades, por sua própria
capacidade destrutiva, por sua própria natureza, por seu próprio poder, físico, químico,
biológico, seja determinante do resultado morte.

Tanto que, analisando-se o preceito do § 1º desse art. 13, verifica-se que seu
âmago, sua essência, sua substância está não somente na superveniência da causa, mas
também em sua potencialidade lesiva, o que revela que a intenção da lei é a de
considerar excludente da imputação do resultado aquela causa que, por sua essência,
seja capaz de, sozinha, produzir o resultado morte. E assim o quis porque, diante de
duas causas concorrentes, que se interligam, interagem, ou concausas, uma delas a
conduta do agente, a outra de outra origem, sendo uma delas preponderante, a esta
será atribuído o resultado morte.

Quando a causa superveniente não for capaz de por si só produzir o resultado,


este será atribuído ao agente da conduta. E isso ocorrerá porque a conduta foi,
efetivamente, a causa determinante, a preponderante, a mais eficaz, a mais eficiente,
para a produção do resultado.

Por ter-se referido a essa outra causa preponderante, autônoma e capaz, de per
si, de produzir o resultado, a norma utilizou a expressão superveniente não com o fito
de exigir que, necessariamente, ela se originasse, no tempo, na posição de
posterioridade. A superveniência diz respeito a sua materialização ou concretização,
mas não quer dizer que sua origem tenha que ser, necessariamente, posterior à
conduta.

Volte-se ao exemplo da irrupção do incêndio no hospital para onde foi levada a


vítima dos disparos. Imagine-se que ela, ferida às 11:50 horas, ingresse no hospital às
12:00 horas, e que o incêndio tenha principiado, sem que ninguém o percebesse, às
11:49 horas. Ninguém discorda de que a morte da vítima pela intoxicação pelos gases
expelidos ou por queimaduras é uma causa superveniente relativamente independente
que, por si só, produziu o resultado. Pois bem, mas essa causa ocorreu antes da conduta
Homicídio - 45

do agente. Ela, a causa, não é superveniente; sua atuação, contudo, o é. Ela não é
originariamente superveniente, mas atuou supervenientemente. Não nasceu depois, mas
atuou a posteriori.

Assim, é de todo claro que a vontade da norma é abarcar toda causa que, por si
só, seja capaz de produzir o resultado, e que tenha atuado ou interagido após a conduta
do agente. Sua manifestação, sua concretização, sua ação lesiva devem,
necessariamente, interferir no processo causal inaugurado pela conduta do agente. Por
isso que deve ser superveniente. Não deve, necessariamente, ter surgido, sido criada,
produzida depois da conduta, mas sim produzido seus efeitos após a conduta do agente.

Assim, a anterior particular condição física da vítima, sua debilidade, a hemofilia,


embora preexistentes, só interferem após o ferimento causado pelo agente. Estão, antes
da conduta, adormecidas, sem produzir qualquer efeito, mas atuam depois. Logo, são
supervenientes enquanto causa do resultado, ainda que sejam preexistentes enquanto
condição ou estado particular. No entanto, condição e estado são, por si sós, incapazes
de produzir qualquer efeito danoso.

Assim, a meu ver, não importa o momento em que se originou a causa


superveniente relativamente independente. Importa quando ela começou a produzir
efeitos. Mesmo quando as condições que ela possui para atuar no mundo físico sejam
preexistentes ou concomitantes, o que interessa é o momento em que ela passa a
interagir com a conduta do agente. Se essa interação tiver início após a conduta do
agente, ela será superveniente enquanto causa da morte. Ainda que sua potencialidade
letal preexista, ou seja contemporânea à conduta do agente, o que interessa é o
momento em que ela atua, vive no mundo físico enquanto ente concreto causador de
uma lesão.

Daí que não se trata de interpretar extensiva ou analogicamente a expressão


superveniência. É preciso apenas compreender, exatamente, o significado dessa
expressão. Causa superveniente não é a que nasce após a conduta, mas a que atua após
a conduta, independentemente do momento em que tenha surgido no mundo. A norma
assim é clara e precisa, e sua interpretação há de ser meramente declaratória, não
exigindo qualquer fórmula ampliativa.

Se o agente, todavia, tinha conhecimento da condição de hemofílico da vítima,


de seu estado débil, ou da cardiopatia que portava, a solução há de ser outra, porque aí
estava ele em condições de prever a interação entre essas concausas e sua conduta,
abrangida, portanto, pelo dolo. Nessa hipótese, o resultado morte a ele será imputado.

Em conclusão, toda e qualquer causa que, independentemente do momento de


46 – Direito Penal II – Ney Moura Teles

sua criação, atuar, todavia, após a conduta do agente e, mais importante, tiver por si só
produzido o resultado, excluirá a imputação deste ao agente da conduta.

Nesse caso, o agente responderá apenas pelos atos praticados. Se queria matar,
responderá por tentativa de homicídio. Se seu desejo era apenas o de ferir, responderá
pelo crime de lesão corporal.

1.2.7 Tentativa de homicídio

1.2.7.1 Conceito e elementos

Há crime consumado se nele se reúnem todos os elementos do tipo. Há crime


tentado quando, iniciada a execução, não se consuma por circunstâncias alheias à vontade
do agente. É a norma do art. 14 do Código Penal: “Diz-se o crime: I – consumado, quando
nele se reúnem todos os elementos de sua definição legal; II – tentado, quando, iniciada a
execução, não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente.”

No homicídio consumado, os elementos são: a execução do procedimento típico,


o dolo de matar, o resultado morte e o nexo de causalidade. Iniciada, todavia, sua
execução, não vindo ele consumar-se, com a morte da vítima, por circunstâncias alheias à
vontade do agente, há tentativa de homicídio.

Sem dolo de matar, não se pode falar em tentativa de homicídio. O agente deve
ter a vontade de causar a morte, ou pelo menos aceitá-la como resultado provável
previsto.

Somente a vontade de matar também não é suficiente para configurar a


tentativa de homicídio. É indispensável que o sujeito tenha dado início ao processo de
execução. Deve iniciar o ataque ao bem jurídico: vida.

Os atos preparatórios para o homicídio, como a aquisição da arma, do veneno,


ou da corda com que pretende enforcar a vítima, a procura pelo desafeto, a emboscada,
esperando a sua passagem, não constituem, ainda, o início da execução, por isso que só
serão puníveis se, por si sós, constituírem outro crime, como é o caso do porte ilegal de
arma.

Para haver tentativa, é indispensável que o agente realize algum ato executório.
Haverá início de execução quando o comportamento do agente começa a realizar o tipo.
Apontar a arma de fogo na direção da vítima pode já constituir o primeiro ato de
execução. Assim também quando aponta e dispara a arma, inicia o desferimento do
golpe de faca, dissolve o veneno no copo que contém água, e o entrega à vítima, quando
Homicídio - 47

a empurra no precipício ou no rio onde quer que ela se afogue, enlaça seu pescoço
visando estrangulá-la ou a conduz para o ambiente fechado onde pretende que ela
morra confinada.

Há, portanto, tentativa de homicídio quando, atuando o sujeito com dolo de


matar, direto ou eventual, e iniciada a execução, não sobrevém a morte da vítima por
uma circunstância alheia à vontade do agente.

A não-consumação do homicídio pode decorrer da interrupção do processo


executório ou, ainda quando este se conclui, de outra causa.

Tentativa de homicídio por interrupção do processo de execução: Flávio aponta


sua arma contra Artur e, no momento exato em que vai atirar, tem seu braço desviado
por um empurrão dado por Carlos, indo o projétil desviar-se e atingir o tronco da árvore
sob a qual a vítima dormia. O processo de execução foi interrompido.

Outro exemplo: o agente dispara o primeiro tiro contra a vítima atingindo-lhe o


braço e, como seu intento era matá-la, vai disparar o segundo tiro, postando-se mais
próximo dela, quando chega a Polícia e o prende. Novamente, vê-se que o processo de
execução, iniciado, foi interrompido por força externa, uma circunstância que se situa
fora da vontade do agente. Essa é a chamada tentativa imperfeita.

Tentativa de homicídio com a conclusão do processo de execução: Mário


dispara cinco tiros de revólver contra Germano, causando-lhe diversos ferimentos, e
foge. Germano é socorrido com vida, levado ao hospital, onde, submetido a diversas
intervenções médicas, restabelece-se completamente. Aqui a execução se concluiu, mas
o resultado não ocorreu graças à atuação pronta de outra pessoa e o socorro médico
preciso. Essa é uma circunstância alheia à vontade do agente impeditiva da
consumação do homicídio. É a chamada tentativa perfeita ou crime-falho.

Questão interessante: seria possível uma tentativa de homicídio comissivo por


omissão?

O homicídio doloso comissivo por omissão ocorre quando um garante – o que


tem o dever de agir para impedir o resultado, conforme o § 1º do art. 13 do Código
Penal –, podendo agir, omite-se, dolosamente, com vistas na produção do resultado ou,
se não o desejar, aceitando-o se ele eventualmente acontecer.

A tentativa é possível, sim, embora muito raramente se possa verificá-la na vida


real. Veja-se o exemplo. Antonio, pai de José, de onze anos de idade, à beira da piscina
de sua residência, vê seu filho, que não sabe nadar, afogando-se. Ao perceber a
situação, decide omitir-se porque, se seu filho morrer, será seu único e legítimo
herdeiro, acrescendo ao próprio patrimônio, com a sucessão causa mortis, todos os
48 – Direito Penal II – Ney Moura Teles

bens que o infante adquirira por sucessão de sua mãe, recentemente também falecida.
Omite-se, portanto, inequivocamente com dolo de matar. Está, assim, na iminência de
consumação um homicídio doloso, comissivo por omissão, pois, exímio nadador, em
seu perfeito juízo, com plena consciência e vontade, decide ficar inerte. No exato
momento em que José está quase se afogando, chegando a engolir água, Edson chega
no local e atira-se, incontinenti, na piscina e retira-o da piscina, impedindo seu
afogamento e sua morte. Inequivocamente, houve tentativa de homicídio comissivo por
omissão.

Houve dolo, início de execução – no caso, por omissão, na medida em que,


vendo o início do afogamento, inexistiu qualquer conduta positiva visando impedir o
resultado e, por último, não-consumação por circunstância alheia à vontade do
omitente.

A tentativa, por tudo que se viu, é possível em relação a quaisquer crimes


dolosos, comissivos ou omissivos impróprios.

1.2.7.2 Punibilidade da tentativa

A tentativa, em regra, não é um crime autônomo. Logo, não existe o crime de


tentativa de homicídio, mas a tentativa de crime de homicídio. A pena cominada é
dependente da pena para o crime consumado, conforme estabelece o parágrafo único
do art. 14 do Código Penal, diminuída de um a dois terços.

A redução da pena é obrigatória, não mera faculdade do juiz presidente do


Tribunal do Júri. O quantum da redução deve ser obtido com base na consideração
objetiva do fato ocorrido como um todo. O iter criminis percorrido e a maior ou menor
gravidade das lesões devem ser apreciados pelo juiz, a fim de definir a quantidade de
diminuição que aplicará.

Tratando-se de tentativa perfeita, em que o iter criminis é percorrido quase


integralmente, aproximando-se muito de sua consumação, a redução deve aproximar-
se do mínimo. Na tentativa branca, em que a vítima é sequer lesionada – quando, por
exemplo, por falha de pontaria, não é atingida pelo disparo –, é razoável que a
diminuição seja na quantidade máxima.

1.2.7.3 Desistência voluntária e arrependimento eficaz

Podem acontecer duas situações em que, agindo dolosamente, e iniciado o


processo executório, o próprio agente atua no sentido de obter a não-consumação do
Homicídio - 49

homicídio. No curso do processo de execução, o próprio agente pode desistir de


continuá-lo, interrompendo-o, ele mesmo, voluntariamente.

Ou então, após ter concluído a execução, o próprio agente, também


voluntariamente, age com vistas a impedir que o resultado aconteça.

Na primeira hipótese, haverá desistência voluntária; na segunda,


arrependimento eficaz.

Há desistência voluntária quando o agente, após disparar o primeiro tiro que


acerta a perna da vítima, estando com a arma municiada e em plenas condições de
continuar disparando contra ela, que se encontra caída, desiste de dar o segundo tiro e
resolve deixá-la ali, tomando outro rumo.

Há arrependimento eficaz quando, após disparar os tiros contra a vítima, o


agente, voluntariamente, adota medidas com vistas na prestação de socorro,
conduzindo-a para um hospital, onde ela se recupera. Se o agente se arrepende, mas,
por azar ou qualquer outra razão, não conseguir impedir a ocorrência da morte, seu
arrependimento será ineficaz, subsistindo, por isso, a tentativa de homicídio. Claro que
sua atitude positiva, louvável, generosa, em relação ao bem jurídico que, inicialmente,
queria destruir, será levada em conta pelo juiz, no momento da aplicação da pena,
como uma circunstância judicial favorável.

Importante dizer que tanto numa quanto na outra situação o agente deve atuar
voluntariamente, movido exclusivamente por sua vontade. Se a desistência de efetuar o
segundo tiro se der pela chegada da polícia, ou se o agente conduzir a vítima ao hospital
sob ameaça de outras pessoas, haverá tentativa de homicídio, pois a não-consumação,
nesses casos, terá decorrido de circunstâncias alheias à vontade do agente.

Havendo desistência voluntária ou arrependimento eficaz, diz o art. 15 do


Código Penal, o agente não responderá pela tentativa de homicídio, mas apenas pelos
atos que tiver praticado. Nos dois exemplos dados, responderá pela lesão corporal que
tiver causado na vítima.

Acerca da natureza jurídica da desistência voluntária e do arrependimento


eficaz, discordam nossos dois maiores penalistas modernos. Para ALBERTO SILVA
FRANCO, são causas de exclusão da punibilidade, ditadas por razões de política
criminal. Um prêmio ao agente que desistiu do homicídio ou que impediu a morte14.
DAMÁSIO E. DE JESUS pensa, de acordo com JOSÉ FREDERICO MARQUES, que são

14 Código penal e sua interpretação jurisprudencial. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. p. 164.
50 – Direito Penal II – Ney Moura Teles

causas de exclusão da tipicidade15, posição com a qual concordo.

Nos crimes de resultado, os fatos tornam-se típicos pela conduta e pelo


resultado, e pelo nexo causal. Se o resultado não ocorre por razões alheias à vontade do
agente, a conotação típica se altera, deixando de ser homicídio para configurar uma
tentativa de homicídio.

Ora, se quando o resultado não ocorre por razões alheias à vontade do agente, a
tipicidade se altera, com muito mais razão ela se alterará quando o resultado não
acontecer porque o próprio agente alterou sua conduta, com a mudança de sua
intenção, de sua vontade.

Num primeiro momento, ele queria alcançar o resultado, mas, depois, ele
mesmo quer, e consegue impedir que ele aconteça. O dolo de matar, inicialmente vivo
na cabeça do agente, dá lugar, por sua própria decisão, a outro dolo, o de salvar o bem
jurídico, deixando de prosseguir na execução, ou impedindo a produção do resultado.
Houve, inicialmente, uma conduta dolosa de matar, portanto típica de homicídio.
Depois, por decisão do próprio agente, o dolo cedeu lugar para outra finalidade,
positiva, louvável, lícita, protetora do bem jurídico.

É evidente que a tipicidade alterou-se substancialmente. Pode remanescer,


portanto, outra tipicidade – a dos atos praticados –, não a da tentativa.

1.2.7.4 Homicídio impossível

O chamado crime impossível, ou tentativa inidônea, ou ainda tentativa


inadequada, está assim definido no art. 17 do Código Penal: “Não se pune a tentativa
quando, por ineficácia absoluta do meio ou por absoluta impropriedade do objeto, é
impossível consumar-se o crime.”

Mesmo agindo com dolo de matar, o agente utiliza meio executório


absolutamente ineficaz. Um meio sem qualquer idoneidade para resultar na morte da
vítima. Quer matar alguém, mas utiliza uma arma descarregada. Pretende envenenar a
vítima, mas, em vez de ministrar-lhe algum veneno, dá-lhe uma substância inócua. Nos
dois casos, morte alguma haverá. Impossível.

Noutras situações, mesmo utilizando meios eficazes, o agente atua sobre um


objeto impróprio. Atira na vítima que imaginava dormindo, quando já estava morta.
Não há alguém. Impossível matar um não-alguém.

15 Direito penal. São Paulo: Saraiva, 2002. v. 1, p. 342.


Homicídio - 51

O meio deve ser absolutamente ineficaz. Se for apenas relativamente ineficiente,


como a utilização de arma que vem a falhar, subsiste a tentativa. Nesse caso, assim
como a arma falhou, poderia não ter falhado. A ineficiência não é absoluta.

É que, em qualquer situação, o Direito somente se importa com condutas que


tenham pelo menos o potencial de lesionar ou expor a perigo um bem jurídico. Ao
utilizar-se de meio sem qualquer eficácia, ou atuar sobre um objeto totalmente
impróprio, a conduta, ainda que dolosa, mesmo que intensamente cruel, não era idônea
para sequer expor a perigo o bem jurídico. Segundo o princípio da lesividade, o Direito
Penal somente se ocupa de condutas que tenham idoneidade para lesionar ou expor a
perigo um bem jurídico.

1.2.7.5 Resumo

Em síntese: iniciada a execução dolosa do homicídio, pode suceder que:

a) a execução não se completa por circunstâncias alheias à vontade do agente.


Há tentativa de homicídio. É a chamada tentativa imperfeita;

b) a execução se completa, mas, ainda assim, o resultado morte não ocorre por
circunstâncias alheias à vontade do agente. Há tentativa de homicídio.
Tentativa perfeita ou crime falho;

c) a execução não se completa por vontade do próprio agente, que interrompe,


voluntariamente, o processo executório. Não há tentativa de homicídio, mas
desistência voluntária;

d) a execução se completa, mas o resultado não acontece por ação do próprio


agente. Não há tentativa de homicídio, mas arrependimento eficaz;

e) a consumação é impossível por ter o agente utilizado um meio absolutamente


ineficaz ou atuado sobre um objeto absolutamente impróprio. Há crime
impossível ou tentativa inidônea, impunível.

1.2.8 Concurso de pessoas

Quando duas ou mais pessoas realizam, simultaneamente, um mesmo


procedimento típico de homicídio, isto é, quando elas executam, diretamente, a morte
da vítima, a tipicidade do fato é verificável por ajustamento direto ao tipo. Dois
homens, ao mesmo tempo, ou um logo após o outro, disparam cada qual sua arma
contra outrem. Ambos, dolosamente, atuaram no sentido da obtenção da morte da
52 – Direito Penal II – Ney Moura Teles

vítima. Ambos realizaram a conduta típica do art. 121 do Código Penal.

Nem sempre a concorrência de vontades e condutas para a realização de um


homicídio se dá dessa forma direta, clara, precisa, com mais de um sujeito realizando as
formas de execução da morte de outra pessoa. Muitas vezes, a vontade de determinada
pessoa dirige-se para a determinação, a outrem, da execução do crime; noutras, apenas
para contribuir para sua execução. Todas as pessoas que contribuírem, concorrerem,
enfim, para a prática do homicídio, por ele devem responder.

O Código Penal adotou, em seu art. 29, a seguinte norma geral, para alcançar as
condutas daqueles que tiverem concorrido para a realização de um crime: “Quem, de
qualquer modo, concorre para o crime, incide nas penas a este cominadas, na medida
de sua culpabilidade.” Como visto, não definiu, com precisão, o conceito de autor ou
co-autor do crime, deixando para a doutrina a tarefa de esclarecê-lo.

1.2.8.1 Autoria no homicídio

Várias teorias foram formuladas a respeito da matéria, mas a lei brasileira não
se comprometeu, expressamente, com nenhuma delas. Segundo ALBERTO SILVA
FRANCO,

“no entanto, na medida em que introduziu o dolo na ação típica final, como se
pode depreender da conceituação de erro sobre o tipo, na medida em que
aceitou o erro de proibição e, finalmente, na medida em que abandonou o
rigorismo da teoria monística em relação ao concurso de pessoas,
reconhecendo que o agente responde pelo concurso na medida de sua
culpabilidade, deixou entrever sua acolhida às mais relevantes teses finalistas,
o que leva à conclusão de que abraçou também a teoria do domínio do fato”16.

E o que diz a teoria do domínio do fato? Autor de um crime é quem possui o


domínio final da ação, podendo decidir sobre a consumação do procedimento típico. A
determinação da autoria está vinculada ao tipo legal de crime, mas depende da
presença do elemento subjetivo, que é a vontade comandando o rumo do fato.

Aquele que tiver o poder de decidir sobre continuar ou interromper o


procedimento típico, que puder decidir sobre consumá-lo, arrepender-se ou desistir de
prosseguir na execução, ou continuar, este é autor do crime. Ainda que não venha

16 Código penal e sua interpretação jurisprudencial. 7. ed. rev. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. v. 1,
p. 483.
Homicídio - 53

realizar qualquer parte do procedimento típico, poderá ser o autor, desde que tiver
previamente determinado a outros que o realizassem. Mesmo não executando, nem
parcialmente, qualquer ação típica, mas se a tiver planejado, organizado, dela será
autor. Sim, porque assim agindo, terá dado início à realização intelectual do
procedimento típico e, por essa razão, insere sua conduta na realização da conduta
ajustada ao tipo. Esse é o autor intelectual.

Todo aquele que realiza o tipo de homicídio diretamente, disparando o revólver,


golpeando com a faca, ministrando o veneno, empurrando a vítima no rio para que
morra afogada, enfim, todo o que executar, diretamente, qualquer ação material com
vistas na produção do resultado morte é autor do homicídio. Porque tem poder,
domínio, sobre a ação final. Porque pode interromper o processo executório, decidindo
sobre a consumação. É o que pode desistir. Esse é chamado autor executor. É,
portanto, aquele que executa, ainda que parcialmente, o procedimento típico.

Pode haver mais de um autor executor. Vladimir e Alfredo seguram a vítima


corpulenta, para que Leônidas nela desfira os golpes de facão. Os dois primeiros
imobilizaram a vítima, impedindo sua possibilidade de defesa para que o terceiro nela
produzisse as lesões letais. Os três são autores executores porque qualquer deles tinha o
poder de decidir, dominavam a ação final.

Se Américo constrange moral e violentamente Maurício – impondo gravíssima


ameaça ao filho deste, seqüestrado e sob a mira de arma de fogo –, exigindo-lhe a
morte de Custódio, é autor mediato do homicídio que Maurício executa contra a pessoa
de Custódio. Américo é autor porque, com a coação moral irresistível imprimida contra
Maurício, obteve e manteve o domínio da ação deste. Teve o poder de decisão. Maurício
é autor executor, porque, caso quisesse, poderia ter desistido da execução, deixando,
entretanto, a vida de seu filho em grave perigo. Será desculpado, é verdade, por
inexigibilidade de conduta diversa, mas é igualmente autor de homicídio ilícito.

O autor mediato é, pois, aquele que, para obter a realização do procedimento


típico, abusa de uma terceira pessoa, imprimindo-lhe uma força, física ou moral, para
alcançar a consumação do homicídio, servindo-se de outrem como instrumento para o
alcance de sua pretensão.

Havendo, no mesmo fato, mais de um autor – executores, intelectuais ou


mediato –, diz-se que houve co-autoria. Todos serão co-autores.

1.2.8.2 Participação em homicídio


54 – Direito Penal II – Ney Moura Teles

A pessoa que tiver concorrido para um homicídio sem poder decidir sobre sua
consumação não é autor. Não tendo domínio sobre a ação final, não é autor, porque,
nesse caso, a ação final está sob o domínio de outrem. É tão-somente partícipe do
homicídio. Partícipe é quem contribui, sem realizar diretamente qualquer ato do
processo de execução, para o fato típico que está sob o domínio final de outra pessoa.

A participação é, portanto, acessória. Inexiste sem que haja autoria.

Para haver participação, é essencial que o partícipe tenha atuado com dolo. Com
vontade de colaborar para o homicídio, ou, pelo menos, com a previsão e aceitação da
própria colaboração para com o resultado morte de outrem. Deve, por isso,
necessariamente, ter consciência de que seu comportamento é contributivo para com o
procedimento típico que está sob o domínio do autor, intelectual ou executor.

Imagine-se que Frederico é a única pessoa que sabe do paradeiro de Edgar, um


traficante procurado pela polícia. Se, a pedido de Jorge, que afirma desejar enviar ao
“chefão” um pacote com cocaína, presta a informação do local onde ele está escondido e
Jorge, com a notícia, procura, encontra e mata o traficante, terá Frederico contribuído
para a execução do homicídio?

