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HOMICÍDIO
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A vida humana tem começo e fim. Só há homicídio após o nascimento com vida
e antes da morte. Necessário, portanto, determinar esses dois momentos que delimitam
o período de existência da vida humana, protegida no art. 121 do Código Penal. A lei
não estabelece quando começa a vida; portanto, cabe à doutrina buscar o socorro da
ciência para definir esse termo.
A grande maioria dos doutrinadores concorda com a idéia de que a vida extra-
uterina começa com o início do parto. Parto é “o conjunto de processos mecânicos,
fisiológicos e psicológicos tendentes a expulsar do ventre materno o feto chegado a
termo ou já viável”2, que tem como marco inicial o rompimento do saco amniótico.
1 HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1955. v. 5, p. 26.
2 GOMES, Hélio. Medicina legal. 32. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1997. p. 602.
2 – Direito Penal II – Ney Moura Teles
Não é necessário que o ser seja viável. Haverá homicídio ainda que o ser
humano não tenha viabilidade. Mesmo quando se tratar de ser incapaz de sobreviver,
ainda assim sua vida está protegida. Nasceu, ainda que venha a morrer segundos ou
minutos depois, tem a proteção do Direito. Não é necessário que tenha respirado, pois
há situações em que o ser viveu sem ter respirado.
Penso que seres produzidos a partir de células do que hoje é denominado ser
humano, inclusive os clones humanos, devem, em qualquer hipótese, merecer a
proteção do Direito Penal, ainda quando venham a ter algumas ou muitas
características diferentes das dos atuais humanos.
Nesse futuro, que não está tão distante, bastará à doutrina alterar o conceito
atualmente aceito de humano – ser nascido de mulher – para considerar alguém
qualquer ser originado, de qualquer modo, a partir de células obtidas, direta ou
indiretamente, de mulher. Aquele ser que tiver sido produzido a partir de células de
mulher ou de células que vieram de outro ser que adveio de mulher será humano e,
portanto, terá sua vida protegida pelo Direito Penal.
intra-uterina poderá ser aborto (arts. 124, 125 e 126 do Código Penal).
Homicídio com dolo direto é aquele em que o agente prevê que, com sua
conduta, causará a morte da vítima e a realiza exatamente com a finalidade de que a
morte ocorra. Como o dolo é a previsão do resultado (consciência) e a vontade de
produzi-lo – um elemento subjetivo, portanto, verificável no interior da psique do
agente –, sua demonstração, em algumas situações, não é tarefa das mais fáceis.
Homicídio com dolo eventual é aquele em que o agente, prevendo que sua
conduta poderá causar a morte da vítima, realiza-a sem a finalidade de matar, mas, se a
vítima morrer, esse resultado lhe será absolutamente indiferente. Não quer matar, mas,
se matar, “tudo bem”. A demonstração do dolo eventual é ainda muito mais difícil que a
do dolo direto.
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Induvidoso que aquele que, ao ver uma pessoa, pensa em disparar contra sua
cabeça ou seu tórax um projétil de arma de fogo tem plena consciência de que, se agir,
vai atingi-la, bem assim de que o ferimento causará, muito provavelmente, sua morte.
Tendo essa consciência, fazendo essa previsão, e mesmo assim agindo, só é lógico
concluir que queria produzir o resultado.
É previsível, como é óbvio, que com a conduta que pretende realizar poderá,
sem desejar, atropelar Maria. E João faz essa previsão. A seu lado, está José, que o
adverte do perigo. Provado está, portanto, que João fez a previsão. Todavia, João pode
tomar duas atitudes internas: 1ª Responde para José: “Sei que é possível atingi-la, mas
não se preocupe, José, eu não vou atropelá-la. Sou exímio motorista. Não há perigo.”
Em seguida, João impulsiona seu veículo e, sem desejar, nem aceitar, acaba por
atropelar Maria, causando-lhe a morte. 2ª Responde para José: “Sei que é possível
atingi-la, não quero, mas se acontecer, aconteceu. Não me importo.” Em seguida João
movimenta seu veículo e acaba por atropelar e matar Maria.
fato, aconteceu.
consentiu na morte da esposa que tanto amava. Nesse caso, não haverá dolo. Ausente o
dolo, poderá haver homicídio culposo ou um indiferente penal.
Importante discussão, que nos dias atuais ganha cada vez maior importância,
diz respeito aos homicídios praticados no trânsito, especialmente aqueles provocados
por condução perigosa por parte de jovens que se dão à prática dos chamados “rachas”.
O grande problema é saber: quem provoca morte durante os “rachas” age dolosa ou
culposamente?
Daí que não se pode concluir que aqueles que praticam tais condutas estejam
imbuídos daquela atitude interna de não-aceitação, sincera porém leviana, da
Homicídio - 9
O dolo eventual, na prática, não é extraído da mente do autor mas, isto sim, das
circunstâncias. Nele, não se exige que resultado seja aceito como tal, o que seria
adequado ao dolo direto, mas isto sim, que a aceitação se mostre no plano do
possível, provável.
Não basta que este afirme não ter desejado nem aceitado o resultado, é preciso
que o juiz disso se convença, com base na análise profunda de todas as circunstâncias
fáticas.
Evidente que ao julgador caberá emitir sua conclusão acerca dos fatos, e sua
decisão será passível de reexame pela instância superior, afastando, assim, o perigo de
julgamento injusto. O que não se pode aceitar é que, pelo simples fato de ter sido a
morte causada no trânsito, chegue-se à generalização de que é culposa.
É um crime que pode ser praticado pelas mais diversas formas de execução, por
ação stricto sensu ou por omissão, daí que se diz ser um crime de forma livre.
A ação pode ser física, como nos exemplos dados, mas também pode ser moral,
como a de assustar uma pessoa cardíaca ou fragilizada física ou mentalmente, visando
a que ela morra.
Se é verdade que a destruição da vida humana por ação dolosa de outra pessoa
constitui um dos crimes mais graves de nosso ordenamento jurídico, é preciso verificar
que o desvalor da conduta pode ser diferente em cada situação.
Por essa razão, ao lado do homicídio simples, a lei fez derivar, no § 1º do art. 121
do Código Penal, algumas espécies de homicídio que, por circunstâncias especiais em
que é praticado, são merecedores de reprovação menor do que a conferida ao homicídio
simples. “Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou
moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da
vítima”, a pena deverá ser reduzida de um sexto a um terço.
Penso que a diminuição da pena não é uma faculdade do juiz, mas um direito
subjetivo do acusado que tiver a seu favor reconhecida uma circunstância
privilegiadora, pelo Tribunal do Júri – que é o órgão competente para julgar os crimes
dolosos contra a vida.
Seria um contra-senso o júri afirmar o privilégio e o juiz não ficar vinculado a essa
decisão, o que, a meu ver, constitui agressão à soberania do tribunal popular,
assegurada constitucionalmente. DAMÁSIO DE JESUS ensina: “Reconhecido o
privilégio pelos jurados, não fica ao arbítrio do julgador diminuir ou não a pena. A
faculdade diz respeito ao quantum da redução.”4
A dúvida foi espancada com a nova redação do art. 492, inciso I, alínea “c”, do
Código de Processo Penal, dada pela Lei nº 11.689, de 2008, que obriga o juiz, no caso
de condenação, a prolatar sentença na qual imporá as diminuições da pena admitidas
pelo júri.
Homicídio por motivo de relevante valor social é aquele em que o agente age
impulsionado por uma razão de grande importância social. Por valor social deve-se
entender o que diz respeito aos objetivos da coletividade, a ser aferido segundo critérios
objetivos e de acordo com a consciência ético-social geral. Além disso, o valor social que
motiva a ação deve ser relevante, vale dizer, de grande importância, digno da maior
consideração por parte de todos.
Segundo ela, não será qualquer pessoa que poderá ser beneficiada com o
privilégio. Só o cônjuge ou companheiro, o ascendente ou descendente, o irmão ou
irmã, ou uma pessoa ligada por estreitos laços de afeição com a vítima.
Ortotanásia: “Não constitui crime deixar de manter a vida de alguém por meio
artificial, se previamente atestada por dois médicos a morte como iminente e inevitável,
e desde que haja consentimento do paciente ou, em sua impossibilidade, de cônjuge,
companheiro, ascendente, descendente ou irmão.”
seguintes elementos: a vítima deve estar sendo mantida viva por meio artificial; sua
morte deve ser atestada como iminente e inevitável por dois médicos; é necessário o
consentimento da vítima ou, não podendo dá-lo, de seu cônjuge ou companheiro,
ascendente, descendente ou irmão.
Na eutanásia, o agente pratica uma ação para causar a morte da vítima, movido
pela compaixão e a pedido dela. Na ortotanásia, o agente, com o consentimento da
vítima ou de um seu familiar, realiza um comportamento omissivo, deixando de
continuar mantendo a vítima viva por meio artificial. Claro que o desligamento dos
aparelhos é uma ação, stricto sensu, mas o que se exigia antes era a continuidade da
ação de manter a vida artificialmente, e o agente deixa de realizá-la, isto é, deixa de
continuar mantendo a vida por meios artificiais.
Estão corretas as propostas da comissão, uma vez que definem, com rigor, essas
duas situações concretas, impondo exigências a serem observadas pelo órgão julgador.
Os adversários dessas inovações legislativas ora defendidas são muitos. Seus
argumentos são, quase sempre, de natureza moral ou religiosa do tipo “só Deus pode
decidir quando o homem deve morrer”, ou “ninguém pode tirar a vida de outrem”.
A provocação deve ser injusta do ponto de vista objetivo, não do que sobre ela
pensa o agente. Contudo, para se considerar a injustiça da provocação, deve o
intérprete analisar as qualidades e condições pessoais de agente e vítima, de modo a
considerar presente este requisito do homicídio emocional. Há aquele que, pelos
valores que cultua, pode não sentir-se atingido com uma ofensa sobre sua honestidade
no mundo dos negócios e sentir-se afrontado com uma menção depreciativa de seus
atributos físicos ou de suas relações amorosas. Outros reagem de modo exatamente
contrário. Ofensas graves que tenham partido de uma pessoa de pouca credibilidade
podem até ser relevadas por determinada pessoa, ao passo que um simples comentário
crítico oriundo de um homem respeitado pode causar-lhe grande indignação.
O chamado homicídio passional – daquele que mata por ciúmes, pela traição ou
por simples suspeita, ou pelo flagrante de adultério ou, ainda, pela perda da pessoa
amada que o abandonou – tem sido objeto de muitas discussões e decisões as mais
diversas.
Dir-se-á que tais atitudes internas são decorrentes do sentimento de amor que o
agente nutre pela outra pessoa e que a sensação de perda, ou o ciúme, ou, ainda, a
suspeita de traição são capazes de produzir as alterações psicológicas que
desencadeiam o processo emotivo violento. Perderiam aí, esses passionais, a plena
capacidade de determinação e, por isso, mereceriam menor reprovação penal.
