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Discurso Barack Obama

Sim, o governo deve liderar o caminho da independência


energética, mas cada um de nós deve fazer nossa parte para
tornar as nossas casas e as nossas empresas mais eficientes. Sim,
temos de dar mais chances de êxito aos jovens que caiam na vida
do crime e desespero. Mas todos nós temos de fazer nossa parte
como pais, para desligar a TV e ler para nossos filhos e sermos
responsáveis pelo fornecimento de amor e da orientação que
necessitam.

Sim, podemos discutir e debater as nossas posições


apaixonadamente, mas neste momento de definição, todos nós
devemos convocar a força e a graça para superar as nossas
diferenças e unir esforços comuns – preto, branco, Latino,
asiáticos, Nativo Americano; democrata e republicano, jovens e
velhos, ricos e pobres, gays e heteros, deficientes ou não.
Todos nós temos de nos juntar.

Ohio, nesta eleição não podemos permitir os mesmos jogos


políticos e táticas que são utilizadas pra colocar um contra o
outro e fazer nós termos medo um do outro. O desafio é
demasiado elevado para nos dividir em classes e regiões e
antecedentes; pelo que nós somos ou pelo que acreditamos.
Porque, apesar do que os nossos adversários possam dizer, não
há partes verdadeiras ou falsas neste país. Não há qualquer
cidade ou região que seja mais pro-América do que em
qualquer outro lugar – somos uma nação, todos nós
orgulhosos, todos nós patriotas.

Existem aqueles patriotas que apoiaram a guerra no Iraque e


patriotas que se opuseram à mesma; patriotas que acreditam
em políticas democráticas e aqueles que acreditam em políticas
republicanas. Os homens e mulheres que servem em nossos
campos de batalha, alguns podem ser democratas, republicanos
e Independentes, mas eles lutaram juntos e sangraram juntos,
e alguns morreram juntos sob a mesma e orgulhosa bandeira.
Eles não serviram a uma América vermelha ou América azul -
eles serviram aos Estados Unidos da América.

Não vai ser fácil, Ohio. Nem vai ser rápido. Mas vocês e eu
sabemos que é tempo para se unir e mudar este país. Alguns
dos senhores podem ser cínicos e irritados com a política.
Muitos de vocês podem estar desapontados e mesmo furiosos
com seus líderes. Vocês têm todo o direito de estar. Mas,
apesar de tudo isto, eu lhes peço o que foi pedido aos
americanos em toda a nossa história. Peço a todos que
acreditem – não apenas nas minhas habilidades de trazer
mudanças, mas na sua habilidade. Eu sei que é possível uma
mudança. Porque eu a tenho visto nos últimos 21 meses.
Porque na campanha tenho tido o privilégio de testemunhar o
melhor da América.

Eu a tenho visto nas filas de eleitores em torno das escolas e


igrejas; nos jovens que lançam seu voto pela primeira vez, e os
não tão jovens que se envolveram novamente após um longo
tempo. Tenho visto nos trabalhadores que preferem a redução
das suas horas a ver os seus amigos perderem o emprego; Vejo
nos vizinhos que abrigam um estranho quando as inundações
chegam; Nos soldados que se realistam após perderem um
membro. Eu tenho visto no rosto dos homens e mulheres que
eu tenho encontrado em inúmeros comícios e câmaras
municipais em todo o país, homens e mulheres que falam de
suas lutas mas também das suas esperanças e sonhos.

Ainda me lembro do email que uma mulher chamada Robyn me


enviou depois de encontrá-la em Fort Lauderdale, Florida.
Alguns dias depois do evento seu filho quase entrou na parada
cardíaca, e foi diagnosticado com um problema de coração que
só poderia ser tratado com um procedimento que custa dezenas
de milhares de dólares. A companhia de seguros se recusou a
pagar, e sua família simplesmente não têm esse tanto de
dinheiro.

Em seu email, Robyn escreveu,"Só peço isto de você – nos dias


em que se sinta tão cansado que não pode nem pensar em
dizer uma palavra para o povo, pense em nós. Quando todos
aqueles que se opõem a você o deixarem pra baixo, alcance
seu mais profundo e volte com tudo".

Ohio, é isso que é Esperança – a coisa interior que insiste,


apesar de todos os elementos que provem o contrário, que algo
melhor está à espera na próxima curva; que insiste que
existem dias melhores à frente. Se estivermos dispostos a
trabalhar para isso. Se estivermos dispostos a deixar nossos
receios e dúvidas. Se estivermos dispostos a chegar no mais
profundo dentro de nós mesmos quando estivermos cansados e
voltarmos lutando com tudo!

Esperança! Isso que manteve alguns de nossos pais e avós


quando os tempos eram difíceis. O que os levou a dizer, "Talvez
eu não possa ir ao colégio, mas se eu juntar um pouco a cada
semana meu filho possa; talvez eu não consiga ter o meu
próprio negócio, mas se eu trabalhar duro meu filho poderá
abrir um só seu". Isso que levou os imigrantes de terras
distantes a chegar a estas praias, e contra grandes
adversidades esculpir uma nova vida para suas famílias na
América; Foi o que levou aqueles que não puderam votar a
marchar e organizar-se em defesa da liberdade; O que os levou
a clamar "pode parecer escura esta noite, mas se eu mantiver a
esperança, amanhã ela será mais clara."

Isso é o que é esta eleição. Essa é a escolha que enfrentamos


neste momento. Não acredite nem por um segundo que a
eleição está acabada. Não acredite nem por um minuto que os
poderosos irão abrir mão do poder. Temos muito trabalho pela
frente. Temos de trabalhar como se o nosso futuro dependesse
disto nesta última semana, porque depende. Em uma semana,
podemos escolher uma economia que premie trabalho e crie
novos postos de trabalho e injete prosperidade de baixo para
cima.

Em uma semana, poderemos escolher em investir em saúde


para as nossas famílias, e em educação para as crianças, em
fontes renováveis de energia para o nosso futuro. Em uma
semana, podemos escolher esperança sobre o medo, a unidade
sobre a divisão, a promessa de mudar o poder do status quo.
Em uma semana, poderemos chegar juntos como uma nação, e
um povo, e mais uma vez escolher a nossa melhor história. É
isso que está em jogo. É isso pelo qual lutamos. E, se nesta
última semana, você bater algumas portas por mim, fizer
algumas ligações por mim e falar com os seus vizinhos, e
convencer os seus amigos; se vocês se juntarem a mim,
lutarem comigo, e me derem seu voto, então prometo isto –
que não vamos apenas ganhar Ohio, que não vamos apenas
ganhar esta eleição, mas juntos, vamos mudar este país e
vamos mudar o mundo.

Muito obrigado, Deus vos abençoe, e que Deus abençoe a


América. Vamos trabalhar!

CORÃO E SUAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS

• Mudando de assunto, mas dentro do mesmo tópico, o que tem


me incomodado mais nos últimos meses é a postura do mundo
muçulmano em relação ao resto do mundo. Tantas tensões,
tanto rancor, justificados ou não, o fato é que eles continuam
personificando o papel de "vilões" aos olhos da mídia, quando
os verdadeiros vilões agem sorrateiramente como gangsters, de
forma "limpa" e discreta (e com vista grossa da ONU). Os
idiotas do Irã provocando navios dos EUA em águas
internacionais, os idiotas da Palestina jogando bombas a esmo
em Israel (por que eles não se concentram em aterrorizar
especificamente Bush e sua troupe, neste momento em visita
ao Oriente Médio?), e os idiotas do Paquistão que forneceram
um ótimo bode espiatório pra morte de Benazir Bhutto (até as
pedras de lá sabem que o assassinato foi encomendado pelo
serviço secreto do governo). E como esses idiotas adoram se
passar por religiosos pra justificar suas ações, todo o Islamismo
(que vai pra muito além do Oriente Médio) é prejudicado...

Que fazer? A tristeza me assola... queria poder ter alguma voz,


pra poder falar pra os líderes mundiais "Caramba, será que não
vêem que isso vai precisar de mais do que diplomacia?
Precisamos de entendimentos não só a nível de aperto de mão,
mas de comprometimento espiritual!" Se não conseguirmos
falar a mesma linguagem do mundo islâmico, não teremos
pontos de contato. E as atitudes desse povo são inseparáveis
das atitudes espirituais. Não é como no ocidente, onde um
ditador como Pinochet pode ir na missa de domingo e na
segunda mandar matar centenas de pessoas num estádio de
futebol. Claro que o presidente do Irã pode ir na mesquita num
dia e depois dizer que Israel deveria ser eliminado do mapa
(sabe-se lá como) mas na mente deles há sempre uma
justificativa religiosa (verdadeira ou não) para tal, e é
justamente aí que deveríamos discutir, no terreno religioso!!!
Foi essa idéia que me impeliu a analisar o Corão, procurar
conhecê-lo um pouco (a barreira da língua é tão impeditiva
quanto procurar analisar a Torá sem conhecer hebraico) e
procurar não pontos de discórdia, mas pontos de conciliação.

Assim sendo, vejamos a relação dos muçulmanos com os


"estrangeiros" no Corão:

2:62 Os fiéis (do Corão), os judeus, os cristãos, e os Sabianos,


enfim todos os que crêem em Deus, no Dia do Juízo Final, e
praticam o bem, receberão a sua recompensa do seu Senhor e
não serão presas do temor, nem se lastimarão.

29:46 "Não discutais com o Povo do Livro, senão de modo


amável (com exceção dentre eles os que são injustos). Dizei:
"Cremos no que nos foi revelado e no que vos foi revelado.
Nosso Deus e o vosso Deus são Um e a Ele nós estamos
submetidos".

O livro Sagrado dos maometanos afirma que Deus deu o livro


(o Corão) primeiramente a Moisés, e não a Maomé:
10:93-94 E concedemos aos israelitas um agradável abrigo e
os agraciamos com todo o bem. Mas disputaram entre si,
depois de receberem o conhecimento. Teu Senhor julgará entre
eles pelas suas divergências, no Dia da Ressurreição. Porém, se
você (Muhammad) está em dúvida sobre o que te temos
revelado, consulta aqueles que leram o Livro antes de ti. Sem
dúvida que te chegou a verdade do teu Senhor; não sejas, pois,
dos que estão em dúvida.