Claro que não. Ele não tinha consciência de que estava colaborando para um
homicídio logo, dele não teve vontade de participar, por isso que não será partícipe.

São várias as formas de participação em homicídio.

A contribuição pode ser simplesmente moral, sem qualquer ação material


concreta, como, por exemplo, quando alguém induz ou instiga outrem a cometer o
crime. Induzir é fazer nascer, na mente do outro, a idéia criminosa. Instigar é estimular
a idéia já existente.

Certo é, todavia, que o partícipe somente será responsabilizado se o crime


chegar a ser, pelo menos, tentado. Logo, não será punido o que instigou, auxiliou, ou
determinou, se o concorrente nem mesmo iniciou a execução do procedimento típico,
uma vez que o Direito Penal só intervém sobre fatos típicos consumados – realizados
na integridade dos tipos – e também sobre a tentativa de sua realização, que tem como
elemento indispensável o início da execução. É a regra do art. 31 do Código Penal: “O
ajuste, a determinação ou instigação e o auxílio, salvo disposição expressa em
contrário, não são puníveis, se o crime não chega, pelo menos, a ser tentado.”

A colaboração material ocorre quando a conduta do partícipe integra, de modo


secundário, sem qualquer poder de decisão, o processo causal. Entregar ou emprestar a
arma para o autor, prestar a informação sobre seu paradeiro desconhecido, conduzir o
executor até o local do crime, acompanhá-lo e permanecer a seu lado no momento da
Homicídio - 55

execução, seja encorajando-o, seja colaborando para a intimidação da vítima, são


formas de participação material. Sempre é bom lembrar que se o concorrente tiver
algum poder de decisão, mínimo que seja, já não será partícipe, mas co-autor, como já
explicitado.

A participação admite gradação em sua importância causal. Ela pode ter maior ou
menor importância no processo causal. Pode ser mais eficiente ou menos eficiente.
Cumpre, portanto, no caso concreto, analisar o grau da atuação de cada partícipe para
considerá-la de maior ou de menor importância. É o que determina o § 1º do art. 29 do
Código Penal: “Se a participação for de menor importância, a pena pode ser
diminuída de um sexto a um terço.”

Não há receita milagrosa para o intérprete, como, aliás, não há fórmulas


mágicas no Direito. É preciso considerar o fato em sua totalidade e destacar, nele, o
comportamento do partícipe. Pode-se utilizar aqui o procedimento hipotético de
eliminação de Thyrén, abstraindo, da série causal, a conduta do partícipe e verificando
ao depois como teria decorrido o processo causal dominado pelo autor.

Se com esse raciocínio hipotético a série causal puder prosseguir sem grandes
dificuldades, a participação é de menor importância. Do contrário, se o processo causal
encontrar barreiras mais dificilmente contornáveis, a participação terá sido de maior
importância.

A simples conivência não é participação. Ter conhecimento de que o crime será


praticado ou mesmo presenciá-lo permanecendo inerte, sem nenhuma vontade
exteriorizada de aderir a sua execução ou consumação, não é dele participar. Ainda
quando a pessoa espere que o autor seja bem-sucedido, nem por isso está contribuindo
para o crime. Se, entretanto, o que assiste é um garante, aquele que tem o dever de agir
para impedir o resultado, sua omissão é típica.

A colaboração posterior ao crime não é participação. Encerrado o iter criminis


do homicídio, com a consumação, não há mais falar em participação. Porque, a partir
desse momento, não mais é possível contribuir para o que já se concluiu. A participação
posterior, entretanto, pode constituir crime autônomo, de favorecimento real ou
pessoal, definidos nos arts. 348 e 349 do Código Penal.

Uma questão interessantíssima é a seguinte. Certa pessoa determina, ao


pistoleiro, a morte de um desafeto. Dias depois e antes que o futuro executor cumpra
sua pactuada obrigação de matar, aquele que seria mandante do crime se arrepende e
comunica a suspensão do homicídio contratado, mas o executor resolve desobedecer à
ordem e cumprir a sua parte. Mata a vítima. Aquele é co-autor do homicídio executado?
56 – Direito Penal II – Ney Moura Teles

Será partícipe?

Penso que não é autor, porque na realidade não teve domínio do fato, na
medida em que não conseguiu decidir sobre sua interrupção, tendo o evento criminoso
decorrido da própria vontade do executor, que o terá tomado para si, por motivação
própria. É, entretanto, partícipe do crime, porque fez nascer, na mente do executor, a
idéia homicida.

1.2.8.3 Cooperação dolosamente diversa

Duas ou mais pessoas podem concorrer para o mesmo crime, com dolos
diversos. Pode haver um homicídio em que um concorrente, o autor intelectual ou um
partícipe, tenha agido com outro dolo, não o de matar, mas o de lesionar. Veja-se o
exemplo.

Marcelo determina a Sílvio que vá até o Bar de Alfredo e dê-lhe uma boa surra,
um espancamento para não deixar saudades. Sílvio, entretanto, excede-se e acaba
matando Alfredo. Marcelo desejava apenas produzir lesões corporais, mas Sílvio
acabou por matar, dolosamente, a vítima. Seus dolos foram, portanto, distintos,
diversos.

Outro exemplo. Raul contribui com Felizardo para a morte de Flávio. Ao


executar o homicídio, Felizardo age com extrema crueldade, circunstância não desejada
nem aceita pelo partícipe.

Qual a solução?

Marcelo deve responder em concurso de homicídio que não desejava? Ou deve


responder por lesões corporais que não aconteceram?

Raul responderá como partícipe de um homicídio simples, que estava em seu


dolo, ou pelo homicídio qualificado pelo meio cruel, utilizado pelo autor do crime sem
seu conhecimento ou consentimento?

O § 2º do art. 29 assim determina: “Se algum dos concorrentes quis participar


de crime menos grave, ser-lhe-á aplicada a pena deste; essa pena será aumentada até
metade, na hipótese de ter sido previsível o resultado mais grave.”

Com base nesse preceito, é preciso situar os vários desdobramentos possíveis.

Tome-se o exemplo de alguém que contrata os serviços de outro para espancar


uma terceira pessoa.

A primeira hipótese é de não ser previsível o resultado mais grave. O primeiro


Homicídio - 57

concorrente não pode fazer a previsão do resultado morte. Nesse caso, vai responder
pelo crime de lesão corporal, e o executor responderá por homicídio. O meio cruel
empregado pelo autor do homicídio não pode ser atribuído ao partícipe que não podia
prever sua utilização.

A segunda hipótese: o resultado mais grave pode ser previsto. Em algumas


situações, ao partícipe ou co-autor pode ser possível fazer a previsão de que o executor
poderá realizar o delito mais grave. Acontece quando alguém manda bater numa pessoa
idosa ou enferma, ou deficiente físico, que, por uma dessas condições, poderá – é
previsível –, com as lesões sofridas, ser morta. Ou quando se participa de um homicídio
que se quer simples, mas sabe-se que o concorrente, o executor, um brutamontes,
violento, sanguinário, maldoso, é capaz de matar de forma cruel.

Sendo previsível o resultado mais gravoso, o concorrente poderá ter duas


atitudes internas. Uma a de, mesmo diante da previsibilidade, não prever, ou,
prevendo, não aceitar o resultado mais grave. Isto é, não prevê, apesar de previsível. Ou
prevê, mas não aceita que ele ocorra. Nesses casos, o concorrente responderá pelo
crime menos grave, mas com pena aumentada até metade. Esse aumento é uma
imposição de maior reprovação por sua conduta negligente.

A outra atitude é, prevendo, aceitar o resultado mais gravoso. Aí responderá


igualmente pelo resultado mais grave, porque agiu dolosamente. Nessa situação, o
concorrente, embora quisesse, inicialmente, participar de um crime menos grave,
consentiu na realização do mais grave; por isso, é inaplicável o preceito do § 2º do art.
29.

A solução do § 2º do art. 29 é justa, pois se se aplicasse sempre, ao concorrente


que queria um crime menos grave, a mesma pena daquele realizado, a
responsabilização do primeiro seria puramente objetiva, o que não atende aos ditames
de um direito penal justo e fincado no princípio da culpabilidade.

Quando ele tenha, porém, consentido na realização do crime mais grave, por ele
responderá, considerando a eventualidade de seu dolo, também na medida de sua
culpabilidade.

Quando o resultado mais grave era previsível, mesmo respondendo pelo delito
mais leve, terá a pena aumentada consideravelmente, de metade, porque maior a
reprovabilidade de sua conduta.

1.2.8.4 Comunicabilidade de circunstâncias


58 – Direito Penal II – Ney Moura Teles

Circunstâncias, para os fins do Direito Penal, são dados que ora integram, ora
se ligam aos tipos, com a finalidade de fazer aumentar ou diminuir a pena cominada.
Umas têm natureza objetiva; outras, subjetiva.

Circunstâncias objetivas ou reais são as que dizem respeito à materialidade do


fato – modo de execução, meios utilizados, tempo, lugar, qualidades do sujeito passivo
etc.

Circunstâncias subjetivas ou pessoais referem-se ao agente do fato, à motivação


que o impele a realizar a conduta, as suas relações com o sujeito passivo, ou com seus
concorrentes, ou a seus atributos pessoais.

Quando as circunstâncias integram a estrutura do tipo, são chamadas essenciais


ou elementares, porque são indispensáveis à verificação da tipicidade. São elementos
do tipo.

Quando se situam fora do tipo, são chamadas circunstâncias acidentais.

Para resolver o problema da comunicabilidade das circunstâncias entre os diversos


concorrentes, deve o intérprete atentar para o preceito inserto no art. 30 do Código Penal:
“Não se comunicam as circunstâncias e as condições de caráter pessoal, salvo quando
elementares do crime”, e dele extrair as regras aplicáveis a todas as hipóteses.

A primeira regra é a de que: todas as circunstâncias de caráter objetivo, reais,


comunicam-se aos concorrentes. Não há norma escrita a respeito, mas a interpretação
deve ser feita a contrario sensu. Se a norma impede a comunicação de circunstâncias
pessoais, exceto as elementares do crime, é porque, a contrario sensu, quer que todas
as demais sejam transmitidas aos concorrentes. Assim, o uso de meio cruel, tortura,
asfixia ou a insídia, a dissimulação, que são circunstâncias objetivas qualificadoras do
homicídio, comunicam-se aos co-autores e partícipes. Todavia, como já dito
anteriormente, se o concorrente – co-autor intelectual ou partícipe – não teve
conhecimento de que o executor utilizaria de meio cruel ou agiria de emboscada, é de
ver que a qualificadora objetiva não entrou na esfera de seu conhecimento, logo não
pode a ele ser aplicada.

A segunda regra é: as circunstâncias pessoais não elementares do tipo não se


comunicam. Assim as qualificadoras do motivo fútil, torpe, ou a finalidade de assegurar
a execução, ocultação, impunidade ou vantagem de outro crime. Nem tampouco as
circunstâncias privilegiadoras – motivo de relevante valor moral ou social – serão
comunicadas ao partícipe e co-autor.

Terceira: as circunstâncias pessoais ou subjetivas que sejam elementares do


crime comunicam-se sempre. No tipo de homicídio, não há qualquer circunstância
Homicídio - 59

pessoal elementar, exceto o dolo, que, por isso, comunica-se sempre aos que para ele
concorrem. Outras circunstâncias pessoais existem apenas nas formas privilegiadas e
qualificadas do homicídio, mas são elas circunstâncias acidentais, e não integrantes do
tipo fundamental. Logo, nenhuma delas se comunica ao concorrente, partícipe ou co-
autor.

A não ser, é óbvio, se o concorrente tiver conhecimento da circunstância


subjetiva e incorporá-la a seu dolo, isto é, se, ao aderir a conduta do executor ou co-
autor, também agir motivado pela futilidade ou torpeza com que atuar o executor, bem
assim se abraçar a nobreza do motivo.

Não apenas as circunstâncias subjetivas são incomunicáveis, também as


condições pessoais do agente. Menoridade de 21 anos e reincidência, por exemplo,
sendo condições subjetivas, são incomunicáveis aos concorrentes do crime.

1.2.9 Concurso de crimes

O agente pode realizar, contemporaneamente ao homicídio, pouco tempo antes


ou depois, outra conduta delituosa, ou, mediante uma só ação, cometer mais de um
crime, de mesma espécie ou não. Dar-se-á, então, o chamado concurso de crimes, que
pode ser material, formal ou crime continuado.

1.2.9.1 Concurso material

O art. 69 do Código Penal define o concurso material de crimes, determinando,


nessa hipótese, a aplicação cumulativa das penas privativas de liberdade
correspondentes. Ocorre quando o agente, mediante mais de uma conduta, pratica dois
ou mais crimes, idênticos ou não.

O agente mata a vítima, e depois oculta ou destrói o cadáver. Haverá homicídio


e um crime de ocultação ou destruição de cadáver, aplicando-se as penas
cumulativamente.

Faustino mata Aristizábal, depois comete lesões corporais contra Joaquim e,


por último, calunia a irmã de ambos, que se encontrava próxima. Um homicídio, uma
lesão corporal e uma calúnia.

As regras para a aplicação da pena são:

1. Tratando-se de duas penas privativas de liberdade, serão aplicadas


cumulativamente, devendo o juiz, é óbvio, individualizar cada pena, somando-
60 – Direito Penal II – Ney Moura Teles

se ao final as penas definitivas.

2. Sendo possível a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de


direitos, deve o juiz atentar para o seguinte. Se a pena privativa de liberdade
aplicada para um dos crimes não tiver sido suspensa, como dispõe o art. 77 do
Código Penal (sursis), a pena para o outro crime concorrente não poderá ser
substituída por restritiva de direitos. Ou seja, só é possível a substituição de
uma das penas privativas de liberdade aplicadas, se a pena aplicada para o
crime concorrente tiver sido suspensa. Caso seja possível a substituição das
várias penas privativas de liberdade por penas restritivas de direitos, se forem
compatíveis, o condenado poderá cumpri-las simultaneamente. Se não,
cumprirá sucessivamente.

Outro exemplo: após estuprar a vítima, o sujeito mata-a. São duas ações
distintas, dois crimes distintos. Responderá por ambos, e se a tiver matado para
assegurar a impunidade ou a ocultação do crime de estupro, será apenado por um
estupro e um homicídio qualificado. Se a matar por mero prazer, será qualificado pela
torpeza do motivo. Não é a mesma hipótese quando o agente tiver usado violência na
realização do estupro e dela resultar a morte da vítima, caso em que responderá por
estupro seguido de morte, cuja pena será de 12 a 25 anos. Essa hipótese ocorre quando
a morte decorreu de negligência do agente. É crime preterdoloso. Agiu com dolo de
estuprar, e teve culpa na morte.

O concurso material, ou real, resulta da existência de duas ou mais condutas


distintas, isoladas, separadas, autônomas. São fatos diferentes, crimes diferentes, ainda
que realizados em momentos próximos.

1.2.9.2 Concurso formal

Há concurso formal, ou ideal, quando o agente, mediante uma só conduta,


pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não. Aplica-se apenas uma das penas, a mais
grave, se distintas, aumentada de um sexto até metade. Uma só ação ou uma única
omissão realizando mais de um crime. Exemplo: o agente sabota uma pequena
aeronave, matando seus três ocupantes.

Há concurso formal quando há unidade de conduta e pluralidade de crimes.

Há concurso formal homogêneo quando os crimes praticados são definidos na


mesma norma legal, contra vários sujeitos passivos.

O concurso formal será heterogêneo se os crimes praticados estiverem definidos


Homicídio - 61

em normas penais distintas. No mesmo exemplo da sabotagem da aeronave, pode


acontecer que, com a única conduta do agente, sejam causados dois homicídios e
também lesões corporais em um passageiro, que se salvou.

O concurso formal pode ser perfeito ou imperfeito.

O concurso formal perfeito está definido na primeira parte do art. 70 do Código


Penal: “Quando, mediante uma só conduta, o agente pratica dois ou mais crimes,
idênticos ou não.”

Na segunda parte do mesmo artigo, a definição de concurso formal imperfeito:


“Quando, mediante uma só conduta dolosa, o agente pratica dois ou mais
crimes, idênticos ou não, resultantes de desígnios autônomos.”

As diferenças são evidentes. O concurso formal perfeito pode ocorrer em relação


a crimes dolosos e culposos, ao passo que o concurso formal imperfeito trata apenas de
crimes dolosos. Neste, os crimes praticados devem decorrer de desígnios autônomos do
agente. Desígnio é desejo, pretensão, vontade, fim, objetivo. Haverá concurso formal
imperfeito quando os dois ou mais crimes cometidos através de uma só conduta
estiveram previamente ideados ou idealizados pelo agente. Eram crimes desejados,
pretendidos pelo sujeito que os realizou com uma única conduta.

Há autonomia de desígnios, no exemplo da sabotagem da aeronave, se o agente,


quando realizou a conduta, tinha a vontade de, com o desastre aéreo, matar seus três
ocupantes.

Para o concurso formal perfeito, aplica-se apenas uma das penas, a mais grave,
se distintas, aumentada de um sexto até metade. Se, porém, ao realizar a operação de
aumento da pena do crime mais grave, o juiz chegar a um quantum superior ao que
chegaria caso utilizasse a regra do concurso material, cumulando-as, deverá então
aplicá-las cumulativamente. Por exemplo, num concurso formal perfeito entre um
homicídio qualificado e uma lesão corporal simples. Se aplicar pena mínima para o
homicídio qualificado, 12 anos de reclusão, e aumentá-la do mínimo, 1/6, chegará a
uma pena definitiva de 14 anos, ao passo que, se forem simplesmente somadas as penas
para os dois crimes, a pena definitiva seria de apenas 13 anos de reclusão. Nesse caso,
mesmo tendo havido concurso formal, o juiz aplicará a regra do concurso material, daí
que a doutrina denomina essa situação de concurso material benéfico.

Para o concurso formal imperfeito, as penas serão aplicadas cumulativamente,


como no concurso material.
62 – Direito Penal II – Ney Moura Teles

1.2.9.3 Homicídio continuado

O crime continuado é uma criação jurídica que, tanto quanto o concurso formal,
resulta em punição menos severa ao agente que comete mais de um crime. No concurso
formal, como se viu, aplica-se apenas uma das penas, aumentada até metade. No crime
continuado, em vez de cumular as penas dos vários crimes, manda a lei seja aplicada a
pena de um dos crimes, a mais grave se diversas, aumentada, porém, de 1/6 a 2/3. É
um critério mais severo do que o do concurso formal.

Haverá crime continuado quando o agente realizar mais de uma conduta e com
elas praticar mais de um crime, porém da mesma espécie, e que guardem, entre si, um
nexo de continuidade materializado por meio de certa homogeneidade ou uniformidade
de suas circunstâncias de natureza objetiva. É a regra do art. 71 do Código Penal.

Antes da reforma penal de 1984, não se admitia a aplicabilidade do instituto do


crime continuado quando se tratasse de crimes que se voltavam contra bens
personalíssimos, especialmente quando praticados contra vítimas diferentes. Quanto ao
homicídio, então, era absolutamente impossível pensar na hipótese, eis que as vítimas
sempre seriam diferentes.

Com a reforma, entretanto, a discussão ficou encerrada, uma vez que o novo
texto legal admite a continuidade delitiva quaisquer que sejam os crimes, inclusive
contra vítimas diferentes. É o que se encontra no parágrafo único do art. 71:

“Nos crimes dolosos, contra vítimas diferentes, cometidos com violência ou


grave ameaça à pessoa, poderá o juiz, considerando a culpabilidade, os
antecedentes, a conduta social e a personalidade do agente, bem como os
motivos e as circunstâncias, aumentar a pena de um só dos crimes, se idênticas,
ou a mais grave, se diversas, até o triplo, observadas as regras do parágrafo
único do art. 70 e do art. 75 deste Código.”

Assim, admite-se a continuidade delitiva também nos crimes de homicídio.

Para tanto, é preciso que estejam presentes todos os requisitos do crime


continuado, mais a consideração sobre as circunstâncias judiciais mencionadas no
parágrafo único do art. 71.

Para haver crime continuado, é preciso que os crimes sejam da mesma espécie,
e que haja nexo de continuação.

Parte da doutrina entende que são da mesma espécie apenas os crimes previstos
no mesmo tipo penal, porque possuem os mesmos elementos descritivos, abrangendo
Homicídio - 63

as formas simples, privilegiadas e qualificadas, tentadas e consumadas17. Assim poderá


haver continuidade entre um homicídio simples e um privilegiado, ou uma tentativa de
homicídio ou um homicídio qualificado.

Crimes da mesma espécie, a meu ver, são aqueles que violarem o mesmo bem
jurídico. São os crimes cujos tipos tiverem o mesmo objeto jurídico. A idéia de espécie
pressupõe a de gênero. Assim, homicídio e aborto e infanticídio são espécies do gênero
de crimes contra a vida. Será possível, assim, haver continuação entre um homicídio e
um aborto, e um infanticídio.

A continuidade exige nexo de continuação, cuja constatação se fará pela análise


das seguintes circunstâncias: tempo, lugar, maneira de execução e outras condições
assemelhadas, que deverão guardar, entre si, certa homogeneidade.

Os crimes em continuidade devem situar-se proximamente no tempo. A análise


não é aritmética, estabelecendo tempo máximo entre um crime e outro, um, dois ou
três meses. Os lugares onde tiverem sido cometidos também deverão ser próximos.
Deve o modus operandi, que inclui os meios utilizados e o modo de atacar as vítimas,
ser homogêneo nos vários crimes.

A homogeneidade deve abranger o conjunto das circunstâncias, que são todas


objetivas, não bastando haver harmonia de tempo e lugar, se, por exemplo, a maneira
de execução é absolutamente diferente em cada crime.

Veja-se esse Acórdão do Superior Tribunal de Justiça:

“PENAL – HOMICÍDIO QUALIFICADO – RECONHECIMENTO DE CONCURSO


MATERIAL – INOCORRÊNCIA – CONTINUIDADE DELITIVA –
CONFIGURAÇÃO.

Crime continuado é aquele no qual o agente, mediante mais de uma ação ou


omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie, os quais, pelas
semelhantes condições de tempo, lugar, modo de execução, podem ser tidos como
continuação dos outros (art. 71 do CP). O modus operandi, em tais delitos, deve
ser o mesmo, sendo necessária a homogeneidade das condutas.

No caso sub judice, a peça vestibular, bem como o libelo, apontam a ocorrência
de um homicídio qualificado e em seguida a tentativa de cometimento de outro
homicídio, pelas mesmas autoras e em circunstâncias objetivas homogêneas.
Destarte, configura-se a continuidade delitiva, e não o concurso material.

17 DAMÁSIO E. DE JESUS, Direito penal. v. 1, p. 526.


64 – Direito Penal II – Ney Moura Teles

Ordem concedida para reconhecer a ocorrência de continuidade delitiva,


afastando-se, assim, o concurso material (HC 21.770-RJ, rel. Min. Jorge
Scartezzini, j. 24-9-2002, DJ de 18.11.2002).”

Superadas estão, portanto, duas antigas discussões. Uma a de que, para a


continuidade delitiva, deveriam ser consideradas circunstâncias de natureza subjetiva.
Não há necessidade de os crimes resultarem de um único desígnio do agente. Bastam as
circunstâncias objetivas serem harmônicas. A outra discussão é sua aplicabilidade
quanto ao homicídio, pacificada sua admissibilidade pela jurisprudência das cortes
superiores.

A diferença é que, tanto no homicídio quanto nos crimes cometidos contra


vítimas diferentes, com violência ou grave ameaça, a pena será aumentada até o triplo,
desde que as circunstâncias judiciais mencionadas no parágrafo único do art. 71 sejam
favoráveis ao agente.

Em qualquer hipótese, entretanto, a pena não pode ser superior à que caberia
caso fosse aplicada a regra do concurso material, nem ser superior a 30 anos.

1.2.10 Conflito aparente de normas

Dá-se o conflito aparente de normas, também chamado simplesmente de


concurso de normas, quando, para um mesmo fato – conduta, nexo e resultado –
concreto, parecem ajustar-se-lhe duas ou mais normas distintas, isto é, dois tipos legais
de crime.

Na verdade, não há nenhum conflito, nem tampouco um concurso de normas,


uma vez que segundo o princípio do ne bis in idem ninguém será punido duas vezes
pelo mesmo fato. O conflito, portanto, é só aparente. O concurso é inexistente. Apenas
uma das normas incriminadoras se ajustará ao fato natural.