Não é assim. Se é certo que o ciúme pode até ser considerado produto do
sentimento de amor, não menos certo que ele seja principalmente fruto do sentimento
de posse ou domínio sobre pessoa, o que, se não pode ser considerado fútil, também
não pode ser entendido como motivo nobre. Daí que a perda da pessoa amada ou a
suspeita sobre sua fidelidade não se ajustam à norma que beneficia o homicida. Sem
que exista uma atuação concreta da vítima, que provoque a reação do agente, o
privilégio seria, na prática, um incentivo às construções mentais destrutivas que podem
acometer, momentaneamente, certos indivíduos.
um só executor”.
O inciso III descreve circunstâncias que se referem aos meios empregados pelo
agente: veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura, ou outro meio insidioso ou cruel, ou do
qual possa resultar perigo comum.
Motivo é a força psíquica que impele alguém a fazer ou deixar de fazer alguma
coisa.
Não creio que essa seja a melhor solução, nem tampouco que a busca da
vontade da lei, nesse caso, deva ser feita à luz da norma do art. 30 do Código Penal.
A descrição típica do inciso I do § 2º do art. 121 não deve ser lida apenas em
Esta é uma solução acima de tudo justa, porquanto tanto repugna o gesto de
quem executa a morte, quanto o de quem a encomendou. O pagamento feito macula
tanto o que o fez, quanto o que o recebeu. O primeiro por não ter considerado a vida
humana senão uma coisa, passível de ser destruída por força do poder de quem dispõe
de numerário capaz de seduzir quem dele precisa. Este, por tê-lo considerado mais
importante que a vida humana.
Assim, o pai que manda matar o estuprador da filha poderá ter a seu favor
reconhecido o privilégio, que pode, perfeitamente, harmonizar-se com a qualificadora
em questão. Será, pois, apenado por um homicídio ao mesmo tempo qualificado e
privilegiado, figura perfeitamente compatível com a vontade do Direito. Terá sua pena,
de 12 a 30 anos, diminuída, de um a dois terços, sem qualquer dificuldade.
É torpe a força que impele o filho a executar ou a contratar a morte dos pais,
com a finalidade de se livrar de sua presença na sua vida, de suas orientações, dos
corretivos normais, para alcançar a liberdade plena, para viver sem controle ou limites
aceitáveis em sociedade. Mais torpe ainda, quando o fim é a obtenção de valores
materiais, a título de herança.
O agente que mata a vítima porque esta lhe pisou o pé, o que mata o garçom
porque este derramou vinho na roupa de sua acompanhante, bem assim o que atinge o
torcedor que comemorou a vitória de seu clube de futebol agem impelidos por
motivação fútil.
compreender o ciúme como um estado relevante, ainda que incompatível com a plena
liberdade individual e o respeito que todos a ela devem dedicar.
Essa é outra questão à qual se dedicam os estudiosos do Direito Penal. Para uns,
o estado de embriaguez do sujeito ativo do crime é absolutamente incompatível com a
futilidade, por não lhe ser possível formular um juízo de proporção entre o motivo e a
conduta. Já outros entendem plenamente harmonizável a alteração psíquica decorrente
da ingestão de substância embriagante com a avaliação do motivo que impele o agente
a praticar o crime.
Neste último sentido, também deve ser considerado veneno o vírus, que é um
elemento gerador de doença, por sua característica de contagiosidade, e que pode ser
introduzido no corpo humano causando lesões ou a própria morte.
insidioso, isto é, dissimulado. A vítima é ludibriada pelo agente, e não percebe sua
intenção criminosa.
A chamada sufocação direta é aquela produzida por uma ação que impede a
entrada do ar no aparelho respiratório através das vias aéreas superiores ou de seus
orifícios externos. Com as mãos ou certos objetos moles, como um travesseiro ou
cobertor, o agente fecha os orifícios superiores do aparelho respiratório. É a chamada
oclusão direta das narinas e da boca. Para ser concluída, é necessário que haja
desproporção de força entre os sujeitos do crime. Ocorre muito nos casos de
infanticídio.
laringe, que se realiza com a introdução de panos, papel, rolha ou outros objetos
adequados, na boca da vítima, obstruindo aqueles órgãos, dando início à supressão do
processo respiratório.
quantidade de líquido, água ou outro, nos pulmões, através das vias respiratórias.
A definição dos crimes de tortura é uma exigência mundial, antes mesmo de ser
uma ordem constitucional. A Declaração Universal dos Direitos do Homem, em seu art.
V, estabeleceu que “Ninguém será submetido à tortura ou a tratamento ou castigo
cruel, desumano ou degradante”.
12 Tortura – Breves anotações sobre a Lei nº 9.455/97, Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 19, p. 65.
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Meio cruel é todo aquele que importa para a vítima um padecimento físico ou
mental além do necessário e suficiente para a consumação do homicídio. É o
sofrimento desnecessário, inútil. Muitos podem imaginar que a reiteração ou o excesso
de golpes perpetrados pelo agente contra a vítima constitui meio cruel de execução do
homicídio. Não necessariamente. Pode ocorrer que já ao primeiro golpe a vítima perca
os sentidos ou mesmo venha a óbito, o que, à evidência, não importa em sofrimento
desnecessário ou excessivo.
Também incidirá essa qualificadora quando o agente utilizar outro recurso que
dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido. Outra vez o Código Penal determina
ao intérprete que realize uma interpretação analógica. Deve analisar o modo como o
homicídio foi praticado e, se concluir que esse modo é análogo à traição, à emboscada
Homicídio - 33
A primeira figura é a do que mata com o fim de tornar possível ou mais fácil a
realização de outro crime, não sendo indispensável que este venha a ser executado.
Basta que o agente tenha matado com a finalidade de assegurar a execução do outro
crime. Esse crime pode, inclusive, ser outro homicídio, já que a lei não restringiu essa
possibilidade.
Vejam-se os exemplos:
a) Carlos, desejando matar Maria, casada com Joaquim, ingressa no quarto do casal,
imaginando que estariam dormindo, quando é surpreendido com o marido acordado;
mata-o, então, para, em seguida, disparar vários tiros de revólver contra Maria que,
nada obstante Carlos imaginá-la dormindo, já estava morta em virtude de um ataque
cardíaco ocorrido duas horas antes;
c) João, com dolo de matar, dispara arma de fogo contra Manoel, que não morre
imediatamente. Pedro socorre Manoel e vai levá-lo ao hospital quando João o mata,
para assegurar a consumação do homicídio contra Manoel.
Qual solução se deve dar para essas três situações? Na primeira, o homicídio é
cometido com a finalidade de cometer um crime impossível, porque o objeto é
absolutamente impróprio. Maria não era mais alguém. Não havia Maria. Havia o corpo
de Maria. E o agente cometeu o homicídio contra Joaquim, para assegurar a prática de
um crime cuja consumação era impossível.
No último exemplo, o agente mata alguém para assegurar não a execução, mas a
consumação de outro crime.
motivo de busca da solução mais justa. Mesmo porque não há necessidade, nas três
situações, de utilizá-la, uma vez que os três homicídios serão igualmente qualificados,
já que, nas três situações, dúvidas não podem restar de que a motivação dos agentes, ao
matarem as vítimas, é, nas três hipóteses, induvidosamente torpe, abjeta, repugnante,
aplicando-se-lhes, por isso, a qualificadora do inciso I, e não a do inciso V, do § 2º, do
art. 121.
Impõe-se maior reprovação porque, nas duas situações, o sujeito busca um fim
abjeto, repugnante, desvalorizando uma vida humana por puro egoísmo, para livrar-se
da aplicação da lei penal.
Não é necessário que o outro crime tenha sido praticado pelo mesmo sujeito do
homicídio. Ele pode matar alguém para assegurar a execução de um crime a ser
perpetrado por outro, ou para assegurar a ocultação, impunidade ou vantagem de
crime praticado por terceira pessoa.
O homicídio e o outro crime são dois crimes conexos, e não um crime complexo
– como é a hipótese de latrocínio –, daí que o agente, na hipótese de ter sido também o
autor ou partícipe do outro crime, responderá por ambos os delitos, em concurso
material.
Assim, toda e qualquer circunstância que estiver presente num fato, que nele se
intrincar, seja ela própria do agente, seja do crime em si, deve ser considerada pelo
julgador. E só não o será por força de um mandamento legal expresso, como é o caso da
preponderância das atenuantes de caráter pessoal sobre as agravantes. Existe aí norma
nesse sentido, a do art. 67 do Código Penal.
Assim, não é possível um homicídio por motivo fútil ser cometido por motivo de
relevante valor moral ou social. Não é possível ser ao mesmo tempo insignificante e
relevante. Mas, viu-se, é possível um homicídio mediante paga ser cometido por motivo
de relevante valor moral, em situação excepcionalíssima. Normalmente, entretanto, o
que repugna não pode ser importante do ponto de vista dos valores sociais.
hediondez, não se pode imaginar que um homicídio cometido por motivo de relevante
valor moral seja equiparado aos crimes de maior gravidade, como o são todos os
rotulados de hediondos. A relevância moral ou social e o estado emocional decorrente
de uma provocação injusta da vítima não se compatibilizam com a hediondez.
Não basta a existência de uma conduta dolosa e um resultado morte. Entre ambos
deve haver nexo de causalidade. É a relação de causa e efeito indispensável para atribuir, ao
agente da conduta, a responsabilidade pela causação da morte da vítima.
O Código Penal brasileiro adotou, no art. 13, a teoria da equivalência das condições –
conditio sine qua non – para resolver o problema do nexo causal, restringindo-a com a
norma do § 1º, que manda excluir a imputação do resultado quando uma causa
superveniente relativamente independente tiver, por si só, produzido o resultado.
Causa é aquilo de que uma coisa depende para existir, é o que determina a
existência da coisa. Todos os antecedentes causais – a condição: que permite a uma
causa produzir seu efeito, seja como instrumento ou meio, seja afastando obstáculos à
produção do resultado; a ocasião: uma circunstância acidental que cria condições que
favorecem a produção do resultado; a concausa: a confluência ou concorrência de mais
de uma causa na produção do mesmo resultado – são equivalentes, todavia, o julgador
deve partir da conduta do agente, desconsiderando todos os antecedentes desta, que
não guardam qualquer relação com o resultado. O marco inicial é a conduta
examinada. Tudo que a antecede, não importa. Não fora assim, a imputação do
resultado alcançaria até mesmo o vendedor e o fabricante da arma utilizada no
homicídio.
Imagine-se um fato com a seguinte série causal: Álvaro dispara um tiro de revólver
contra a pessoa de Alfredo, atingindo seu tórax. Seguem-se: socorro a Alfredo numa
ambulância, onde desmaia; instalação de um processo hemorrágico; perda de sangue;
chegada ao hospital; internação; submissão à cirurgia para retirada do projétil instalado no
pulmão e combate ao processo infeccioso decorrente dos vários ferimentos produzidos pela
trajetória do projétil; morte da vítima, atestada como pneumonia bilateral, de estase
severa, secundária a ferimento por projétil de arma de fogo.