Os versos abaixo são uma cobrança de posição dos judeus,


que, em tese (ver versos acima) são vistos como irmãos (não
exatamente amigos) e como tal deveriam respeitar e serem
respeitados:

2:84 E de quando exigimos nosso compromisso, ordenando-


vos: Não derrameis o vosso sangue, nem vos expulseis
reciprocamente de vossas casas; logo o confirmastes e
testemunhastes.
2:85 No entanto, vede o que fazeis: estais vos matando;
expulsais das vossas casas alguns de vós, contra quem
demonstrais injustiça e transgressão; e quando os fazeis
prisioneiros, pedis resgate por eles, apesar de saberdes que vos
era proibido bani-los. Credes, acaso, em uma parte do Livro e
negais a outra? Aqueles que, dentre vós, tal cometem, não
receberão, em troca, senão aviltamento, na vida terrena e, no
Dia da Ressurreição, serão submetidos ao mais severo dos
castigo. E Deus não está desatento em relação a tudo quanto
fazeis.
2:86 São aqueles que negociaram a vida futura pela vida
terrena; a esses não lhes será atenuado o castigo, nem serão
socorridos.

Vê-se que, desde muito tempo, já havia conflitos com os


judeus, e que, pelo menos no Corão, eles se colocam como
vítimas (não sei nada da história daquela época, portanto não
posso emitir um parecer), mas vejo aí uma brecha para a paz,
já que não há realmente uma declaração de ódio aos judeus,
mas sim à "injustiça e transgressão", coisa que nenhum povo
suporta. mas há dispositivos no próprio Corão para que se
busque a paz:

49:9 E quando dois grupos de fiéis combaterem entre si,


reconciliai-os, então. E se um grupo provocar outro, combatei o
provocador, até que se cumpram os desígnios de Deus. Se
porém, se cumprirem (os desígnios), então reconciliai-os
eqüitativamente e sede equânimes, porque Deus aprecia os que
agem com justiça.
49:10 Sabe que os fiéis são irmãos uns dos outros; reconciliai,
pois, os vossos irmãos, e temei a Deus, para vos mostrar
misericórdia.

49:11 Ó fiéis, que nenhum povo zombe do outro; é possível


que (os escarnecidos) sejam melhores do que eles (os
escarnecedores). Que tampouco nenhuma mulher zombe de
outra, porque é possível que esta seja melhor do que aquela.
Não vos difameis, nem vos motejeis com apelidos mutuamente.
Muito vil é o nome que detona maldade (para ser usado por
alguém), depois de Ter recebido a fé! E aqueles que não se
arrependem serão os iníquos.

49:12 Ó fiéis, evitai tanto quanto possível a suspeita, porque


algumas suspeitas implicam em pecado. Não vos espionem,
nem vos calunieis pelas costas. Quem de vós seria capaz de
comer a carne do seu irmão morto? Tal atitude vos causa
repulsa! Temei a Deus, porque Ele é Remissório,
Misericordiosíssimo.

49:13 Ó humanos, em verdade, Nós vos criamos de macho e


fêmea e vos dividimos em povos e tribos, para reconhecerdes
uns aos outros. Sabei que o mais honrado, dentre vós,
ante Deus, é o mais temente. Sabei que Deus é
Sapientíssimo e está bem inteirado.

MATRIX BASEADO EM CARL JUNG

• Análise da trilogia de filmes The Matrix a partir dos estudos de


Carl Jung, com elementos do Estruturalismo e do Pós-
Estruturalismo como base comparativa. Adianto que um
conhecimento prévio dos filmes é essencial para a compreensão
do texto:

A forma do mundo em que o homem nasceu já está


dentro dele como imagem virtual
(Carl Jung)
Carl Gustav Jung era um jovem psiquiatra de Zurique na época
em que conheceu e ficou fascinado pelo revolucionário
psicanalista Sigmund Freud, no começo do século passado. A
admiração mútua durou pouco mais de uma década, tendo os
dois rompido relações por incompatibilidades pessoais e
intelectuais, principalmente pela rejeição de Jung ao
pansexualismo de Freud. Para Jung, o comportamento humano
é condicionado não somente pela sua história individual e racial
(causalidade), mas também pelos seus alvos e aspirações
(teologia). O passado como realidade, e o futuro como
aspiração/potencialidade dirigem o comportamento presente.

"O indivíduo vive para os alvos, assim como pelas


causas"
(Carl Jung)

No primeiro filme, The Matrix, Neo aprende a viver por sua


aspiração, que é primeiro libertar-se de algo que ele não
conseguia ver ou saber, mas cuja opressão ele podia sentir em
sua alma. Ele buscou essa libertação desesperada e
inconscientemente, e foi ajudado por Morpheus e Trinity a sair
da Matrix. Após o conhecimento do QUE o subjugava, sobreveio
o medo, e a pequenez diante do poder do carcereiro (no caso,
as máquinas). Precisou, novamente, de ajuda externa, na
figura de Oráculo, que progressivamente o ensinou que buscar
os seus objetivos é como respirar (ou amar): não deve haver
dúvidas se você pode ou não pode, você apenas respira (ou
ama) e aquilo é o natural. Sua mente, enganada (e subjugada)
pelas máquinas durante toda a vida, poderia novamente ser
enganada (e subjugada) por uma força ainda maior: ele
mesmo. Inicia-se todo um esforço de desprogramação
(desintoxicação) das limitações que o cerceavam na Matrix.

Foi em um momento de absoluta necessidade, quando não


havia espaço para o raciocínio lógico, que uma parte do poder
de Neo aflorou, e ele salvou Trinity da queda no helicóptero
numa seqüência de acontecimentos que poderíamos chamar
aqui de Sincronicidade, onde cada ação ocorreu em seu
momento certo, da forma correta. Embora ele tenha tido este
momento de epifania, dúvidas ainda pairavam em sua mente,
dúvidas essas que o levaram ao erro (a bala que passou de
raspão ao tentar desviar) e foi preciso que seu corpo na Matrix
morresse (simbólica e literalmente) para que uma nova
consciência pudesse despertar. Essa nova consciência,
finalmente liberta das amarras da ilusão (Matrix), escolheu
ensinar a humanidade o poder dessa libertação.
Assim termina o primeiro filme, que retrata um combate não
externo, mas interno, contra a ilusão que nubla a própria mente
consciente, ou ego, como veremos nos estudos de Carl Jung:

Ego ou mente consciente


É o responsável por nossos sentimentos de identidade e
continuidade e, do ponto de vista da própria pessoa, é encarado
como sendo o centro da personalidade. O budismo procura
justamente aniquilar o ego, essa falsa percepção de identidade.
O ego não foi produzido pela natureza para seguir
ilimitadamente os seus próprios impulsos arbitrários, e sim para
ajudar a realizar, verdadeiramente, a totalidade da Psique. Se,
por exemplo, possuo algum dom artístico de que meu ego não
está consciente, este talento não se desenvolve, e é como se
fora inexistente. O ego é como o boi da parábola Zen, é a
tração. Mas não confunda: o boi não guia, é guiado pelo
cocheiro, mas, na maioria das vezes, nós mesmos deixamos o
boi tomar o rumo que ele quer.

Inconsciente individual
Onde ficam as experiências que foram reprimidas, suprimidas,
esquecidas ou ignoradas, e também experiências muito fracas
para marcar a consciência do individuo. É aí que se encaixam
os Complexos, que são grupos organizados de sentimentos,
percepções e memórias, que ficam no inconsciente, mas
atuando de forma determinante no consciente, podendo atuar
até mesmo como uma personalidade autônoma, usando a
psique para seus próprios fins.

Inconsciente coletivo

É o alicerce de toda a estrutura da


personalidade. Sobre ele estão erigidos o ego, o inconsciente
individual e todas as outras aquisições individuais. Jung vê a
personalidade como um produto do passado ancestral, sendo o
homem moderno concebido e moldado pelas experiências
acumuladas de gerações passadas, recuando até as origens
obscuras e desconhecidas da humanidade. Segundo ele, o
homem nasceu com muitas predisposições (legado de seus
ancestrais) que dirigem sua conduta e determinam, em parte,
aquilo de que ele tomará consciência e a que responderá em
seu próprio mundo de experiências. Ou seja, uma
personalidade coletiva, que atua seletivamente no mundo da
experiência e é modificada e elaborada pelas experiências que
recebe (assim como o conceito de egrégora, só que, no caso de
Jung, mais determinante e menos intuitiva). Uma personalidade
individual, nesse caso, seria o resultado da interação de forças
internas e externas. Mas ele deixa espaço para a
individualidade, pois se assim não fosse, não haveria lugar para
a variação e o desenvolvimento. Assim como Jung, o
estruturalista Claude Lévi-Strauss também acreditava que o
espírito era influenciado por uma energia superior inconsciente.

Acredito que o inconsciente coletivo seja, na verdade, uma


abordagem mais científica para a reencarnação (tema
carregado de profundo significado religioso e Tabu até hoje para
os cientistas), que Jung conhecia bem, mas preferiu deixar de
fora de suas conclusões. Ele narrava que, nas suas viagens pela
Europa, antes de chegar a determinado lugar, tinha a impressão
nítida de que antes houvera estado ali. Conhecia detalhes,
hábitos, cultura e, ao chegar, para sua surpresa, verificava que
aquela percepção era verdadeira. Naturalmente, sua
abordagem foi psicanalítica.

"O conhecimento baseia-se não somente na verdade,


mas no erro também"
(Carl Jung)

No segundo filme, Neo é alçado a um patamar de semi-Deus


pelos seus amigos e habitantes de Zion. Não apenas ele
libertou-se, como dominou o código da Matrix. Neo fica um
pouco desconfortável com o assédio, mas seu ego se acomoda
bem à posição de Super-Homem, e sua autoconfiança dentro da
Matrix é visível, e perigosa. Vejamos o que Jung tem a dizer
sobre os papéis que tomamos para nós mesmos e para a
sociedade:
Arquétipos
São imagens recorrentes no inconsciente coletivo (formas-
pensamento), que expressam e definem uma situação. São
mais que um ícone, pois contêm uma grande carga de emoção
(além da informação) que é transmitida a quem vê. Ex: Jesus
na cruz simboliza um arquétipo de ser bondoso que sofreu
injustamente e resignado, o que causa um efeito anestésico
(inconsciente) em quem está passando por provações (por
identificação). Já a andrógina e decidida Trinity se tornou (pra
muitos) um arquétipo feminino desta geração, assim como
sensual e produzida Marilyn Monroe o foi para a geração dos
anos 60. Uma vez que esses arquétipos são assimilados pela
pessoa, são trabalhados individualmente, podendo até assumir
o controle da personalidade (no caso da Sombra). Não é
preciso entrar em contato sensorial com o arquétipo para que
eles atuem, já que cada indivíduo nasce com acesso a toda a
"biblioteca de Arquétipos", via Inconsciente Coletivo.