Para a resolução dos possíveis conflitos aparentes de normas, deve o intérprete


aplicar o princípio da especialidade e o princípio da absorção. Segundo o primeiro, se
entre as duas normas aparentemente em conflito existir uma relação de gênero e
espécie, a norma especial afastará a incidência da norma genérica. Uma norma é
especial em relação à outra, genérica ou geral, quando contiver, em sua descrição, todos
os mesmos elementos, objetivos, normativos e subjetivos, contidos na norma genérica,
e mais alguns, ou só um, objetivos, normativos ou subjetivos. Esses elementos a mais
que a norma especial têm são os elementos especializantes.

O tipo de homicídio simples – matar alguém – contém uma norma geral, da


Homicídio - 65

qual são tipos especiais as normas dos §§ 1º e 2º do mesmo art. 121. Os homicídios
privilegiados são tipos especiais em relação ao tipo do homicídio simples. Os
homicídios qualificados são, igualmente, especiais em relação ao homicídio simples.
Entre eles, portanto, há relação de gênero para espécie. É só olhar os elementos:

• homicídio simples: matar alguém dolosamente;

• homicídio qualificado: matar alguém dolosamente, por motivo fútil.

O “por motivo fútil” é o elemento especializante, que torna o homicídio


qualificado especial em relação ao homicídio simples.

Segundo o princípio da especialização, a norma especial derroga a norma geral.


Lex specialis derrogat lex generalis. Ou seja, quando João mata Maria por motivo fútil,
será punido uma única vez, segundo a norma incriminadora do art. 121, § 2º, II, do
Código Penal.

O infanticídio – adiante comentado – é também um tipo especial em relação ao


homicídio simples, de modo que se a mãe, durante ou logo após o parto, matar o
próprio filho, estando sob a influência do estado puerperal, será punida apenas uma
vez, com a pena prevista no art. 123, que afastará a incidência da norma do art. 121.

O mais conhecido conflito aparente de normas que envolve o homicídio é o que


se dá entre a norma do art. 121, § 2º, V, e as contidas no art. 157, §§ 1º e 3º. Veja-se o
exemplo: Salviano subtraiu, para si, um objeto de propriedade de José Carlos, e quando
se retirava do local do crime, na posse do bem furtado, é surpreendido pela vítima que
tentou reaver a res furtiva, momento em que Salviano, para assegurar a posse do bem,
desferiu um tiro de revólver, matando José Carlos.

Aparentemente, e só aparentemente, esse fato ajusta-se a dois tipos legais de


crime: homicídio qualificado para assegurar a vantagem de outro crime, e roubo
impróprio seguido de morte, também chamado latrocínio.

Só uma das normas é aplicável, pois o conflito é só aparente. No primeiro tipo,


de homicídio qualificado, os elementos são:

• matar alguém dolosamente, para assegurar a vantagem de outro crime.

No segundo tipo, de roubo impróprio seguido de morte, os elementos são:

• matar alguém dolosamente, para assegurar a vantagem do crime de furto.

A segunda norma, pois, é especial em relação à primeira, pois naquela a morte


da vítima visava assegurar a vantagem de outro crime, isto é, de qualquer crime, ao
passo que, na segunda, a morte da vítima busca assegurar a vantagem de determinado
66 – Direito Penal II – Ney Moura Teles

crime, o de furto, isto é, a subtração de coisa alheia móvel.

Pelo princípio da absorção, ou consunção, se entre as normas que parecem


concorrer na incidência sobre o fato houver uma relação de meio a fim, conteúdo a
continente, parte a todo, fração a inteiro, o crime-fim, o crime-continente, o crime-todo
ou o crime inteiro absorverá o crime-meio, o crime-conteúdo, o crime-parte, ou o
crime-fração. Nesses casos, um dos crimes integra o outro, e por este é absorvido.

O crime de homicídio contém a tentativa, como fase normal ou conduta anterior


de sua realização, contendo, ainda, a lesão corporal, o disparo da arma de fogo –
contravenção penal – e o porte ilegal de arma.

O homicídio, por isso, absorve todos os demais delitos que sejam suas frações,
partes, conteúdos. Se o agente entra à noite na casa alheia para matar a vítima que
dormia só responderá pelo homicídio, que terá absorvido a violação do domicílio.
Também não responderá pelas lesões causadas, nem tampouco pelo disparo da arma e
seu porte ilegal.

Entre o homicídio e o crime de lesão corporal seguida de morte – ofender a saúde


ou a integridade corporal de outrem, resultando-lhe a morte – não há conflito aparente
de normas, daí que não se deve falar na incidência de qualquer princípio para resolver o
que não existe. Não há conflito, porque os fatos são absolutamente distintos.

Fato é, sempre, conduta, resultado e nexo – tratando-se de crimes materiais. Os


fatos são, essencialmente, distintos. O homicídio é um crime puramente doloso, ao
passo que a lesão corporal seguida de morte – indevidamente chamada de homicídio
preterintencional – é um crime preterdoloso.

No homicídio, há dolo de matar. Na lesão seguida de morte, o dolo é


completamente diverso: ferir. As condutas, portanto, são distintas. O resultado, nos
dois crimes, é o mesmo, mas os antecedentes, as condutas são absolutamente distintas,
diametralmente opostas, antagônicas.

Não se pode imaginar duas normas aparentemente ajustarem-se a


comportamentos que, nem de longe, se aproximam, porquanto contendo condutas
antagônicas.

Ao simples exame da conduta, o intérprete afastará qualquer possibilidade de


conflito aparente de normas, já que, concluindo conter ela o dolo de matar, não poderá,
jamais, imaginar a possibilidade de incidência do tipo de lesão corporal seguida de
morte. Se concluir pela existência de uma conduta dolosa, nem de longe passará por
sua cabeça estar diante de um homicídio culposo.
Homicídio - 67

1.2.11 Erro sobre a pessoa e erro na execução

O erro é uma falsa percepção da realidade. É próprio do ser humano e por isso o
Direito dele cuida, nos vários momentos em que surge no mundo jurídico. Há várias
espécies de erro: erro de tipo, erro de proibição, evitável e inevitável, erro sobre a
pessoa e erro na execução do delito. É destes dois últimos que se cuida neste item. Os
demais serão analisados adiante.

Quando o agente comete um homicídio laborando em erro sobre a pessoa que


desejava matar, há erro sobre a pessoa. Quando, por falha na execução do
procedimento típico, mata pessoa diferente da que pretendia, ou obtém, por acidente
ou erro, um resultado diferente do que desejava, há erro na execução.

Essas modalidades de erro – diferentemente do erro de tipo e do erro de


proibição – não isentam de pena, porque não se tratam de erros essenciais, mas
puramente acidentais.

1.2.11.1 Erro sobre a pessoa

Há erro sobre a pessoa quando o agente, desejando matar determinada pessoa,


erra sobre sua identidade ou sua identificação. Não há falha na execução, mas na
percepção da realidade. O agente, à noite, na escuridão, confunde-se e dispara contra
uma pessoa muito parecida com a vítima que pretendia matar.

O dolo abrange o fim, os meios e os efeitos secundários. Por isso, tendo o fim de
matar, nas circunstâncias em que agiu, o dolo abrange todos os efeitos secundários
alcançados pelo processo causal final desencadeado pelo sujeito.

Determina o § 3º do art. 20 do Código Penal que o agente, nessa hipótese,


responderá penalmente como se tivesse praticado o crime contra a pessoa que desejava
atingir, não contra quem efetivamente atingiu.

Se o agente queria matar uma pessoa e, por erro sobre sua identidade, acabou
por matar o próprio pai, não se considerará essa qualidade da vítima real, mas sim as
da vítima virtual. Não haverá agravante da pena. Se queria matar o próprio pai mas,
por equívoco quanto a sua identificação, acabou por matar o tio, irmão gêmeo do pai,
responderá como se a este tivesse matado, tendo, por isso, sua pena agravada nos
termos do art. 61, II, e, do Código Penal.
68 – Direito Penal II – Ney Moura Teles

1.2.11.2 Aberratio ictus

Aberratio ictus é o erro decorrente de um acidente ou da ineficiente utilização


dos meios escolhidos pelo agente para a realização do procedimento típico. Ocorre
acidente, por exemplo, quando terceira pessoa interpõe-se, inadvertidamente, na linha
de tiro, vindo a receber o projétil destinado a outrem. Também há aberratio ictus quando
o agente, por imperícia, erra o alvo pretendido e atinge outra pessoa, ou quando a arma
apresenta defeito, desviando-se o projétil da direção pretendida.

São duas as modalidades de aberratio ictus: com resultado único e com mais de
um resultado.

Na primeira hipótese, o agente, visando matar determinada pessoa, atinge e


mata apenas a outra, saindo a primeira absolutamente ilesa. Analisando-se
rigorosamente esse fato, dever-se-ia concluir pela existência de uma tentativa de
homicídio contra a pessoa que o agente desejava matar e um homicídio culposo em
relação à vítima atingida.

Não é essa, todavia, a solução preconizada pelo Direito. Manda o art. 73 do


Código Penal que, nesse caso, seja considerada a existência de um único homicídio
doloso. O agente responderá como se tivesse praticado um único homicídio doloso
contra a vítima virtual e não o homicídio realmente ocorrido contra a vítima real, que
foi, na verdade, culposo. A vontade da norma é clara, pois determina que o agente
responderá “como se tivesse praticado o crime” contra a vítima virtual.

A norma considera o dolo do agente – que era o de matar – e o resultado morte


efetivamente alcançado, embora de pessoa diversa, construindo, assim, uma ficção
jurídica.

Outra hipótese é a do agente, além de atingir a vítima que pretendia matar,


atingir também outra pessoa.

Podem ocorrer várias situações, cada qual com sua solução.

Pablo, desejando matar Carlos Alberto, atira e, além de atingir seu desafeto,
atinge também a pessoa de Rogério. A parte final do art. 73 determina que, nesses
casos, deve-se aplicar a regra do art. 70, que define o concurso formal de crimes. Desse
exemplo pode decorrer o seguinte:

a) Carlos Alberto e Rogério morrem. Há um concurso formal entre um homicídio


doloso e um homicídio culposo. A pena será daquele, aumentada de um sexto até
metade;

b) Carlos Alberto é morto e Rogério sofre lesões corporais. Concurso formal entre
Homicídio - 69

um homicídio doloso e um crime de lesões corporais culposas, com aumento da


pena do homicídio, também de um sexto até metade;

c) Carlos Alberto sofre lesões corporais e Rogério é morto. Deve-se considerar o


homicídio como se tivesse sido consumado contra a primeira vítima, embora esta
só tenha se ferido. É o que manda a primeira parte do art. 73. O agente receberá a
pena por homicídio consumado, aumentada de um sexto até metade;

d) Carlos Alberto e Rogério sofrem lesões corporais. Como o agente pretendia,


mas não conseguiu matar, houve uma tentativa de homicídio, formando-se um
concurso formal com uma lesão corporal culposa.

Ainda que não haja regra expressa, vale a observação do parágrafo único do art.
70, segundo a qual a pena não pode exceder aquela que seria aplicada segundo a regra
do concurso material.

Em todos esses casos, o segundo resultado, morte ou lesão da pessoa a que o


agente não visava, deve decorrer de sua negligência, configurando um segundo crime
culposo. Por isso, há concurso formal, pois, mediante uma só conduta, o agente realizou
dois crimes.

Se, todavia, em qualquer daquelas hipóteses, o agente tiver previsto o segundo


resultado e, em relação a ele, tiver-se portado com atitude interna de aceitação ou
anuência, estarão presentes desígnios autônomos, impondo a aplicação da pena
cumulativamente, como manda a última parte do art. 70.

1.2.11.3 Aberratio delicti

Aqui há desvio na execução em relação ao bem jurídico, não de uma pessoa para
outra. O agente, desejando matar alguém, atinge uma coisa material ou, ao contrário,
pretendendo danificar uma coisa, mata uma pessoa.

O agente, almejando quebrar os vidros de uma casa, atira contra eles uma barra
de ferro, vindo a atingir uma pessoa que, ferida na cabeça, morre. Há homicídio
culposo.

Outra hipótese. O agente, buscando matar uma pessoa, atira e erra, atingindo
apenas a vidraça de uma casa. Não existe o crime de dano culposo, por isso só
responderá, em relação à coisa, civilmente. No entanto, houve uma tentativa de
homicídio.
70 – Direito Penal II – Ney Moura Teles

Uma última. Querendo danificar a vidraça da casa do vizinho, o sujeito atira


uma pedra contra ela, acertando-a e também o rosto de uma pessoa que, caindo e
batendo a cabeça na calçada, morre em virtude das lesões sofridas. Há concurso formal
entre um crime de dano e um homicídio culposo.

É a solução adotada pelo Código Penal, simples e justa, para essas hipóteses:
“Quando, por acidente ou erro na execução do crime, sobrevém resultado diverso do
pretendido, o agente responde por culpa, se o fato é previsto como crime culposo; se
ocorre também o resultado pretendido, aplica-se a regra do art. 70 deste Código” (art.
74, CP).

Se nesses casos o agente não deseja o outro resultado, age, pois,


negligentemente com relação ao bem que não desejava atingir.

Claro que se tiver agido, em relação ao outro resultado, com dolo eventual,
aplicar-se-á a regra do concurso material de dois crimes dolosos, porquanto terão
decorrido de desígnios autônomos (art. 70, caput, parte final).

1.2.12 Erro de tipo

O erro, já foi dito aqui, é uma falsa apreciação da realidade. No dia-a-dia, muitas
vezes o ser humano realiza determinados comportamentos violadores de normas
jurídicas simplesmente por ter examinado a realidade de forma inexata. Essa
apreciação equivocada dos fatos verdadeiros leva-o a comportar-se sem a perfeita
consciência e, de conseqüência, com vontade viciada. Age errando.

Já se falou, linhas atrás, do erro sobre a pessoa e do erro na execução do


procedimento típico, os quais recaem sobre a identificação de uma pessoa ou na
execução de um fato pretendido com o desvio de sua vontade, de uma pessoa para
outra, ou de uma coisa para uma pessoa, ou desta para a coisa.

Os tipos legais de crime são compostos por elementos, ou partes constitutivas.


Elementos objetivos, normativos e subjetivos. No homicídio, um dos elementos é o
alguém. Ser humano nascido de mulher. Só há homicídio doloso quando uma pessoa
destrói, dolosamente, por ação ou omissão, a vida de alguém.

Erro de tipo é aquele que incide sobre um dos elementos constitutivos do tipo
legal de crime. Haverá erro de tipo, em relação ao crime de homicídio, quando o agente
errar sobre o elemento “alguém”, contido no tipo do art. 121 do Código Penal. Ele age
imaginando que está atirando não em uma pessoa, mas noutra coisa ou objeto, num
animal, por exemplo. O agente atira na pessoa por ter apreciado mal a realidade. Viu,
Homicídio - 71

numa pessoa, o que não lhe pareceu ser alguém. Pensou que fosse um animal ou
qualquer coisa, menos uma pessoa. Tivesse percebido que se tratava de uma pessoa,
não teria atirado. Todavia, não viu como deveria ter visto. Não percebeu que a sua
frente, na linha do tiro que disparou, havia uma pessoa. Imaginou que fosse tudo,
menos alguém. É evidente que errou.

Ora, quem assim age não tem consciência do fato que pratica. Ter consciência
do fato é ter consciência da própria conduta, do resultado que pode ser produzido, e ter
consciência do nexo causal entre conduta e resultado. Ter consciência do fato é saber
que, com a conduta, vai produzir o resultado.

Se o sujeito não tem consciência de que, com sua conduta, vai matar alguém,
porque desconhece que na linha do tiro que vai disparar encontrava-se uma pessoa,
não tem, ao agir, nenhuma consciência do resultado que vai causar.

Não sabendo que, com o tiro que vai disparar, irá matar uma pessoa, é óbvio
que também não tem vontade de matá-la. Logo, não está agindo com dolo, pois que
dolo é, sempre, consciência e vontade. Previsão do resultado e vontade de produzi-lo,
ou, pelo menos, aceitá-lo, se ele eventualmente ocorrer.

Por isso, quem age errando sobre o elemento alguém, do tipo de homicídio, age
sem dolo.

Se age sem dolo, deve-se entender, de conseguinte, que age culposamente, isto
é, por negligência, imprudência ou imperícia, causa um resultado lesivo não desejado,
mas que, sendo previsível, podia, nas circunstâncias, ter sido evitado se o sujeito
atuasse com o dever de cuidado objetivo.

É verdade que, na maioria das vezes em que o sujeito erra sobre ser alguém o
objeto ou coisa que atinge, poderia ele, com as cautelas devidas, evitar a morte
indesejada, todavia, sendo negligente, acaba por causá-la. Quando o erro poderia ter
sido evitado, isto é, quando o sujeito nele incorre por negligência, diz-se que agiu por
erro de tipo evitável.

O erro de tipo também pode ser inevitável, quando o resultado for imprevisível.
Erro de tipo inevitável é aquele no qual, nas circunstâncias em que o sujeito se
encontrava, qualquer pessoa normal também incorreria, mesmo utilizando todos os
procedimentos recomendados pela cautela e pelo bom-senso. Mesmo com toda atenção
exigível ao comum dos homens, qualquer um nele incorreria. Se isso acontecer, dir-se-á
que o sujeito age por erro de tipo inevitável.

Ora, viu-se que, agindo por erro sobre o elemento alguém, o sujeito age sem dolo,
mas remanesce a atuação culposa, negligente. Se, porém, o agente adotou todas as
72 – Direito Penal II – Ney Moura Teles

cautelas, observou o dever de cuidado objetivo, não foi negligente, nem imprudente, nem
imperito, e mesmo assim acabou causando a morte de alguém, só se pode concluir que,
naquelas circunstâncias, em que qualquer um também teria errado, não lhe era possível
alcançar a consciência do fato, isto é, de conduta e resultado. Não era possível antever o
resultado morte, por sua absoluta imprevisibilidade.

Sendo o resultado morte imprevisível, não era possível evitá-lo. Assim, sendo
inevitável o erro, também não haverá culpa, stricto sensu. Nesse caso, não há crime
algum, porque não tendo havido dolo, nem negligência, não há tipicidade.

Há, portanto, duas espécies de erro de tipo. O erro de tipo evitável – aquele em
que o agente erra sobre o elemento alguém, quando podia, com a devida cautela, com a
prudência exigida ao homem médio, tê-lo evitado – exclui o dolo. E o erro de tipo
inevitável – em que qualquer pessoa, mesmo adotando todas as cautelas, ainda assim
nele teria incorrido, por ter sido impossível, naquelas condições, antever o resultado
lesivo indesejado –, que exclui o dolo e a culpa, stricto sensu.

O erro de tipo está no art. 20 do Código Penal: “O erro sobre elemento constitutivo
do tipo legal de crime exclui o dolo, mas permite a punição por crime culposo, se
previsto em lei.”

Exemplo. O caçador que, em área razoavelmente povoada, onde, pois, era


previsível a presença de pessoas, deveria, ao avistar o vulto contra o qual atirou
imaginando ser uma caça, ser mais cauteloso a fim de certificar-se de que a sua frente
não estava um ser humano. Ao matá-lo, age por erro de tipo evitável. Responderá por
homicídio culposo.

Outro exemplo. Está um homem praticando tiro ao alvo num clube, no qual todos
os cuidados são exigidos, com controle de entrada e saída de pessoas, fiscalização
rígida, enfim, num local onde os disparos de arma de fogo são efetuados dentro da mais
absoluta segurança. Um esporte legalizado, autorizado e fiscalizado rigorosamente pelo
poder público. No momento em que vai efetuar um disparo, contra o alvo de madeira a
sua frente, no stand próprio, uma pessoa surge, inesperadamente, na linha de tiro e
recebe o projétil, vindo a morrer. Não houve dolo, nem culpa, por ser imprevisível e
inevitável a presença daquele estranho, que burlara toda a segurança, e o resultado
morte. Houve erro de tipo inevitável, que, excluindo o dolo e a culpa, stricto sensu,
exclui a própria tipicidade. Não há crime.

1.2.13 Ilicitude
Homicídio - 73

A existência do homicídio não se reduz à verificação da tipicidade do fato. O fato


deve ser também ilícito, isto é contrapor-se à totalidade do ordenamento jurídico,
lesionando o bem jurídico. Deve o fato estar integrado numa plena e total relação de
antagonismo com a ordem jurídica em sua totalidade.

É que, nalgumas situações, especialíssimas, o mesmo Direito que protege os bens


jurídicos permite o ataque à vida humana, de modo que até mesmo é possível a prática
do homicídio com a permissão da ordem jurídica. Isso acontece porque em
determinadas circunstâncias, não há outro meio de proteger um bem jurídico, senão
com a realização de uma ação típica de homicídio.

Homicídios cometidos nessas hipóteses são homicídios lícitos, justificados. Apesar


de serem, a princípio, fatos proibidos pela norma penal incriminadora, podem,
entretanto, ser considerados justos, desde que constituam ações protetoras de bens
jurídicos também importantes.

São só duas as causas de justificação do homicídio, o estado de necessidade e a


legítima defesa.

1.2.13.1 Estado de necessidade

O estado de necessidade é uma situação de perigo para um bem jurídico, em


que uma pessoa, para salvá-lo do perigo, não tem outro meio senão causar a lesão a
outro bem jurídico18.

Quando o Direito não puder proteger um bem jurídico que esteja prestes a
sofrer uma lesão, pela presença atual de um perigo de lesão, deve permitir que seja
sacrificado outro bem, de valor menor ou relativamente igual, ainda que de um
inocente, desde que não haja outra saída. Há, portanto, dois bens como se, em rota de
colisão. Os dois em perigo de lesão. Um deles poderá ser sacrificado, se não for possível
ao Direito salvar os dois.

Até mesmo uma vida humana pode ser sacrificada, para salvar outro bem
jurídico? É possível matar alguém em estado de necessidade? Mesmo um inocente?

Para se encontrar a resposta, é preciso conhecer quais os pressupostos exigidos


para a caracterização do estado de necessidade. Sua definição está no art. 24 do Código
Penal:

18 cf. DAMÁSIO DE JESUS. Direito penal. Op. cit. v. 1, p. 322.


74 – Direito Penal II – Ney Moura Teles

“Considera-se em estado de necessidade quem pratica o fato para salvar de


perigo atual, que não provocou por sua vontade, nem podia de outro modo
evitar, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era
razoável exigir-se. § 1º Não pode alegar estado de necessidade quem tinha o
dever legal de enfrentar o perigo. § 2º Embora seja razoável exigir-se o
sacrifício do direito ameaçado, a pena poderá ser reduzida de um a dois terços.”

Deve o intérprete extrair da norma os requisitos, objetivos e subjetivo, para a


verificação do estado de necessidade e de sua aplicabilidade ao homicídio.

Cuidando-se de homicídio, dentre os pressupostos contidos na norma, o


primeiro a ser examinado é o da inexigibilidade do sacrifício do bem em perigo, contido
na locução “cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir-se”. Em outras
palavras, só há estado de necessidade se os bens em rota de colisão guardarem, entre si,
uma relação de proporcionalidade valorativa que os situe num mesmo patamar. Assim,
só é possível reconhecer o estado de necessidade na conduta de alguém que mata outra
pessoa, quando o fizer para salvar outro bem jurídico de valor proporcionalmente
equivalente à vida que destruiu. Só haverá homicídio lícito por estado de necessidade,
se tiver sido praticado para salvar outra vida humana da destruição ou, no mínimo, de
uma lesão muito grave, daquelas bem próximas da própria morte. Não se pode
imaginar a justificação de um homicídio para salvar um bem material, ainda que de
valor muito grande. Nem a de vários e muito valiosos bens materiais, pois que, a vida
humana – o bem mais importante de todos – só pode ser comparada com outra vida,
ou com a integridade desta, não com qualquer outro bem.

Nem quando esse bem seja propriedade de uma pessoa muito importante, que a
ele dedique uma consideração maior que a dedicada a uma pessoa humilde. Não é justo
matar um simples gari, para salvar a vida do animal de estimação da primeira-dama do
país. Porque vida humana é sempre, para o Direito, o mais importante de todos os
bens.

Evidentemente, que na situação concreta, devem concorrer os demais requisitos


dessa excludente de ilicitude.

Deve haver uma situação de perigo atual, não causado dolosamente pelo agente
que não tinha o dever legal de enfrentá-lo e que, nas circunstâncias em que agiu, não
podia ter evitado a prática do homicídio.