Outra série causal: Marcos dispara uma arma de fogo contra Antonio, que
sobrevive. Paulo, seu desafeto, sem saber da conduta de Marcos, entra no local onde o
ferido se encontrava e efetua um disparo contra sua cabeça, vindo Antonio a morrer,
imediatamente. Eliminando-se, mentalmente, a conduta de Marcos, chegará o
intérprete à conclusão de que, mesmo assim, o resultado morte teria ocorrido, daí que
não pode ser imputado à conduta de Marcos, mas sim à de Paulo.
Se é certo que Fausto desejava, pretendia, queria matar, tanto que disparou a arma
contra Augusto, não menos certo é que, efetivamente, realmente, não conseguiu matá-
lo. Não foi, realmente, o ferimento causado por Fausto que produziu a morte da vítima.
Dir-se-á que, de qualquer modo, a vítima morreria, uma vez que os ferimentos e as
lesões deles decorrentes eram, mesmo, de molde a produzir a morte. Ainda que se
concordasse com essa afirmação, é de ver que, todavia, antes que tal ocorresse, outra
causa interveio no processo causal e produziu a morte.
Não se sabe, com absoluta certeza, e nunca se saberia. Nenhuma ciência, nenhum
equipamento, nenhuma máquina, nem tampouco um humano podem afirmar, com
total e absoluta certeza, que a morte ocorreria de qualquer modo. Só Deus poderia
afirmá-la, mas ele não é operador do Direito dos homens.
Impossível tal certeza por uma razão muito simples: antes do processo causal
inaugurado pela conduta de Fausto ter sua continuidade e conclusão, culminando com
a morte de Augusto, outra causa, autônoma, com potencialidade própria, com eficiência
independente, determinou a produção da morte, modificando o primeiro processo
causal inaugurado pela conduta delituosa. A nova causa alterou o primeiro processo
causal que, tudo indica, levaria ao evento letal, e instalou um novo processo causal que
levou à morte, impedindo o primeiro processo de concluir-se. De modo que ficou
impossível afirmar que o primeiro processo chegaria a seu termo com resultado
idêntico.
Tanto que, analisando-se o preceito do § 1º desse art. 13, verifica-se que seu
âmago, sua essência, sua substância está não somente na superveniência da causa, mas
também em sua potencialidade lesiva, o que revela que a intenção da lei é a de
considerar excludente da imputação do resultado aquela causa que, por sua essência,
seja capaz de, sozinha, produzir o resultado morte. E assim o quis porque, diante de
duas causas concorrentes, que se interligam, interagem, ou concausas, uma delas a
conduta do agente, a outra de outra origem, sendo uma delas preponderante, a esta
será atribuído o resultado morte.
Por ter-se referido a essa outra causa preponderante, autônoma e capaz, de per
si, de produzir o resultado, a norma utilizou a expressão superveniente não com o fito
de exigir que, necessariamente, ela se originasse, no tempo, na posição de
posterioridade. A superveniência diz respeito a sua materialização ou concretização,
mas não quer dizer que sua origem tenha que ser, necessariamente, posterior à
conduta.
do agente. Ela, a causa, não é superveniente; sua atuação, contudo, o é. Ela não é
originariamente superveniente, mas atuou supervenientemente. Não nasceu depois, mas
atuou a posteriori.
Assim, é de todo claro que a vontade da norma é abarcar toda causa que, por si
só, seja capaz de produzir o resultado, e que tenha atuado ou interagido após a conduta
do agente. Sua manifestação, sua concretização, sua ação lesiva devem,
necessariamente, interferir no processo causal inaugurado pela conduta do agente. Por
isso que deve ser superveniente. Não deve, necessariamente, ter surgido, sido criada,
produzida depois da conduta, mas sim produzido seus efeitos após a conduta do agente.
sua criação, atuar, todavia, após a conduta do agente e, mais importante, tiver por si só
produzido o resultado, excluirá a imputação deste ao agente da conduta.
Nesse caso, o agente responderá apenas pelos atos praticados. Se queria matar,
responderá por tentativa de homicídio. Se seu desejo era apenas o de ferir, responderá
pelo crime de lesão corporal.
Sem dolo de matar, não se pode falar em tentativa de homicídio. O agente deve
ter a vontade de causar a morte, ou pelo menos aceitá-la como resultado provável
previsto.
Para haver tentativa, é indispensável que o agente realize algum ato executório.
Haverá início de execução quando o comportamento do agente começa a realizar o tipo.
Apontar a arma de fogo na direção da vítima pode já constituir o primeiro ato de
execução. Assim também quando aponta e dispara a arma, inicia o desferimento do
golpe de faca, dissolve o veneno no copo que contém água, e o entrega à vítima, quando
Homicídio - 47
a empurra no precipício ou no rio onde quer que ela se afogue, enlaça seu pescoço
visando estrangulá-la ou a conduz para o ambiente fechado onde pretende que ela
morra confinada.
bens que o infante adquirira por sucessão de sua mãe, recentemente também falecida.
Omite-se, portanto, inequivocamente com dolo de matar. Está, assim, na iminência de
consumação um homicídio doloso, comissivo por omissão, pois, exímio nadador, em
seu perfeito juízo, com plena consciência e vontade, decide ficar inerte. No exato
momento em que José está quase se afogando, chegando a engolir água, Edson chega
no local e atira-se, incontinenti, na piscina e retira-o da piscina, impedindo seu
afogamento e sua morte. Inequivocamente, houve tentativa de homicídio comissivo por
omissão.
Importante dizer que tanto numa quanto na outra situação o agente deve atuar
voluntariamente, movido exclusivamente por sua vontade. Se a desistência de efetuar o
segundo tiro se der pela chegada da polícia, ou se o agente conduzir a vítima ao hospital
sob ameaça de outras pessoas, haverá tentativa de homicídio, pois a não-consumação,
nesses casos, terá decorrido de circunstâncias alheias à vontade do agente.
14 Código penal e sua interpretação jurisprudencial. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. p. 164.
50 – Direito Penal II – Ney Moura Teles
Ora, se quando o resultado não ocorre por razões alheias à vontade do agente, a
tipicidade se altera, com muito mais razão ela se alterará quando o resultado não
acontecer porque o próprio agente alterou sua conduta, com a mudança de sua
intenção, de sua vontade.
Num primeiro momento, ele queria alcançar o resultado, mas, depois, ele
mesmo quer, e consegue impedir que ele aconteça. O dolo de matar, inicialmente vivo
na cabeça do agente, dá lugar, por sua própria decisão, a outro dolo, o de salvar o bem
jurídico, deixando de prosseguir na execução, ou impedindo a produção do resultado.
Houve, inicialmente, uma conduta dolosa de matar, portanto típica de homicídio.
Depois, por decisão do próprio agente, o dolo cedeu lugar para outra finalidade,
positiva, louvável, lícita, protetora do bem jurídico.
1.2.7.5 Resumo
b) a execução se completa, mas, ainda assim, o resultado morte não ocorre por
circunstâncias alheias à vontade do agente. Há tentativa de homicídio.
Tentativa perfeita ou crime falho;
O Código Penal adotou, em seu art. 29, a seguinte norma geral, para alcançar as
condutas daqueles que tiverem concorrido para a realização de um crime: “Quem, de
qualquer modo, concorre para o crime, incide nas penas a este cominadas, na medida
de sua culpabilidade.” Como visto, não definiu, com precisão, o conceito de autor ou
co-autor do crime, deixando para a doutrina a tarefa de esclarecê-lo.
Várias teorias foram formuladas a respeito da matéria, mas a lei brasileira não
se comprometeu, expressamente, com nenhuma delas. Segundo ALBERTO SILVA
FRANCO,
“no entanto, na medida em que introduziu o dolo na ação típica final, como se
pode depreender da conceituação de erro sobre o tipo, na medida em que
aceitou o erro de proibição e, finalmente, na medida em que abandonou o
rigorismo da teoria monística em relação ao concurso de pessoas,
reconhecendo que o agente responde pelo concurso na medida de sua
culpabilidade, deixou entrever sua acolhida às mais relevantes teses finalistas,
o que leva à conclusão de que abraçou também a teoria do domínio do fato”16.
16 Código penal e sua interpretação jurisprudencial. 7. ed. rev. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. v. 1,
p. 483.
Homicídio - 53
realizar qualquer parte do procedimento típico, poderá ser o autor, desde que tiver
previamente determinado a outros que o realizassem. Mesmo não executando, nem
parcialmente, qualquer ação típica, mas se a tiver planejado, organizado, dela será
autor. Sim, porque assim agindo, terá dado início à realização intelectual do
procedimento típico e, por essa razão, insere sua conduta na realização da conduta
ajustada ao tipo. Esse é o autor intelectual.
A pessoa que tiver concorrido para um homicídio sem poder decidir sobre sua
consumação não é autor. Não tendo domínio sobre a ação final, não é autor, porque,
nesse caso, a ação final está sob o domínio de outrem. É tão-somente partícipe do
homicídio. Partícipe é quem contribui, sem realizar diretamente qualquer ato do
processo de execução, para o fato típico que está sob o domínio final de outra pessoa.
Para haver participação, é essencial que o partícipe tenha atuado com dolo. Com
vontade de colaborar para o homicídio, ou, pelo menos, com a previsão e aceitação da
própria colaboração para com o resultado morte de outrem. Deve, por isso,
necessariamente, ter consciência de que seu comportamento é contributivo para com o
procedimento típico que está sob o domínio do autor, intelectual ou executor.
Claro que não. Ele não tinha consciência de que estava colaborando para um
homicídio logo, dele não teve vontade de participar, por isso que não será partícipe.
A participação admite gradação em sua importância causal. Ela pode ter maior ou
menor importância no processo causal. Pode ser mais eficiente ou menos eficiente.
Cumpre, portanto, no caso concreto, analisar o grau da atuação de cada partícipe para
considerá-la de maior ou de menor importância. É o que determina o § 1º do art. 29 do
Código Penal: “Se a participação for de menor importância, a pena pode ser
diminuída de um sexto a um terço.”
Se com esse raciocínio hipotético a série causal puder prosseguir sem grandes
dificuldades, a participação é de menor importância. Do contrário, se o processo causal
encontrar barreiras mais dificilmente contornáveis, a participação terá sido de maior
importância.
Será partícipe?
Penso que não é autor, porque na realidade não teve domínio do fato, na
medida em que não conseguiu decidir sobre sua interrupção, tendo o evento criminoso
decorrido da própria vontade do executor, que o terá tomado para si, por motivação
própria. É, entretanto, partícipe do crime, porque fez nascer, na mente do executor, a
idéia homicida.
Duas ou mais pessoas podem concorrer para o mesmo crime, com dolos
diversos. Pode haver um homicídio em que um concorrente, o autor intelectual ou um
partícipe, tenha agido com outro dolo, não o de matar, mas o de lesionar. Veja-se o
exemplo.