Persona
É a máscara usada pelo indivíduo em resposta às convenções e
tradições sociais e às suas próprias necessidades arquetípicas
internas. É o papel que a sociedade lhe atribui, que espera que
você represente na vida. O propósito da máscara é produzir
uma impressão definitiva nos outros e, muitas vezes (embora
não obrigatoriamente) dissimula a verdadeira natureza do
indivíduo, em oposição à personalidade privada, que existe por
trás da fachada social. Se o ego se identificar com a persona,
como freqüentemente o faz, o indivíduo terá mais consciência
do papel que está representando do que de seus sentimentos
genuínos. Será sugado pelo personagem, tornando-se um
alienado de si mesmo e toda a sua personalidade toma um
aspecto superficial e bidimensional (a persona assemelha-se,
em certos casos, ao superego categorizado por Freud). O pós-
estruturalismo veio reforçar a idéia do papel como esvaziador
da potência do indivíduo, como um chefe que se deixa tomar
pela importância do cargo, ou homem/mulher que sofre ou se
anula em prol de um símbolo, que é a família ou o casamento.
Lidamos com esses símbolos todo dia, seja em casa (com o pai,
irmão), seja na rua (com o guarda), nos afazeres (com o
professor, o chefe), até mesmo indiretamente (como o
governador e o presidente), os símbolos se interpõem entre nós
e as pessoas, assim como um software de computador nos
apresenta um conjunto de símbolos que intermedia nossa
comunicação com o processador da máquina.

"Mais cedo ou mais tarde tudo se transforma no seu


contrário"
(Carl Jung)
"Aceite que tudo gira em torno do sexo, Mr. Jung. É inevitável!"

Continuando o filme, surge o combate de Neo com Smith. Neo


fica surpreso em ver como ele está mais forte, e tem de fugir
para não perder o combate. Aqui fica claro que há uma estreita
relação entre os dois, que ambos podem intuir, mas, como
ambos se detestam, não podem compreender as implicações de
que um é instrumento de evolução do outro.

Sombra
O arquétipo da Sombra é o lado escuro da mente, moradia do
inconsciente. Lá estariam guardados os instintos animais que o
homem herdou de espécies primitivas na evolução, e também
as funções menos utilizadas da personalidade. É representada
pelas idéias, desejos e memórias que foram reprimidos pelo
consciente, por ser incompatível com a Persona e contrárias aos
padrões morais e sociais. Quanto mais forte for nossa Persona,
e quanto mais nos identificarmos com ela, mais repudiaremos
outras partes de nós mesmos. A Sombra representa aquilo que
consideramos inferior em nossa personalidade e também aquilo
que negligenciamos e nunca desenvolvemos em nós mesmos.
Em sonhos, a Sombra freqüentemente aparece na forma
daquilo que detestamos. No caso de Neo, um engravatado do
governo.

Quanto mais a Sombra tornar-se consciente, menos ela pode


dominar. Entretanto, a Sombra é uma parte integral de nossa
natureza, e nunca pode ser simplesmente eliminada. Uma
pessoa sem Sombra não é uma pessoa completa, mas uma
"caricatura bidimensional" que rejeita a ambivalência presentes
em todos nós. Além disso, a Sombra não é apenas uma força
negativa na Psique. Ela é um depósito de considerável energia
instintiva, espontaneidade e vitalidade, e é a fonte principal de
nossa criatividade. Lidar com a Sombra é um processo que dura
a vida toda, consiste em olhar para dentro e refletir
honestamente sobre aquilo que vemos lá. Mas cuidado para não
se tornar a sombra, pois ela também é um arquétipo
"bidimensional".

Smith não é o único caso de sombra no filme. Somos


apresentados a uma pessoa cuja trajetória de vida lembra a de
Neo, só que muito mais arrogante e manipulador: O
Merovingeo. Ele, que já foi um Iluminado, um liberto da Matrix,
se rendeu aos prazeres da Matrix, gerenciando um "inferninho"
(qualquer semelhança com o mito do Anjo caído não é
coincidência). Ele aparentemente controla a Matrix, mas
também é controlado por ela. As próprias máquinas são outra
forma de sombra: a Projeção.

Projeção
A Sombra é mais perigosa quando não é reconhecida pelo seu
portador. Neste caso, o indivíduo tende a projetar suas
tendências indesejáveis em outros. Abaixo, um ótimo exemplo:

"Durante mais de 5 anos este homem percorreu a


Europa como um louco,em busca de qualquer coisa a que
pudesse deitar fogo. Infelizmente sempre haverá
mercenários prontos a abrir as portas da sua pátria a
este incendiário internacional."

A frase acima não é sobre Hitler, e sim de Hitler falando mal do


primeiro-ministro inglês Winston Churchil!!

Desconfie se sua namorada tiver a paranóia de que você a está


traindo, sem você ter dado motivo, ou daquele seu amigo que
vive dizendo que todo mundo é gay. A Sombra é o oposto do
ego e encarna, precisamente, o traço de caráter que mais
detestamos nos outros. E aí lembro do espírito Joana de
Ângelis, que diz que "o ódio é o amor distorcido". Na verdade,
ao odiarmos, estamos sufocando algo que temos dentro da
gente (por isso a ressonância) que cultivamos (quem cultiva,
ama), mas não admitimos. Se não a cultivássemos, a Sombra
não existiria desta forma. Daí a necessidade do caminho do
meio, do equilíbrio. Se o ego for bem trabalhado nas 4 funções
(pensamento, sentimento, sensação e intuição) não vai sobrar
grandes opostos para a Sombra encarnar.

No filme vemos a simbologia da projeção dos humanos sobre as


máquinas. Criticam nas máquinas exatamente seu maior
defeito: a exploração e a subjugação pela força. Ao ver o
episódio de Animatrix onde é contada a história da humanidade
ANTES da escravização, vemos o quanto os humanos foram (e
ainda são) arrogantes e cruéis com as máquinas. Foram os
humanos, e não as máquinas, os responsáveis pela destruição
da atmosfera do planeta, o que obrigou as máquinas a usarem
humanos como fonte de alimentação. No diálogo de Neo com o
Conselheiro Hamann, vemos a questão ser retomada, e a
constatação de que eles continuam dependentes das máquinas
tanto quanto antes, mas admitir isso seria uma fraqueza, pois a
ilusão humana é acreditar que está no controle. Até hoje é mais
fácil para o ser humano confrontar ao invés de conviver, tirar ao
invés de pedir, desperdiçar ao invés de compartilhar.

Introversão e extroversão
Jung descobriu que cada indivíduo pode ser caracterizado como
sendo primeiramente orientado para seu interior ou para o
exterior, sendo que a energia dos introvertidos se dirige em
direção a seu mundo interno, enquanto a energia do
extrovertido é mais focalizada no mundo externo. Entretanto,
ninguém é totalmente introvertido ou extrovertido. Algumas
vezes a introversão é mais apropriada, em outras ocasiões a
extroversão é mais adequada, mas, as duas atitudes se
excluem mutuamente, de forma que não se pode manter
ambas ao mesmo tempo. Jung também enfatiza que nenhuma
das duas é melhor que a outra, citando que o mundo precisa
dos dois tipos de pessoas. Darwin, por exemplo, era
predominantemente extrovertido, enquanto Kant era
introvertido por excelência. O ideal para o ser humano é ser
flexível, capaz de adotar qualquer dessas atitudes quando for
apropriado, operar em equilíbrio entre essas duas qualidades.
"O pêndulo da mente se alterna entre perceber e não-
perceber, e não entre certo e errado"
(Carl Jung)

O estruturalismo (Lévi-Strauss, Barthes, Lacan etc) e a teoria


dos sistemas (Luhmann) decretaram a "morte do sujeito", o
indivíduo do pensamento iluminista, em favor da sociedade ex-
machina, vista de cima, de forma pragmática e objetiva. Esse é
o papel do Arquiteto, o programa que construiu a Matrix. Para
ele pessoas são números, equações que ele deve manter
equilibradas. Entretanto, o ser humano é imprevisível, e alguns
poucos desequilibraram o sistema várias vezes, causando um
colapso.

O pós-estruturalismo defende que é a interação entre os


elementos de um sistema que causa a entropia que destrói a
estutura. Cuidar desses elementos individuais é o papel de
Oráculo, um programa de salvaguarda do "sistema Matrix". Ela
tenta equilibrar os interesses do Arquiteto com o dos humanos
"revoltados", e naturalmente evoluiu para ser a intermediadora
entre os dois lados.
Anima e Animus
Anima (alma, em latim) é a representação feminina no
inconsciente do homem (que idéia ele faz, no seu íntimo, da
mulher). O caráter da Anima é, em geral, determinado pela sua
mãe. Se o homem sente que sua mãe teve sobre ele uma
influencia negativa, sua Anima se manifestará de forma
negativa, ou seja, ele poderá ser inseguro, apático, com medo
de doenças, de impotência ou de acidentes (se ele conseguir
combater essas influências negativas da Anima, sua
masculinidade tende a fortalecer-se). A vida adquire um
aspecto tristonho e opressivo, que pode levar o homem até
mesmo ao suicídio. Se, por outro lado, a experiência com a
mãe tiver sido positiva, a Anima poderá deixá-lo efeminado ou
explorado por mulheres, incapaz de fazer face às dificuldades
da vida (menino criado com vó dá nisso!). A manifestação mais
freqüente de Anima é a que toma forma como fantasia erótica,
que leva o homem a consumir revistas pornográficas, sex-
shows, etc. É um aspecto primitivo e grosseiro da Anima, mas
que só se torna compulsivo quando o homem não cultiva
suficientemente suas relações afetivas - quando sua atitude
para com a vida mantém-se infantil.