Perigo é um trecho da realidade. É a situação concreta que antecede a lesão, a


qual reúne as condições indispensáveis à produção de um resultado lesivo, perceptível
pelo sujeito. O perigo deve ser concreto, real, e não apenas uma representação psíquica.
Homicídio - 75

Há de ser uma probabilidade concreta.

E o perigo deve ser atual. Deve estar acontecendo. Não pode ser um perigo já
passado, nem um perigo ainda futuro, nem tampouco iminente, mas necessariamente
atual. Se for passado, já não é perigo. Foi perigo. Já passou. O bem jurídico já terá sido
lesionado – e não há mais o que salvar –, ou não o foi por alguma razão, e já não corre
qualquer risco de o ser. Superado o perigo, não há autorização legal para a ação típica.

Se o perigo for apenas iminente, se está ainda prestes a instalar-se, equivale a


um perigo futuro, que pode inclusive não se atualizar, isto é, não se concretizar. É
preciso que se aguarde sua atualização, para então agir. Somente quando a lesão
tornar-se provável, convivendo com a situação de perigo, é que o sujeito pode atuar,
salvando o bem e sacrificando o outro.

O exemplo clássico de homicídio em estado de necessidade é o que acontece


com os perdidos na selva, nas cavernas, nos Andes, enfim, seres humanos isolados do
mundo, sem alimento, sem possibilidade de serem socorridos, instalando-se uma
situação de perigo para a vida de todos, que podem morrer de fome. Enquanto a fome
não atinge o limite máximo, em que começam a faltar as energias mínimas para a
sobrevivência, nenhum deles pode praticar homicídio para alimentar-se do corpo do
morto.

Ademais, a situação de perigo não pode ter sido provocada dolosamente pelo
agente. Se este tiver criado, intencionalmente, o perigo, não pode invocar a causa de
justificação. É justo. Se o sujeito criou, com consciência e vontade, a situação de perigo
para o bem jurídico, não pode, ao depois, para salvá-lo do perigo que provocou,
lesionar outro bem e, ainda, ter justificada sua conduta.

Se criou, culposamente, a situação de perigo, poderá ser amparado por essa


excludente. Tendo contribuído por negligência, poderá ter seu gesto justificado.

Outro requisito indispensável. O agente não pode ter o dever legal de arrostar
o perigo. Algumas pessoas, por força de lei, exercem atividades que são perigosas por
sua própria natureza. Policiais e soldados do corpo de bombeiros, enfermeiros,
médicos, em seu dia-a-dia profissional, estão sujeitos a se defrontarem com situações
de perigo para bens jurídicos, próprios ou de terceiros, e por isso não podem, em
momentos desses, lesionar outro bem jurídico, pois seu dever exatamente é o de
enfrentar situações perigosas.

A lesão do bem jurídico deve ser inevitável. Havendo uma possibilidade,


qualquer que seja, inclusive a fuga, de salvar o bem em perigo sem causar a lesão no
outro bem, esta deve ser evitada. Não será apenas porque há o perigo atual que o
76 – Direito Penal II – Ney Moura Teles

sujeito poderá matar alguém para salvar um bem valioso, ainda que outra vida humana,
quando lhe for possível, por outra maneira, salvar o bem ameaçado de lesão. Só quando
for inevitável, poderá ser praticado o homicídio.

O sujeito deve estar consciente da situação de perigo concreto e deve atuar


com a vontade de proteger o bem jurídico. Deve estar atuando conforme o Direito, daí
que não bastam os requisitos objetivos.

Se, porém, o agente, diante da situação de perigo para determinado bem


jurídico, ultrapassa os limites da excludente, matando uma pessoa para salvar um bem
de menor valor, sua conduta não será considerada lícita, porque não restou satisfeito o
requisito da “inexigibilidade do sacrifício do bem em perigo”. Nessas circunstâncias,
era exigível que ele deixasse perecer o bem e não se voltar contra uma pessoa,
matando-a. Não há estado de necessidade. Conquanto haja, nessas circunstâncias, a
presença de outros dos requisitos, manda a lei que a pena seja reduzida, de um a dois
terços, reconhecendo, assim, uma diminuição da culpabilidade do sujeito.

Na vida real, não é fácil a ocorrência de homicídio doloso em estado de


necessidade. As hipóteses clássicas, do náufrago na tábua de salvação, dos exploradores
de caverna, dos sobreviventes do acidente aéreo nos Andes, não acontecem
costumeiramente. Mormente hoje, num mundo globalizado, tais situações dificilmente
ocorrem.

Imagine-se uma situação de alvoroço num teatro, cinema ou estádio de futebol,


causada por um incêndio ou desmoronamento. Dezenas ou centenas de pessoas
procurando fugir do perigo, empurrando-se, uns querendo ultrapassar os outros no
rumo da única saída. As chamas, o calor, os escombros em movimento, os
desmoronamentos, tudo isso permite a instalação de uma situação perigosa. Uma
situação induvidosa de perigo atual. Penso que se alguém, nessas condições, matar
outra pessoa para salvar-se de uma lesão grave, ou da própria morte, impedindo, por
exemplo, que ela chegue, a sua frente, até a única porta de saída, que está prestes a ser
obstruída pelo fogo, com certeza estará agindo em estado de necessidade, desde que se
comprove a inevitabilidade da morte do outro.

O estado de necessidade, assim como qualquer excludente de ilicitude, só


ocorrerá quando estiverem satisfeitos todos os seus pressupostos, os quais devem ser
rigorosamente verificados. Havendo excesso, como adiante se verá, descaracterizada
estará a causa de justificação.

1.2.13.2 Legítima defesa


Homicídio - 77

A legítima defesa é a outra causa de justificação possível em casos de homicídio,


mais ocorrente na vida real.

É a repulsa a uma agressão injusta realizada contra um bem jurídico, com a


utilização moderada dos meios necessários. Diante de uma agressão atual ou iminente,
qualquer pessoa poderá atuar no sentido de proteger o bem jurídico e chegar até
mesmo a realizar um homicídio.

Sua presença só é verificável quando o fato realizar todos os pressupostos legais


insertos no art. 25 do Código Penal:

“Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios


necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de
outrem.”

É um direito do sujeito porque, ao agir em legítima defesa, está realizando a


vontade do Direito, que é proteger o bem jurídico agredido. Ao mesmo tempo, deve ser
justificado um homicídio nessa situação porque, se o Estado não está presente para
impedir a agressão ao bem jurídico, pode o indivíduo – o cidadão que, em sociedade,
criou o Estado para protegê-lo, e que falhou – retomar o poder-dever estatal e defender
o bem agredido.

Seria um Direito falido, ou não seria Direito, aquele que não facultasse ao ser
humano defender a vida ou a de seu semelhante, numa situação em que nenhuma outra
força é presente e capaz de defendê-la.

Toda causa de justificação exige a realização de determinados pressupostos. Aqui


não é diferente. Na norma do art. 25 do Código Penal, o julgador os encontra e deve
examinar, diante de um caso concreto de homicídio, se incidem sobre a totalidade do
fato. Se estiverem presentes, será um homicídio lícito. Não haverá crime.

Agressão injusta, atual ou iminente, a direito, próprio ou de outrem: eis o


primeiro requisito, que, apenas para a melhor compreensão do leitor, deve ser
decomposto.

Para existir legítima defesa um direito deve ser objeto de uma agressão.
Qualquer direito, qualquer bem jurídico. Vida, integridade corporal, saúde,
propriedade, liberdade, honra, são todos bens jurídicos. De quem quer que seja. Do que
vai repelir a agressão, ou de outra pessoa.

O que se deve entender por agressão? NELSON HUNGRIA responde que é


“toda atividade tendente a uma ofensa, seja ou não violenta”19. Outro grande mestre,

19 Comentários....., Op. cit. v. 1, p. 286.


78 – Direito Penal II – Ney Moura Teles

DAMÁSIO, ensina que é “a conduta humana que ataca ou coloca em perigo um bem
jurídico”20. É, pois, um ataque ao bem jurídico, é o comportamento humano dirigido à
lesão de um bem jurídico. Só pode ser compreendida, portanto, levando-se em conta o
bem jurídico agredido.

Partindo da consideração sobre a natureza e as características de determinado


bem jurídico é que se pode verificar se ele foi atacado, ofendido, ou exposto a perigo.
Não se agride a liberdade individual ou a integridade corporal com ofensas verbais.
Contudo, a honra e a dignidade pessoal podem ser agredidas não apenas com palavras,
gestos, imagens ou representações teatrais, mas também por disparos de arma de fogo
ou queima de fogos de artifício, em frente à casa de alguém que atravessa um profundo
estado de tristeza e depressão, em razão de uma decepção amorosa.

A agressão que pode justificar a repulsa por meio de um homicídio deve ser um
ataque real e concreto a um bem jurídico. Uma ação ou omissão de uma pessoa, ainda
que utilizando um animal bravio, adestrado ou não, ou manipulando uma força natural,
que signifique a colocação do bem jurídico numa situação concreta de perigo de lesão.
Não é indispensável que a agressão seja uma ação ou omissão violenta, embora, na
prática, ela quase sempre seja. A omissão daquele que tinha o dever de impedir o
resultado, permitindo, pois, a ocorrência do perigo de lesão é, geralmente, um
comportamento não violento. DAMÁSIO dá como exemplo de agressão omissiva não
violenta à liberdade individual a recusa do carcereiro de libertar o preso beneficiado
com alvará de soltura.

Só há legítima defesa de agressão injusta. Injusta no sentido de ser contrária ao


Direito, ilícita, não necessariamente do ponto de vista penal. Não precisa ser um fato
típico e ilícito, o injusto penal. Pode ser tão-somente ilícito, desautorizado pelo
ordenamento jurídico. Um comportamento desconforme com a ordem jurídica estatal.

É que existem agressões lícitas, aceitas e adequadas socialmente, as quais, por


isso, não podem ser objeto de repulsa justificada. Agressão à liberdade imposta pelos
pais aos filhos menores, como castigos por transgressões a ordens razoavelmente
estabelecidas na convivência familiar, como, por exemplo, proibir a ida a determinados
lugares ou em determinadas ocasiões, não pode ser repelida sob o manto da legítima
defesa. Os chamados corretivos constituem fatos atípicos, por isso não proibidos,
porquanto aceitos e adequados socialmente.

Palmadas, leves agressões físicas a infantes, com exclusiva finalidade corretiva,

20 Direito penal, v. 1, p. 386.


Homicídio - 79

são ofensas absolutamente atípicas e, portanto, também lícitas, que não podem
autorizar a repulsa legítima.

A prisão em flagrante ou mediante mandado judicial expedido,


fundamentadamente, pela autoridade judiciária competente constitui agressão à
liberdade de ir e vir, porém justa. De conseqüência, não agirá sob o pálio da causa de
justificação aquele que, na iminência de ser preso, numa dessas situações, reage e mata
o executor da prisão.

Munido do respectivo mandado de demolição, o oficial de justiça pode, dentro dos


limites estabelecidos na ordem judicial, destruir a cerca, o muro, a edificação, não
constituindo seu comportamento uma agressão injusta ao patrimônio. É agressão, não há
dúvidas, mas é justa. Não é, portanto, autorizadora da reação lícita.

Além de injusta, a agressão deve ser atual ou iminente. Atual é a agressão


presente, que está acontecendo. Que já se iniciou e que, por isso, já constitui um ataque
ao bem jurídico, que já está sendo lesionado. Por isso pode ser repelida a fim de que
cessem seus efeitos, suas conseqüências.

Iminente é a agressão que está prestes a acontecer, que vai, imediatamente, em


instantes, tornar-se atual, presente. Não está lesionando o bem jurídico, mas já é a
ameaça concreta de lesão, o perigo de lesão, que pode ser evitado. A repulsa visa
impedir que ela se atualize. Não se poderia exigir da pessoa que esperasse a agressão
tornar-se atual, porque se assim fosse o perigo de lesão se tornaria ainda mais concreto.
Por isso, desde que a agressão já seja iminente, o Direito autoriza já a repulsa
conferindo, assim, maior proteção ao bem jurídico.

Se a agressão é já passada, não pode ser repelida, porque não mais existe. O bem
jurídico já foi lesionado e nada mais resta a fazer, senão procurar, quando possível,
evitar-lhe ou minorar-lhe as conseqüências. Não pode ser repelida a agressão que já
aconteceu, que se encontra apenas na memória. Não é mais um ente concreto. Foi. E o
Direito não poderia justificar um ataque a algo inerte, morto, incapaz de causar qualquer
lesão, até porque já a causou. Não mais causará. Seria a homenagem à vingança, que não
pode ser consagrada por um Direito moderno e humanitário.

Também não pode ser uma agressão futura. Aquela que só existe na mente das
pessoas, que não está acontecendo, nem prestes a ocorrer, mas constitui mera
expectativa, uma representação mental. Não pode alguém se antecipar, como se fosse
possível prever o futuro e matar aquele que, possivelmente, poderia agredir um bem
jurídico.

Diante, pois, de uma agressão dessas – injusta, atual ou iminente, a um direito,


80 – Direito Penal II – Ney Moura Teles

próprio ou de outrem – o ser humano pode agir com vistas em sua repulsa. É a reação.

Esta, todavia, está, também sujeita à observância de determinadas limitações.

A repulsa deve ser executada com os meios necessários, utilizados


moderadamente. A defesa é, sempre, também um ato de força, normalmente violento e
também agressivo, por isso que o Direito impõe limites visando à busca, tão-somente,
da realização do que é justo, mas de uma justiça sobretudo humana e respeitável, que
se contenha dentro dos limites da pura necessidade de proteção do bem jurídico, nada
além disso.

Os meios de que trata essa norma permissiva não se referem exclusivamente aos
instrumentos empregados na defesa, mas devem ser entendidos, num primeiro
momento, em seu sentido mais amplo, incluindo, antes, o modo ou a maneira e a
forma como a reação é exercida, e depois, também, é claro, as armas ou mecanismos
utilizados para executar a repulsa. Querem dizer, portanto, como a defesa é realizada e
com que é executada. Dizem, pois, respeito à qualidade da defesa, em seu sentido lato,
e em seu sentido estrito.

Para considerar a necessidade, no sentido amplo, dos meios empregados pelo


defendente, deverá o julgador examinar a natureza do bem jurídico que é objeto da
agressão.

Conquanto possa ser exercida defesa legítima de qualquer direito, de qualquer


bem jurídico, o ataque repulsivo deverá ser avaliado também em sua qualidade, o qual
não se pode dirigir contra qualquer direito ou bem do agressor.

Deve a repulsa voltar-se para a ação agressiva, visando obstá-la. O fim da


defesa deve ser a reação ao ataque, não à pessoa que ataca. Legítima defesa não é
“licença para matar”, mas ordem para defender, autorização para repelir uma ação
agressiva e, apenas se necessário, matar. Somente quando necessário, quando não
houver outra saída, outro meio qualitativamente considerado, pode a reação do
defendente recair sobre a vida do agressor.

Se este utiliza um cão bravio adestrado para agredir a integridade corporal de


alguém, deve o defendente repelir a agressão matando o animal, e não matando o
homem que o açulou. Até porque o animal poderá continuar o ataque. A não ser
quando for impossível direcionar a reação exclusivamente contra o ataque, poderá ela
mirar a pessoa que domina a ação agressiva do animal, fulminando-a por via indireta.

Ao que agride a honra, com gritos e gestos ofensivos, não se repelirá com o tiro na boca,
matando-o para calá-lo. Mas será lícito esbofeteá-lo. E se ele continuar ofendendo, pode-
se continuar a repulsa. E se o ofensor reagir agredindo a integridade corporal? Aí a
Homicídio - 81

natureza da agressão já será outra, e o meio necessário, igualmente, deverá ser


diferente.

A necessidade dos meios, portanto, deve ser avaliada, no primeiro momento, no


sentido amplo, tendo em vista a natureza da agressão, do bem jurídico atacado e do
bem jurídico que vai ser atingido com a repulsa.

NELSON HUNGRIA aponta o caminho para, no segundo momento, o intérprete


verificar a necessidade dos meios defensivos, em seu sentido estrito. Isto é, para saber
se os instrumentos ou mecanismos utilizados foram, efetivamente, os necessários para
a repulsa: “A atualidade ou iminência da agressão é que serve de medida única à
necessidade da defesa.”21 A repulsa deve ser feita com o uso do meio necessário para
fazer cessar a agressão atual, ou para impedir que uma agressão iminente se torne
atual.

Fazer cessar a agressão atual ou impedir que a agressão iminente se torne


atual: essa a tarefa do defendente. O meio a ser usado deve ser o necessário para o
alcance de um desses fins.

Não será um meio aquém dessa necessidade, porque se o defendente utilizá-lo


realizará uma defesa ineficaz e o bem jurídico será, inevitavelmente, atacado. Não terá
havido defesa. O Direito será derrotado, com a vitória da agressão.

Não pode ser um meio além do necessário, porque aí haverá uma exacerbação
da violência, abrindo caminho para a execução de atos dominados por sentimentos
como o do ódio ou da vingança. O defendente não julga nem pune o agressor, mas
apenas deve proteger o bem agredido, por isso que não pode ir além da necessidade
tutelar. Quando o que repele a injusta agressão usa meio além do necessário, torna-se,
igualmente, um agressor injusto, porque impõe uma força repulsiva excessiva, a qual,
por sua qualidade ou quantidade, constitui outra agressão tão ilícita quanto a que
buscou repelir.

Quando, no caso concreto, o julgador defrontar-se com o exame do meio


empregado pelo que invoca a legítima defesa, deve, antes de exarar o seu
entendimento, perguntar: quais meios estavam à disposição do defendente?

Para responder à indagação sobre se o agente usou dos meios necessários, é


preciso antes indagar sobre quais deles estavam a seu dispor. Eram vários e ele
escolheu exatamente um dos que, por sua natureza, era além do necessário? Ou, apesar

21 Comentários... Op. cit. v. 1, p. 288.


82 – Direito Penal II – Ney Moura Teles

de ser o meio além do necessário, era o único do qual podia dispor?

A necessidade dos meios está necessariamente vinculada à disponibilidade dos


meios. Por exemplo: Eduardo está na iminência de desferir um golpe de mão, no rosto
de Gustavo, de compleição física mais frágil que o agressor. Gustavo vê, a seu lado,
sobre a mesa, um revólver. Nada mais. Nem um pedaço de pau. Nem uma barra de
ferro. Nem uma faca. Nada, absolutamente nada. Está só e a seu dispor apenas o
revólver.

A princípio, é de se imaginar que usar uma arma de fogo para repelir uma
agressão manual seja um meio defensivo além do necessário. Tal raciocínio não é,
mesmo, desarrazoado, todavia, é de se analisar o conjunto do fato, com todas as suas
circunstâncias. O agressor é mais forte que o defendente. Este não tem, a sua
disposição, nenhum outro instrumento que não a arma de fogo. Noutras circunstâncias,
seria um meio além do necessário, todavia, não havendo outro menos gravoso, é o
necessário, porque aí o que importa é a necessidade da defesa, é a proteção do bem
jurídico injustamente agredido.

A norma que autoriza a defesa legítima não exige que entre agressão e repulsa
haja exata proporcionalidade. Fala apenas em necessidade e moderação.

Em seu Trattato di diritto penale italiano, MANZINI ensina que

“para medir a adequação ou demasia da defesa, não se deve fazer o confronto


entre o mal sofrido e o mal causado pela reação, que pode ser sensivelmente
superior ao primeiro, sem que por isso fique excluída a justificativa. O confronto
deve ser feito entre os meios defensivos que o agredido tinha à sua disposição e
os meios empregados. Se estes eram os únicos que in concreto tornavam possível
a repulsa da violência de outrem, não haverá excesso, por maior que seja o mal
sofrido pelo agressor.”22

Também não recomenda a norma que o agredido procure evitar, fugindo ou se


escondendo, porque, como está na lição magistral de NELSON HUNGRIA:

“A lei não pode exigir que se leia pela cartilha dos covardes e pusilânimes. (...)
Embora não seja um dever jurídico, a legítima defesa é um dever moral e
político que, a nenhum pretexto, deve deixar de ser estimulado pelo direito
positivo.”23

22 Apud HUNGRIA, Nelson. Comentários... Op. cit. p. 297.


Homicídio - 83

Os meios necessários devem, ademais, ser utilizados com moderação.

Além de limitar a defesa impondo a escolha, pelo defendente, dentre os meios


disponíveis, daquele necessário para fazer cessar a agressão atual ou para impedir a
atualização da agressão iminente, exige a norma que ele o utilize com moderação.

Moderação não é sinônimo de generosidade, mas de comedimento. Moderação


não é gentileza ou educação. Quer dizer suficiência. Diz respeito à quantidade da
defesa, e também deve ser interpretada em comparação com a quantidade da agressão.
Esta pode ser medida em sua intensidade e também em seu tempo de duração. Pode ser
mais ou menos intensa, e pode ser rápida ou duradoura.

A repulsa, portanto, para ser eficaz, deve corresponder à agressão em


intensidade e em duração, superando-a. Enquanto não cessa a agressão, a reação deve
continuar. Obstada a agressão, deve o defendente encerrar sua conduta reativa. A
moderação está relacionada aos conceitos de intensidade e extensão. Haverá
moderação no uso dos meios necessários quando a repulsa for de intensidade e
extensão suficientes para fazer cessar a agressão atual, ou aptas a impedir a atualização
da agressão iminente.

Claro que a defesa deverá ser um pouco mais intensa que a agressão e deve
durar até que a agressão termine. Não fosse assim, não seria eficaz. Todavia, se o agente
utiliza o meio necessário com intensidade excessiva ou se, mesmo depois de finda a
agressão, continua agindo, aí não haverá moderação. Aí surgirá o excesso no uso dos
meios necessários – adiante comentado –, que será intensivo ou extensivo,
descaracterizando a causa de justificação.

Evidente que aquele que se encontra na situação de defender um bem jurídico


injustamente agredido não está, por força das próprias circunstâncias, em plenas
condições de apreciar e discernir, com frieza e precisão absolutas, sobre a necessidade
do meio utilizado, nem tampouco de avaliar e controlar a intensidade e a extensão da
reação que vai imprimir. Por isso, ao julgador caberá uma avaliação objetiva e
ponderada de todas as circunstâncias do fato, para encontrar uma equação entre a
agressão e a repulsa dentro de parâmetros de razoabilidade, não de frieza matemática.

O último pressuposto da legítima defesa é o elemento subjetivo: o agente deve


ter consciência e vontade de agir conforme o Direito, protegendo o bem jurídico
agredido. Só é justa a destruição de uma vida humana quando seu destruidor tiver
atuado com consciência de que realiza o fim da norma jurídica e com a vontade de

23 Comentários... Op. cit. v. 1, p. 288.


84 – Direito Penal II – Ney Moura Teles

proteger, repelindo a agressão a outro bem jurídico.

1.2.13.3 Legítima defesa da honra

Ainda se invoca, aqui e ali, a legítima defesa para justificar a prática de


homicídio contra a mulher que traiu o marido.

A legítima defesa busca a proteção do bem jurídico contra uma agressão injusta.
A traição e o adultério, com certeza, constituem comportamentos ilícitos do cônjuge. O
adultério é crime tipificado no Código Penal. São transgressões ao dever mútuo de
fidelidade (Código Civil, art. 1566, I).

Se se entender a infidelidade como agressão, só se poderá considerá-la como


voltada, exclusivamente, contra o direito à fidelidade. Não à honra. Esta pode, quando
muito, ser apenas afetada indiretamente pela conduta do infiel. Não sofre ataque
direto, como na ofensa verbal ou escrita, diretamente a seu titular ou por divulgação a
terceiros.

Assim, a primeira observação é a de que aquela ação do cônjuge é um ataque ao


direito à fidelidade, não à honra.

É induvidosamente uma agressão injusta, ilícita, porque a lei civil impõe, aos
cônjuges, o dever de fidelidade recíproca.

Sendo atual ou iminente, pode ser repelida, também não há dúvidas. Há os que
sustentam, nos casos de adultério ou de infidelidade continuada, a permanência da
agressão e, portanto, sua atualidade, pois o que se perpetua é, necessariamente, atual –
raciocínio não desarrazoado.

Até aqui, portanto, a legítima defesa parece apresentar-se. Todavia, legítima


defesa é, como já se disse, mais do que isso.

Qual o meio necessário para fazer cessar a agressão ao direito à fidelidade?


Matar o cônjuge infiel?