Marcelo determina a Sílvio que vá até o Bar de Alfredo e dê-lhe uma boa surra,
um espancamento para não deixar saudades. Sílvio, entretanto, excede-se e acaba
matando Alfredo. Marcelo desejava apenas produzir lesões corporais, mas Sílvio
acabou por matar, dolosamente, a vítima. Seus dolos foram, portanto, distintos,
diversos.
Qual a solução?
concorrente não pode fazer a previsão do resultado morte. Nesse caso, vai responder
pelo crime de lesão corporal, e o executor responderá por homicídio. O meio cruel
empregado pelo autor do homicídio não pode ser atribuído ao partícipe que não podia
prever sua utilização.
Quando ele tenha, porém, consentido na realização do crime mais grave, por ele
responderá, considerando a eventualidade de seu dolo, também na medida de sua
culpabilidade.
Quando o resultado mais grave era previsível, mesmo respondendo pelo delito
mais leve, terá a pena aumentada consideravelmente, de metade, porque maior a
reprovabilidade de sua conduta.
Circunstâncias, para os fins do Direito Penal, são dados que ora integram, ora
se ligam aos tipos, com a finalidade de fazer aumentar ou diminuir a pena cominada.
Umas têm natureza objetiva; outras, subjetiva.
pessoal elementar, exceto o dolo, que, por isso, comunica-se sempre aos que para ele
concorrem. Outras circunstâncias pessoais existem apenas nas formas privilegiadas e
qualificadas do homicídio, mas são elas circunstâncias acidentais, e não integrantes do
tipo fundamental. Logo, nenhuma delas se comunica ao concorrente, partícipe ou co-
autor.
Outro exemplo: após estuprar a vítima, o sujeito mata-a. São duas ações
distintas, dois crimes distintos. Responderá por ambos, e se a tiver matado para
assegurar a impunidade ou a ocultação do crime de estupro, será apenado por um
estupro e um homicídio qualificado. Se a matar por mero prazer, será qualificado pela
torpeza do motivo. Não é a mesma hipótese quando o agente tiver usado violência na
realização do estupro e dela resultar a morte da vítima, caso em que responderá por
estupro seguido de morte, cuja pena será de 12 a 25 anos. Essa hipótese ocorre quando
a morte decorreu de negligência do agente. É crime preterdoloso. Agiu com dolo de
estuprar, e teve culpa na morte.
Para o concurso formal perfeito, aplica-se apenas uma das penas, a mais grave,
se distintas, aumentada de um sexto até metade. Se, porém, ao realizar a operação de
aumento da pena do crime mais grave, o juiz chegar a um quantum superior ao que
chegaria caso utilizasse a regra do concurso material, cumulando-as, deverá então
aplicá-las cumulativamente. Por exemplo, num concurso formal perfeito entre um
homicídio qualificado e uma lesão corporal simples. Se aplicar pena mínima para o
homicídio qualificado, 12 anos de reclusão, e aumentá-la do mínimo, 1/6, chegará a
uma pena definitiva de 14 anos, ao passo que, se forem simplesmente somadas as penas
para os dois crimes, a pena definitiva seria de apenas 13 anos de reclusão. Nesse caso,
mesmo tendo havido concurso formal, o juiz aplicará a regra do concurso material, daí
que a doutrina denomina essa situação de concurso material benéfico.
O crime continuado é uma criação jurídica que, tanto quanto o concurso formal,
resulta em punição menos severa ao agente que comete mais de um crime. No concurso
formal, como se viu, aplica-se apenas uma das penas, aumentada até metade. No crime
continuado, em vez de cumular as penas dos vários crimes, manda a lei seja aplicada a
pena de um dos crimes, a mais grave se diversas, aumentada, porém, de 1/6 a 2/3. É
um critério mais severo do que o do concurso formal.
Haverá crime continuado quando o agente realizar mais de uma conduta e com
elas praticar mais de um crime, porém da mesma espécie, e que guardem, entre si, um
nexo de continuidade materializado por meio de certa homogeneidade ou uniformidade
de suas circunstâncias de natureza objetiva. É a regra do art. 71 do Código Penal.
Com a reforma, entretanto, a discussão ficou encerrada, uma vez que o novo
texto legal admite a continuidade delitiva quaisquer que sejam os crimes, inclusive
contra vítimas diferentes. É o que se encontra no parágrafo único do art. 71:
Para haver crime continuado, é preciso que os crimes sejam da mesma espécie,
e que haja nexo de continuação.
Parte da doutrina entende que são da mesma espécie apenas os crimes previstos
no mesmo tipo penal, porque possuem os mesmos elementos descritivos, abrangendo
Homicídio - 63
Crimes da mesma espécie, a meu ver, são aqueles que violarem o mesmo bem
jurídico. São os crimes cujos tipos tiverem o mesmo objeto jurídico. A idéia de espécie
pressupõe a de gênero. Assim, homicídio e aborto e infanticídio são espécies do gênero
de crimes contra a vida. Será possível, assim, haver continuação entre um homicídio e
um aborto, e um infanticídio.
No caso sub judice, a peça vestibular, bem como o libelo, apontam a ocorrência
de um homicídio qualificado e em seguida a tentativa de cometimento de outro
homicídio, pelas mesmas autoras e em circunstâncias objetivas homogêneas.
Destarte, configura-se a continuidade delitiva, e não o concurso material.
Em qualquer hipótese, entretanto, a pena não pode ser superior à que caberia
caso fosse aplicada a regra do concurso material, nem ser superior a 30 anos.
qual são tipos especiais as normas dos §§ 1º e 2º do mesmo art. 121. Os homicídios
privilegiados são tipos especiais em relação ao tipo do homicídio simples. Os
homicídios qualificados são, igualmente, especiais em relação ao homicídio simples.
Entre eles, portanto, há relação de gênero para espécie. É só olhar os elementos:
O homicídio, por isso, absorve todos os demais delitos que sejam suas frações,
partes, conteúdos. Se o agente entra à noite na casa alheia para matar a vítima que
dormia só responderá pelo homicídio, que terá absorvido a violação do domicílio.
Também não responderá pelas lesões causadas, nem tampouco pelo disparo da arma e
seu porte ilegal.
O erro é uma falsa percepção da realidade. É próprio do ser humano e por isso o
Direito dele cuida, nos vários momentos em que surge no mundo jurídico. Há várias
espécies de erro: erro de tipo, erro de proibição, evitável e inevitável, erro sobre a
pessoa e erro na execução do delito. É destes dois últimos que se cuida neste item. Os
demais serão analisados adiante.
O dolo abrange o fim, os meios e os efeitos secundários. Por isso, tendo o fim de
matar, nas circunstâncias em que agiu, o dolo abrange todos os efeitos secundários
alcançados pelo processo causal final desencadeado pelo sujeito.
Se o agente queria matar uma pessoa e, por erro sobre sua identidade, acabou
por matar o próprio pai, não se considerará essa qualidade da vítima real, mas sim as
da vítima virtual. Não haverá agravante da pena. Se queria matar o próprio pai mas,
por equívoco quanto a sua identificação, acabou por matar o tio, irmão gêmeo do pai,
responderá como se a este tivesse matado, tendo, por isso, sua pena agravada nos
termos do art. 61, II, e, do Código Penal.
68 – Direito Penal II – Ney Moura Teles
São duas as modalidades de aberratio ictus: com resultado único e com mais de
um resultado.
Pablo, desejando matar Carlos Alberto, atira e, além de atingir seu desafeto,
atinge também a pessoa de Rogério. A parte final do art. 73 determina que, nesses
casos, deve-se aplicar a regra do art. 70, que define o concurso formal de crimes. Desse
exemplo pode decorrer o seguinte:
b) Carlos Alberto é morto e Rogério sofre lesões corporais. Concurso formal entre
Homicídio - 69
Ainda que não haja regra expressa, vale a observação do parágrafo único do art.
70, segundo a qual a pena não pode exceder aquela que seria aplicada segundo a regra
do concurso material.
Aqui há desvio na execução em relação ao bem jurídico, não de uma pessoa para
outra. O agente, desejando matar alguém, atinge uma coisa material ou, ao contrário,
pretendendo danificar uma coisa, mata uma pessoa.
O agente, almejando quebrar os vidros de uma casa, atira contra eles uma barra
de ferro, vindo a atingir uma pessoa que, ferida na cabeça, morre. Há homicídio
culposo.
Outra hipótese. O agente, buscando matar uma pessoa, atira e erra, atingindo
apenas a vidraça de uma casa. Não existe o crime de dano culposo, por isso só
responderá, em relação à coisa, civilmente. No entanto, houve uma tentativa de
homicídio.
70 – Direito Penal II – Ney Moura Teles
É a solução adotada pelo Código Penal, simples e justa, para essas hipóteses:
“Quando, por acidente ou erro na execução do crime, sobrevém resultado diverso do
pretendido, o agente responde por culpa, se o fato é previsto como crime culposo; se
ocorre também o resultado pretendido, aplica-se a regra do art. 70 deste Código” (art.
74, CP).
Claro que se tiver agido, em relação ao outro resultado, com dolo eventual,
aplicar-se-á a regra do concurso material de dois crimes dolosos, porquanto terão
decorrido de desígnios autônomos (art. 70, caput, parte final).
O erro, já foi dito aqui, é uma falsa apreciação da realidade. No dia-a-dia, muitas
vezes o ser humano realiza determinados comportamentos violadores de normas
jurídicas simplesmente por ter examinado a realidade de forma inexata. Essa
apreciação equivocada dos fatos verdadeiros leva-o a comportar-se sem a perfeita
consciência e, de conseqüência, com vontade viciada. Age errando.
Erro de tipo é aquele que incide sobre um dos elementos constitutivos do tipo
legal de crime. Haverá erro de tipo, em relação ao crime de homicídio, quando o agente
errar sobre o elemento “alguém”, contido no tipo do art. 121 do Código Penal. Ele age
imaginando que está atirando não em uma pessoa, mas noutra coisa ou objeto, num
animal, por exemplo. O agente atira na pessoa por ter apreciado mal a realidade. Viu,
Homicídio - 71
numa pessoa, o que não lhe pareceu ser alguém. Pensou que fosse um animal ou
qualquer coisa, menos uma pessoa. Tivesse percebido que se tratava de uma pessoa,
não teria atirado. Todavia, não viu como deveria ter visto. Não percebeu que a sua
frente, na linha do tiro que disparou, havia uma pessoa. Imaginou que fosse tudo,
menos alguém. É evidente que errou.
Ora, quem assim age não tem consciência do fato que pratica. Ter consciência
do fato é ter consciência da própria conduta, do resultado que pode ser produzido, e ter
consciência do nexo causal entre conduta e resultado. Ter consciência do fato é saber
que, com a conduta, vai produzir o resultado.
