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Parte 2 - Diddeticas e Metodologias de educagdo: Conceitos Especificidades e Sinergias Didédctica, Conhecimento e Desenvolvimento Profissional do Professor Os PROFESSORES E A CONTROVERSIA EM CIENCIAS* Pedro Rocha dos Reis E.S.E. de Santarém e Centro de Investigacao em Educagao da F.C.U.L. Introdugao Actualmente, a ciéncia e a tecnologia representam simultaneamente uma fonte de Progresso € de controvérsia. Vivemos numa Sociedade marcada por desenvolvimentos cientificos e tecnolégicos controversos e caracterizada por tensdes sociais: tensdes entre direitos individuais e objectivos sociais, prioridades politicas e valores ambientais, interesses econémicos e preocupagées relativamente & satide (Nelkin, 1992). Também em Portugal as controvérsias tm proliferado. A titulo de exemplo, podem referit-se 0s conflitos existentes entre: (1) 0 governo e as populagdes dos locais onde se pretendem instalar aterros sanitérios, estagdes de armazenagem de residuos t6xicos ou estagdes de co-incineragio; (2) os produtores de rages de origem animal, os criadores de bovinos e as instituigdes veterinérias ¢ sanitérias nacionais e europeias. Alguns estudos tém revelado que a imagem piblica da ciéncia € determinada pelos acontecimentos controversos mais recentes (Thomas, 1997). As controvérsias recentes em Portugal, para além de terem desencadeado reaccées fortes na populacao (medo, revolta, histetia, contestacao), devem ter influenciado as representacoes sociais sobre a Ciéncia, Alguns politicos cientistas apelidaram essas reacobes de emotivas e irracionais ¢ justificaram-nas com a alegadsa iliteracia cientffica da populacéo. No entanto, uma sociedade cientificamente literada dificilmente iré apoiar a ciéncia de forma acritica: situages como as que foram referidas informam a populagio relativamente aos limites e incertezas da ciéncia ¢ das relagées estreitas entre a ciéncia e a politica. Provavelmente, um aumento da literacia cientifica traduzir-se-4 numa maior diviséo e ambivaléncia das atitudes da populacio relativamente a ciéncia e as suas aplicagdes (Evans e Durant, 1995; Thomas, 1997). Neste contexto, assume especial importincia 0 estudo do impacto das controvérsias recentes em torno de questdes cientificas e tecnol6gicas: a) nas representagdes sociais dos professores de Ciéncias Naturais acerca do conhecimento cientifico e tecnoldgico; e b) nas suas praticas de sala de aula. Quadro de referéncia tedrico As representagies sociais ~ redes de valores, ideias e préticas - acerca da natureza da Ciéncia sao estruturadas ¢ transformadas através das interacgdes entre os individuos de uma determinada sociedade (Moscovici, 2001). " Bstudo financiado pelo Instituto de TInovacio Educacional (Medida 2 do SIQE) ¢ inserido numa investigagao mais ampla, no Ambito de um doutoramento em Didéctica das Ciencias no Departamento de Educagao da F.C.U.L 723 Os professores ea controvérsia em ciéncias Durante os diltimos anos varios estudos revelaram a existéncia de relagées entre a pratica dos professores de ciGncias ¢ as suas perspectivas ¢ filosofias pessoais — referidas, por vezes de forma indiscriminada, como ideias, imagens, representacdes, crencas ou concep¢des (Cross & Price, 1996; Czerniak & Lumpe, 1996; Gallagher, 1991; Lederman & Zeidler, 1987; Van Rooy, 1999). No entanto, a assumpcao de que as concepgdes dos professores acerca da natureza da Ciéncia sao transpostas directamente para a pritica de sala de aula tem sido posta em causa por virias investigagoes (Lederman, 1992; Lederman e Zeidler, 1987). Varios factores parecem impedir a transposicio das concepgoes dos professores acerca da natureza da Ciéncia para a sua pratica lectiva: a) gestdo e organizagio da sala de aula; b) experiéncia de ensino; c) pressio para cobrir os contetidos; d) limitagdes impostas pelos orientadores de estagio; e) falta de conhecimentos acerca da natureza da Ciéncia ou dos recursos necessérios a0 seu ensino (Abd-El-Khalick et al.,1998; Brickhouse e Bodner, 1992; Duschl e Wrigth, 1989). O conceito "pritica de sala de aula" entende a sala de aula como um sistema que inclui tanto as actividades do professor como todo 0 contexto em que se inserem os processos de onsino e de aprendizagem (Krainer ¢ Goffree, 1998). Logo, a pritica de sala de aula é influenciada por aspectos do contexto — por exemplo, a importancia e 0 papel que a sociedade atribui a educacdo, o curriculo, o clima da escola e as controvérsias que marcam a sociedade em que vivemos — e por caracteristicas pessoais do professor — por exemplo, as representagdes sociais acerca da Ciéncia, do curriculo, éa aprendizagem ¢ do ensino, Sao estas representagoes que determinam: a) a forma como o professor interpreta as finalidades ¢ os objectivos curriculares; b) o tipo de praticas a que recorre para as alcangar. Metodologia Este estudo qualitativo, baseado em estudos de caso, procurou compreender: a) a forma como um grupo de professores de Ciéncias Naturais do Ensino Secundario, com tempos de servigo e percursos profissionais distintos, interpreta ¢ sente algumas das quest6es controversas recentes em torno da ciéncia ¢ da tecnologia; e b) 0 eventual impacto dessas controvérsias nas suas representagdes sociais acerca da natureza do conhecimento cientifico ¢ na sua pratica de sala de aula. Como instrumentos de investigacio foram efectuadas entrevistas semi-estruturadas, gravadas em éudio, aos professores participantes. Alguns resultados Fernanda Concepedes acerca do conhecimento cientifico e tecnolégico Fernanda associa, (1) a Cigncia a rigor, honestidade, abrangéncia, criatividade, compreensio ¢ humildade; ¢ (2) a Tecnologia a rigor, eficécia e adaptabilidade. Nas suas proprias palavras: “(..) a Ciéncia é uma coisa que me esforco por explicar, (..) € uma realidade que se vai construindo a pouco e pouco com os dados que temos e que, portanto, nunca hé uma Ciencia 724 Parte 2 - Diddcticas e Metodologias de educacao: Conceitos Especificidades e Sinergias Didactica, Conhecimento ¢ Desenvolvimento Profissional do Professor definitiva. (..) A Ciéncia avanca (...) & medida que nés vamos sempre pondo em causa aquilo que inicialmente aceitivamos como certo.” Considera que 0 conhecimento cientifico, para que passa ser aceite como tal, implica dados ¢ provas cientificas objectivas que o validem; a opinido, por sua vez, pode basear-se tanto em dados como em motivos afectivos, sociais... Como exemplos de questdes cientificas ou tecnolégicas marcadas pela controvérsia refere a engenharia genética, a clonagem, a introducao de transgénicos ¢ os transplantes de orgios. Adverte “que € preciso ter muito cuidado em relacao a determinadas descobertas” pois podem revelar-se “Caixas de Pandora” abertas por “aprendiz[es] de feiticeiro que pae{m] em acgao uma série de forcas que depois ndo sabe[m] controlar’. No entanto, acredita que a aplicagao de “travoes” & Ciéncia implicaria a estagnagao do conhecimento cientifico. Logo, defende “a necessidade de continuar a pesquisar (...), 2 obter cada vez mais conhecimento em reas que aié certo ponto podem ainda permanecer um bocado tabu” mesmo correndo 0 risco de que as novas descobertas possam vir a ser mal aplicadas. Fernanda, apesar de reconhecer a exisiéncia de algum alarmismo da populagio perante algumas das questdes controversas que referiu, sente alguma preocupacao perante a possibilidade do Homem “construir organismos geneticamente modificados”, nomeadamente, “indivfduos programados” que poderfio ameacar a liberdade do ser humano. ConcepgGes acerca do ensino das Ciéncias Naturais Acredita que uma cultura cientifica alargada a toda a populacio é fundamental para 0 “ayanco” do mundo actual, “[Tenta] nao ficar s6 nos programas, 0 que é dificil, principalmente a nivel do 12% ano (...) por causa da pressao dos exames ¢ das notas que eles tém que ter” € “dum programa to extenso ¢ em que as objectivos, infelizmente, sao fundamentalmente que os alunos saibam coisas ¢ nao que aprendam a fazer as coisas (...)". No entanto, considera que 0 professor dispde sempre de uma margem que Ihe permite desenvolver o espirito cientifico dos seus alunos ¢ envolvé-los na “descoberta do conhecimento”. Como actividades privilegiadas para a concretizacdo destes objectives sugere a experimentagio — que utiliza pouco devido a extensdo do programa € ao elevado ntimero de alunos por turma ~ ¢ “a andlise critica de textos ou de dados”. Também valoriza 0 didlogo no esclarecimento de dividas, na construgao do conhecimento pelos proprios alunos e na motivagio destes. No entanto, na sua opinido, 0 didlogo “nem sempre é facil (...) porque gasta-se mais tempo a explicar uma coisa e, além disso, © rigor pode ficar um bocado prejudicado”. Isabel Concep¢6es acerca do conhecimento cientifico e tecnolégica Isabel entende a Ciéncia como algo dinamico (em constante evolucao), aliciante, “que desperta a vontade de saber mais” e “que nos pée de bem com a vida e o mundo”. Acredita que a Ciéneia se rege por factos, dados coneretos, resultantes da testagem de hipéteses por experimentagao. Por vezes, sente que a Tecnologia se torna um pouco inacessivel devido A linguagem hermética utilizada pelos técnicos ¢ as dificuldades de comunicacao de muitos deles. 725

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