O direito à fidelidade deve ser compreendido em sua exata dimensão e também


em comparação com todos os bens e interesses tutelados pelo ordenamento jurídico.
Sua importância é menor, comparada com outros tantos bens, como a vida, a liberdade,
a integridade corporal, a dignidade e a liberdade sexuais.

Até mesmo a honra tem mais valor que o direito à fidelidade. O crime de
adultério é punido com detenção de 15 dias a seis meses. A injúria, o menos grave dos
delitos contra a honra, é punido com detenção de três meses a um ano, e multa.
Homicídio - 85

Ora, repelir uma agressão ao direito à fidelidade voltando-se o defendente


contra a vida do agressor, o bem jurídico mais importante de todos, é,
inequivocamente, usar um meio muito além, excessivamente além, do necessário. A
qualidade da agressão e a do bem jurídico atacado são, sem sombra de dúvidas,
inúmeras vezes inferiores à qualidade de uma repulsa dirigida contra a vida humana.

Dispõe o art. 1.571, III, do Código Civil, que a sociedade conjugal termina com a
separação judicial que poderá ser proposta, por qualquer dos cônjuges, imputando ao
outro “qualquer ato que importe grave violação dos deveres do casamento e torne
insuportável a vida em comum”. O dever de fidelidade está contido no art. 1.566, I, do
estatuto civil. Logo, verificada a infidelidade, tem o outro cônjuge o direito à separação
judicial.

Ademais, o direito à fidelidade nasce do casamento. Não é um direito inerente à


pessoa, mas derivado de um contrato entre duas pessoas. É um direito, assim dizer,
menor. Situá-lo no mesmo patamar do direito à vida é, induvidosamente, um equívoco
magistral.

Não pode ser reconhecida, portanto, num homicídio praticado para repelir uma
agressão a um direito dessa natureza, a indispensável presença do requisito da
necessidade do meio, em seu sentido amplo.

Falta, porém, ainda outro requisito: o elemento subjetivo. Quem mata nessas
situações não age com o fim de realizar o fim do Direito, o de proteger o bem jurídico
agredido, porque o Direito já sanciona tal situação com a autorização para a pretensão
da separação judicial.

Aquele que mata o cônjuge infiel age, na verdade, por puro egoísmo, movido
pelo sentimento de posse sobre pessoa, de dominação sobre o ser querido, por ciúmes,
não para proteger o bem próprio agredido.

Mata por vingança ou como castigo pela conduta alheia que não aceitou. Mata
para satisfazer um sentimento interno desprezível. Mata porque não pode conviver com
a realidade, nua e crua, da própria incapacidade de ser respeitado. Mata, na verdade,
para que os outros pensem que não é um derrotado. Mas é. E não será a morte de quem
quer que seja que o redimirá. Não tem, portanto, o cônjuge traído ou enciumado o
direito de matar. Não há, no Direito brasileiro, a chamada legítima defesa da honra.
Sua conduta típica é ilícita.

Poderá, nalgumas situações, o agente de um crime dessa natureza ser, todavia,


desculpado, se tiver agido por erro de proibição inevitável, adiante discutido, ou, então,
merecer reprovação menos severa, quando estiver sob o domínio de violenta emoção,
86 – Direito Penal II – Ney Moura Teles

logo após injusta provocação da vítima, tema já abordado, linhas atrás, neste manual.

Contudo, um homicídio desses jamais será justificado. Não pelo Direito


brasileiro.

1.2.13.4 Questões diversas sobre legítima defesa

A embriaguez do agressor deve ser analisada com cautela, pois a agressão que
justifica a repulsa há de ser idônea, e não uma simples provocação.

Também a embriaguez do defendente deve merecer reflexão, porquanto deve


atuar com consciência e vontade e, para tanto, não pode ele encontrar-se em tal estado
de ebriez que importe na ausência desse elemento subjetivo.

Entre legítima defesa e estado de necessidade, há algumas diferenças que aqui


devem ser ressaltadas.

Na legítima defesa, deve existir agressão, ataque ao bem jurídico, oriundo de


uma pessoa, ainda que por meio de um animal, e a repulsa deve voltar-se contra o
agressor, preservando o bem do agredido. No estado de necessidade, exige-se a
situação de perigo, que pode resultar de um comportamento humano, de um animal ou
de um fenômeno natural, e o sujeito pode voltar-se contra qualquer bem, de qualquer
pessoa, sacrificando-o em benefício do bem em perigo.

Na legítima defesa, a agressão deve ser, necessariamente, injusta, ao passo que


no estado de necessidade a situação de perigo não precisa resultar de um ato ilícito, de
modo que podem existir duas pessoas simultaneamente em estado de necessidade,
cada qual tendo o direito de atuar contra a outra, para se salvar. É a situação dos dois
náufragos na tábua de salvação. Qualquer deles, para se salvar, pode sacrificar a vida do
outro.

Não há legítima defesa contra legítima defesa. Quem reage a uma agressão
injusta realiza uma agressão justa. Logo, o agressor inicial não pode repelir o ataque
praticado pelo defendente. Se o fizer, terá cometido crime.

Aquele que, ao repelir a agressão, não atingir o agressor, mas, por erro na
execução, matar pessoa diversa, mesmo assim estará em legítima defesa, porque o erro
não altera seu comportamento, não elimina a agressão ou a necessidade dos meios
utilizados em sua repulsa, nem tampouco a moderação com que foram utilizados.

O erro acidental não retira a licitude da conduta, pois que realizada com a
consciência dos fatos e o fim de realizar a vontade do Direito.
Homicídio - 87

Obstáculos, armadilhas, cercas eletrificadas, lanças pontiagudas em cercas,


presença de cães de guarda, enfim, engenhos utilizados para a proteção da propriedade
imobiliária, constituem, dentro dos limites adequados, exercício regular de direito.
Quando tais mecanismos de defesa são ativados, causando a morte do invasor, pode
haver legítima defesa, chamada pré-ordenada, desde que todos os pressupostos
objetivos e subjetivo da excludente estejam presentes.

1.2.13.5 O excesso

Como foi dito anteriormente, para praticar um homicídio justificado, deve o


agente realizar todos os pressupostos, ou requisitos, da causa de justificação.

Pode, entretanto, ocorrer que ele, ao atuar para a proteção do bem jurídico,
ultrapasse os limites estabelecidos pela norma permissiva, não cumprindo, assim,
rigorosamente a permissão legal. Haverá excesso, que descaracteriza a excludente. O
fato é ilícito.

O excesso pode ocorrer tanto nos casos de estado de necessidade quanto nos de
legítima defesa.

1.2.13.5.1 No estado de necessidade

No estado de necessidade, um dos pressupostos é a inevitabilidade do sacrifício


do bem jurídico. Se o agente, diante da situação de perigo, puder evitar a prática do
homicídio ou se tiver alguma possibilidade de agir de outro modo, não terá sua conduta
justificada. Se com o modo de agir para salvar de perigo o bem ameaçado empregar um
meio desproporcionado ou excessivo, terá excedido os limites da causa de justificação.

Também haverá excesso quando, apesar da inevitabilidade da conduta, o agente


atuar com intensidade maior do que a necessária para salvar o bem da situação de perigo.
Bastando ferir quem a sua frente obstruía a saída do local onde se instalara um incêndio,
o agente mata-o, desnecessariamente.

Nessas situações, o sujeito encontrava-se, inicialmente, numa situação fática de


perigo, porém, ao atuar para salvar o bem exposto, acaba por ultrapassar os limites da
justificativa, os quais devem ser avaliados, sempre, dentro de critérios de razoabilidade.

Excedendo-se o agente, desobedecendo aos ditames da norma que permitia a prática do


fato típico, sua conduta não será justificada. Se, inicialmente, estava em estado de
necessidade e, por essa razão, sua conduta típica seria considerada lícita, não será,
entretanto, em razão do excesso cometido, merecedor da justificação que a norma
88 – Direito Penal II – Ney Moura Teles

pretendia lhe dar. O fato típico é ilícito.

Em qualquer caso, o excesso poderá ser doloso, culposo ou acidental, que serão,
adiante, comentados.

1.2.13.5.2 Na legítima defesa

O excesso na legítima defesa poderá ocorrer em razão da escolha, pelo agente,


dos meios empregados na defesa ou pelo uso imoderado dos meios necessários. Poderá
ser intensivo ou extensivo.

Quanto à escolha dos meios necessários, lato sensu ou stricto sensu, o excesso
será intensivo. Diante de uma agressão a determinado bem jurídico, o defendente
utiliza um meio de intensidade muito além do que seria necessário para obstá-la.

Por exemplo, quando repele uma agressão verbal a sua honra com um disparo
de arma de fogo contra o rosto do ofensor. À intensidade de uma agressão verbal à
honra respondeu com uma agressão violenta muito mais intensa e contra um bem
muito mais valioso. E o fez com um instrumento muito mais lesivo – a arma de fogo –
que o utilizado pelo agressor – a voz.

A intensidade da repulsa ultrapassou a necessidade, e a essa conclusão se chega


facilmente considerando-se a qualidade do bem jurídico atacado e a natureza da
agressão.

A repulsa deveria ter-se amoldado a essas duas categorias jurídicas, guardando,


com elas, um mínimo de proporcionalidade. Tanto o bem jurídico do agressor que será
atingindo com a repulsa, quanto a forma como esta se dará, deverão guardar, com o
bem agredido e a forma da agressão, uma relação de proporcionalidade razoável. Do
contrário, haverá excesso e, portanto, a repulsa não será legítima. Porque, repita-se, a
legítima defesa é puramente um instituto jurídico tutelar, protetor do bem jurídico, não
uma ordem legal para extravasar sentimentos internos, ainda que respeitáveis.

Há, no Direito pátrio, quanto aos meios escolhidos e à forma com que foram
utilizados, excessos intensivos de defesa, de duas naturezas.

Um, quando a repulsa se volta, desnecessariamente, contra um bem de valor


muito superior ao bem agredido. Matar, repelindo uma agressão verbal à honra. O
defendente poderia ter atacado outro bem, não a vida, destruindo-a.

O outro, quando a repulsa, embora voltada contra um bem do agressor que se


pode considerar o necessário para obstá-la, é realizada com instrumento de potencial
lesivo muito além do que era indispensável para obstar a agressão. Disparar um tiro de
Homicídio - 89

revólver contra um homem frágil que, simplesmente, empurrou o defendente, de


compleição física avantajada. Bastava um safanão, outro empurrão, mas ele escolheu
usar a arma de fogo. Como se viu, contra uma agressão corporal, a repulsa voltou-se
também contra o corpo do agressor, todavia, por meio do disparo da arma de fogo, é
excessiva, produzindo uma lesão muito mais grave do que o necessário para eliminar a
sofrida.

O excesso também poderá ocorrer em relação à utilização dos meios


necessários, adequadamente escolhidos. Selecionando o agente os meios necessários
para realizar a defesa, pode, entretanto, exceder-se, intensiva ou extensivamente, ao
executar o procedimento repulsivo. Aqui se cuida da quantidade da defesa, que pode
ser mais intensa ou mais extensa do que precisava ser.

Haverá excesso intensivo quanto à utilização do meio necessário, quando este é


usado de modo mais forte, mais grave, mais violento, mais eficaz do que o suficiente
para obstar a agressão.

Será extensivo o excesso quando a repulsa prolongar-se no tempo, depois de


cessada a agressão. No primeiro momento, o agente usa o meio necessário e consegue
obter o fim da agressão, mas, em vez de concluir a repulsa, nela continua, atuando contra
o bem daquele que já não mais agredia. Estende, portanto, no tempo, os atos
inicialmente defensivos.

É de todo óbvio que o defendente não está obrigado a formular um juízo


perfeito, exato, preciso, acerca da qualidade e da quantidade da defesa que deve
empregar para proteger o bem jurídico agredido. As circunstâncias em que vai atuar
afetam, necessariamente, sua capacidade de discernimento, por isso que ao julgador
não é dado realizar uma interpretação rigorosa quanto à necessidade dos meios e à
moderação em seu uso.

Havendo excesso, não há legítima defesa, porque seus pressupostos não estão,
integral e totalmente, ajustados ao fato. Haverá homicídio ilícito.

O excesso será doloso, culposo ou acidental.

1.2.13.5.3 Excesso doloso e excesso culposo

O excesso, no estado de necessidade e na legítima defesa, extensivo ou


intensivo, relativo à escolha dos meios, ou a seu uso, deve ser analisado
cuidadosamente pelo julgador, em toda a sua totalidade.
90 – Direito Penal II – Ney Moura Teles

Não basta apenas a análise de sua objetividade, que é fundamental, mas, no


moderno direito penal inaugurado pelo finalismo e pelo princípio da culpabilidade, o
intérprete deve perquirir também sobre o conteúdo da vontade do agente que,
inicialmente, encontrava-se numa situação concreta em que tinha todas as
possibilidades de agir conforme o Direito.

Por que, então, terá havido o excesso?

São três as possibilidades: dolo, culpa stricto sensu, ou mero acidente.

Há excesso doloso de legítima defesa, em relação à escolha dos meios ou a seu


uso, intensivo ou extensivo, quando o agente, consciente do fato – da agressão, de sua
natureza, qualidade e quantidade, bem como da repulsa que realiza, com os meios que
escolhe e na qualidade e quantidade que imprime, e também do resultado que poderá
causar e do nexo causal –, tem vontade de, ainda assim, buscar a realização da defesa,
na forma ou da maneira e com as características todas que concebeu e executou.

Excede porque, conscientemente, escolhe o meio inadequado, além do


necessário para vencer a agressão, dirigindo seu ataque ao bem mais valioso do
agressor. Excede porque utiliza um instrumento desproporcionalmente mais vantajoso
que o adequado para superar e eliminar a atitude agressiva colocada a sua frente, ciente
de sua lesividade superior. Também quando exagera, deliberadamente, na intensidade
da força imprimida com a utilização de um meio adequado. Este será um excesso
intensivo.

ALBERTO SILVA FRANCO, o grande mestre, ensina que

“é indispensável, portanto, em face do vigente texto legal, verificar antes de mais


nada se o excesso foi doloso, ou melhor, se o agente, valendo-se da situação
vantajosa de defesa em que se achava, excedeu-se conscientemente, isto é,
‘escolheu ex professo o meio desproporcionado (preferindo este a outro menos
prejudicial do que podia dispor) ou quis o plus da reação, agindo por ódio ou
vingança (e não mais defensionis causa)’ (Nélson Hungria, Comentários ao
Código Penal, vol. I, t. II/300, 3ª ed.,1955). Neste caso, a vontade do agente não
se acomoda mais ao dado de subjetividade próprio da justificativa, ou seja, ao
animus defendendi, consciência e vontade da descriminante legal”.24

Inicialmente, o agente encontrava-se amparado pela excludente da ilicitude,


mas, conscientemente e com vontade, não atua conforme os limites estabelecidos pela

24 Código Penal e sua interpretação jurisprudencial. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. v. 1, p. 370.
Homicídio - 91

norma permissiva. Usa deliberadamente um meio além do necessário ou o faz sem a


moderação exigida. Porque assim quer.

No excesso doloso, apesar de buscar, inicialmente, a proteção do bem jurídico, o


agente, no curso do processo executório da repulsa até então lícita, afasta-se, logo após,
do Direito, deixando de simplesmente repelir a agressão injusta para, tanto quanto o
agressor inicial, atacar de modo injusto o bem jurídico alheio. Por isso que nesse caso
sua conduta será ilícita, injustificada, injusta, proibida. Responderá por homicídio
doloso.

Nessa situação, a circunstância de ter o agente estado, inicialmente, numa situação


de legítima defesa, em face da agressão injusta da vítima, deverá ser considerada uma
atenuante da pena na forma do art. 65, III, c, parte final, do Código Penal.

O excesso extensivo também impede o reconhecimento da causa de exclusão da


ilicitude. Nele, o agente que inicialmente encontrava-se em legítima defesa consegue
repelir, eficazmente, a agressão injusta. No entanto, sem que exista qualquer outro ato
agressivo, prolonga a reação, continuando o ataque que fora, a princípio, defensivo. Ao
fazê-lo, não estará mais defendendo nenhum bem jurídico, porque a agressão já se
findara, exatamente por sua repulsa. A defesa lícita, é certo, deve durar mais do que a
agressão, mas só um pouco mais. Deve-se exaurir logo em seguida à cessação da
agressão.

Não é possível imaginar defesa contra nenhuma agressão. O agente agiu


licitamente, até fazer cessar a agressão. Em seguida, torna-se um agressor injusto,
possibilitando até mesmo outra reação contra seu comportamento que, sendo injusto,
porque não é mais repulsa de uma agressão, pode, igualmente, ser repelido
legitimamente. É o que a doutrina chama de legítima defesa sucessiva: a do agressor
inicial contra o defendente inicial, que por continuar seus atos, torna-se, pelo excesso
extensivo, um agressor injusto.

São duas fases distintas. A primeira vai da agressão praticada pela vítima, até a
sua conclusão, por força da repulsa do agente. Encerrada a agressão inicial, exauriu-se a
legítima defesa. Se o então defendente prosseguir com os atos originariamente
repulsivos, inaugurará uma segunda etapa. Esta é ilícita porque não é reação legítima.
É ação primeira, injusta. É fato novo.

Os atos praticados enquanto havia a agressão original serão todos justificados.


Um tiro, dois tiros, não importa quantos, desde que necessários e suficientes para
obstar a agressão inicial, estarão acobertados pelo manto da legítima defesa. Todavia,
uma vez a vítima caída, inerte, incapaz de qualquer gesto, não pode mais o que,
92 – Direito Penal II – Ney Moura Teles

inicialmente, protegia o bem jurídico, realizando o fim do Direito, realizar qualquer


outro ato agressivo. Se o fizer, estará inaugurando outro fato, porque o primeiro já fora
concluído. A ordem jurídica, o Direito, já cumprira sua missão. O bem jurídico fora,
pelas mãos do cidadão, realizado.

Daí para frente, se o agente resolver atacar o bem do agressor neutralizado, que
não mais representava qualquer perigo para qualquer interesse relevante, estará
cometendo um novo fato, que, ajustado a algum tipo, assim será considerado. Se matar,
será homicídio doloso.

Nessa situação, de excesso extensivo, nem se pode falar em reconhecer aquela


circunstância atenuante aplicável nos casos de excesso intensivo, porque a ação
executada não foi provocada por ato injusto da vítima caída, inerte.

Noutras situações, o excesso decorre tão-somente de imprudência, negligência


ou imperícia. É o excesso culposo.

É o excesso derivado da ausência da observância do dever de cuidado objetivo.


Nele, o agente não tem a intenção de ir além do necessário, nem de ultrapassar o
quantum defensivo que deve utilizar, mas, por não avaliar corretamente ou não
mensurar adequadamente sua maneira de reagir, acaba por lançar mão de um meio
desproporcional, dirigir seu ataque a um bem muito mais valioso do que o agredido, ou
utilizar o meio necessário de modo impróprio, imprimindo uma força mais intensa ou
extensa do que a indispensável para a supressão da agressão injusta.

Não há intenção de atuar em desconformidade com o Direito. Embora seja


previsível, o sujeito, no entanto, não realiza a previsão da totalidade do fato que está
praticando, com as conseqüências decorrentes de sua conduta, e por isso impulsiona
voluntariamente sua conduta com o fim, lícito, de proteger o bem jurídico,
ultrapassando, todavia, as determinações impostas pela norma permissiva. Sua reação
não será lícita, mas, como em todas condutas culposas, negligentes, merecerá
reprovação mais branda.

Responderá por homicídio culposo, quando seu excesso derivar de negligência,


imprudência ou imperícia.

Em conclusão: o excesso desnatura a excludente de ilicitude. Inicialmente


amparado por uma situação de fato que justificaria o estado de necessidade ou a
legítima defesa, o sujeito, no entanto, não realizando, integralmente, seus pressupostos,
por atuar além do permitido, não age conforme quer o Direito, por isso que sua conduta
é ilícita. O fato típico não é justificado. Ilícito continua sendo.

O excesso derivado de medo, surpresa ou perturbação psíquica, chamado


Homicídio - 93

excesso exculpante, é objeto de comentários que serão feitos no âmbito da


culpabilidade do sujeito, adiante.

1.2.13.5.4 Excesso acidental

O excesso, na legítima defesa como no estado de necessidade, pode não decorrer


de dolo, nem de culpa, stricto sensu, do sujeito ativo do homicídio, mas de uma
situação acidental, totalmente imprevisível, inevitável.

Tudo que não puder ser previsto não pode ser evitado. Se não pode ser evitado,
a ninguém pode ser atribuído, nem àquele que o tiver causado. Segundo o ordenamento
jurídico, os fatos típicos só podem ser atribuídos a alguém por dolo ou por culpa, stricto
sensu, não por mero nexo de causalidade.

Se o agente não quis exceder-se na repulsa, nem se excedeu por negligência, o


excesso a ele não pode ser atribuído, mas a uma força estranha, fortuita. Isso pode
acontecer, de verdade, no dia-a-dia.

1.2.14 Culpabilidade

Há crime de homicídio quando o fato praticado por um imputável ajustar-se


perfeitamente ao tipo – simples, privilegiado, qualificado ou qualificado-privilegiado –,
contrariar a ordem jurídica em sua totalidade e, ao mesmo tempo, merecer a
reprovação do Direito.

O fato típico ilícito, o injusto penal, não é, ainda, o crime. É tão-somente um


ilícito penal. É o injusto.

Só pode haver crime quando o injusto penal – fato típico ilícito – tiver sido
praticado por um imputável – capaz de entender a ilicitude e de determinar-se
conforme o Direito – e culpável.

Se inimputável por qualquer causa, o agente da conduta não poderá ser


apenado. Se for menor, receberá medida socioeducativa. Se maior, medida de
segurança.

Imputável o agente do injusto, que praticou conduta típica não justificada, pode
ser culpado ou não.

Culpabilidade é a reprovabilidade da conduta do sujeito imputável que, com


potencial consciência da ilicitude, podia, nas circunstâncias em que agiu, ter agido de
94 – Direito Penal II – Ney Moura Teles

outro modo. É um juízo normativo de censura.

A culpabilidade – censurabilidade, reprovabilidade – é o terceiro elemento –


característica – do crime. Penso que o mais importante deles.

A todos os fatos ilícitos o Direito impõe uma sanção. Só para o crime ela é
diferente. Grave, severa. Suprime a liberdade, bem maior, ainda que por tempo certo.
Da sanção penal, ainda que a só restritiva de direitos ou multa, decorrem profundas
conseqüências. A infâmia, ainda que não seja pena legal, é pena social. Má-fama. O
estigma de criminoso, delinqüente, ausente na sentença penal condenatória, não se
apaga. Adere até ao espírito do condenado.

Crime não é, portanto, um ilícito qualquer. Não é um simples fato descrito em


norma legal que lesiona ou expõe a perigo de lesão um bem jurídico. Todos os fatos que
contrariarem a vontade da sociedade expressa na norma e lesionarem um bem
importante são ilícitos. Mas nem por isso têm, como conseqüência, a supressão da
liberdade, nem a pecha de crime. Criminoso ou delinqüente é o agente de um ilícito
diferenciado. Não o de qualquer comportamento contrário ao Direito, mas daquela
conduta que vai merecer, de toda sociedade, a repulsa mais grave, a censura mais
gravosa, a consideração mais reprovável.

Segundo o ordenamento positivo, a conseqüência jurídica de um


comportamento ilícito, lesivo, será sempre a reparação do dano causado, do prejuízo
sofrido. Se, porém, esse ilícito for um crime, não bastará a indenização, pois que o
criminoso deverá sofrer a pena criminal. Perder a liberdade, em regra.
Excepcionalmente continuará livre, indo e vindo, mas não livre do estigma, do sinal, da
marca indelével.

O que distingue o crime dos demais fatos ilícitos é o plus que só ele tem: a
culpabilidade.

Crime, por isso, não pode ser apenas o fato ilícito que se amolda a um tipo,
porque nele há algo mais, a culpabilidade.

Haverá culpabilidade quando o agente do homicídio tiver agido com, pelo


menos, a possibilidade de conhecer a ilicitude de seu comportamento e em
circunstâncias tais que dele possa se exigir comportamento diverso do que praticou.
Culpabilidade, pois, é: consciência, ainda que só potencial, da ilicitude e exigibilidade
de conduta diversa. São dois elementos normativos. Dependem, pois, da valoração
feita pelo julgador acerca de sua existência, quando do exame do fato praticado pelo
agente.