Se o sujeito não tem consciência de que, com sua conduta, vai matar alguém,
porque desconhece que na linha do tiro que vai disparar encontrava-se uma pessoa,
não tem, ao agir, nenhuma consciência do resultado que vai causar.
Não sabendo que, com o tiro que vai disparar, irá matar uma pessoa, é óbvio
que também não tem vontade de matá-la. Logo, não está agindo com dolo, pois que
dolo é, sempre, consciência e vontade. Previsão do resultado e vontade de produzi-lo,
ou, pelo menos, aceitá-lo, se ele eventualmente ocorrer.
Por isso, quem age errando sobre o elemento alguém, do tipo de homicídio, age
sem dolo.
Se age sem dolo, deve-se entender, de conseguinte, que age culposamente, isto
é, por negligência, imprudência ou imperícia, causa um resultado lesivo não desejado,
mas que, sendo previsível, podia, nas circunstâncias, ter sido evitado se o sujeito
atuasse com o dever de cuidado objetivo.
É verdade que, na maioria das vezes em que o sujeito erra sobre ser alguém o
objeto ou coisa que atinge, poderia ele, com as cautelas devidas, evitar a morte
indesejada, todavia, sendo negligente, acaba por causá-la. Quando o erro poderia ter
sido evitado, isto é, quando o sujeito nele incorre por negligência, diz-se que agiu por
erro de tipo evitável.
O erro de tipo também pode ser inevitável, quando o resultado for imprevisível.
Erro de tipo inevitável é aquele no qual, nas circunstâncias em que o sujeito se
encontrava, qualquer pessoa normal também incorreria, mesmo utilizando todos os
procedimentos recomendados pela cautela e pelo bom-senso. Mesmo com toda atenção
exigível ao comum dos homens, qualquer um nele incorreria. Se isso acontecer, dir-se-á
que o sujeito age por erro de tipo inevitável.
Ora, viu-se que, agindo por erro sobre o elemento alguém, o sujeito age sem dolo,
mas remanesce a atuação culposa, negligente. Se, porém, o agente adotou todas as
72 – Direito Penal II – Ney Moura Teles
cautelas, observou o dever de cuidado objetivo, não foi negligente, nem imprudente, nem
imperito, e mesmo assim acabou causando a morte de alguém, só se pode concluir que,
naquelas circunstâncias, em que qualquer um também teria errado, não lhe era possível
alcançar a consciência do fato, isto é, de conduta e resultado. Não era possível antever o
resultado morte, por sua absoluta imprevisibilidade.
Sendo o resultado morte imprevisível, não era possível evitá-lo. Assim, sendo
inevitável o erro, também não haverá culpa, stricto sensu. Nesse caso, não há crime
algum, porque não tendo havido dolo, nem negligência, não há tipicidade.
Há, portanto, duas espécies de erro de tipo. O erro de tipo evitável – aquele em
que o agente erra sobre o elemento alguém, quando podia, com a devida cautela, com a
prudência exigida ao homem médio, tê-lo evitado – exclui o dolo. E o erro de tipo
inevitável – em que qualquer pessoa, mesmo adotando todas as cautelas, ainda assim
nele teria incorrido, por ter sido impossível, naquelas condições, antever o resultado
lesivo indesejado –, que exclui o dolo e a culpa, stricto sensu.
O erro de tipo está no art. 20 do Código Penal: “O erro sobre elemento constitutivo
do tipo legal de crime exclui o dolo, mas permite a punição por crime culposo, se
previsto em lei.”
Outro exemplo. Está um homem praticando tiro ao alvo num clube, no qual todos
os cuidados são exigidos, com controle de entrada e saída de pessoas, fiscalização
rígida, enfim, num local onde os disparos de arma de fogo são efetuados dentro da mais
absoluta segurança. Um esporte legalizado, autorizado e fiscalizado rigorosamente pelo
poder público. No momento em que vai efetuar um disparo, contra o alvo de madeira a
sua frente, no stand próprio, uma pessoa surge, inesperadamente, na linha de tiro e
recebe o projétil, vindo a morrer. Não houve dolo, nem culpa, por ser imprevisível e
inevitável a presença daquele estranho, que burlara toda a segurança, e o resultado
morte. Houve erro de tipo inevitável, que, excluindo o dolo e a culpa, stricto sensu,
exclui a própria tipicidade. Não há crime.
1.2.13 Ilicitude
Homicídio - 73
Quando o Direito não puder proteger um bem jurídico que esteja prestes a
sofrer uma lesão, pela presença atual de um perigo de lesão, deve permitir que seja
sacrificado outro bem, de valor menor ou relativamente igual, ainda que de um
inocente, desde que não haja outra saída. Há, portanto, dois bens como se, em rota de
colisão. Os dois em perigo de lesão. Um deles poderá ser sacrificado, se não for possível
ao Direito salvar os dois.
Até mesmo uma vida humana pode ser sacrificada, para salvar outro bem
jurídico? É possível matar alguém em estado de necessidade? Mesmo um inocente?
Nem quando esse bem seja propriedade de uma pessoa muito importante, que a
ele dedique uma consideração maior que a dedicada a uma pessoa humilde. Não é justo
matar um simples gari, para salvar a vida do animal de estimação da primeira-dama do
país. Porque vida humana é sempre, para o Direito, o mais importante de todos os
bens.
Deve haver uma situação de perigo atual, não causado dolosamente pelo agente
que não tinha o dever legal de enfrentá-lo e que, nas circunstâncias em que agiu, não
podia ter evitado a prática do homicídio.
E o perigo deve ser atual. Deve estar acontecendo. Não pode ser um perigo já
passado, nem um perigo ainda futuro, nem tampouco iminente, mas necessariamente
atual. Se for passado, já não é perigo. Foi perigo. Já passou. O bem jurídico já terá sido
lesionado – e não há mais o que salvar –, ou não o foi por alguma razão, e já não corre
qualquer risco de o ser. Superado o perigo, não há autorização legal para a ação típica.
Ademais, a situação de perigo não pode ter sido provocada dolosamente pelo
agente. Se este tiver criado, intencionalmente, o perigo, não pode invocar a causa de
justificação. É justo. Se o sujeito criou, com consciência e vontade, a situação de perigo
para o bem jurídico, não pode, ao depois, para salvá-lo do perigo que provocou,
lesionar outro bem e, ainda, ter justificada sua conduta.
Outro requisito indispensável. O agente não pode ter o dever legal de arrostar
o perigo. Algumas pessoas, por força de lei, exercem atividades que são perigosas por
sua própria natureza. Policiais e soldados do corpo de bombeiros, enfermeiros,
médicos, em seu dia-a-dia profissional, estão sujeitos a se defrontarem com situações
de perigo para bens jurídicos, próprios ou de terceiros, e por isso não podem, em
momentos desses, lesionar outro bem jurídico, pois seu dever exatamente é o de
enfrentar situações perigosas.
sujeito poderá matar alguém para salvar um bem valioso, ainda que outra vida humana,
quando lhe for possível, por outra maneira, salvar o bem ameaçado de lesão. Só quando
for inevitável, poderá ser praticado o homicídio.
Seria um Direito falido, ou não seria Direito, aquele que não facultasse ao ser
humano defender a vida ou a de seu semelhante, numa situação em que nenhuma outra
força é presente e capaz de defendê-la.
Para existir legítima defesa um direito deve ser objeto de uma agressão.
Qualquer direito, qualquer bem jurídico. Vida, integridade corporal, saúde,
propriedade, liberdade, honra, são todos bens jurídicos. De quem quer que seja. Do que
vai repelir a agressão, ou de outra pessoa.
DAMÁSIO, ensina que é “a conduta humana que ataca ou coloca em perigo um bem
jurídico”20. É, pois, um ataque ao bem jurídico, é o comportamento humano dirigido à
lesão de um bem jurídico. Só pode ser compreendida, portanto, levando-se em conta o
bem jurídico agredido.
A agressão que pode justificar a repulsa por meio de um homicídio deve ser um
ataque real e concreto a um bem jurídico. Uma ação ou omissão de uma pessoa, ainda
que utilizando um animal bravio, adestrado ou não, ou manipulando uma força natural,
que signifique a colocação do bem jurídico numa situação concreta de perigo de lesão.
Não é indispensável que a agressão seja uma ação ou omissão violenta, embora, na
prática, ela quase sempre seja. A omissão daquele que tinha o dever de impedir o
resultado, permitindo, pois, a ocorrência do perigo de lesão é, geralmente, um
comportamento não violento. DAMÁSIO dá como exemplo de agressão omissiva não
violenta à liberdade individual a recusa do carcereiro de libertar o preso beneficiado
com alvará de soltura.
são ofensas absolutamente atípicas e, portanto, também lícitas, que não podem
autorizar a repulsa legítima.
Se a agressão é já passada, não pode ser repelida, porque não mais existe. O bem
jurídico já foi lesionado e nada mais resta a fazer, senão procurar, quando possível,
evitar-lhe ou minorar-lhe as conseqüências. Não pode ser repelida a agressão que já
aconteceu, que se encontra apenas na memória. Não é mais um ente concreto. Foi. E o
Direito não poderia justificar um ataque a algo inerte, morto, incapaz de causar qualquer
lesão, até porque já a causou. Não mais causará. Seria a homenagem à vingança, que não
pode ser consagrada por um Direito moderno e humanitário.
Também não pode ser uma agressão futura. Aquela que só existe na mente das
pessoas, que não está acontecendo, nem prestes a ocorrer, mas constitui mera
expectativa, uma representação mental. Não pode alguém se antecipar, como se fosse
possível prever o futuro e matar aquele que, possivelmente, poderia agredir um bem
jurídico.
próprio ou de outrem – o ser humano pode agir com vistas em sua repulsa. É a reação.
Os meios de que trata essa norma permissiva não se referem exclusivamente aos
instrumentos empregados na defesa, mas devem ser entendidos, num primeiro
momento, em seu sentido mais amplo, incluindo, antes, o modo ou a maneira e a
forma como a reação é exercida, e depois, também, é claro, as armas ou mecanismos
utilizados para executar a repulsa. Querem dizer, portanto, como a defesa é realizada e
com que é executada. Dizem, pois, respeito à qualidade da defesa, em seu sentido lato,
e em seu sentido estrito.
Ao que agride a honra, com gritos e gestos ofensivos, não se repelirá com o tiro na boca,
matando-o para calá-lo. Mas será lícito esbofeteá-lo. E se ele continuar ofendendo, pode-
se continuar a repulsa. E se o ofensor reagir agredindo a integridade corporal? Aí a
Homicídio - 81
Não pode ser um meio além do necessário, porque aí haverá uma exacerbação
da violência, abrindo caminho para a execução de atos dominados por sentimentos
como o do ódio ou da vingança. O defendente não julga nem pune o agressor, mas
apenas deve proteger o bem agredido, por isso que não pode ir além da necessidade
tutelar. Quando o que repele a injusta agressão usa meio além do necessário, torna-se,
igualmente, um agressor injusto, porque impõe uma força repulsiva excessiva, a qual,
por sua qualidade ou quantidade, constitui outra agressão tão ilícita quanto a que
buscou repelir.