"O encontro de duas personalidades é como o


contato de duas substâncias químicas. Se há
alguma reação, ambos são transformados"

Animus (espírito, em Latim) é o lado masculino no inconsciente


da mulher. Assim, uma mulher muito feminina tem uma alma
masculina não desenvolvida (trabalhada). Em seu
relacionamento com o mundo, se ela é impressionável,
calorosa, estimulante e envolvente, seu lado masculino interior
será muito diferente: duro, crítico, agressivo, prepotente... O
Animus (assim como a Anima) possui 4 estágios de
desenvolvimento: o primeiro como personificação da força física
(o atleta, a força pelos músculos), no estágio seguinte, como o
homem de ação (iniciativa e planejamento). No terceiro,
manifesta-se como verbo, como professor, e na quarta e mais
elevada manifestação torna-se (assim como a Anima) mediador
de uma experiência na qual a vida adquire um novo sentido. Dá
à mulher uma firmeza espiritual e um amparo interior, que
compensa sua brandura exterior. Relaciona a mente feminina
com a evolução espiritual da época, tornando-a assim mais
receptiva a novas idéias criadoras do que o homem. É por este
motivo que antigamente, em muitos países, cabia à mulher
adivinhar o futuro ou a vontade dos Deuses. A audácia criadora
do seu Animus positivo expressa, por vezes, pensamentos e
idéias que estimulam a humanidade a novos empreendimentos.

Anima/us é também uma Sombra, e como tal pode ser


projetada. Isso é feito quando a pessoa apaixona-se logo de
cara, quando diz "É essa/esse!" e parece que se conhece essa
pessoa há tempos. Pessoas fascinantemente misteriosas são as
mais fáceis do homem/mulher projetar sua Anima/us, pois em
torno delas pode-se tecer as mais variadas fantasias. Para sair
desta ilusão é preciso reconhecer o Anima/us como um poder e
qualidade interior. O objetivo de todo esse jogo do
inconsciente é forçar o ser humano a desenvolver e amadurecer
o próprio ser, integrando melhor a sua personalidade
inconsciente e trazendo-a à realidade da vida (mesmo que seja
através de subterfúgios, como projeções).

"Cada homem sempre carregou dentro de si a imagem da


mulher; não a imagem desta ou daquela mulher, mas
uma imagem feminina definitiva"
(Carl Jung)

Mas a Anima/us não é só negativa. Ao contrário, uma Anima


bem trabalhada pode levar o homem ao seu pleno potencial. A
função mais importante da Anima é ajudar a sintonizar a mente
masculina com seus valores interiores positivos, assumindo
então uma posição de mediadora entre o mundo interior e o
Self. E é através deste desejo íntimo de trabalhar aspectos que
o homem não possui, que um homem tímido tende a procurar
alguém que seja extrovertida. Como no velho ditado "os
opostos se atraem", ou a "cara metade", a "banda da laranja",
etc. As pessoas buscam o oposto nas outras pessoas quando na
verdade é um subterfúgio do inconsciente para encontrar o
oposto dentro delas mesmas.

"Atrás de um grande homem sempre existe uma grande


mulher". Verdade, embora o contrário também seja
verdadeiro. Vemos este arquétipo de Anima como a salvação, a
luz no fim do túnel, no livro A Divina Comédia, onde Beatriz
guia Dante através de um (significativo e simbólico) caminho
tortuoso e íngreme, que o leva à redenção (luz). Trinity
simboliza a Anima de Neo em Matrix, e através dela (direta e
indiretamente) ele pôde manifestar suas potencialidades. Na
Índia vemos essa dualidade/complementação no casal de
Deuses Shiva/Kali e Vishnu/Parvati.

No terceiro filme Neo fica


cego (simbolicamente perdido, cercado pela escuridão) e é
guiado (literalmente pela mão) por Trinity, que pilota a nave até
seu objetivo (a cidade das máquinas). Antes, porém ela Neo até
a luz do Sol (símbolo pra uma nova iluminação, uma nova
compreensão).

A Anima/us vai muito mais fundo na contraparte da


personalidade (lado oposto inconsciente) que a Sombra. Se a
imagem da Sombra desperta medo e apreensão, a Anima/us,
ao contrário, estimula o desejo de união. A Sombra leva a
pessoa de encontro a parte indesejada da Psique total, suas
qualidades inferiores. Mas não vai além disso, a menos que se
deseje ir de encontro com o mal absoluto. A estrutura
Anima/Animus leva a pessoa a níveis muito mais profundos do
Self, pois está ancorada em aspectos do inconsciente coletivo e
arquétipos, não sendo apenas reflexos negativos de si mesmo.

"Até o ponto que podemos compreender, o único


propósito da existência humana é acender a luz do
SENTIDO na escuridão do mero SER."
(Carl Jung)

Funções psíquicas
Há quatro funções psicológicas fundamentais para se analisar o
ser humano: pensamento (pessoas assim são grandes
planejadoras e tendem a se agarrar a seus planos e teorias,
ainda que sejam confrontados com contraditória evidência),
sentimento (Preferem emoções fortes e intensas - ainda que
negativas - a experiências apáticas e mornas. Faz seu
julgamento com base em seus próprios valores, como por
exemplo, se é bom ou mau, se é certo ou errado, agradável ou
desagradável), sensação (O enfoque está na experiência
direta, e tem sempre prioridade sobre a discussão ou a análise
da experiência. Tem a ver com o que a pessoa pode ver, tocar,
cheirar. Os sensitivos trabalham melhor com instrumentos,
aparelhos, veículos e utensílios do que qualquer um dos outros
tipos) e intuição (O homem intuitivo vai além dos fatos,
sentimentos e idéias, em busca da essência da realidade. As
implicações da experiência - o que poderia acontecer, o que é
possível - são mais importantes para os intuitivos do que a
experiência real por si mesma. Dão significados às suas
percepções com tamanha rapidez que, via de regra, não
conseguem separar suas interpretações conscientes dos dados
sensoriais brutos obtidos).

As duas primeiras são funções racionais (fazem uso da razão,


do juízo, da abstração e da generalização) e as duas últimas
são irracionais (por serem baseadas na percepção do concreto,
do particular e do acidental). O pensamento é ideacional e
intelectual. O sentimento mede o valor das coisas para o
sujeito. A sensação é a percepção da realidade, traz fatos
concretos ou representações do mundo. A intuição é a
percepção por meio de processos inconscientes e conteúdos
subliminares.

Embora todo mundo tenha as quatro funções, elas não são


desenvolvidas em sua totalidade. Geralmente uma delas é
predominante na consciência, e é chamada de função
superior, e uma entre as três restantes pode agir como
auxiliar da função superior. Em caso de "pane" da principal,
entra automaticamente em cena a outra. A menos usada das
quatro é chamada de função inferior,e fica reprimida,
relegada ao mais profundo do inconsciente.

"Os maiores e mais importantes problemas são


fundalmentalmente insolúveis. Eles nunca serão
resolvidos, e ainda crescerão além do esperado"
(Carl Jung)

Se todas as funções pudessem ser igualmente fortes no


consciente e harmonizadas (como se dispostas na borda de um
círculo) o centro desse círculo seria o Self realizado
plenamente. É o núcleo, mas também é toda a esfera. O
problema é que nem sempre acessamos este núcleo. Mas não
fiquem pensando que é um ponto localizável na alma humana,
algo que possa ser acessado tipo "ah, eu estou falando com o
Self" porque ele é um conjunto que define o ser humano como
um TODO, e o ser humano TAMBÉM é sua coletividade e seu
meio (inconsciente coletivo). A abordagem do Self vem de
encontro à filosofia Zen, quando diz:

"Se o Zen Budismo considerasse importante expressar-


se aqui apoiado no uso da terminologia, poderia fazê-lo
do seguinte modo: o centro do ser situa-se além da
multiplicidade, da identidade/diversidade e, no entanto,
não se situa além delas. E, como situar-se além e não-
além disto é igualmente uma contradição, acrescentar-
se-ia como explicação: o centro do ser não é um nem
outro, nem ambos, e absolutamente não pode ser
descrito por meio do pensamento. Quem desejar saber o
que ele é, deve percorrer o Caminho Zen"
(O caminho Zen, de Eugen Herrigel)

Nicolau de Cusa, monge filósofo do século XV, já usara imagem


semelhante ao referir-se à onisciência divina: "Deus é uma
esfera cujo centro está em toda parte e cuja
circunferência não se delimita em parte alguma".

Self
O Self é o objetivo da vida. Um alvo pelo qual as pessoas
sempre lutam, mas raramente atingem. Os arquétipos dessa
realização são Jesus e Buda (meus heróis, meus heróis!). O Self
pode ser definido como um fator de orientação intima. Jung o
compara ao daemon, ou gênio (que hoje chamamos de guia
espiritual ou anjo da guarda), seja ele interior ou exterior a
você. O Self é o ponto central da personalidade, em torno do
qual giram todos os outros sistemas. Ele sustenta a união
desses sistemas, e fornece unidade, equilíbrio e estabilidade à
personalidade. Antes de o Self emergir, é necessário os vários
componentes da personalidade se desenvolvam plenamente.
Por essa razão, o arquétipo do Self não se torna evidente até
que o indivíduo tenha atingido a idade madura. Nessa época,
ele procura deslocar-se do ego consciente para um ponto a
meio caminho entre o consciente e o inconsciente. Manter-se
nessa região intermediária constitui-se no domínio do Self.
Qualquer semelhança com o caminho do meio, de Buda, não é
coincidência.

"Não posso lhe dizer como é um homem que goza de


uma completa auto-realização, nunca vi nenhum... Antes
de buscar a perfeição, devemos viver o homem comum,
sem mutilação"
(Carl Jung)

Individuação
É um processo ininterrupto de aprimoramento pessoal. A
harmonização do consciente com o Self. O caminho para a
iluminação. Todos estamos num processo de Individuação, no
entanto, a grande maioria não o sabem. Mas os que estão
suficientemente conscientes deste processo, podem tirar algum
proveito disso.