Ausente um dos dois elementos da culpabilidade – potencial consciência da


Homicídio - 95

ilicitude e exigibilidade de conduta diversa –, o fato será desculpado, porque crime não
haverá, devendo o agente ser absolvido, porque não é merecedor de qualquer sanção
penal. O fato é típico de homicídio, é ilícito, o dano deverá ser reparado, mas a sanção
penal não será imposta.

O Código Penal brasileiro definiu algumas situações nas quais um desses


elementos da culpabilidade estão ausentes, chamando-as, a doutrina, de causas de
exclusão da culpabilidade ou dirimentes. Também são denominadas excludentes da
culpabilidade. Estão contidas em normas penais exculpantes. As que se aplicam ao
homicídio, doravante examinadas, são as seguintes: o erro de proibição inevitável, a
legítima defesa putativa, o estado de necessidade putativo e a coação moral irresistível.

A doutrina construiu as chamadas causas supralegais de exclusão da


culpabilidade – a inexigibilidade de conduta diversa e o excesso exculpante de legítima
defesa –, que também serão objeto de estudo.

Realizando os pressupostos de uma dessas causas, o agente de um homicídio


ilícito não comete crime, porque o fato não será culpável, apesar de injusto. Será
absolvido.

1.2.14.1 Erro de proibição

Já se falou dos erros acidentais – sobre a pessoa e na execução – e também do


erro de tipo. O erro de proibição, diferentemente, é aquele que vai incidir sobre a
ilicitude do fato, sobre a proibição.

Só pode merecer reprovação penal aquele que ao realizar o injusto tenha


consciência, pelo menos potencial, de sua proibição.

Ter consciência é apreender, ter consigo, assenhorear-se do conhecimento de


alguma coisa. É ter penetrado em suas entranhas, desvendando suas características,
todas as suas particularidades. É conhecer, é saber, é discernir. É dominar.

Ilicitude é a relação de antagonismo entre um fato típico e todo o ordenamento


jurídico. É a relação de contrariedade do fato com o Direito.

Potencial é o que exprime a possibilidade de algo.

Potencial consciência da ilicitude é a possibilidade de se conhecer que o fato é


contrário ao Direito, ilícito, proibido, colide com a ordem jurídica.

Para que se possa reprovar a conduta de alguém, é necessário e indispensável


que ele, quando a realizou, tivesse, pelo menos, a possibilidade de saber que seu
96 – Direito Penal II – Ney Moura Teles

comportamento era proibido. Se não lhe fosse possível atingir esse conhecimento, não
tinha, então, nenhuma razão para deixar de realizar a conduta.

Ter consciência da ilicitude é, portanto, saber que o fato que vai praticar é
proibido.

Quando o sujeito tem consciência da proibição que recai sobre sua conduta, e
mesmo assim a realiza, deve ser reprovado. É culpado porque agiu com consciência real
da ilicitude. Também será culpado quando tinha a possibilidade de conhecer a
proibição, mas, por displicência, por leviandade, descuido ou negligência, não se
esforça para alcançar aquela consciência. É culpado também, em menor grau é claro,
porque agiu com potencial consciência da ilicitude. Podia ter percebido a ilicitude de
seu ato, mas não se esforçou para tanto.

Não se deve confundir ignorar a lei com desconhecer a ilicitude. Lei é a norma
escrita. Ilicitude é a relação de contrariedade entre um fato e a totalidade do
ordenamento jurídico. É possível conhecer a lei e ignorar a relação de contrariedade
entre um fato e o Direito. O desconhecimento da lei não será excludente da
culpabilidade, mas o da ilicitude, sim.

O desconhecimento da ilicitude pelo agente imputável só pode decorrer de erro


que ele realiza ao apreciar a situação em que se encontra.

O erro de proibição está previsto no art. 21 do Código Penal: “O


desconhecimento da lei é inescusável. O erro sobre a ilicitude do fato, se inevitável,
isenta de pena; se evitável, poderá diminuí-la de um sexto a um terço.”

Tratando-se de homicídio, o agente deve ter incidido num erro sobre a


proibição, imaginando que, nas circunstâncias em que se encontrava, era-lhe permitido
matar a vítima.

Haverá erro de proibição quando o agente imaginar a existência de uma


excludente de ilicitude não contemplada no ordenamento jurídico. Também há erro de
proibição quando o sujeito não tem compreensão perfeita acerca dos limites de uma
causa de justificação, errando sobre a necessidade dos meios ou sobre a moderação,
exigidas para a configuração da legítima defesa, por exemplo.

Pode estar agindo por erro de proibição o homem rude, nascido e criado numa
pequena cidade, em quem foram introjetados valores culturais retrógrados, machistas,
dentre os quais o de que “a honra do marido ultrajado será lavada com o sangue da
mulher adúltera” e que, encontrando sua esposa nos braços do amante, mata-a por
acreditar que está em legítima defesa da honra.
Homicídio - 97

Também poderia existir erro de proibição na prática da eutanásia, quando o


sujeito mata o velho pai, a seu pedido, por imaginar que tal comportamento seja lícito.

Para ter sua culpabilidade excluída, entretanto, deve ser um erro absolutamente
invencível, inevitável, no qual qualquer pessoa que se encontrasse nas mesmas
circunstâncias em que estava o agente também incorreria. Somente o erro de proibição
inevitável exclui a culpabilidade.

O erro de proibição é evitável “se o agente atua ou se omite sem a consciência


da ilicitude do fato, quando lhe era possível, nas circunstâncias, ter ou atingir essa
consciência” (parágrafo único do art. 21 do Código Penal), hipótese em que terá
reconhecida em seu favor a diminuição da pena, por ter menor culpabilidade. É que, na
verdade, agiu sem consciência da ilicitude. Não pode ser equiparado ao que agiu com
consciência da ilicitude. Como poderia, entretanto, ter alcançado aquela consciência e
não o fez, por displicência ou leviandade, por isso será reprovado menos severamente.

É dos mais intrincados problemas para o julgador. Não basta que o réu declare,
em juízo, ter praticado o fato por o ter imaginado lícito, ou não proibido. Nem que a
defesa invoque a dirimente para obter a exclusão da culpabilidade.

O reconhecimento do erro de proibição deve ser feito com base na compreensão


total do fato concreto, mas também na consideração sobre as características pessoais,
inclusive históricas, do agente, para que se possa concluir pela real existência de erro. A
culpabilidade é do sujeito, mas pelo fato que praticou, daí que ambos, fato e agente,
devem ser objeto da análise do julgador.

Tão ou até mais difícil quanto descobrir se, efetivamente, o agente atuou em
erro de proibição, será qualificar o erro, descobrir se era ou não evitável.

São ambos juízos de valor normativo. O julgador deve ter grande sensibilidade
jurídica e muito maior senso de justiça, porque estará exarando uma decisão sobre um
fato praticado por um homem. Fato e homem serão avaliados. O fato em toda sua
extensão e profundidade, com todas as suas circunstâncias. O homem, igualmente, em
todo seu caráter e observando a sua história de vida.

O Direito, é certo, exige de todos certo grau, mínimo ou adequado, de


compreensão da vida, da realidade, das normas sociais e jurídicas e, de conseqüência,
uma concepção, ainda que apenas profana, do justo e do injusto, mas não se deverá
querer enquadrar todos num esquema inflexível de comportamento médio normal,
como se fosse possível amoldar qualquer indivíduo a determinado esquema ideal de
pessoa comum.

A conduta do indivíduo, especialmente aquela típica ilícita, deverá ser aferida,


98 – Direito Penal II – Ney Moura Teles

no momento do exame da culpabilidade, com o maior cuidado possível, tendo em conta


não apenas todos os seus antecedentes causais e psicológicos, mas, fundamentalmente,
as características pessoais do sujeito, sua história de vida, as quais exercem enorme
influência sobre suas decisões.

Descobrir se uma conduta foi ditada por erro sobre a relação de antagonismo
entre fato e Direito e, principalmente, discernir sobre sua evitabilidade, é enigma que
só um julgador humano pode decifrar.

A obediência hierárquica é uma espécie de erro de proibição, definida no art. 22


do Código Penal: “Se o fato é cometido (...) em estrita obediência a ordem, não
manifestamente ilegal, de superior hierárquico, só é punível o autor (...) da ordem.”

O sujeito recebe uma ordem que, a seu ver, é legal, quando não era, e pratica um
fato típico. Deve ser uma ordem não manifestamente ilegal, do superior hierárquico.
Poderia um soldado que, atendendo a uma ordem de seu superior hierárquico, matasse
o fugitivo, ser desculpado com base nessa dirimente.

Outras espécies de erro de proibição são a legítima defesa putativa e o estado de


necessidade putativo, abordados a seguir.

1.2.14.2 Legítima defesa putativa

O legislador brasileiro colocou no art. 20 do Código Penal – encimado pela


rubrica “erro sobre elementos do tipo” – as chamadas descriminantes putativas, no §
1º, assim: “É isento de pena quem, por erro plenamente justificado pelas circunstâncias,
supõe situação de fato que, se existisse, tornaria a ação legítima. Não há isenção de
pena quando o erro deriva de culpa e o fato é punível como crime culposo.”

A inserção das descriminantes putativas no artigo que trata do erro de tipo é


responsabilidade dos redatores da Reforma Penal de 1984, adeptos da teoria limitada
da culpabilidade.

Segundo essa teoria, quando o agente erra sobre um pressuposto fático de uma
excludente de ilicitude, haverá erro de tipo, que exclui o dolo, se evitável, e também a
culpa, se inevitável. Daí que, sendo evitável o erro, restaria perfeito um crime culposo.
Por isso, a colocação do conceito de descriminantes putativas no artigo que trata do
erro de tipo que, como já se viu, exclui, mesmo, o dolo.

Penso, entretanto, que, apesar da colocação topográfica no art. 20, as


descriminantes putativas são, sempre, espécies de erro de proibição, filiando-me,
portanto, à teoria extremada da culpabilidade, defendida por WELZEL, MAURACH,
Homicídio - 99

ARMIN KAUFMANN, MUNHOZ NETO, HELENO FRAGOSO, HEITOR COSTA


JÚNIOR, LUIZ LUISI, LEONARDO LOPES, WALTER COELHO e tantos outros.

O que é descriminante putativa?

É uma excludente de ilicitude irreal, imaginária, que só existe na mente do


agente, em virtude do erro que ele comete ao apreciar a realidade. Fale-se aqui de uma
delas, a legítima defesa putativa.

Para existir legítima defesa, deve haver uma agressão injusta, atual ou iminente,
a qualquer direito.

Essa agressão, portanto, é pressuposto fático da legítima defesa. Sem ela, não
pode haver reação lícita.

Se o agente erra ao apreciar a realidade, supondo a existência de uma agressão,


pode convencer-se de que será lícito repeli-la, ao amparo da excludente do art. 25 do
Código Penal. Porque vê, onde não existe, uma agressão injusta, atual ou iminente,
reage e mata o imaginado agressor.

É o caso do que vê um antigo desafeto – que já o agredira dias atrás – levantar-


se nervosamente da cadeira onde estava sentado, levando à mão à cintura, gesto
idêntico ao do que vai sacar uma arma de fogo. No instante seguinte, vê o inimigo
andando rapidamente em sua direção. Imagina que está sendo vítima de uma agressão
iminente. Reage matando-o. Morta a vítima, descobre-se que nenhuma arma ela
portava e, em sua mão, é encontrado o lenço que estava tirando do bolso, no momento
em que recebeu o tiro.

O sujeito atuou com a convicção plena de que se encontrava numa situação de


legítima defesa. Mas não estava. Errou ao apreciar o fato criando, na mente, a idéia de
que estava sendo agredido. Se o seu desafeto estivesse, realmente, prestes a sacar uma
arma, a reação seria lícita. Mas agressão não houve. Apenas foi imaginada pelo sujeito,
por um erro que, para isentá-lo da pena, deve ser daqueles plenamente justificáveis
pelas circunstâncias.

Essa é a legítima defesa putativa, imaginária. Só existe na cabeça do agente. Não


é legítima defesa.

Pois bem, quando o sujeito disparou aquele tiro, agiu dolosamente? A teoria
limitada da culpabilidade entende que não, pois considera que, nesse caso, houve erro
de tipo, que manda excluir o dolo.

Examine-se com mais cuidado a conduta desse agente. Evidente que ele errou
imaginando a existência da agressão, que era nenhuma. Em sua mente, porém, ela
100 – Direito Penal II – Ney Moura Teles

existia, fruto de seu erro.

Ora, em que isso afeta a presença do dolo? O dolo está no interior do tipo. No
homicídio, é seu elemento subjetivo. No fato, ele está na cabeça do agente. Está na
conduta. O dolo consiste na representação do resultado morte e na vontade de, com a
conduta, produzi-lo, ou em sua aceitação, se ele acontecer.

Quem repele uma agressão inexistente matando o que supunha ser o agressor
age, é de todo óbvio, com dolo. Logo, este não pode ser excluído. Sua conduta não deixa
de ser dolosa em virtude do erro em que incorrera. O que o erro afeta é exatamente a
consciência do agente, impedindo que ele pudesse conhecer a realidade – a de que não
existia agressão nenhuma. Soubesse da realidade, não teria reagido. Só reagiu por
desconhecê-la.

O erro não incidiu sobre a vontade de realizar o tipo de homicídio. Incidiu, antes,
sobre a consciência do agente. Não a consciência do fato típico que iria realizar, mas a
consciência sobre o caráter ilícito do mesmo fato. É erro sobre a ilicitude e não sobre
elemento constitutivo do tipo legal de crime. É erro de proibição, portanto.

É só perguntar: o agente, ao imaginar a existência da agressão e disparar o tiro


contra aquele que supunha vir em sua direção com um revólver, age sem previsão do
resultado morte? Ou age sem vontade de matar? Ou age acreditando que não poderia
matar? É de toda obviedade que age com dolo.

Por isso, a teoria extremada da culpabilidade, que considera as descriminantes


putativas sempre um erro de proibição, é a correta. Não é porque o legislador as
colocou no mesmo artigo que trata do erro de tipo que elas poderão ser erro de tipo. A
legítima defesa putativa é erro de proibição, porque quem mata supondo a existência de
um pressuposto fático da legítima defesa – a agressão, por exemplo – age
inequivocamente com dolo de matar, porém, sem a consciência da ilicitude.

O erro do legislador não é capaz de, ainda que esta tivesse sido sua vontade,
transformar um erro de proibição num erro de tipo.

Para incidir essa dirimente, é indispensável que o erro seja daqueles inevitáveis.
Em que qualquer pessoa, nas mesmas circunstâncias, incorreria. Não será toda vez que
alguém levar a mão à cintura, que um outro poderá nela atirar, por achar que tal gesto é
uma agressão. O conjunto das circunstâncias deve justificar o erro.

Se o sujeito, ao apreciar os fatos, erra por negligência, por leviandade, por


displicência ou descuido e repele uma agressão inexistente, sua conduta não será
desculpada, porque, se tivesse atuado com a prudência e a cautela exigidas a todos,
poderia ter evitado o erro e, portanto, não teria agido.
Homicídio - 101

Nesse caso, haverá culpabilidade, porém menor. É que ele agiu sem consciência
real da ilicitude, mas havia possibilidade de conhecê-la. Há, portanto, potencial
consciência da ilicitude, e por isso, há culpabilidade, há crime.

Manda a norma do § 1º do art. 20 que, nessas situações, o agente seja punido


com a pena do crime culposo. Foi outro equívoco do legislador, inspirado pela teoria
limitada da culpabilidade. Mandou punir um crime doloso com a pena do crime
culposo. Foi a forma que escolheu para, na prática, punir menos severamente aquele
que é menos culpado, mas o correto teria sido, como fez no art. 21, determinar a
diminuição da pena. A solução, apesar de equivocada, é mais benéfica para o acusado,
pois a pena máxima do homicídio culposo é menor que o redutor máximo previsto para
o erro de proibição.

Haverá legítima defesa putativa não só quando o agente tiver imaginado a


existência de uma agressão. Também quando seu erro incidir sobre a injustiça dessa
agressão. Vendo, a distância, um homem levantar a mão para desferir, numa criança,
um golpe, supõe o agente que está diante de uma agressão injusta e, por isso, reage
atirando contra ele. Verifica-se, depois, que era o pai do menor, aplicando-lhe uma
simples palmada.

Nesse caso, havia uma agressão, porém, justa, mas o agente errou a seu
respeito, supondo que o pressuposto da legítima defesa existia, autorizando a repulsa
que empregou.

Demonstrando-se que tal erro era plenamente justificado pelas circunstâncias, o


agente será desculpado, por não ter qualquer possibilidade de conhecer a ilicitude de
seu gesto. Se tiver laborado em erro evitável, por descuido, terá sua culpabilidade
diminuída, apenado com a pena do homicídio culposo.

Evidente que, para incidir a dirimente ou a diminuição da culpabilidade, o


agente deve ter, efetivamente, errado sobre o pressuposto fático da legítima defesa e,
ademais, realizar seus outros elementos caracterizadores: repulsa com os meios
necessários, moderadamente.

1.2.14.3 Estado de necessidade putativo

Haverá homicídio inculpável por estado de necessidade putativo se o agente


errar sobre o pressuposto fático que justifica a conduta necessária: a situação de perigo
para um bem jurídico. Se imaginou o incêndio no teatro, o desmoronamento ou o
desabamento da arquibancada no estádio de futebol, sendo plenamente justificado seu
102 – Direito Penal II – Ney Moura Teles

erro, do qual decorreu o homicídio que praticou, desde que presentes os demais
requisitos do estado de necessidade real, será igualmente excluída sua culpabilidade, ou
diminuída, se o erro decorreu de apreciação negligente.

1.2.14.4 Coação moral irresistível

A culpabilidade estará presente não apenas quando o sujeito tinha consciência


da ilicitude de sua conduta, ou quando lhe era possível alcançá-la. A potencial
consciência da ilicitude é apenas um dos elementos da culpabilidade.

Para que o imputável seja considerado culpado, censurado, reprovado pelo que
fez, é indispensável que, nas circunstâncias em que se encontrava, tivesse a
possibilidade de comportar-se de acordo com o Direito. Essa possibilidade de agir de
modo diferente do que agiu é outro juízo valorativo que o julgador fará acerca da
conduta do agente, denominada exigibilidade de conduta diversa.

O Direito exige de todos os indivíduos, em circunstâncias normais, que atuem


conforme as normas, cumprindo seus mandamentos. FRANCISCO MUÑOZ CONDE
explica:

“Em princípio, o ordenamento jurídico fixa uns níveis de exigência mínimos, que
podem ser cumpridos por qualquer pessoa. Fala-se, nesses casos, de uma
exigibilidade objetiva, normal ou geral. Além dessa exigibilidade normal, o
ordenamento jurídico não pode impor o cumprimento de suas determinações.
(...) O direito não pode exigir comportamentos heróicos, ou, em todo caso, não
pode impor uma pena quando, em situação extrema, alguém prefere realizar
um fato proibido pela lei penal a ter que sacrificar sua própria vida ou sua
integridade física.” 25

No art. 22, o Código Penal brasileiro prevê uma das hipóteses em que, por não
haver a exigibilidade de conduta diversa, deve ser excluída a culpabilidade. É a
chamada coação moral irresistível: “Se o fato é cometido sob coação irresistível (...) só
é punível o autor da coação.”

O agente realiza um fato típico e ilícito, com consciência de sua ilicitude, mas
sob uma força moral a que não pode resistir. Cuida-se aqui de coação moral, não a
coação física que, na verdade, atua de modo extremo sobre a vontade do sujeito,
anulando-a por completo. Na coação física absoluta, não há conduta, por faltar

25 Teoria geral do delito. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1988. p. 161-162.
Homicídio - 103

vontade. Nem típico o fato é, porque este só existirá se houver conduta voluntária.

Sob coação moral há vontade, ainda que viciada mas, agindo o sujeito sob seu
domínio, realiza um comportamento, uma ação ou uma omissão, voluntariamente.
Realiza um movimento corporal ou dele se abstém conscientemente e com a vontade
dirigida a um fim que, na verdade, não era o que ele desejaria ter realizado, mas que,
por força da coação a que está submetido, acaba por realizar. É que a força moral que
sobre sua mente atua é tamanha que ele não tem a possibilidade de agir como gostaria
de ter agido.

A coação moral é o emprego, por outra pessoa, de uma grave ameaça contra o
sujeito, com o fim de que este faça ou deixe de fazer alguma coisa, geralmente um
procedimento típico e ilícito. Deve ser uma força irresistível, capaz de atuar sobre a
vontade do sujeito de modo insuperável, invencível, tal a violência moral e o perigo que
significaria caso a ela não se submetesse.

Para haver coação moral irresistível, deve existir, necessariamente, o coator e o


coagido e, em algumas situações, um terceiro sobre o qual recairá a ameaça. Esta pode
dirigir-se ao próprio coagido, que acaba por ceder aos ditames do coator.

O coator deve ser uma pessoa. Não se pode aceitar a alegação de que as
condições sociais, a miséria, o desemprego, a fome, as adversidades, a sociedade toda
possam exercer coação moral impelindo alguém a praticar um fato típico e ilícito. Se
isso fosse reconhecido, milhares e milhares de delinqüentes no Brasil deveriam ser
desculpados, porque quase todos estão na senda do crime por força das perversas
condições de vida a que foram submetidos, desde que nasceram.

Sob coação moral irresistível, a conduta é voluntária, mas o Direito não exige do
sujeito o comportamento heróico, de resistir ao coator, colocando em grave risco
direitos e interessantes relevantes.

Seria possível um homem matar outrem sob coação moral irresistível?

No sistema penitenciário brasileiro, situações como essa são muito comuns. Em


quase todo presídio há organizações criminosas, bandos ou quadrilhas que impõem
regras de convivência entre os condenados. Os conflitos são muitos, de todas as
naturezas. Execuções existem a todo tempo. Não raro determinado condenado é
coagido, por um membro de uma dessas organizações, a matar um terceiro preso, sob
as mais diversas e graves ameaças, especialmente a da própria morte. Mate-o ou será
morto. Ou será violentado sexualmente.

Se na vida em liberdade uma coação dessa natureza teria a força indispensável


para aniquilar a vontade do agente, dentro de um presídio ela é muito maior,
104 – Direito Penal II – Ney Moura Teles

especialmente quando parte de quem tem o verdadeiro comando da vida social dentro
da prisão.

Para desculpar o agente de um homicídio a ameaça deve ser de gravidade


extrema, não podendo ser desculpado aquele que matou porque alguém o ameaçou de
causar um mal menor ou em relação a um bem jurídico, próprio ou de terceiro, de
menor importância. “Mate-o, se não eu vou matar o seu cachorro de estimação”.
“Mate Fulano, se não eu danificarei seu automóvel.” Tais ameaças não são de
gravidade tal que não se possa exigir do agente conduta diversa. São coações, porém,
perfeitamente resistíveis.

Por isso, para considerar a coação irresistível deve o julgador analisar a


natureza do interesse jurídico colocado sob ameaça de lesão, bem assim a qualidade da
lesão prometida, caso o agente não atenda aos desígnios do coator. Somente quando
houver uma ameaça muito grave, a um bem jurídico muito importante, próprio ou de
terceiro, o Direito não poderá exigir do sujeito não se submeter ao coator, correndo o
risco de ver o bem ameaçado sucumbir.

Se a coação não for irresistível, se o agente puder vencê-la, superá-la, porque


sua força moral não era das maiores, a culpabilidade restará íntegra e o agente será
culpado, todavia poderá incidir a circunstância atenuante prevista no art. 65, III, c, do
Código Penal.

1.2.14.5 Inexigibilidade de conduta diversa

As causas de exclusão da culpabilidade examinadas até aqui – erro de proibição


inevitável, obediência hierárquica, legítima defesa e estado de necessidade putativos e
coação moral irresistível – estão todas descritas em normas penais exculpantes. São
chamadas excludentes legais da culpabilidade.

A doutrina tem construído outras causas que excluiriam a culpabilidade.


Todavia, em face do que dispõe o art. 484, III, do Código de Processo Penal, há dúvidas
sobre se, não tendo sido previstas em lei, expressamente, poderiam elas ensejar a
exclusão da culpabilidade.

A norma processual citada, vinda ao mundo jurídico no longínquo ano de 1941,


há mais de meio século, não pode, como norma meramente instrumental que é,
impedir o reconhecimento, pelo Tribunal do Júri – único competente para julgar os
homicídios dolosos –, da incensurabilidade de uma conduta típica e ilícita, por qualquer
razão, porquanto acima daquela norma está o preceito constitucional que consagra a
Homicídio - 105

soberania dos veredictos do júri popular.