A princípio, é de se imaginar que usar uma arma de fogo para repelir uma
agressão manual seja um meio defensivo além do necessário. Tal raciocínio não é,
mesmo, desarrazoado, todavia, é de se analisar o conjunto do fato, com todas as suas
circunstâncias. O agressor é mais forte que o defendente. Este não tem, a sua
disposição, nenhum outro instrumento que não a arma de fogo. Noutras circunstâncias,
seria um meio além do necessário, todavia, não havendo outro menos gravoso, é o
necessário, porque aí o que importa é a necessidade da defesa, é a proteção do bem
jurídico injustamente agredido.
A norma que autoriza a defesa legítima não exige que entre agressão e repulsa
haja exata proporcionalidade. Fala apenas em necessidade e moderação.
“A lei não pode exigir que se leia pela cartilha dos covardes e pusilânimes. (...)
Embora não seja um dever jurídico, a legítima defesa é um dever moral e
político que, a nenhum pretexto, deve deixar de ser estimulado pelo direito
positivo.”23
Claro que a defesa deverá ser um pouco mais intensa que a agressão e deve
durar até que a agressão termine. Não fosse assim, não seria eficaz. Todavia, se o agente
utiliza o meio necessário com intensidade excessiva ou se, mesmo depois de finda a
agressão, continua agindo, aí não haverá moderação. Aí surgirá o excesso no uso dos
meios necessários – adiante comentado –, que será intensivo ou extensivo,
descaracterizando a causa de justificação.
A legítima defesa busca a proteção do bem jurídico contra uma agressão injusta.
A traição e o adultério, com certeza, constituem comportamentos ilícitos do cônjuge. O
adultério é crime tipificado no Código Penal. São transgressões ao dever mútuo de
fidelidade (Código Civil, art. 1566, I).
É induvidosamente uma agressão injusta, ilícita, porque a lei civil impõe, aos
cônjuges, o dever de fidelidade recíproca.
Sendo atual ou iminente, pode ser repelida, também não há dúvidas. Há os que
sustentam, nos casos de adultério ou de infidelidade continuada, a permanência da
agressão e, portanto, sua atualidade, pois o que se perpetua é, necessariamente, atual –
raciocínio não desarrazoado.
Até mesmo a honra tem mais valor que o direito à fidelidade. O crime de
adultério é punido com detenção de 15 dias a seis meses. A injúria, o menos grave dos
delitos contra a honra, é punido com detenção de três meses a um ano, e multa.
Homicídio - 85
Dispõe o art. 1.571, III, do Código Civil, que a sociedade conjugal termina com a
separação judicial que poderá ser proposta, por qualquer dos cônjuges, imputando ao
outro “qualquer ato que importe grave violação dos deveres do casamento e torne
insuportável a vida em comum”. O dever de fidelidade está contido no art. 1.566, I, do
estatuto civil. Logo, verificada a infidelidade, tem o outro cônjuge o direito à separação
judicial.
Não pode ser reconhecida, portanto, num homicídio praticado para repelir uma
agressão a um direito dessa natureza, a indispensável presença do requisito da
necessidade do meio, em seu sentido amplo.
Falta, porém, ainda outro requisito: o elemento subjetivo. Quem mata nessas
situações não age com o fim de realizar o fim do Direito, o de proteger o bem jurídico
agredido, porque o Direito já sanciona tal situação com a autorização para a pretensão
da separação judicial.
Aquele que mata o cônjuge infiel age, na verdade, por puro egoísmo, movido
pelo sentimento de posse sobre pessoa, de dominação sobre o ser querido, por ciúmes,
não para proteger o bem próprio agredido.
Mata por vingança ou como castigo pela conduta alheia que não aceitou. Mata
para satisfazer um sentimento interno desprezível. Mata porque não pode conviver com
a realidade, nua e crua, da própria incapacidade de ser respeitado. Mata, na verdade,
para que os outros pensem que não é um derrotado. Mas é. E não será a morte de quem
quer que seja que o redimirá. Não tem, portanto, o cônjuge traído ou enciumado o
direito de matar. Não há, no Direito brasileiro, a chamada legítima defesa da honra.
Sua conduta típica é ilícita.
logo após injusta provocação da vítima, tema já abordado, linhas atrás, neste manual.
A embriaguez do agressor deve ser analisada com cautela, pois a agressão que
justifica a repulsa há de ser idônea, e não uma simples provocação.
Não há legítima defesa contra legítima defesa. Quem reage a uma agressão
injusta realiza uma agressão justa. Logo, o agressor inicial não pode repelir o ataque
praticado pelo defendente. Se o fizer, terá cometido crime.
Aquele que, ao repelir a agressão, não atingir o agressor, mas, por erro na
execução, matar pessoa diversa, mesmo assim estará em legítima defesa, porque o erro
não altera seu comportamento, não elimina a agressão ou a necessidade dos meios
utilizados em sua repulsa, nem tampouco a moderação com que foram utilizados.
O erro acidental não retira a licitude da conduta, pois que realizada com a
consciência dos fatos e o fim de realizar a vontade do Direito.
Homicídio - 87
1.2.13.5 O excesso
Pode, entretanto, ocorrer que ele, ao atuar para a proteção do bem jurídico,
ultrapasse os limites estabelecidos pela norma permissiva, não cumprindo, assim,
rigorosamente a permissão legal. Haverá excesso, que descaracteriza a excludente. O
fato é ilícito.
O excesso pode ocorrer tanto nos casos de estado de necessidade quanto nos de
legítima defesa.
Em qualquer caso, o excesso poderá ser doloso, culposo ou acidental, que serão,
adiante, comentados.
Quanto à escolha dos meios necessários, lato sensu ou stricto sensu, o excesso
será intensivo. Diante de uma agressão a determinado bem jurídico, o defendente
utiliza um meio de intensidade muito além do que seria necessário para obstá-la.
Por exemplo, quando repele uma agressão verbal a sua honra com um disparo
de arma de fogo contra o rosto do ofensor. À intensidade de uma agressão verbal à
honra respondeu com uma agressão violenta muito mais intensa e contra um bem
muito mais valioso. E o fez com um instrumento muito mais lesivo – a arma de fogo –
que o utilizado pelo agressor – a voz.
Há, no Direito pátrio, quanto aos meios escolhidos e à forma com que foram
utilizados, excessos intensivos de defesa, de duas naturezas.
Havendo excesso, não há legítima defesa, porque seus pressupostos não estão,
integral e totalmente, ajustados ao fato. Haverá homicídio ilícito.
24 Código Penal e sua interpretação jurisprudencial. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. v. 1, p. 370.
Homicídio - 91
São duas fases distintas. A primeira vai da agressão praticada pela vítima, até a
sua conclusão, por força da repulsa do agente. Encerrada a agressão inicial, exauriu-se a
legítima defesa. Se o então defendente prosseguir com os atos originariamente
repulsivos, inaugurará uma segunda etapa. Esta é ilícita porque não é reação legítima.
É ação primeira, injusta. É fato novo.
Daí para frente, se o agente resolver atacar o bem do agressor neutralizado, que
não mais representava qualquer perigo para qualquer interesse relevante, estará
cometendo um novo fato, que, ajustado a algum tipo, assim será considerado. Se matar,
será homicídio doloso.
Tudo que não puder ser previsto não pode ser evitado. Se não pode ser evitado,
a ninguém pode ser atribuído, nem àquele que o tiver causado. Segundo o ordenamento
jurídico, os fatos típicos só podem ser atribuídos a alguém por dolo ou por culpa, stricto
sensu, não por mero nexo de causalidade.
1.2.14 Culpabilidade
Só pode haver crime quando o injusto penal – fato típico ilícito – tiver sido
praticado por um imputável – capaz de entender a ilicitude e de determinar-se
conforme o Direito – e culpável.
Imputável o agente do injusto, que praticou conduta típica não justificada, pode
ser culpado ou não.
A todos os fatos ilícitos o Direito impõe uma sanção. Só para o crime ela é
diferente. Grave, severa. Suprime a liberdade, bem maior, ainda que por tempo certo.
Da sanção penal, ainda que a só restritiva de direitos ou multa, decorrem profundas
conseqüências. A infâmia, ainda que não seja pena legal, é pena social. Má-fama. O
estigma de criminoso, delinqüente, ausente na sentença penal condenatória, não se
apaga. Adere até ao espírito do condenado.
O que distingue o crime dos demais fatos ilícitos é o plus que só ele tem: a
culpabilidade.
Crime, por isso, não pode ser apenas o fato ilícito que se amolda a um tipo,
porque nele há algo mais, a culpabilidade.
ilicitude e exigibilidade de conduta diversa –, o fato será desculpado, porque crime não
haverá, devendo o agente ser absolvido, porque não é merecedor de qualquer sanção
penal. O fato é típico de homicídio, é ilícito, o dano deverá ser reparado, mas a sanção
penal não será imposta.
comportamento era proibido. Se não lhe fosse possível atingir esse conhecimento, não
tinha, então, nenhuma razão para deixar de realizar a conduta.
Ter consciência da ilicitude é, portanto, saber que o fato que vai praticar é
proibido.
Quando o sujeito tem consciência da proibição que recai sobre sua conduta, e
mesmo assim a realiza, deve ser reprovado. É culpado porque agiu com consciência real
da ilicitude. Também será culpado quando tinha a possibilidade de conhecer a
proibição, mas, por displicência, por leviandade, descuido ou negligência, não se
esforça para alcançar aquela consciência. É culpado também, em menor grau é claro,
porque agiu com potencial consciência da ilicitude. Podia ter percebido a ilicitude de
seu ato, mas não se esforçou para tanto.
Não se deve confundir ignorar a lei com desconhecer a ilicitude. Lei é a norma
escrita. Ilicitude é a relação de contrariedade entre um fato e a totalidade do
ordenamento jurídico. É possível conhecer a lei e ignorar a relação de contrariedade
entre um fato e o Direito. O desconhecimento da lei não será excludente da
culpabilidade, mas o da ilicitude, sim.
Pode estar agindo por erro de proibição o homem rude, nascido e criado numa
pequena cidade, em quem foram introjetados valores culturais retrógrados, machistas,
dentre os quais o de que “a honra do marido ultrajado será lavada com o sangue da
mulher adúltera” e que, encontrando sua esposa nos braços do amante, mata-a por
acreditar que está em legítima defesa da honra.
Homicídio - 97
Para ter sua culpabilidade excluída, entretanto, deve ser um erro absolutamente
invencível, inevitável, no qual qualquer pessoa que se encontrasse nas mesmas
circunstâncias em que estava o agente também incorreria. Somente o erro de proibição
inevitável exclui a culpabilidade.