Mas não é assim tão é fácil: o ego reclama, pois se sente


tolhido em suas vontades ou desejos, e projeta essa frustração
sobre qualquer objeto exterior (Deus, a economia, o vizinho, o
namorado(a) ou o trabalho). Algumas vezes tudo parece estar
bem com a pessoa, mas no íntimo ela sente tédio e um vazio
mortal. Há também o perigo de identificação com a Persona.
Aqueles que o fazem tendem a tentar tornar-se perfeitos
demais, incapazes de aceitar seus erros ou fraquezas, ou
quaisquer desvios de sua auto-imagem idealizada. Aqueles que
se identificam totalmente com a Persona tenderão a reprimir
todas as tendências que não se ajustam, e a projetá-las nos
outros, atribuindo a eles a tarefa de representar aspectos de
sua identidade negativa reprimida.

"Nós não podemos mudar nada sem que primeiro a


aceitemos"
(Carl Jung)
Há alguns estágios básicos para
a Individuação, que são: reconhecer as máscaras (persona),
confrontar a Sombra, a Anima / Animus, e finalmente, o
desenvolvimento do Self. Mas não pensem que acaba por aí, ou
que isso seja fácil. É necessário ter em mente que, embora seja
possível descrever a Individuação em termos de estágios, o
processo é bem mais complexo que isso. Todos os passos
mencionados sobrepõem-se, e as pessoas voltam
continuamente a problemas e temas antigos (espera-se que de
uma perspectiva diferente). A Individuação poderia ser
apresentada como uma espiral na qual os indivíduos
permanecem se confrontando com as mesmas questões
básicas, de forma cada vez mais refinada. Este conceito está
muito relacionado com a concepção Zen-budista da Iluminação,
na qual um indivíduo nunca termina um Koan, ou problema
espiritual, e a procura por si mesmo é vista como idêntica à
finalidade. É como falei antes: a vida é um eterno "Saindo da
Matrix".

Neo se defronta com as questão do que é "real" várias vezes


durante os filmes. Primeiro, ele teve de se libertar da ilusão da
Matrix, depois da ilusão do ego e, por fim, da ilusão da
individualidade. Somente quando percebeu que não tinha
sentido combater pela eternidade a Sombra (Smith) foi que Neo
se deixou levar pelo SENTIDO dos acontecimentos, que no filme
é chamado de propósito. Todos ali têm uma missão, uma
programação, mesmo fora da Matrix. Era o indicativo de que,
para além do Arquiteto e da Matrix, existiria uma OUTRA Matrix
mais sutil, e percebemos isso claramente quando Neo, ao
Individuar-se (na fusão com Smith) é simbolicamente retratado
como Jesus na cruz - pois cumpriu o trajeto dos Mestres
Crísticos, que colocaram a missão acima da individualidade -
para depois sumir em uma luz que representa uma flor de
Lótus (símbolo da transcendência da alma).
• A TEORIA GAIA E A GESTALT

dom, 4 de fevereiro, 2007

Por Luis Lira

A percepção de que o planeta Terra, com idade de 5 bilhões de


anos é um ser vivo, pode ser um instrumento importante para
a materialização da relação organismo/meio ambiente da
Terapia Gestalt

A teoria Gaia, do cientista inglês James Lovelock, afirma que "a


Vida e a Terra evoluem juntas, excluindo o paradigma da visão
científica convencional, aonde reina o apartheid entre os vários
campos das disciplinas ambientais". A proposta dessa nova-
antiga visão é fazer uma síntese das contribuições da geologia,
geoquímica, biologia evolutiva e climatologia, transformando a
concepção grega da Terra, enquanto deusa viva, numa teoria
fundamentada cientificamente e apoiada em uma nova
disciplina, a Geofisiologia.

Entretanto, apresentar o planeta Terra como Gaia – Mãe


Natureza – de forma compreensível e tentar levantar algumas
questões que mostrem a famosa relação organismo-ambiente e
as dinâmicas fronteiras de contato é, para um geólogo, uma
tarefa difícil e, por que não dizer, audaciosa.
Perls, o pai da Terapia Gestalt, dizia que não é possível analisar
um ser humano independente do oxigênio que ele respira.
Mesmo que suas palavras não devam ser tomadas ao pé da
letra, o oxigênio, elemento chave para a existência da vida,
está presente na atmosfera numa percentagem de 20,8%. Se
sua concentração estivesse acima desse valor, relâmpagos
poderiam transformar o planeta numa bola de fogo; valores
abaixo acarretariam uma deficiência desse elemento para
muitas espécies que não sobreviveriam, inclusive a nossa.

As algas microscópicas que vivem nos ambientes aquáticos,


notadamente nos oceanos – fitoplancton – são as maiores
responsáveis pela regulagem do percentual de oxigênio na
atmosfera. Elas se beneficiam da "tecnologia" conhecida como
fotossíntese, que é a transformação do C02 em oxigênio livre,
na presença de luz solar.

É preciso ressaltar que os vegetais são os nossos "órgãos"


externos da respiração. Eles retiram o CO2 e fornece o
oxigênio, elemento indispensável para a vida animal. Da
mesma maneira, sem o reino animal as plantas também
morreriam, pois nós devolvemos à atmosfera o CO2, o mais
importante "alimento" das plantas.

Todos sabem da importância da respiração e da necessidade de


respirar um ar puro, hoje difícil nos grandes aglomerados
urbanos. Até que ponto o não saber respirar corretamente ou
respirar um ar contaminado interfere no equilíbrio (saúde)
humano?

Um outro exemplo que demonstra que a Terra funciona como


um organismo vivo é a salinidade das águas marinhas. A água
do mar é salgada devido à quantidade de sais nela dissolvida,
que chegaram e chegam aos oceanos através das erupções
vulcânicas e do aporte de águas continentais. Se considerarmos
os últimos 18 milhões de anos, a quantidade de sais lançados
pelos rios no ambiente marinho já seria suficiente para
transformar os oceanos em um verdadeiro mar morto, com teor
de salinidade acima de 40%. Entretanto, a quantidade média
de sais na água do mar permanece, desde origem dos oceanos,
em 35%, porque os organismos microscópicos que habitam o
ecossistema marinho concentram excesso de sais, permitindo
que exista vida.

A origem da vida, como diz a ciência, se deu a 3 bilhões de


anos, nos oceanos, e nós somos - à luz da teoria da evolução
de Darwin - filhos desse grande útero materno.
Levando-se em consideração a quantidade de água que caiu na
Terra ao longo de sua história geológica, ela seria suficiente
para tornar o pH de todos os solos ácidos, tornando inviável a
presença de vegetação no planeta. Entretanto, as bactérias e
outros microorganismos que vivem nos solos garantem a
cobertura vegetal. Os vegetais, por sua vez, interferem sobre o
clima. Não fossem os mecanismos utilizados pelo fitoplâncton,
zooplâncton e pelos microorganismos do solo, não existiria vida
no planeta Terra.

Percebendo a Terra como ser vivo, Peter Russel, em seu livro


"O Despertar da Terra" advoga que nós, seres humanos,
constituímos as células do cérebro do planeta. Seria esse o
inconsciente coletivo de Jung, produto do pensamento de 6
bilhões de "células" que formam o "cérebro global" da Terra
viva?

Os desequilíbrios do planeta, provocados pela emissão de gases


estufa na atmosfera, chuvas ácidas, buraco na camada de
ozônio, desmatamentos e extinção de espécies, não sugere que
o ser humano, como célula do cérebro do planeta, esteja
naturalmente desequilibrado, precisando religar-se com os
princípios de sua evolução biológica?

Inserir técnicas que levem o homem ao contato com o


ambiente natural não seria um instrumento importante na
prática da Terapia Gestalt? Saber que nós somos o planeta,
materializado, quando estamos em awareness com Gaia, é sem
dúvida um elemento importante na compreensão da teoria da
percepção enfocada pela Gestalt. Somos parte de Gaia e, como
a parte contém o todo e o todo é maior do que a soma das
partes, a Terra é a totalidade. A mãe natureza está doente. Ela
necessita de um olhar sensível e equilibrado para se manter
viva. Temos que deixar de se comportar como um ego
encapsulado na pele ("Tudo que estiver dentro de minha pele
sou eu, e o que está fora de minha pele não sou eu"). É preciso
tornar porosa as fronteiras de contato. A Terra é a personagem
principal. Nós, seres humanos, que adoecemos Gaia, não
deveríamos ser figurantes, como forma de garantir a própria
sobrevivência?

• ARQUÉTIPOS
seg, 3 de setembro, 2007

Quando falamos em Arquétipos, pensamos logo em símbolos,


algo mais próximo do que podemos conceituar. Só que esse
termo já está bem definido e conceituado, e não é nada disso
do que costumamos pensar.

O termo "Arquétipo" foi usado por filósofos neoplatônicos, como


Plotino, para designar as idéias como modelos de todas as
coisas existentes, segundo a concepção de Platão. Nas filosofias
teístas, o termo indica as idéias presentes na mente de Deus.
Pela confluência entre neoplatonismo e cristianismo, o
Arquétipo foi incorporado à filosofia cristã, por Agostinho, até
vir a ser usado academicamente por Carl Gustav Jung, na
psicologia analítica, para designar a forma imaterial à qual os
fenômenos psíquicos tendem a se moldar. Ou seja, os modelos
inatos que servem de matriz para o desenvolvimento da psique.

É nesta aplicação psicológica que costumamos encontrar as


distorções. Portanto, vejamos este texto de Lázaro Freire, que
trata de desfazer alguns enganos:

Não existem "Arquétipos do Tarot", nem o "Arquétipo de Ísis",


nem o "Arquétipo do Leão", nem outros absurdos esquisotéricos
que ouvimos por aí. Arquétipos estão numa camada muito mais
profunda e amorfa. Senão, não são mais Arquétipos, e sim
mitos criados para que possamos lidar com eles dentro de uma
referência cultural ou simbólica.