A mais importante das causas elaboradas doutrinariamente, ditas supralegais de


exclusão da culpabilidade, é a inexigibilidade de conduta diversa.

Inexigibilidade de conduta diversa é um juízo valorativo que o julgador faz sobre


a conduta típica e ilícita do agente imputável, consistente na impossibilidade de
considerar exigível comportamento diferente do que aquele que o agente realizou.

Foi dito, linhas atrás, que o Direito – a sociedade, portanto – exige de todos os
indivíduos que ajam conforme as normas vigentes. Todos devem respeitar a ordem.
Todos devem obediência às normas legais. Todos devem respeitar os bens jurídicos. A
ninguém é dado transgredir os mandamentos legais. A todos é, normalmente, exigido o
respeito à integridade dos valores ético-sociais colocados sob a proteção do direito.

A imposição de uma conduta, pela proibição contida no tipo, só é feita porque é


possível exigir de todos atuar conforme a vontade da lei. Matar alguém é conduta
proibida exatamente porque o Direito pode exigir, de todos, que não matem seus
semelhantes. Somente são tipificadas condutas quando for possível exigir do indivíduo
comportamento diverso delas. Jamais se tipificaria uma conduta generosa, amistosa,
amorosa, porque a sociedade não pode exigir de alguém que deixe de ser bom, de ser
amigo ou de amar.

Matar alguém em legítima defesa não é proibido exatamente porque o Direito


não pode exigir, do que se encontra em situação de legítima defesa, que não repila a
agressão injusta ao bem jurídico, desde que usando do meio necessário
moderadamente.

Matar alguém por erro plenamente justificado pelas circunstâncias – supondo


a existência de uma situação de fato que, se existente, tornaria o fato típico lícito –
torna o agente inculpável exatamente porque – nas circunstâncias em que ele atuou,
ignorando, por erro invencível, a ilicitude de seu comportamento – dele não se poderia
exigir outro comportamento.

Só há crime, portanto, quando se puder exigir do indivíduo comportamento


diferente daquele considerado crime.

A exigibilidade de conduta diversa – um dos elementos da culpabilidade – é, na


verdade, muito mais do que isso. É a própria essência do crime. É sua alma. Seu cerne.
Seu elemento fundamental. Só há crime se se puder exigir do ser humano comportar-se
de modo diferente. É o princípio que inspira a construção de comportamentos
considerados crimes.
106 – Direito Penal II – Ney Moura Teles

A lei só cria tipos quando a sociedade entender possível exigir das pessoas
comportarem-se de modo diverso da descrição típica.

A lei só cria excludentes de ilicitude quando verificar que não poderia, em suas
circunstâncias, exigir, das pessoas, comportamentos conforme o mandamento contido
na norma incriminadora.

A lei só considera inimputáveis aqueles dos quais, por suas condições pessoais,
não poderia exigir comportamento diverso.

A lei só considera não culpados os que, apesar de capazes, e de terem realizado


comportamento proibido, não poderiam ter agido de outro modo.

A exigibilidade de conduta diversa é o elemento fundamental do crime – da


tipicidade, da ilicitude e da culpabilidade. É o princípio geral que fundamenta a
construção dos tipos penais e, ao mesmo tempo, impede a exclusão da proibição, e que,
por último, sustenta a reprovabilidade, a culpabilidade.

A inexigibilidade de conduta diversa – a impossibilidade de se exigir do sujeito


outro comportamento – é, inversamente, o princípio geral de exclusão do crime.

A inexigibilidade de conduta diversa não é, por isso, apenas uma causa de


exclusão da culpabilidade, é um princípio geral de exclusão do crime, ora excluindo a
tipicidade, ora a ilicitude, ora a culpabilidade. “A idéia da inexigibilidade de outra
conduta não é privativa da culpabilidade, mas um princípio regulador e informador
de todo ordenamento jurídico.”

Toda vez, portanto, que o julgador defrontar-se com um fato típico e ilícito e
verificar que, nas circunstâncias em que se encontrava o agente, não era possível exigir
dele conduta diversa, deverá considerá-lo não culpado pelo que fez.

Um homicídio ilícito, não desculpável por ter sido praticado por erro de
proibição – inclusive a legítima defesa putativa –, nem sob coação moral irresistível,
pode ser desculpado, por inexigibilidade de conduta diversa. Ainda que o fato não se
ajuste perfeitamente a qualquer causa legal de exclusão da ilicitude ou da culpabilidade,
se o júri entender de não reprová-lo, por considerar que, nas circunstâncias
especialíssimas em que se encontrava o agente, não podia dele exigir conduta diversa,
não haverá culpabilidade. Não será crime.

A culpabilidade, que recai sobre o agente, mas pelo fato praticado, é puro juízo
de valor realizado pelo julgador, que representa a sociedade. É censura que só será feita

MUÑOZ CONDE. Op. cit. p. 162.


Homicídio - 107

quando se puder exigir, dele, outro comportamento.

Veja-se a hipótese: Ricardo, policial militar aposentado, armado, chega a sua


casa e depara-se com o seguinte quadro. Sua filha, de 12 anos, acaba de ser estuprada.
Ainda chega a ver o estuprador fugindo pela janela. Após verificar, rapidamente, que
sua filha estava fisicamente bem e deixá-la sob os cuidados de Gerson, médico, que com
ele estava, vai ao encalço do estuprador. A perseguição dura algum tempo no qual
Ricardo, por diversas vezes, teve a oportunidade de atirar, preferindo, todavia,
continuar a perseguição a fim de conseguir prender o delinqüente. Nesse ínterim, uma
viatura policial, que passava pelas imediações incorpora-se à perseguição, que perdura
por mais alguns minutos. Até que, finalmente, conseguem, Ricardo e os dois policiais,
prender o estuprador. No momento em que os policiais o identificam, para certificarem-
se de que estavam, efetivamente, efetuando uma prisão legal em flagrante, ele responde:
“Fui eu mesmo! Estuprei a filha desse ‘babaca’, e achei muito gostoso!.” E, virando-se
para Ricardo, completa: “Sua filhinha é muito gostosa... pena que você chegou para
atrapalhar.” Incontinenti, Ricardo saca de seu revólver e dispara um tiro contra ele,
matando-o.

Analisando o fato, chega-se à conclusão de que é típico de homicídio, bem assim


que Ricardo não atuou sob o manto de qualquer excludente de ilicitude. É típico e
ilícito. Ricardo é imputável. Não havia legítima defesa putativa, nem erro de proibição,
porque Ricardo tinha consciência da ilicitude. Sabia que não era permitido matar. Não
houve coação moral irresistível. Logo, não há qualquer causa legal de exclusão da
ilicitude e nem da culpabilidade.

Numa situação dessas, a doutrina tradicional diria que Ricardo terá cometido
um homicídio privilegiado, por estar sob o domínio de violenta emoção, logo após
injusta provocação da vítima. Seria culpado, porém teria sua pena diminuída.

Antes, porém, há de se perguntar: nas circunstâncias em que atuou, era exigível


de Ricardo conduta diversa?

Analise-se seu comportamento. Viu sua filha caída, ferida e para ela voltou sua
atenção. Deixou-a sob cuidados do médico amigo. Viu o estuprador saltando a janela e,
apesar de ser um policial aposentado e estar armado, não atirou contra ele. Na
perseguição, teve várias oportunidades de atirar e não o fez. Acompanhou a prisão e
não esboçou nenhum gesto agressivo. Sua reação somente ocorreu após os comentários
jocosos e de escárnio que o estuprador lhe dirigiu. Diante de todas essas circunstâncias
é que o julgador responderá a pergunta crucial: pode-se exigir desse homem
comportamento diverso do que ele realizou?
108 – Direito Penal II – Ney Moura Teles

Pode o Direito, a sociedade ou a ordem jurídica exigir-lhe ainda mais equilíbrio


do que demonstrou nos momentos anteriores? Ferido, magoado, pela ação criminosa
consumada contra sua filha, menor de 14 anos, uma criança ainda, e execrado pelas
palavras do estuprador, ainda assim, pode-se exigir dele um comportamento exemplar,
exatamente conforme o ordenamento jurídico?

Não se trata, relembre-se, de justificar sua conduta. É ilícita. Não se discute isso.
O que se quer discutir é sobre a reprovabilidade de sua conduta. A resposta está com o
julgador. Nas circunstâncias em que ele se encontrava, poder-se-ia exigir-lhe outro
comportamento?

Com a palavra a sociedade.

Culpabilidade é, exatamente, isso. Reprovabilidade que o Direito, em nome da


sociedade e segundo sua vontade, faz àquele que praticou o injusto penal.

Se a sociedade entender que não podia exigir, do agente, conduta diversa, deve
desculpá-lo, independentemente de existência prévia de qualquer norma expressa
nesse sentido.

O Direito é vontade da sociedade e crime só haverá se o agente praticar um


injusto culpável.

1.2.14.6 Excesso exculpante de legítima defesa

O excesso na legítima defesa pode, nalgumas situações concretas, ter derivado


de medo, susto, perturbação ou da confusão que domina o agente por causa da injusta
agressão sofrida.

Quando isso acontece, o defendente perde a capacidade de dominar as reações


psicológicas desencadeadas pela agressão, em face, ainda, da expectativa do perigo para
o bem jurídico atingido, e acaba por ultrapassar os estreitos limites da legítima defesa,
ora escolhendo meio além do necessário, ora atuando imoderadamente.

O Código Penal alemão estabelece, no § 33, sob a rubrica excesso de legítima


defesa, uma causa de exclusão da culpabilidade, nestes termos: “Ultrapassando o agente
os limites da legítima defesa por perturbação, medo ou susto, não será ele punido.”

Trata-se de uma causa inspirada pela situação de inexigibilidade de conduta


diversa. No ordenamento positivo brasileiro, não há causa semelhante contida,
expressamente, em nenhum dispositivo legal, mas nada impede que seja aplicada ao
caso concreto, pois o princípio geral da inexigibilidade de conduta diversa, de que é
uma espécie, deve incidir sempre, para que se busque a realização da verdadeira justiça.
Homicídio - 109

Entende-se que só é possível reconhecer a exculpação quando se tratar de excesso


intensivo de legítima defesa. É que, argumentam os que assim pensam, no excesso
extensivo a defesa já se exauriu, a agressão já cessou, inaugurando o até então
defendente um novo fato, distinto do primeiro iniciado com a agressão injusta.

Penso que, nada obstante a razoabilidade desse argumento, pode acontecer que
a perturbação, confusão, medo ou o susto que influenciou o comportamento defensivo
do agente pode perdurar inclusive após a cessação da agressão, por algum tempo ainda
influindo em sua mente, de modo a mantê-lo ainda descontrolado. Se sua reação é
extensiva por essa razão, não vejo como não reconhecer, também aí, a presença da
inexigibilidade de outra conduta.

1.3 HOMICÍDIO CULPOSO

O Direito Penal deveria, a rigor, preocupar-se apenas com as lesões dolosas dos
bens jurídicos, porquanto são os comportamentos intencionais os que efetivamente
representam aquela atitude interna do homem que deve ser proibida e receber, como
conseqüência jurídica, a severa sanção penal.

É na conduta dolosa que se encontra a desconsideração do sujeito para com os


bens jurídicos alheios.

A missão do Direito Penal, entretanto, é proteger os bens jurídicos mais


importantes das lesões mais graves e, para alcançar esse fim, é necessário sancionar
outras condutas, não dolosas, mas que causam resultados lesivos e que, por sua
previsibilidade, poderiam ter sido evitadas.

Dessa necessidade nasceu a construção dos tipos culposos.

1.3.1 Tipicidade

A objetividade jurídica – vida humana extra-uterina – e os sujeitos do


homicídio culposo são os mesmos do homicídio doloso, já comentados.

A diferença é que aqui há um crime sem o elemento subjetivo que caracteriza


aquele, o dolo. No lugar do dolo, existe a culpa, em sentido estrito. A estrutura do
homicídio culposo é absolutamente distinta do homicídio doloso.

1.3.1.1 Conceito
110 – Direito Penal II – Ney Moura Teles

Modernamente, a culpa, stricto sensu, é considerada um elemento normativo


do tipo. Melhor seria denominá-la simplesmente negligência, expressão mais técnica e
que evitaria confusões desnecessárias.

O tipo de homicídio culposo está contido no § 3º do art. 121 do Código Penal:


“Se o homicídio é culposo: pena, detenção de 1 (um) a 3 (três) anos.” É, portanto, um
tipo aberto, cabendo ao intérprete cerrá-lo com base no conceito de delito culposo,
extraído da norma do art. 18, II, do Código Penal: “Diz-se o crime: (...) II – culposo,
quando o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia.”

Com base nessa norma, pode-se definir culpa, stricto sensu, como a falta de
cuidado do agente, numa situação em que poderia prever a causação de um resultado
danoso, que ele não deseja, nem aceita, e às vezes nem prevê, mas que, com seu
comportamento produz e que poderia ter sido evitado.

Homicídio culposo, portanto, é causação da morte previsível da vítima, por


conduta voluntária de uma pessoa, que nas condições em que atuou poderia, com o
cuidado devido, tê-la evitado.

Desse conceito extraem-se os elementos, ou requisitos, para a verificação da


tipicidade do homicídio culposo, que o juiz fará com base na valoração do fato concreto.

1.3.1.2 Elementos do homicídio culposo

Uma conduta voluntária – ação ou omissão – dirigida geralmente a um fim


lícito, nunca ao de produzir a morte, é o primeiro elemento.

A morte da vítima deve ser conseqüência da conduta, por ter o agente se


comportado sem o dever de cuidado objetivo, por imprudência, negligência ou
imperícia. O nexo causal, portanto, é indispensável.

Só haverá, todavia, homicídio culposo, se a morte da vítima for previsível, ainda


que o agente não a tenha previsto.

Além, portanto, da conduta, do resultado e do nexo causal que deve existir entre
eles, só há homicídio culposo quando houver previsibilidade objetiva do resultado
morte e inobservância, por parte do agente, de seu dever de cuidado objetivo, atuando
com imprudência, negligência ou imperícia.

O dever de cuidado objetivo é uma exigência que o Direito faz a todas as pessoas
para que se comportem, em seu dia-a-dia, de modo a não causar danos aos bens
jurídicos alheios. Exigem-se, de todos, comportamentos cautelosos, prudentes e
Homicídio - 111

cuidadosos, de modo a preservar a integridade dos direitos das pessoas com as quais
convivem. As condutas imprudentes, negligentes ou imperitas são reveladoras do não-
cumprimento desse dever geral. Para haver homicídio culposo, a morte da vítima deve
resultar de um comportamento desses.

A imprudência é a prática de um fato perigoso. É uma ação. Negligência é a


ausência de precaução, a omissão, a não-realização de um movimento que poderia ter
sido realizado. É o descuido. A imperícia é a falta de aptidão ou destreza para o
exercício de determinada arte ou profissão.

As três modalidades são, na verdade, uma só: negligência. A imperícia só ocorre


quando o agente foi negligente, deixando de observar a norma técnica a que estava
obrigado. A imprudência é uma ação que nasce da ausência de cautela, da omissão
negligente.

Há negligência, em qualquer de suas formas, nas seguintes condutas. Manusear,


com o fim de limpar ou fazer reparos, uma arma de fogo, na presença de outras
pessoas, sem se certificar o agente de que a mesma não esteja municiada, ou realizar as
operações de carregá-la, dando causa a um disparo, matando um dos circunstantes.

Previsibilidade é a possibilidade de o agente, nas condições em que se encontra,


antever a morte da vítima. Nem todas as lesões não dolosas a bens jurídicos podem ser
evitadas. Só aquelas que puderem ser antevistas pelo agente. Por uma razão muito
simples: não sendo possível prever, que com a conduta que está realizando poderá
causar a morte, o agente não tem como evitá-la. Se não é possível prever, não será
possível evitar.

Essa previsibilidade, durante a aferição da tipicidade do fato, é puramente


objetiva. É a previsibilidade normal, exigível ao comum dos homens. Não é a
previsibilidade daquela pessoa extremamente prudente, nem dos chamados
paranormais. É um juízo normativo, portanto, que o julgador fará acerca das
circunstâncias em que atuou o agente, para concluir se, em circunstâncias idênticas,
qualquer pessoa comum, normal, poderia antever o resultado lesivo. Não se trata,
repita-se, da culpabilidade subjetiva do agente, que será valorada no âmbito da
culpabilidade, como adiante se comentará.

No exame da tipicidade, importa saber se há previsibilidade objetiva. Esse é o


ponto nuclear do fato culposo, porque sem a convicção de que era, ali, possível para o
agente, antever que sua conduta causaria a morte da vítima, não se pode concluir pela
evitabilidade do resultado. Todas as circunstâncias fáticas devem ser consideradas,
porque muitas vezes um único dado é suficiente para elidir a possibilidade da previsão
112 – Direito Penal II – Ney Moura Teles

da morte. Mormente nas mortes no trânsito de veículos, esse tema será de crucial
relevância, como se verá adiante. Se a morte for imprevisível, é inevitável, por isso não
haverá culpa.

Imagine-se a seguinte situação. O agente que mora sozinho num apartamento,


no qual não tem o costume de receber visitas de parentes, nem tampouco de
crianças, chega à noite em casa, deixa sua arma no coldre em cima de um móvel,
enquanto vai para a cozinha, preparar seu jantar. Segundos depois, ouve um disparo
e, quando volta à sala, encontra caída uma criança – filha do vizinho que no mesmo
dia se mudara para o mesmo edifício – que ali entrara, sem que ele percebesse, e,
tomando posse da arma, sem querer, dispara contra si mesma, morrendo.

Considerando objetivamente todas as circunstâncias, pode-se concluir que era


impossível, para o agente, prever que uma criança ali entraria, e que utilizaria a arma
deixada sobre o móvel. Os dados objetivos são determinantes para a verificação da
previsibilidade. Se se alterar um único deles, a conclusão deve ser outra. Bastaria que
fosse comum ou habitual a presença de menores naquela residência – sobrinhos,
amigos, filhos de amigos ou o próprio filho do agente –, para que se pudesse, a partir
daí, formular um juízo de presença da previsibilidade objetiva. Reitere-se, outra vez,
que esse juízo de previsibilidade é puramente objetivo. Ao analisar a tipicidade, não se
examina a previsibilidade pessoal, subjetiva, do agente, mas apenas as circunstâncias
objetivas.

Ausente a previsibilidade, ainda que a conduta do agente seja negligente, não


haverá tipicidade. Imagine-se o condutor de um veículo dirigindo numa rodovia, em
velocidade incompatível, com imprudência. No percurso, há um viaduto sobre a pista e,
no momento em que seu veículo vai passar por baixo do viaduto, uma pessoa cai deste,
não se ferindo na queda, mas é colhida pelo veículo, vindo a morrer em virtude dos
sofrimentos causados pela colisão. A queda era imprevisível. De conseqüência, ainda
que o agente dirigisse com cautela e prudência, não poderia evitar a colisão e a morte.
Não há homicídio culposo.

Do mesmo modo, ainda quando presente a previsibilidade, mas tendo o agente


atuado com o dever de cuidado objetivo, também não haverá homicídio culposo. Veja-
se o exemplo: numa rua de uma das grandes cidades brasileiras, trafega um veículo na
faixa de rolamento à esquerda da destinada ao tráfego de ônibus, um pouco antes do
ponto de parada, onde está estacionado, para descida e subida de passageiros, um
desses veículos de transporte coletivo. É previsível, nessa circunstância, que um dos
passageiros que do ônibus tenha descido atravesse a via pública, pela parte da frente do
mesmo, estando, instantes antes, fora do raio de visão do condutor daquele veículo.
Homicídio - 113

Este adota todas as cautelas, reduzindo a velocidade e olhando com toda a atenção na
direção que prevê a passagem do passageiro imprudente, a fim de evitar um possível
atropelamento. Não obstante toda essa conduta cautelosa do condutor, o passageiro
atravessa e surge a sua frente, sendo atingido, ferido e morto em razão dos ferimentos
decorrentes da colisão. A colisão e a morte eram previsíveis, o condutor fez a previsão,
tanto que adotou todas as cautelas recomendadas pelas normas do trânsito, mas, ainda
assim, o resultado aconteceu. Não tendo havido negligência, não há fato típico culposo.

A verificação da tipicidade do crime culposo, portanto, depende da certificação


da presença de todos os seus elementos. Ausente um deles, qualquer um, não haverá
homicídio culposo.

1.3.1.3 Espécies de culpa

Sendo o fato previsível, o agente, entretanto, nem sempre realiza a previsão.


Quando não faz a previsão, mas realiza a conduta no rumo do resultado que não desejava, diz-
se que sua culpa é inconsciente. É a chamada culpa sem previsão. É inconsciente, porque o
agente, mesmo sendo possível prever a morte, não fez a previsão.

Jairo, policial, chega em casa e, negligentemente, deposita sua arma, municiada,


sobre a mesa da sala. Em seguida, vai para seu quarto. Tendo um filho de seis anos de
idade, é previsível que a criança, que estava na sala, pudesse pegar a arma. Jairo,
todavia, despreocupado, nem se lembrou dessa possibilidade. Apesar de previsível uma
lesão de um bem jurídico, ele, por estar preocupado com outros problemas, de seu
trabalho ou qualquer outro, não prevê essa possibilidade. É surpreendido quando ouve
o disparo e, desesperado, encontra seu próprio filho ferido com sua arma. Havia
previsibilidade, houve negligência, mas não houve previsão. Há fato culposo e a culpa é
inconsciente.

Se o agente prevê o resultado, poderá aceitá-lo, se ele ocorrer, e aí sua conduta


será dolosa, com dolo eventual, já abordado linhas atrás. Quando prevê a morte da
vítima, mas age acreditando que não ocorrerá, sua culpa é consciente.

No mesmo exemplo anterior, o mesmo policial, Jairo, após chegar a seu quarto,
pode, por estar atento, fazer a previsão de que seu filho possa se apoderar da arma e
com ela causar algum dano, inclusive a si próprio. Todavia, Jairo, levianamente, pensa
consigo mesmo: “Não, não vai acontecer nada. Ele nem viu a arma.” Por essa razão,
ele continua em seu quarto, confiando que nada vai acontecer, quando ouve o disparo,
ao qual se segue a morte da criança. Nesse caso, há culpa consciente. Houve previsão da
morte, porém nela o agente não consentiu, não acreditou que ocorreria, não admitiu
114 – Direito Penal II – Ney Moura Teles

que se tornasse real.

1.3.1.4 Concurso de pessoas

É possível co-autoria ou participação em homicídio culposo?

Autor do crime é quem possui domínio final da ação. No crime culposo, a


conduta dirige-se, normalmente, para um fim lícito, porém é realizada com
inobservância do dever de cuidado objetivo, causando a morte previsível de alguém.

Ora, se duas ou mais pessoas realizam condutas descuidadas e, com elas,


causam a morte previsível de uma pessoa, é óbvio que a causaram negligentemente. Se
dois homens, do alto de um edifício, atiram ao chão um objeto pesado que vem a cair
sobre um transeunte, matando-o, são, ambos, co-autores de um homicídio culposo.

O engenheiro e o mestre de obras, responsáveis pela fiscalização da execução da


construção de um edifício, que permitem, negligentemente, que um operário trabalhe
sem o cinto de segurança e que, em razão desse descuido, vem a cair e morrer em
virtude dos ferimentos sofridos, são co-autores, por omissão, de homicídio culposo.

A co-autoria em crime culposo existirá sempre que os agentes tenham o


domínio sobre suas condutas, positivas ou negativas. Se puderem decidir sobre as
condutas, sobre sua realização, interrupção ou modificação e as realizarem no rumo de
outro fim, mas delas decorrer o mesmo resultado indesejado, serão co-autores do
homicídio culposo.

Participação culposa em crime culposo é inadmissível, porque a participação é


sempre dolosa. Para alguém ser partícipe de um crime, é necessário que tenha
consciência de que o autor irá cometê-lo e vontade de contribuir para sua realização,
sem poder de decisão. No crime culposo, o autor não deseja realizá-lo, logo é impossível
que outra pessoa possa conhecer uma intenção inexistente, para com ela contribuir. Só
é possível a participação dolosa.

O pai que entrega o veículo automotor ao filho menor que, dirigindo-o pela via
pública, vem matar, culposamente, um pedestre não é co-autor nem partícipe do
homicídio culposo. Não é co-autor do homicídio culposo, porque não realizou a
conduta negligente causadora da morte da vítima. Não tinha domínio sobre a conduta
do filho na condução do veículo.