É dos mais intrincados problemas para o julgador. Não basta que o réu declare,
em juízo, ter praticado o fato por o ter imaginado lícito, ou não proibido. Nem que a
defesa invoque a dirimente para obter a exclusão da culpabilidade.
Tão ou até mais difícil quanto descobrir se, efetivamente, o agente atuou em
erro de proibição, será qualificar o erro, descobrir se era ou não evitável.
São ambos juízos de valor normativo. O julgador deve ter grande sensibilidade
jurídica e muito maior senso de justiça, porque estará exarando uma decisão sobre um
fato praticado por um homem. Fato e homem serão avaliados. O fato em toda sua
extensão e profundidade, com todas as suas circunstâncias. O homem, igualmente, em
todo seu caráter e observando a sua história de vida.
Descobrir se uma conduta foi ditada por erro sobre a relação de antagonismo
entre fato e Direito e, principalmente, discernir sobre sua evitabilidade, é enigma que
só um julgador humano pode decifrar.
O sujeito recebe uma ordem que, a seu ver, é legal, quando não era, e pratica um
fato típico. Deve ser uma ordem não manifestamente ilegal, do superior hierárquico.
Poderia um soldado que, atendendo a uma ordem de seu superior hierárquico, matasse
o fugitivo, ser desculpado com base nessa dirimente.
Segundo essa teoria, quando o agente erra sobre um pressuposto fático de uma
excludente de ilicitude, haverá erro de tipo, que exclui o dolo, se evitável, e também a
culpa, se inevitável. Daí que, sendo evitável o erro, restaria perfeito um crime culposo.
Por isso, a colocação do conceito de descriminantes putativas no artigo que trata do
erro de tipo que, como já se viu, exclui, mesmo, o dolo.
Para existir legítima defesa, deve haver uma agressão injusta, atual ou iminente,
a qualquer direito.
Essa agressão, portanto, é pressuposto fático da legítima defesa. Sem ela, não
pode haver reação lícita.
Pois bem, quando o sujeito disparou aquele tiro, agiu dolosamente? A teoria
limitada da culpabilidade entende que não, pois considera que, nesse caso, houve erro
de tipo, que manda excluir o dolo.
Examine-se com mais cuidado a conduta desse agente. Evidente que ele errou
imaginando a existência da agressão, que era nenhuma. Em sua mente, porém, ela
100 – Direito Penal II – Ney Moura Teles
Ora, em que isso afeta a presença do dolo? O dolo está no interior do tipo. No
homicídio, é seu elemento subjetivo. No fato, ele está na cabeça do agente. Está na
conduta. O dolo consiste na representação do resultado morte e na vontade de, com a
conduta, produzi-lo, ou em sua aceitação, se ele acontecer.
Quem repele uma agressão inexistente matando o que supunha ser o agressor
age, é de todo óbvio, com dolo. Logo, este não pode ser excluído. Sua conduta não deixa
de ser dolosa em virtude do erro em que incorrera. O que o erro afeta é exatamente a
consciência do agente, impedindo que ele pudesse conhecer a realidade – a de que não
existia agressão nenhuma. Soubesse da realidade, não teria reagido. Só reagiu por
desconhecê-la.
O erro não incidiu sobre a vontade de realizar o tipo de homicídio. Incidiu, antes,
sobre a consciência do agente. Não a consciência do fato típico que iria realizar, mas a
consciência sobre o caráter ilícito do mesmo fato. É erro sobre a ilicitude e não sobre
elemento constitutivo do tipo legal de crime. É erro de proibição, portanto.
O erro do legislador não é capaz de, ainda que esta tivesse sido sua vontade,
transformar um erro de proibição num erro de tipo.
Para incidir essa dirimente, é indispensável que o erro seja daqueles inevitáveis.
Em que qualquer pessoa, nas mesmas circunstâncias, incorreria. Não será toda vez que
alguém levar a mão à cintura, que um outro poderá nela atirar, por achar que tal gesto é
uma agressão. O conjunto das circunstâncias deve justificar o erro.
Nesse caso, haverá culpabilidade, porém menor. É que ele agiu sem consciência
real da ilicitude, mas havia possibilidade de conhecê-la. Há, portanto, potencial
consciência da ilicitude, e por isso, há culpabilidade, há crime.
Nesse caso, havia uma agressão, porém, justa, mas o agente errou a seu
respeito, supondo que o pressuposto da legítima defesa existia, autorizando a repulsa
que empregou.
erro, do qual decorreu o homicídio que praticou, desde que presentes os demais
requisitos do estado de necessidade real, será igualmente excluída sua culpabilidade, ou
diminuída, se o erro decorreu de apreciação negligente.
Para que o imputável seja considerado culpado, censurado, reprovado pelo que
fez, é indispensável que, nas circunstâncias em que se encontrava, tivesse a
possibilidade de comportar-se de acordo com o Direito. Essa possibilidade de agir de
modo diferente do que agiu é outro juízo valorativo que o julgador fará acerca da
conduta do agente, denominada exigibilidade de conduta diversa.
“Em princípio, o ordenamento jurídico fixa uns níveis de exigência mínimos, que
podem ser cumpridos por qualquer pessoa. Fala-se, nesses casos, de uma
exigibilidade objetiva, normal ou geral. Além dessa exigibilidade normal, o
ordenamento jurídico não pode impor o cumprimento de suas determinações.
(...) O direito não pode exigir comportamentos heróicos, ou, em todo caso, não
pode impor uma pena quando, em situação extrema, alguém prefere realizar
um fato proibido pela lei penal a ter que sacrificar sua própria vida ou sua
integridade física.” 25
No art. 22, o Código Penal brasileiro prevê uma das hipóteses em que, por não
haver a exigibilidade de conduta diversa, deve ser excluída a culpabilidade. É a
chamada coação moral irresistível: “Se o fato é cometido sob coação irresistível (...) só
é punível o autor da coação.”
O agente realiza um fato típico e ilícito, com consciência de sua ilicitude, mas
sob uma força moral a que não pode resistir. Cuida-se aqui de coação moral, não a
coação física que, na verdade, atua de modo extremo sobre a vontade do sujeito,
anulando-a por completo. Na coação física absoluta, não há conduta, por faltar
25 Teoria geral do delito. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1988. p. 161-162.
Homicídio - 103
vontade. Nem típico o fato é, porque este só existirá se houver conduta voluntária.
Sob coação moral há vontade, ainda que viciada mas, agindo o sujeito sob seu
domínio, realiza um comportamento, uma ação ou uma omissão, voluntariamente.
Realiza um movimento corporal ou dele se abstém conscientemente e com a vontade
dirigida a um fim que, na verdade, não era o que ele desejaria ter realizado, mas que,
por força da coação a que está submetido, acaba por realizar. É que a força moral que
sobre sua mente atua é tamanha que ele não tem a possibilidade de agir como gostaria
de ter agido.
A coação moral é o emprego, por outra pessoa, de uma grave ameaça contra o
sujeito, com o fim de que este faça ou deixe de fazer alguma coisa, geralmente um
procedimento típico e ilícito. Deve ser uma força irresistível, capaz de atuar sobre a
vontade do sujeito de modo insuperável, invencível, tal a violência moral e o perigo que
significaria caso a ela não se submetesse.
O coator deve ser uma pessoa. Não se pode aceitar a alegação de que as
condições sociais, a miséria, o desemprego, a fome, as adversidades, a sociedade toda
possam exercer coação moral impelindo alguém a praticar um fato típico e ilícito. Se
isso fosse reconhecido, milhares e milhares de delinqüentes no Brasil deveriam ser
desculpados, porque quase todos estão na senda do crime por força das perversas
condições de vida a que foram submetidos, desde que nasceram.
Sob coação moral irresistível, a conduta é voluntária, mas o Direito não exige do
sujeito o comportamento heróico, de resistir ao coator, colocando em grave risco
direitos e interessantes relevantes.
especialmente quando parte de quem tem o verdadeiro comando da vida social dentro
da prisão.
Foi dito, linhas atrás, que o Direito – a sociedade, portanto – exige de todos os
indivíduos que ajam conforme as normas vigentes. Todos devem respeitar a ordem.
Todos devem obediência às normas legais. Todos devem respeitar os bens jurídicos. A
ninguém é dado transgredir os mandamentos legais. A todos é, normalmente, exigido o
respeito à integridade dos valores ético-sociais colocados sob a proteção do direito.
A lei só cria tipos quando a sociedade entender possível exigir das pessoas
comportarem-se de modo diverso da descrição típica.
A lei só cria excludentes de ilicitude quando verificar que não poderia, em suas
circunstâncias, exigir, das pessoas, comportamentos conforme o mandamento contido
na norma incriminadora.
A lei só considera inimputáveis aqueles dos quais, por suas condições pessoais,
não poderia exigir comportamento diverso.
Toda vez, portanto, que o julgador defrontar-se com um fato típico e ilícito e
verificar que, nas circunstâncias em que se encontrava o agente, não era possível exigir
dele conduta diversa, deverá considerá-lo não culpado pelo que fez.
Um homicídio ilícito, não desculpável por ter sido praticado por erro de
proibição – inclusive a legítima defesa putativa –, nem sob coação moral irresistível,
pode ser desculpado, por inexigibilidade de conduta diversa. Ainda que o fato não se
ajuste perfeitamente a qualquer causa legal de exclusão da ilicitude ou da culpabilidade,
se o júri entender de não reprová-lo, por considerar que, nas circunstâncias
especialíssimas em que se encontrava o agente, não podia dele exigir conduta diversa,
não haverá culpabilidade. Não será crime.
A culpabilidade, que recai sobre o agente, mas pelo fato praticado, é puro juízo
de valor realizado pelo julgador, que representa a sociedade. É censura que só será feita
Numa situação dessas, a doutrina tradicional diria que Ricardo terá cometido
um homicídio privilegiado, por estar sob o domínio de violenta emoção, logo após
injusta provocação da vítima. Seria culpado, porém teria sua pena diminuída.
Analise-se seu comportamento. Viu sua filha caída, ferida e para ela voltou sua
atenção. Deixou-a sob cuidados do médico amigo. Viu o estuprador saltando a janela e,
apesar de ser um policial aposentado e estar armado, não atirou contra ele. Na
perseguição, teve várias oportunidades de atirar e não o fez. Acompanhou a prisão e
não esboçou nenhum gesto agressivo. Sua reação somente ocorreu após os comentários
jocosos e de escárnio que o estuprador lhe dirigiu. Diante de todas essas circunstâncias
é que o julgador responderá a pergunta crucial: pode-se exigir desse homem
comportamento diverso do que ele realizou?
108 – Direito Penal II – Ney Moura Teles
Não se trata, relembre-se, de justificar sua conduta. É ilícita. Não se discute isso.
O que se quer discutir é sobre a reprovabilidade de sua conduta. A resposta está com o
julgador. Nas circunstâncias em que ele se encontrava, poder-se-ia exigir-lhe outro
comportamento?