Se falam do conceito original, formulado por Jung (mas


estuprado e distorcido por todos que quiseram dar um certo ar
"científico" aos seus credos), o Arquétipo é quem cria os
deuses. É como o buraco da forma de gelo. Não há, portanto,
Arquétipo de Maria, nem de Pacha Mamma, nem de Ísis, nem
de Lakshimi, nem da Deusa, nem da Imperatriz do tarot. Mas
há um Arquétipo UNIVERSAL da Grande Mãe, algo sem forma,
sem mito, que está presente no inconsciente coletivo da
humanidade, e que fará qualquer povo de qualquer lugar,
mesmo se isolado numa ilha ou planeta, daqui há algum tempo
arrumar alguma deusa ou figura similar para preencher o
buraco psíquico deixado por este arquétipo.

Um dos mais conhecidos é o do Herói, e explica - dentre mil


outras coisas - o gosto de muitos por filmes de ação, o
acompanhamento de olimpíadas e torneios, e até mesmo
porque muito sujeito aparentemente normal e pacífico é
possuído por um misto de curiosidade, hipnose e sangue na
boca quando vê, num telão desses, algum vale-tudo, jiu jitsu
ou luta de boxe.

Se Deus criou tudo, quem criou Deus?

Resposta junguiana óbvia: O Arquétipo.

A "encarnação" de um Arquétipo, seja em um deus, seja em


uma carta de tarot, seja na parte do Todo que atribuimos a um
signo zodiacal, a um personagem de uma saga de ficção, a um
dos tipos do eneagrama, a um santo do catolicismo, não são
mais ARQUÉTIPOS. São "mitos". No melhor do sentido da
palavra, que não tem nem um pouco de ficcional (embora
esteja presente na ficção).

Note também que Arquétipos são COLETIVOS.


Necessariamente! A somatória de situações pessoais na lida,
por exemplo, com o Arquétipo ou simbolismo do "Pai", do
"Poder", são chamadas de Complexos.

Ou seja, PAI tem função simbólica que nos remete a regras, a


herança, expectativa, falo, masculino, algum poder. Já o
GRANDE PAI é um Arquétipo, algo que faz projetarmos um
"pai" coletivo na figura de um grande Deus masculino que tudo
vê, como é comum na religião ocidental (note que nao tem
nada a ver com o Todo do Tao e de Bhraman). Cada pessoa
pode ter uma relação diferente com essas idéias. Como, por
exemplo, com o "PODER": Criado resistindo a uma ditadura
militar em regime corrupto capitalista, numa noção de ética dos
70 e 80 que faria Delúbio, Valério e cia parecerem fichinha,
minha geração certamente não reage ao conceito de "PODER"
do mesmo modo que norte-americanos, que consideram a
palavra positiva. Aqui, poderoso é pejorativo. Lá, vende mais o
livro que usa "The Power Of..."

Isso são COMPLEXOS, ou seja, amontoados de experiências que


permeiam nossos conceitos. Note que o termo não é negativo
ou necessariamente patológico como no uso popular
(complexado). Quando lidamos com o feminino, por exemplo,
apenas em parte estamos lidando com a mulher ÚNICA de
carne-osso-alma-sentimentos que temos à nossa frente. De
certo modo, fazemos ela vestir o nosso complexo de feminino,
de mãe, de Anima (este sim um arquétipo), de outros
relacionamentos... E repetimos padrões sem perceber.

Mas não é certo dizer que estou projetando o meu Arquétipo de


mãe, e muito menos o da Grande Mãe. Entretanto, a somatória
coletiva de todos os Complexos, e dos conceitos inconscientes
que o originaram, foram, aí sim, um grande Arquétipo
inconsciente e coletivo universal. Ou, em efeito Tostines, por ele
foi formado.

Voltando aos Arquétipos: Se deixarem de acreditar em um


Deus, ele desaparece? Provavelmente sim. Mas o Arquétipo que
o originou fará que sua função seja ocupada, em outra
mitologia, por algum outro conceito substituto.

Aliás, vários termos hoje populares vêm da linguagem


junguiana: Introvertido, Extrovertido, Complexos, Arquétipos,
Inconsciente coletivo, Anima. Nem preciso dizer que quase
todos são usados de forma equivocada, e não raro distorcidos
para fins esquisotéricos e/ou comerciais. Pobre Jung, logo ele,
tão acadêmico e preocupado com fundamentação...

PSICOLOGIA E RELIGIÃO ORIENTAL

• Entre nós, ocidentais, o homem é infinitamente pequeno,


enquanto a graça de Deus é tudo. No Oriente, pelo
contrário, o homem é deus e se salva por si próprio
(Carl Gustav Jung)

Quem ousa pensar em na relação entre a alma e a idéia de


Deus é logo acusado de psicologismo ou suspeito de misticismo
doentio. O Oriente, pelo contrário, tolera compassivamente
estes graus espirituais "inferiores" em que o homem se ocupa
com o pecado devido à sua ignorância cega a respeito do
karma, ou atormenta a sua imaginação com uma crença em
deuses absolutos, os quais, se ele olhar um pouco mais
profundamente, perceberá que não passam de véus ilusórios
tecidos pelo seu próprio espírito. Por isso, a psique é o
elemento mais importante, é o sopro que tudo penetra, ou seja,
a natureza de Buda; é o espírito da Buda, o Uno, o Dharma-
Kaya. Toda vida jorra da psique e todas as suas diferentes
formas de manifestação se reduzem a ela. É a condição
psicológica prévia e fundamental que impregna o homem
oriental em todas as fases de seu ser, determinando todos os
seus pensamentos, ações e sentimentos, seja qual for a crença
que professe.

De modo análogo, o homem ocidental é cristão,


independentemente da religião à qual pertença. Para ele, a
criatura humana é algo de infinitamente pequeno, um quase
nada. Acrescenta-se a isso o fato de que, como diz
Kierkegaard, "o homem está sempre em falta diante de Deus".
O homem procura conciliar os favores da grande potência
mediante o temor, a penitência, as promessas, a submissão,
auto-humilhação, as boas obras e os louvores. A grande
potência não é o homem, mas um "totaliter aliter", o
totalmente outro, absolutamente perfeito e exterior, a única
realidade existente. Se modificarmos um pouco a fórmula e em
lugar de Deus colocarmos outra grandeza, como, por exemplo,
o mundo, o dinheiro, teremos o quadro completo do homem
ocidental zeloso, temente a Deus, piedoso, humilde,
empreendedor, cobiçoso, ávido de acumular apaixonada e
rapidamente toda a espécie de bens deste mundo tais como
riqueza, saúde, conhecimentos, domínio técnico, prosperidade
pública, bem-estar, poder político, conquistas etc. Quais são os
grandes movimentos propulsores de nossa época? Justamente
as tentativas de nos apoderarmos do dinheiro ou dos bens dos
outros e de defendermos o que é nosso. A inteligência se ocupa
principalmente em inventar "ismos" adequados para ocultar os
seus verdadeiros motivos ou para conquistar o maior numero
possível de presas. Não pretendo descrever o que sucederia a
um oriental, se se esquecesse do ideal de Buda. Não quero
colocar, assim, tão deslealmente, e para nossa vantagem, o
preconceito ocidental. Mas não posso deixar de propor a
questão de saber se seria possível ou mesmo conveniente para
ambos os lados imitar o ponto de vista do outro. A diferença
entre ambos é tão grande, que não se vê uma possibilidade de
imitá-los, e muito menos ainda a oportunidade de o fazer. Não
se pode misturar fogo com água. A posição oriental idiotiza o
homem ocidental, e vice-versa. Não se pode ser ao mesmo
tempo um bom cristão e seu próprio redentor, do mesmo modo
que não se pode ser ao mesmo tempo um budista e adorar
Deus. Muito mais lógico é admitir o conflito, pois se existe
realmente uma solução, só pode tratar-se de uma solução
irracional.
Por inevitável desígnio do destino, o
homem ocidental tomou conhecimento da maneira de pensar
do oriental. É inútil querer depreciar esta maneira de pensar ou
construir pontes falsas ou enganadoras por sobre abismos. Em
vez de aprender de cor as técnicas espirituais do Oriente e
querer imitá-las, numa atitude forçada, de maneira cristã -
imitatio Christi -, muito mais importante seria procurar ver se
não existe no inconsciente uma tendência introvertida que se
assemelhe ao princípio espiritual básico do Oriente. Aí, sim,
estaríamos em condições de construir, com esperança, em
nosso próprio terreno e com nossos próprios métodos. Se nos
apropriarmos diretamente dessas coisas do Oriente, teremos de
ceder nossa capacidade ocidental de conquista. E com isso
estaríamos confirmando, mais uma vez, que "tudo o que é bom
vem de fora", onde devemos buscá-lo e bombeá-lo para nossas
almas estéreis. A meu ver, teremos aprendido alguma coisa
com o Oriente no dia em que entendermos que nossa alma
possui em si riquezas suficientes que nos dispensam de
fecundá-la com elementos tomados de fora, e em que nos
sentirmos capazes de desenvolver-nos por nossos próprios
meios, com ou sem a graça de Deus. Mas não poderemos
entregar-nos a esta tarefa ambiciosa, sem antes aprender a
agir sem arrogância espiritual e sem uma segurança blasfema.
A atitude oriental fere os valores especificamente cristãos e não
adianta ignorar estas coisas.

Se quisermos que nossa atitude seja honesta é preciso


apropriarmo-nos desta atitude, com plena consciência dos
valores cristãos e conscientes do conflito que existe entre estes
valores e a atitude introvertida do Oriente. É a partir de dentro
que devemos atingir os valores orientais e procurá-los dentro
de nós mesmos, e não a partir de fora. Devemos procurá-los
em nós próprios, em nosso Inconsciente. Aí, então,
descobriremos quão grande é o temor que temor do
inconsciente e como são violentas as nossas resistências. É
justamente por causa destas resistências que pomos em dúvida
aquilo que para o Oriente parece tão claro, ou seja, a
capacidade de autolibertação própria da mentalidade
introvertida.

Este aspecto do espírito é, por assim dizer, desconhecido no


Ocidente, embora seja a componente mais importante do
inconsciente. Podemos admitir com toda a tranqüilidade que a
expressão oriental correspondente ao termo "mind" (mente) se
aproxima bastante do nosso "inconsciente", ao passo que o
termo "espírito" é mais ou menos idêntico à consciência reflexa.
Para nós, ocidentais, a consciência reflexa é impensável sem
um eu. Ela se equipara à relação dos conteúdos com o eu. Se
não existe o eu, estará faltando alguém que possa se tornar
consciente de alguma coisa. O eu, portanto, é indispensável
para o processo de conscientização. O espírito oriental, pelo
contrário, não sente dificuldade em conceber uma consciência
sem o eu. Admite que a existência é capaz de estender-se além
do estágio do eu. O eu chega mesmo a desaparecer neste
estado "superior". Semelhante estado espiritual permaneceria
inconsciente para nós, pois simplesmente não haveria uma
testemunha que o presenciasse.