Apesar de atuar com imprudência ao entregar-lhe o veículo e até mesmo de


poder considerar-se previsível que o filho viesse a atropelar e matar uma pessoa, não
poderá ser reconhecida sua participação, porque não há nexo causal entre sua conduta
Homicídio - 115

– de entregar as chaves do veículo – e a morte da vítima.

Há nexo causal entre a morte do pedestre e, tão-só, a conduta do condutor do


veículo que o atropelou. Não se pode regredir aquém da conduta do agente, pois se
assim fora também o vendedor do veículo e seu fabricante deveriam ser
responsabilizados, o que seria um absurdo. Há nexo causal apenas entre a conduta do
pai e a conduta do filho de dirigir o veículo.

1.3.1.5 Culpa própria e culpa imprópria

Culpa própria é a culpa de que aqui se está dizendo, a culpa propriamente dita,
em que o agente dá causa à previsível morte da vítima por negligência, imprudência ou
imperícia.

O que a doutrina chama de culpa imprópria é, na verdade, dolo. Como já foi


dito, ao tratar-se da legítima defesa putativa, o legislador brasileiro, no caso de uma
situação de erro evitável sobre os pressupostos fáticos de uma excludente de ilicitude,
manda puni-lo com a pena do crime culposo.

O crime é doloso, mas a lei manda considerá-lo como se culposo fosse. Assim, o
que se chama de culpa imprópria não é culpa, é equiparação do dolo à culpa.

1.3.1.6 Compensação e concorrência de culpas

Enquanto a lei civil admite a compensação de culpas, quando a vítima contribui,


culposamente, para o resultado lesivo, o Direito Penal não a contempla. O agente que
tiver atuado culposamente, mesmo quando a vítima tenha também colaborado com o
resultado, será, ainda assim, responsabilizado integralmente pela conduta. Ou seja, a
culpa da vítima para o evento não elide a culpa do agente. Somente quando houver
culpa exclusiva daquela, é óbvio, não haverá tipicidade da conduta do sujeito. O
comportamento culposo da vítima será, todavia, levado em conta pelo juiz, no
momento da fixação da pena-base, como circunstância judicial, nos termos do que
dispõe o art. 59 do Código Penal.

Concorrendo duas pessoas para o mesmo evento culposo, laborando ambas com
negligência, numa situação de previsibilidade objetiva do resultado, demonstrando-se
que contribuíram para o resultado morte, as duas responderão. Numa esquina, dois
veículos se chocam, causando a morte de um pedestre. Se se provar que os dois
motoristas agiram culposamente, os dois responderão pelo homicídio.
116 – Direito Penal II – Ney Moura Teles

1.3.2 Aumento de pena

No § 4º do art. 121 estão definidas quatro circunstâncias que impõem o aumento da


pena para o homicídio culposo, em exatamente um terço. Será de um ano e quatro
meses, no mínimo, até o máximo de quatro anos, se presente uma das causas especiais
de aumento de pena.

O homicídio culposo praticado na direção de veículo automotor é um tipo


autônomo, definido no art. 302 da Lei nº 9.503, de 23 de setembro de 1997, o Código
de Trânsito, para o qual é cominada pena de detenção de dois a quatro anos, mais outra
pena restritiva de direito, objeto de comentários adiante expostos.

São as seguintes as causas especiais de aumento de pena do homicídio culposo.

1.3.2.1 Inobservância de regra técnica

A pena será aumentada, se o crime resulta de inobservância de regra técnica


de profissão, arte ou ofício. Para incidir esse aumento, o agente deve ter omitido o
dever de obedecer a uma regra técnica própria de sua profissão, arte ou ofício, portanto
só poderá ser aplicado a profissionais e pessoas que se dedicam a uma dessas
atividades.

Não se deve confundir essa causa de aumento com a imperícia, que é uma das
modalidades de culpa, integrante, portanto, do próprio núcleo do tipo culposo. Na
imperícia, o sujeito demonstra falta de destreza na execução de um procedimento que
deveria executar, como profissional. Imperícia é inabilidade na realização de seu ofício.
É a falta de capacidade técnica. Nessa causa de aumento, o agente nem chega a executar
um procedimento exigido por uma regra técnica ou conforme esta. Ele pode, inclusive,
ser um expert na realização do procedimento; todavia, simplesmente não o realiza.

Essa circunstância de aumento de pena deriva da necessidade de se exigir maior


cuidado dos profissionais, na realização de ações perigosas, como na intervenção
médica, na edificação de prédios, na manipulação de substâncias químicas, todas, por
sua natureza, capazes de causar danos às pessoas.

1.3.2.2 Omissão de socorro

Manda a norma que a pena seja aumentada se o agente deixa de prestar imediato
socorro a vítima. É dever do agente que realiza uma conduta negligente, percebendo
Homicídio - 117

que ela deu causa a um resultado não desejado, procurar, imediatamente, prestar-lhe o
socorro para, se possível, evitar sua morte. Se ele se omite, deverá merecer pena mais
severa.

Se, entretanto, após atingir a vítima, o agente deixar de socorrê-la por ter
percebido que se tratava de um seu desafeto, passando a desejar sua morte, e se se
demonstrar que a morte poderia ter sido evitada, responderá por homicídio doloso,
porque, tendo criado o risco do resultado, passa a ter o dever de agir para impedi-lo.

Só haverá aumento de pena se a vítima ainda estiver viva, é de todo claro, posto
que se houve morte imediata não era mais possível prestar qualquer socorro.

A Lei nº 9.503, de 23 de setembro de 1997, chamada Código de Trânsito


Brasileiro, criou no art. 302 a figura típica do homicídio culposo na direção de veículo
automotor, e no art. 304, a figura típica de omissão de socorro nos acidentes de
trânsito, que serão comentadas adiante.

1.3.2.3 Omissão de solidariedade

Se o agente não procura diminuir as conseqüências de seu ato, também terá sua
pena aumentada. O dever geral de solidariedade mostra-se aqui ainda maior, cabendo a
quem deu causa à morte da vítima procurar, por todos os modos possíveis, minorar as
conseqüências de sua conduta. Se outro tiver prestado socorro à vítima, o agente deve
colaborar, auxiliando, enfim, procurando, por todas as maneiras, solidarizar-se com o
vitimado.

1.3.2.4 Fuga para evitar prisão em flagrante

Por fim, a fuga do agente, para evitar prisão em flagrante, é causa de aumento
da pena. A fuga deve ser, necessariamente, motivada pela vontade do agente de evitar a
prisão, e não pode ser considerada quando ele o faz por medo de alguma represália por
parte de parentes da vítima ou de circunstantes, nem quando se apavora e perde a
capacidade de discernimento quanto a seu dever de permanecer no local.

1.3.3 Homicídio culposo praticado na direção de veículo


automotor
118 – Direito Penal II – Ney Moura Teles

1.3.3.1 Forma típica

A Lei nº 9.503/97, o Código de Trânsito, definiu no art. 302 a seguinte figura


típica: praticar homicídio culposo na direção de veículo automotor, cominando pena
de detenção, de dois a quatro anos e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou
a habilitação para dirigir veículo automotor.

Andou mal o legislador ao construir essa figura típica, pois, como lembrou
DAMÁSIO com propriedade, a descrição típica do homicídio exige o uso do verbo
matar. Discute-se, ainda, sobre a propriedade da cominação de pena privativa de
liberdade mais severa do que a relativa ao homicídio culposo do Código Penal, além da
restritiva de direito. Segundo MAURÍCIO ANTONIO RIBEIRO LOPES, essa
exacerbação da pena é inconstitucional:

“Nada justifica que para a mesma figura penal a pena-base seja diversa. Tal
ofende o princípio constitucional da isonomia e o conseqüente direito subjetivo
do réu a um tratamento igualitário.”26

São justas as duas críticas. Um homicídio culposo praticado na condução de um


veículo automotor não é diferente dos demais homicídios culposos. Em qualquer caso
será, sempre, a causação involuntária da morte previsível de um homem, por
negligência. Não são crimes diferentes, por isso que não podem ter penas diferentes.
Quando muito, pode-se admitir uma causa especial de aumento de pena, mas nunca a
construção de uma figura típica autônoma, porque a estrutura de ambos os fatos é a
mesma, nas duas situações.

Esdrúxula a solução quando se vê que só será apenado mais severamente o


homicídio cometido na direção de veículo automotor e não quando, em via pública, a
morte é causada por um ciclista imprudente que atropela a vítima, causando-lhe lesões
letais. Se a intenção era a de punir mais severamente o homicídio culposo cometido no
tráfego de veículos, a inserção, no tipo, do elemento objetivo veículo automotor não
atendeu, satisfatoriamente, àquela vontade, porque não alcançou todos os veículos em
circulação.

Por outro lado, a maior ou menor gravidade dos crimes culposos não reside no
meio utilizado para sua concretização, mas no grau da previsibilidade objetiva e na
qualidade da inobservância do dever de cuidado objetivo. Esses são os elementos que
podem tornar um homicídio culposo mais reprovável do que outro. Quanto mais
previsível o resultado, maior deve ser a pena. Quanto mais negligente tenha agido o

26 Crimes de trânsito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 204.


Homicídio - 119

sujeito, maior sua reprovação.

Qual homicídio culposo é mais grave: o do pai que brinca com um revólver
municiado na presença de várias crianças vindo a dispará-lo, por imperícia ou
imprudência, matando um infante, ou o do condutor de um veículo automotor que
atropela e mata um pedestre? É claro que o pai agiu numa situação de previsibilidade
mais acentuada e com negligência superior à do motorista. Não só por ser pai, mas por
estar diante de crianças indefesas e brincando com uma arma de fogo, própria para
tirar vidas.

Havendo outras formas de punir mais severamente o condutor de veículos no


trânsito, como a construção de agravantes ou de causas especiais de aumento de pena,
melhor teria feito o legislador se as criasse, não inventando um tipo especial de
homicídio culposo que, por sua autonomia e características peculiares, delito
excepcional que é, não admite formas típicas especiais.

Feitas essas observações, analise-se o tipo. Seus elementos são: causar a morte
previsível de alguém, por negligência, imprudência ou imperícia, na direção de
veículo automotor.

O único elemento a ser analisado nesta quadra, porque os demais já o foram


anteriormente, é o especializante: “na direção de veículo automotor”.

Só haverá esse crime se o agente estiver dirigindo, conduzindo, o veículo automotor.


Estar na direção significa estar no comando, ao volante, dominando os mecanismos de
aceleração, frenagem e sentido dos movimentos do veículo. Se estiver empurrando um
veículo automotor que, por falta de combustível, não dispõe, no momento, de força
propulsora própria, e vem a provocar uma colisão da qual resulta a morte de alguém, o
agente que o empurrava só poderá responder pelo crime do art. 121, § 3º, do Código
Penal.

O Código de Trânsito define, no Anexo I, veículo automotor:

“Todo veículo a motor de propulsão que circule por seus próprios meios e que
serve normalmente para o transporte viário de pessoas e coisas, ou para a
tração viária de veículos utilizados para o transporte de pessoas e coisas. O
termo compreende os veículos conectados a uma linha elétrica e que não
circulam sobre trilhos (ônibus elétrico).”

São veículos automotores o automóvel, a motocicleta, motoneta, ciclomotor,


trator, ônibus, ônibus elétrico, caminhão, caminhão trator, caminhonete, microônibus,
motor-casa (motor-home) e utilitário.
120 – Direito Penal II – Ney Moura Teles

A bicicleta, o bonde, o carro de mão, a carroça, e a charrete não são veículos


automotores; logo, se alguém, na direção de um desses veículos, causa a morte de
outrem, em qualquer lugar, inclusive em vias e áreas de pedestre, por mais
movimentada e perigosa que seja, responderá pelo tipo do art. 121, § 3º.

Na definição legal de veículo automotor não se incluem, ainda, os trens,


inclusive os de metrô, daí que o homicídio culposo cometido pelo maquinista
imprudente ou imperito ajusta-se ao tipo do Código Penal, não ao do Código de
Trânsito.

Na verificação da tipicidade desse homicídio culposo especial, valem todas as


observações feitas acerca do homicídio culposo do art. 121, § 3º, do Código Penal.

Além da pena de detenção, o agente será punido com a suspensão ou a


proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor, por
tempo de, no mínimo dois meses, e no máximo cinco anos. Essa pena será aplicada
cumulativamente com a pena de detenção.

1.3.3.2 Causas de aumento de pena

A pena de detenção será aumentada, de um terço até metade, se o agente: (a)


não possuir permissão para dirigir ou carteira de habilitação; (b) tiver cometido o crime
em faixa de pedestre ou na calçada; (c) deixar de prestar socorro à vítima, quando for
possível fazê-lo sem risco pessoal; (d) estiver, no exercício de sua profissão ou
atividade, conduzindo veículo de transporte de passageiros.

A primeira causa de aumento de pena absorve o crime do art. 309 do Código de


Trânsito – dirigir veículo automotor, em via pública, sem a devida permissão para
dirigir ou habilitação, gerando perigo de dano.

Para incidir a segunda causa de aumento, as lesões causadoras da morte da vítima


devem ter sido provocadas pela conduta do agente na faixa destinada à travessia de
pedestre, ou na calçada, isto é, a colisão ou o choque do veículo com o corpo da vítima
deve ter-se dado num destes locais. Também a omissão de socorro, como causa de
aumento de pena, absorverá o crime do art. 304 do Código de Trânsito.

As causas de aumento de pena do § 4º do art. 121, é óbvio, não se aplicam ao


homicídio culposo cometido na direção de veículo automotor.

1.3.4 Ilicitude
Homicídio - 121

Também nos delitos culposos o agente pode, apesar de realizar um fato típico,
agir em conformidade com o Direito, desde que realize os pressupostos de uma causa
de justificação, dando causa, por negligência, ao resultado não desejado.

Costuma-se dizer que não é possível alguém cometer um homicídio culposo em


legítima defesa, porquanto é da essência desta a repulsa à agressão, que é,
necessariamente e sempre, um comportamento defensivo doloso, em que o defendente
reage com o fim de obstar a agressão, querendo ferir ou matar o agressor, ou pelo
menos agindo com dolo eventual em relação a essa morte. Não se poderia, por isso,
afirmar que os ferimentos causados no agressor, que sejam causa de sua morte, tenham
sido produzidos por conduta negligente, imprudente ou imperita do defendente.
Correto esse pensamento.

Há, porém, uma situação em que não se pode afirmar a impossibilidade da


excludente conviver com o homicídio culposo. É quando alguém em legítima defesa,
defendendo-se de acordo com a norma permissiva, realizando todos os pressupostos
objetivos e o subjetivo, atirar e, por erro de execução, atingir pessoa diversa do
agressor. É, inequivocamente, um caso de homicídio culposo lícito, por legítima defesa,
porque, conforme manda o art. 73 do Código Penal, deve o agente responder como se
tivesse agido contra a pessoa visada, a chamada vítima virtual, não a que, realmente, foi
atingida. Se, em relação ao agressor, sua conduta foi lícita, deve-se entender que, em
relação àquele que ele não desejava atingir, foi igualmente justa.

A essa conclusão se chega, também, pela interpretação da norma do art. 25 do


Código Penal, que considera lícita a repulsa necessária e moderada a uma agressão
injusta, atual ou iminente. O preceito exige que a repulsa se dirija ao agressor, é óbvio –
e no caso ela se voltou, desviando-se para um terceiro, porém, por erro na execução –,
mas não impede o reconhecimento da licitude, que está na conduta e não no resultado.
Aliás, é sempre bom lembrar que a legítima defesa não é licença para matar, mas
autorização para a defesa, para a repulsa, pouco importando qual venha a ser resultado,
que até pode ser a morte, do agressor ou de terceiro, desde que a vontade tenha-se
concentrado na repulsa e a conduta tenha-se realizado com observância rigorosa aos
pressupostos da causa de exclusão da ilicitude.

Pode também ser praticado um homicídio culposo estando o agente em estado


de necessidade. Um exemplo é sempre bom. Vive o agente uma situação de perigo
atual, atacado por um cão bravio, que se soltou do canil onde era guardado. Para livrar-
se do perigo, estando armado, atira contra o animal, vindo o projétil ricochetear e
matar uma pessoa que se encontrava próxima. Não há dúvidas de que agiu ao amparo
da excludente do art. 24 do Código Penal. Nesse caso, agiu sem dolo de matar quem
122 – Direito Penal II – Ney Moura Teles

quer que seja e, admitindo-se previsibilidade e negligência, haverá homicídio culposo,


mas lícito porque a conduta voltou-se para a salvação de um perigo, cumpridos os
demais requisitos do estado de necessidade.

Outro exemplo: o agente, dirigindo seu veículo, vê a sua frente um caminhão


desgovernado vindo em sua direção. Para evitar a colisão, realiza uma manobra
desviadora de seu percurso, mas, por imperícia, acaba por atropelar um pedestre.
Considerando que era previsível e evitável o atropelamento, não se irá negar que o
condutor agiu em estado de necessidade, por ter atuado com o fim de salvar de perigo
atual – que não provocou por sua própria vontade, nem podia, de outro modo, evitar –,
sua própria vida ou sua integridade corporal, ou a dos que com ele estivessem no
mesmo veículo. Conquanto tenha agido com imperícia, matando alguém, terá havido,
nitidamente, um homicídio culposo lícito.

Assim, verificada a presença dos pressupostos da causa de justificação,


especialmente o elemento subjetivo, e podendo-se afirmar, com segurança, que a morte
não foi desejada nem aceita, às vezes nem prevista pelo sujeito, haverá homicídio
culposo lícito.

1.3.5 Culpabilidade

A culpabilidade, viu-se, é a reprovação do fato praticado pelo agente imputável


que, com possibilidade de conhecer o injusto, poderia ter agido de outro modo.

Será culpável o homicídio culposo praticado pelo imputável que tinha a


possibilidade de conhecer a injustiça do fato que praticou, e de ter agido de forma
diferente.

No tipo de homicídio culposo, diferentemente do doloso, há dois elementos


normativos: a inobservância do dever de cuidado objetivo e a previsibilidade objetiva
do resultado, que orientam a valoração feita pelo julgador acerca do fato culposo.
Havendo conduta negligente causadora de um resultado lesivo não desejado, mas
previsível objetivamente, haverá fato típico de homicídio culposo.

O primeiro desses elementos – em qualquer de suas modalidades, redutíveis à


negligência – é elemento integrante do tipo, inerente à conduta, mas que se projeta na
ilicitude, como, aliás, toda a norma incriminadora, a qual, é sabido, contém a proibição,
excluída apenas em situações excepcionais, por uma causa de justificação.

O segundo elemento, a previsibilidade objetiva do resultado, que também


integra o tipo, vai projetar-se na culpabilidade de forma diferenciada, não mais como
Homicídio - 123

aquela previsibilidade geral, considerada normal, exigível do homem médio, mas como
previsibilidade do sujeito do fato concreto objeto da apreciação do julgador. É a
previsibilidade subjetiva.

Para formular o juízo de culpabilidade de um crime culposo, deve o intérprete


verificar se o agente, imputável, tinha a possibilidade de conhecer que sua conduta era,
mesmo, negligente, isto é, ilícita. Em outras palavras, se, nas condições em que se
encontrava, era possível alcançar a consciência de que sua conduta consistia na
inobservância do dever geral de cuidado objetivo.

Assim, também em relação ao delito culposo, pode incidir sobre o fato uma
excludente de culpabilidade, afetando a potencial consciência da ilicitude ou a
exigibilidade de conduta diversa.

Para discernir sobre a possibilidade de agir de outro modo, no crime culposo,


deve o julgador verificar a incidência dessa exigência normativa não somente em
relação à conduta em si, mas, antes, sobre o próprio processo de formação do
conhecimento do injusto.

É possível que o desconhecimento incida sobre o próprio dever de cuidado.


Pode, por erro, necessariamente inevitável, ignorar o dever que tinha de atuar com
prudência.

Noutras situações, a inconsciência do ilícito decorrerá da falsa apreciação da


realidade fática.

Nas duas situações, o sujeito terá atuado sem ter possibilidade de atingir ou
alcançar a consciência da ilicitude.

Tome-se o exemplo dado daquele que, diante do cão bravio solto, atirou, para
salvar-se do perigo, e acabou por, sem dolo, atingir uma pessoa próxima e matá-la.
Matou culposamente, mas agiu ao amparo da excludente do estado de necessidade.

E se o cão, efetivamente, não era bravio mas, ao contrário, um animal


adestrado, que, sem que o agente pudesse perceber, estava em treinamento, com seu
adestrador colocado a certa distância, controlando-o, e não representava, por isso,
qualquer perigo? Um caso de estado de necessidade putativo, com morte culposa. Se as
circunstâncias evidenciarem que não era possível para o agente atingir ou alcançar a
consciência de que sua conduta não era lícita, por não se encontrar, realmente, em
estado de necessidade, não será reprovado. Se não seria reprovado caso tivesse agido
com dolo, com muito mais razão não será reprovado quando tiver dado causa ao
resultado por negligência.
124 – Direito Penal II – Ney Moura Teles

Se, estando o agente em legítima defesa putativa, errar, no momento da execução,


atingindo um terceiro, e não o imaginário agressor, o homicídio culposo que praticou
será desculpado, por não ter tido a possibilidade de conhecer o injusto.

Por fim, a culpabilidade será afastada pela incidência do princípio da


inexigibilidade de conduta diversa, independentemente da previsibilidade, objetiva ou
subjetiva, nem da possibilidade de conhecimento da ilicitude.

Veja-se o exemplo: o condutor do veículo é abordado por delinqüentes em fuga


de um assalto, que entram no carro e o obrigam a empreender determinada rota de
fuga, impondo-lhe, por meio de ameaças graves, com uso de armas, imprimir
velocidade excessiva, imprudente, vindo ele a atropelar e matar um pedestre. Evidente
que agiu sob coação moral irresistível. Há consciência real da ilicitude, consciência de
estar atuando com inobservância do dever de cuidado objetivo, previsibilidade objetiva
e subjetiva, mas, ainda assim, não se pode exigir dele outro comportamento senão o de
atender a vontade de seus coatores.

Haverá, aí, homicídio culposo inculpável. Não há crime, devendo o agente ser
desculpado com a absolvição.

1.3.6 Perdão judicial

Nenhuma pena criminal será aplicada sem que haja necessidade e suficiência
para prevenir e reprovar o crime. Porque a pena não é vingança nem pode ser aplicada
sem uma utilidade ética, o Direito impõe ao julgador, em determinadas situações,
deixar de aplicar a pena, porque ela seria absolutamente desnecessária, sem qualquer
sentido ético, sem qualquer função preventiva ou de reprovação.

Às vezes, as conseqüências materiais ou morais do homicídio culposo atingem


seu agente de forma tão grave, que a sanção penal torna-se absolutamente
desnecessária. Pense-se no pai ou na mãe que, culposamente, na condução de um
veículo em via pública, provoca acidente causando a morte do próprio filho. A perda do
ente querido, mormente quando infante, por ato negligente, traz profundo sofrimento
moral, o sentimento de culpa que perdurará por muito tempo, quando não por toda a
vida. A lembrança de sua conduta causadora de tão grave resultado vai atingir muito
gravemente a consciência desse agente. Impor-lhe pena criminal não será reprovação
maior que a já sofrida com a perda. O fim de reprovação já terá sido alcançado com a
consumação desse crime.

Noutras situações, o próprio agente causador de uma morte não desejada sofre
Homicídio - 125

lesões corporais graves, com importantes conseqüências para a sua saúde física,
restando tetraplégico ou passando por inúmeras cirurgias curativas e recuperadoras,
com sofrimento físico e mental indizível, que, para o Direito, não é mais necessário
impor qualquer sanção penal.

Por isso, o Código Penal, no § 5º do art. 121, faculta ao juiz, na hipótese de


homicídio culposo, não de homicídio doloso, deixar de aplicar a pena cominada.

O perdão judicial será aplicado apenas na hipótese de que o juiz reconheça a


tipicidade, a ilicitude e a culpabilidade do agente, pois se houver alguma causa
excludente do crime, não se iria impor pena alguma, por não ter havido crime. Assim,
reconhecida a prática de crime, e verificando a desnecessidade da imposição de pena, o
juiz concede o perdão judicial, que é uma causa extintiva da punibilidade, consoante a
Súmula 18 do Superior Tribunal de Justiça: “A sentença concessiva do perdão judicial
é declaratória da extinção da punibilidade, não subsistindo qualquer efeito
condenatório.”

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