Se a sociedade entender que não podia exigir, do agente, conduta diversa, deve
desculpá-lo, independentemente de existência prévia de qualquer norma expressa
nesse sentido.
Penso que, nada obstante a razoabilidade desse argumento, pode acontecer que
a perturbação, confusão, medo ou o susto que influenciou o comportamento defensivo
do agente pode perdurar inclusive após a cessação da agressão, por algum tempo ainda
influindo em sua mente, de modo a mantê-lo ainda descontrolado. Se sua reação é
extensiva por essa razão, não vejo como não reconhecer, também aí, a presença da
inexigibilidade de outra conduta.
O Direito Penal deveria, a rigor, preocupar-se apenas com as lesões dolosas dos
bens jurídicos, porquanto são os comportamentos intencionais os que efetivamente
representam aquela atitude interna do homem que deve ser proibida e receber, como
conseqüência jurídica, a severa sanção penal.
1.3.1 Tipicidade
1.3.1.1 Conceito
110 – Direito Penal II – Ney Moura Teles
Com base nessa norma, pode-se definir culpa, stricto sensu, como a falta de
cuidado do agente, numa situação em que poderia prever a causação de um resultado
danoso, que ele não deseja, nem aceita, e às vezes nem prevê, mas que, com seu
comportamento produz e que poderia ter sido evitado.
Além, portanto, da conduta, do resultado e do nexo causal que deve existir entre
eles, só há homicídio culposo quando houver previsibilidade objetiva do resultado
morte e inobservância, por parte do agente, de seu dever de cuidado objetivo, atuando
com imprudência, negligência ou imperícia.
O dever de cuidado objetivo é uma exigência que o Direito faz a todas as pessoas
para que se comportem, em seu dia-a-dia, de modo a não causar danos aos bens
jurídicos alheios. Exigem-se, de todos, comportamentos cautelosos, prudentes e
Homicídio - 111
cuidadosos, de modo a preservar a integridade dos direitos das pessoas com as quais
convivem. As condutas imprudentes, negligentes ou imperitas são reveladoras do não-
cumprimento desse dever geral. Para haver homicídio culposo, a morte da vítima deve
resultar de um comportamento desses.
da morte. Mormente nas mortes no trânsito de veículos, esse tema será de crucial
relevância, como se verá adiante. Se a morte for imprevisível, é inevitável, por isso não
haverá culpa.
Este adota todas as cautelas, reduzindo a velocidade e olhando com toda a atenção na
direção que prevê a passagem do passageiro imprudente, a fim de evitar um possível
atropelamento. Não obstante toda essa conduta cautelosa do condutor, o passageiro
atravessa e surge a sua frente, sendo atingido, ferido e morto em razão dos ferimentos
decorrentes da colisão. A colisão e a morte eram previsíveis, o condutor fez a previsão,
tanto que adotou todas as cautelas recomendadas pelas normas do trânsito, mas, ainda
assim, o resultado aconteceu. Não tendo havido negligência, não há fato típico culposo.
No mesmo exemplo anterior, o mesmo policial, Jairo, após chegar a seu quarto,
pode, por estar atento, fazer a previsão de que seu filho possa se apoderar da arma e
com ela causar algum dano, inclusive a si próprio. Todavia, Jairo, levianamente, pensa
consigo mesmo: “Não, não vai acontecer nada. Ele nem viu a arma.” Por essa razão,
ele continua em seu quarto, confiando que nada vai acontecer, quando ouve o disparo,
ao qual se segue a morte da criança. Nesse caso, há culpa consciente. Houve previsão da
morte, porém nela o agente não consentiu, não acreditou que ocorreria, não admitiu
114 – Direito Penal II – Ney Moura Teles
O pai que entrega o veículo automotor ao filho menor que, dirigindo-o pela via
pública, vem matar, culposamente, um pedestre não é co-autor nem partícipe do
homicídio culposo. Não é co-autor do homicídio culposo, porque não realizou a
conduta negligente causadora da morte da vítima. Não tinha domínio sobre a conduta
do filho na condução do veículo.
Culpa própria é a culpa de que aqui se está dizendo, a culpa propriamente dita,
em que o agente dá causa à previsível morte da vítima por negligência, imprudência ou
imperícia.
O crime é doloso, mas a lei manda considerá-lo como se culposo fosse. Assim, o
que se chama de culpa imprópria não é culpa, é equiparação do dolo à culpa.
Concorrendo duas pessoas para o mesmo evento culposo, laborando ambas com
negligência, numa situação de previsibilidade objetiva do resultado, demonstrando-se
que contribuíram para o resultado morte, as duas responderão. Numa esquina, dois
veículos se chocam, causando a morte de um pedestre. Se se provar que os dois
motoristas agiram culposamente, os dois responderão pelo homicídio.
116 – Direito Penal II – Ney Moura Teles
Não se deve confundir essa causa de aumento com a imperícia, que é uma das
modalidades de culpa, integrante, portanto, do próprio núcleo do tipo culposo. Na
imperícia, o sujeito demonstra falta de destreza na execução de um procedimento que
deveria executar, como profissional. Imperícia é inabilidade na realização de seu ofício.
É a falta de capacidade técnica. Nessa causa de aumento, o agente nem chega a executar
um procedimento exigido por uma regra técnica ou conforme esta. Ele pode, inclusive,
ser um expert na realização do procedimento; todavia, simplesmente não o realiza.
Manda a norma que a pena seja aumentada se o agente deixa de prestar imediato
socorro a vítima. É dever do agente que realiza uma conduta negligente, percebendo
Homicídio - 117
que ela deu causa a um resultado não desejado, procurar, imediatamente, prestar-lhe o
socorro para, se possível, evitar sua morte. Se ele se omite, deverá merecer pena mais
severa.
Se, entretanto, após atingir a vítima, o agente deixar de socorrê-la por ter
percebido que se tratava de um seu desafeto, passando a desejar sua morte, e se se
demonstrar que a morte poderia ter sido evitada, responderá por homicídio doloso,
porque, tendo criado o risco do resultado, passa a ter o dever de agir para impedi-lo.
Só haverá aumento de pena se a vítima ainda estiver viva, é de todo claro, posto
que se houve morte imediata não era mais possível prestar qualquer socorro.
Se o agente não procura diminuir as conseqüências de seu ato, também terá sua
pena aumentada. O dever geral de solidariedade mostra-se aqui ainda maior, cabendo a
quem deu causa à morte da vítima procurar, por todos os modos possíveis, minorar as
conseqüências de sua conduta. Se outro tiver prestado socorro à vítima, o agente deve
colaborar, auxiliando, enfim, procurando, por todas as maneiras, solidarizar-se com o
vitimado.
Por fim, a fuga do agente, para evitar prisão em flagrante, é causa de aumento
da pena. A fuga deve ser, necessariamente, motivada pela vontade do agente de evitar a
prisão, e não pode ser considerada quando ele o faz por medo de alguma represália por
parte de parentes da vítima ou de circunstantes, nem quando se apavora e perde a
capacidade de discernimento quanto a seu dever de permanecer no local.
Andou mal o legislador ao construir essa figura típica, pois, como lembrou
DAMÁSIO com propriedade, a descrição típica do homicídio exige o uso do verbo
matar. Discute-se, ainda, sobre a propriedade da cominação de pena privativa de
liberdade mais severa do que a relativa ao homicídio culposo do Código Penal, além da
restritiva de direito. Segundo MAURÍCIO ANTONIO RIBEIRO LOPES, essa
exacerbação da pena é inconstitucional:
“Nada justifica que para a mesma figura penal a pena-base seja diversa. Tal
ofende o princípio constitucional da isonomia e o conseqüente direito subjetivo
do réu a um tratamento igualitário.”26
Por outro lado, a maior ou menor gravidade dos crimes culposos não reside no
meio utilizado para sua concretização, mas no grau da previsibilidade objetiva e na
qualidade da inobservância do dever de cuidado objetivo. Esses são os elementos que
podem tornar um homicídio culposo mais reprovável do que outro. Quanto mais
previsível o resultado, maior deve ser a pena. Quanto mais negligente tenha agido o
Qual homicídio culposo é mais grave: o do pai que brinca com um revólver
municiado na presença de várias crianças vindo a dispará-lo, por imperícia ou
imprudência, matando um infante, ou o do condutor de um veículo automotor que
atropela e mata um pedestre? É claro que o pai agiu numa situação de previsibilidade
mais acentuada e com negligência superior à do motorista. Não só por ser pai, mas por
estar diante de crianças indefesas e brincando com uma arma de fogo, própria para
tirar vidas.
Feitas essas observações, analise-se o tipo. Seus elementos são: causar a morte
previsível de alguém, por negligência, imprudência ou imperícia, na direção de
veículo automotor.
“Todo veículo a motor de propulsão que circule por seus próprios meios e que
serve normalmente para o transporte viário de pessoas e coisas, ou para a
tração viária de veículos utilizados para o transporte de pessoas e coisas. O
termo compreende os veículos conectados a uma linha elétrica e que não
circulam sobre trilhos (ônibus elétrico).”
1.3.4 Ilicitude
Homicídio - 121
Também nos delitos culposos o agente pode, apesar de realizar um fato típico,
agir em conformidade com o Direito, desde que realize os pressupostos de uma causa
de justificação, dando causa, por negligência, ao resultado não desejado.
1.3.5 Culpabilidade
aquela previsibilidade geral, considerada normal, exigível do homem médio, mas como
previsibilidade do sujeito do fato concreto objeto da apreciação do julgador. É a
previsibilidade subjetiva.
Assim, também em relação ao delito culposo, pode incidir sobre o fato uma
excludente de culpabilidade, afetando a potencial consciência da ilicitude ou a
exigibilidade de conduta diversa.
Nas duas situações, o sujeito terá atuado sem ter possibilidade de atingir ou
alcançar a consciência da ilicitude.
Tome-se o exemplo dado daquele que, diante do cão bravio solto, atirou, para
salvar-se do perigo, e acabou por, sem dolo, atingir uma pessoa próxima e matá-la.
Matou culposamente, mas agiu ao amparo da excludente do estado de necessidade.
Haverá, aí, homicídio culposo inculpável. Não há crime, devendo o agente ser
desculpado com a absolvição.
Nenhuma pena criminal será aplicada sem que haja necessidade e suficiência
para prevenir e reprovar o crime. Porque a pena não é vingança nem pode ser aplicada
sem uma utilidade ética, o Direito impõe ao julgador, em determinadas situações,
deixar de aplicar a pena, porque ela seria absolutamente desnecessária, sem qualquer
sentido ético, sem qualquer função preventiva ou de reprovação.
Noutras situações, o próprio agente causador de uma morte não desejada sofre
Homicídio - 125
lesões corporais graves, com importantes conseqüências para a sua saúde física,
restando tetraplégico ou passando por inúmeras cirurgias curativas e recuperadoras,
com sofrimento físico e mental indizível, que, para o Direito, não é mais necessário
impor qualquer sanção penal.