Não ponho em dúvida a existência de estados espirituais que


transcendam a consciência. Mas a consciência reflexa diminui
de intensidade à medida em que o referido estado a ultrapassa.
Não consigo imaginar um estado espiritual que não se ache
relacionado com um sujeito, isto é, com um eu. O seu poder
não pode subtrair-se ao eu. O eu, por exemplo, não pode ser
privado do seu sentimento corporal. Pelo contrário, enquanto
houver capacidade de percepção, deverá haver alguém
presente que seja o sujeito da percepção. É só de forma
mediana e indireta que tomamos consciência de que existe um
inconsciente. Entre os doentes mentais podemos observar
manifestações de fragmentos do inconsciente pessoal que se
desligaram da consciência reflexa do paciente. Mas não temos
prova alguma de que os conteúdos inconscientes se achem em
relação com um centro inconsciente, análogo ao eu. Antes, pelo
contrário, existem bons motivos que nos fazem ver que um tal
estado nem sequer é provável.

O fato de o Oriente colocar de lado o eu com tanta facilidade


parece indicar a existência de um pensamento que não
podemos identificar com o nosso "espírito". No Oriente, o eu
desempenha certamente um papel menos egocêntrico que
entre nós; seus conteúdos parecem estar relacionados com um
sujeito apenas frouxamente, e os estados que pressupõem um
eu debilitado parecem ser os mais importantes. A impressão
que se tem, igualmente, é de que a Hatha-Yoga serve, antes de
tudo, para extinguir o eu pelo domínio de seus impulsos não
domesticados. Não há a menor dúvida de que as formas
superiores da ioga, ao procurar atingir o Samadhi, tem como
finalidade alcançar um estado espiritual em que o eu se ache
praticamente dissolvido. A consciência reflexa, no sentido
empregado por nós, é considerado como algo inferior, isto é,
como um estado de Avidya (ignorância), ao passo que aquilo a
que denominamos de "pano de fundo obscuro da consciência
reflexa" é entendido, no Oriente, como consciência reflexa
"superior". O nosso conceito de "inconsciente coletivo"
seria, portanto, o equivalente europeu do Buddhi, o
espírito iluminado.

Destas considerações podemos concluir que a forma oriental da


"sublimação" consiste em retirar o centro de gravidade psíquico
da consciência do eu, que ocupa uma posição intermediária
entre o corpo e os processos ideais da psique. As camadas
semifisiológicas inferiores da psique são dominadas pela prática
da ascese, isto é, pela "exercitação", e, assim, mantidas sob
controle. Não são negadas ou reprimidas diretamente por um
esforço supremo da vontade, como acontece comumente no
processo de sublimação ocidental. Pelo contrário, poder-se-ia
mesmo dizer que as camadas psíquicas inferiores são ajustadas
e configuradas pela prática paciente da Hatha-Yoga, até
chegarem ao ponto de não perturbarem mais o
desenvolvimento da consciência "superior". Este processo
singular parece ser estimulado pela circunstância de que o eu e
seus apetites são represados pelo fato de o Oriente atribuir
maior importância ao "fator subjetivo". A atitude introvertida
caracteriza-se, em geral, pelos dados a priori da apercepção.
Como se sabe, a apercepção é constituída de duas fases: a
primeira é a apreensão do objeto e a segunda, a assimilação da
apreensão à imagem previamente existente ou ao conceito
mediante o qual o objeto é "compreendido". A psique não é
uma não-entidade, desprovida de qualquer qualidade. A psique
constitui um sistema definido, consistente de determinadas
condições e que reage de maneira específica. Qualquer
representação nova, seja ela uma apreensão ou uma idéia
espontânea, desperta associações que derivam do tesouro da
memória. Estas se projetam imediatamente na consciência e
produzem a imagem complexa de uma impressão, embora este
fato já constitua, em si, uma espécie de interpretação. Designa
a disposição inconsciente, da qual depende a qualidade da
impressão, que designo pelo nome de "fator subjetivo". Este
merece o qualificativo de "subjetivo" porque é quase impossível
que uma primeira impressão seja objetiva. Em geral é preciso
antes um processo cansativo de verificação, análise e
comparação, para que se possa moderar e ajustar as reações
imediatas do fator subjetivo.

Apesar da propensão da atitude extrovertida a designar o fator


subjetivo como "apenas subjetivo", a proeminência atribuída a
este fator não indica, necessariamente, um subjetivismo de
caráter pessoal. A psique e sua natureza são bastante reais.
Como já assinalei, elas convertem até mesmo os objetos
materiais em imagens psíquicas. Não captam as ondas sonoras
em si, mas o tom: não captam os comprimentos das ondas
luminosas, mas as cores. O ser é tal qual o vemos e
entendemos. Existe um número infinito de coisas que podem
ser vistas, sentidas e entendidas das mais diversas maneiras.
Abstração feita dos preconceitos puramente pessoais, a psique
assimila fatos exteriores de maneira própria que, em última
análise, se baseia nas leis ou formas fundamentais da
apercepção. Estas formas não sofrem alteração, embora
recebam designações diferentes em épocas diferentes ou em
partes diferentes do mundo. A um nível primitivo, o homem
teme os magos e feiticeiros. Modernamente, observamos os
micróbios com igual medo. No primeiro caso, todos acreditam
em espíritos; no segundo, acredita-se em vitaminas.
Antigamente, as pessoas eram possuídas do demônio; hoje elas
o são, e não menos, por idéias etc.

O fator subjetivo é constituído, em última análise, pelas formas


eternas da atividade psíquica. Por isto, todo aquele que confia
no fator subjetivo está se apoiando na realidade dos
pressupostos psíquicos. Se agindo assim ele consegue estender
a sua consciência para baixo, de sorte a poder tocar as leis
fundamentais da vida psíquica, estará em condições de entrar
na posse da verdade que promana naturalmente da psique, se
esta não for, então, perturbada pelo inundo exterior não-
psíquico. Em qualquer caso, esta verdade compensará a soma
dos conhecimentos que podem ser adquiridos através da
pesquisa do mundo exterior. Nós, do Ocidente, acreditamos que
uma verdade só é convincente quando pode ser constatada
através de fatos externos. Acreditamos na observação e na
pesquisa o mais exatas possíveis da natureza. Nossa verdade
deve concordar com o comportamento do mundo exterior, pois,
do contrário, esta verdade será meramente subjetiva. Da
mesma forma que o Oriente desvia o olhar das múltiplas
formas aparentes da Maya, assim também o Ocidente tem
medo do inconsciente e de suas fantasias vãs. O Oriente, no
entanto, sabe muito bem haver-se com o mundo, apesar de sua
atitude introvertida; o Ocidente também sabe agir com a psique
e suas exigências, apesar de sua extroversão. Ele possui uma
instituição, a Igreja, que confere expressão à psique humana,
mediante seus ritos e dogmas.

Carl Gustav Jung; Psicologia e religião oriental (Ed. Vozes)

• JUNG: TRATAMENTO DA IDENTIFICAÇÃO COM O


COLETIVO

qui, 6 de março, 2008

Para resolver o problema de como livrar o indivíduo da


identificação com a psique coletiva no tratamento prático,
devemos perceber quais são os erros dos dois caminhos outrora
referidos. Vimos que nenhum deles leva a um resultado
positivo. O primeiro caminho reconduz simplesmente ao ponto
de partida, com a perda dos valores vitais inerentes à psique
coletiva. O segundo conduz diretamente ao âmago da psique
coletiva, com a conseqüente perda da existência humana
particular; no entanto só esta é capaz de oferecer a
possibilidade de uma vida suportável e satisfatória. Em ambos
os caminhos, porém, há valores imprescindíveis, de que o
indivíduo não pode abrir mão.

A falha, portanto, não reside nem na psique coletiva, nem na


psique individual, mas no fato de permitir-se que uma exclua a
outra. Tal inclinação vem ao encontro da tendência monista,
que sempre e em toda parte rastreia apenas um único princípio.
O monismo, como tendência psicológica geral, é uma
particularidade do sentir e pensar cultural e corresponde ao
impulso de proclamar uma ou outra função como princípio
psicológico supremo. O tipo introvertido conhece unicamente o
princípio do pensamento e o tipo extrovertido somente o
princípio do sentir. Este monismo psicológico tem a vantagem
da simplicidade e o inconveniente da unilateralidade. Significa,
por um lado, a exclusão da pluralidade e da verdadeira riqueza
da vida e do mundo; mas por outro lado representa a
viabilidade dos ideais do nosso presente e do passado recente.
Não significa, porém, uma verdadeira possibilidade de
crescimento humano. Da mesma forma, o racionalismo
responde à tendência exclusivista. Sua essência consiste no
fato de excluir taxativamente o oposto a seu ponto de vista,
seja ele lógico-intelectual ou lógico-sentimental. Ele é, no que
concerne à ratio, ao mesmo tempo monista e autocrático.
Devemos agradecer especialmente a Bergson sua defesa do
irracional, concedendo-lhe o direito de existência. A psicologia
terá que adaptar-se ao reconhecimento de um pluralismo de
princípio, embora isso não agrade muito ao espírito científico.
Este é o único caminho que evitará o impasse da psicologia.

Em consideração à psicologia individual, a ciência terá até


mesmo que renunciar a si própria. Falar de uma psicologia
individual científica é uma contradictio in adjecto. Apenas a
parcela coletiva de uma psicologia individual pode ser objeto da
ciência, pois o indivíduo é, por definição, único e sem igual. Um
psicólogo que pratique "cientificamente" a análise individual trai
a psicologia individual. Dele se suspeita, com justa razão, que a
psicologia individual que pratica seja a sua própria psicologia.
Toda psicologia individual deve ter seu próprio manual, pois o
manual geral contém apenas a psicologia coletiva.

Com essas observações pretendi preparar o terreno para as


considerações acerca do tratamento do problema que nos
ocupa. O erro fundamental dos dois caminhos mencionados é o
fato do indivíduo identificar-se com um ou outro aspecto de sua
psicologia. Esta, porém, é tanto individual como coletiva;
entretanto nem o individual pode ser dissolvido no coletivo,
nem o coletivo no individual. A persona deve ser estritamente
separada do conceito do indivíduo, porquanto pode ser
totalmente dissolvida no coletivo. O individual, porém, é
justamente a instância que jamais pode desfazer-se no coletivo,
não podendo identificar-se com ele. Por isso uma identificação
com o coletivo ou uma voluntária ruptura com este último
significa doença.

A alma humana é tanto individual quanto coletiva e que o seu


crescimento só é possível se estes dois lados aparentemente
contraditórios chegarem a uma cooperação natural. No âmbito
da pura vida instintiva, tal conflito obviamente não existe, pois
na postura natural inconsciente já reside a harmonia. O corpo e
suas capacidades e necessidades proporcionam
espontaneamente aquelas determinações e limitações que
impedem a desmedida e a desproporção. A individualidade
espiritual baseia-se no corpo e jamais poderá realizar-se se os
direitos do corpo não forem reconhecidos. Inversamente, o
corpo também não pode desenvolver-se se a singularidade
espiritual não for reconhecida. Permitam-me usar uma imagem
curiosa para ilustrar as saídas que resolveriam o nosso
problema: é a do burro de Buridan entre dois feixes de capim.
Sua perplexidade é falsa: nem o feixe da direita, nem o da
esquerda seriam a melhor opção para começar a comer. O
importante era aquilo que o impelia e para onde, esse era o
problema. Ele, porém, deixou que o objeto decidisse.

A questão propõe-se do seguinte modo: o que, para este


indivíduo, e neste dado momento, surge como um progresso à
altura da vida? Isto não pode ser respondido por nenhuma
ciência, por nenhuma sabedoria de vida, por nenhuma religião,
por nenhum bom conselho, mas só pela consideração
absolutamente sem preconceitos da semente de vida
psicológica que se expande da cooperação natural do
consciente e do inconsciente, por um lado, e do individual e
coletivo, por outro. Onde encontramos esta semente de vida?
Alguns a procuram no consciente, outros no inconsciente. O
consciente, porém, é apenas um aspecto, e o inconsciente,
outro.

Encontramos na fantasia criadora a função unitiva que estamos


buscando. Nela fluem conjuntamente os elementos atuantes
que se oferecem. A fantasia, entretanto, goza de má reputação
entre os psicólogos. As teorias psicanalíticas, até o momento,
não a levaram em conta. Para Freud, bem como para Adler, a
fantasia não é mais do que um véu "simbólico" que dissimula as
tendências ou impulsos primitivos, pressupostos por ambos os
investigadores. Mas a fantasia tem, em si mesma, um valor
irredutível enquanto função psíquica, cujas raízes mergulham
tanto nos conteúdos conscientes como nos inconscientes, e
tanto no coletivo como no individual. Mas de onde adveio sua
má reputação? Antes de mais nada, da circunstância de que ela
não pode ser tomada ao pé da letra. Se ela for compreendida
concretamente, é carente de valor. Se for compreendida, como
queria Freud, semanticamente, é interessante do ponto de vista
científico; mas se a compreendermos como um verdadeiro
símbolo hermenêutico, então ela nos apontará a direção
necessária para conduzir nossa vida em harmonia com nosso
ser mais profundo. O sentido do símbolo não é o de um sinal
que oculta algo de geralmente conhecido, mas é a tentativa de
elucidar mediante a analogia alguma coisa ainda totalmente
desconhecida e em processo.

A essência da hermenêutica consiste em enfileirar analogias


depois de analogias, a partir de um símbolo dado. Em primeiro
lugar analogias subjetivas, dadas pelo paciente, e depois
analogias objetivas, oferecidas pelo analista. Através desse
processo, o símbolo inicial é ampliado e enriquecido. Teremos,
então, configuradas certas linhas do desenvolvimento
psicológico, de natureza individual e coletiva. O tratamento
conduz, assim, à síntese do indivíduo com a psique coletiva.
Mas é indispensável ao paciente a seriedade e sinceridade
consigo mesmo, para dar ao analista subsídios verdadeiros para
que se faça o caminho para o inconsciente. Se ele se esquivar,
iludindo-se ou achando que apenas "analisar" é o suficiente
para remover a neurose, a cura se torna impossível.

Toda verdade é sinuosa


(Friedrich Nietzsche)

Como já mencionei, o elemento individual aparece em primeiro


lugar na escolha especial daqueles elementos da psique coletiva
que servem para a composição da persona. Também dissemos
que os seus componentes não são individuais, mas coletivos;
no entanto, a sua combinação ou a escolha de um grupo já
configurado (de um modelo) é individual. Este seria o cerne
individual, encoberto pela máscara pessoal. Na diferenciação
particular da persona revela-se a resistência da
individualidade contra a psique coletiva. Através da análise
da persona damos maior valor à individualidade e aumentamos
assim seu conflito com a coletividade. Tal conflito é
naturalmente uma contradição psicológica no sujeito. Numa
vida puramente natural e inconsciente tal conflito não existe,
uma vez que lhe bastam as exigências da vida meramente
fisiológica e coletiva. Uma função psicológica diferenciada,
porém, tem sempre uma tendência à desproporção devido à
sua unilateralidade.

INDIVIDUAÇÃO

A individualidade assim chamada espiritual é também uma


expressão da corporalidade do indivíduo; ambas são, por assim
dizer, idênticas. Se por um lado o corpo é algo que torna os
indivíduos semelhantes em alto grau, por outro, o corpo
individual distingue um indivíduo de todos os demais. Da
mesma forma, a individualidade espiritual ou moral diferencia
uns dos outros, por um lado, mas se caracteriza também pelo
fato de torná-los semelhantes.

A persona é sempre idêntica a uma atitude típica, em que


domina uma das funções psicológicas: o pensar, o sentir, a
intuição, etc. Tal unilateralidade condiciona uma repressão
relativa das outras funções. Em conseqüência disso a persona é
um obstáculo ao desenvolvimento individual. A dissolução da
persona é, portanto, uma condição indispensável da
individuação. É impossível também que a individuação se
processe mediante uma intenção consciente, pois esta
conduz a uma atitude típica que exclui tudo o que não é
apropriado a ela. A assimilação dos conteúdos inconscientes
leva, pelo contrário, a um estado em que a intencionalidade
consciente é excluída e substituída por um processo de
desenvolvimento que se nos afigura irracional. Só este processo
conduz à individuação; seu produto é a individualidade tal como
acima a definimos: única e ao mesmo tempo geral. Enquanto
existir a persona, a individualidade é reprimida e se manifesta,
no máximo, na escolha das características pessoais, por assim
dizer pelo traje do ator. Só com a assimilação do inconsciente a
individualidade emerge e se evidencia através daquele
fenômeno psicológico de ligação entre o eu e o não-eu; é isto
que chamamos de posição, não mais típica mas autêntica
posição individual.

O paradoxo desta formulação provém da mesma raiz da qual se


originou outrora o conflito universal. O "real" existente é o
singular, o qual é psicologicamente existente, embora repouse
nas semelhanças real-existentes das coisas singulares. Assim, o
indivíduo é a coisa singular que numa proporção maior ou
menor detém aquelas qualidades sobre as quais se baseia o
conceito da "coletividade"; quanto mais individual ele for, tanto
mais desenvolverá as qualidades que estão à base do conceito
coletivo do ser-homem.

BEM-VINDO AO DESERTO DO REAL

Temos que nos haver


com alguns conceitos básicos: em primeiro lugar, com o
conceito do mundo real. Este deve ser entendido, de um modo
geral, como aquele conteúdo de consciência constituído, por um
lado, pela imagem do mundo mediada pela percepção, e por
outro, mediada pelo sentimento e pensamento conscientes.
Prossigamos na consideração do inconsciente coletivo. Este é
constituído pelas percepções inconscientes dos processos reais
exteriores, por um lado, e por outro por todos os resíduos das
funções de percepção e adaptação filogenéticas. Uma
reconstrução da imagem do mundo inconsciente resultaria
numa imagem mostrando a realidade exterior, tal como sempre
foi vista. O inconsciente coletivo contém, ou melhor, é uma
imagem especular do mundo. De certo modo é um mundo, mas
um mundo de imagens.

O mundo da consciência é coletivo numa ampla medida, tal


como o mundo do inconsciente. Estas duas esferas da psique
configuram conjuntamente a psique coletiva no indivíduo. O
indivíduo coloca-se, de certa forma, no meio, entre a parte
consciente e a parte inconsciente da psique coletiva. O
indivíduo é, por assim dizer, a superfície do espelho, na qual
o mundo da consciência pode ver refletida sua imagem histórica
inconsciente, da mesma forma que, no dizer de Schopenhauer,
o intelecto coloca o espelho diante da vontade. Nesta
arquitetônica o indivíduo seria um ponto ou uma linha divisória,
nem consciente nem inconsciente, ou melhor, ambas as coisas,
algo de consciente e de inconsciente.

Porque agora vemos como por espelho, em enigma, mas


então veremos face a face; agora conheço em parte, mas
então conhecerei plenamente, como também sou
plenamente conhecido
(1 Coríntios 13:12)

Esta natureza paradoxal do indivíduo psicológico contrapõe-se à


natureza da persona. Esta é universalmente consciente, ou
pelo menos, capaz de consciência. É uma forma de
compromisso entre a realidade exterior e o indivíduo.
Corresponde, pois, na totalidade da sua essência a uma função
de adaptação do indivíduo ao mundo real. A persona coloca-se,
por conseguinte, entre o mundo real e a individualidade.

Além da individualidade, que parece ser o âmago da


consciência do eu e do inconsciente, encontramos o
inconsciente coletivo. O lugar correspondente à persona, entre
o inconsciente individual e o coletivo, se nos afigura vazio. A
experiência ensinou-me, porém, que lá também há uma
espécie de persona, de caráter compensatório, que poderíamos
chamar de anima (no homem) e animus (na mulher). Seria
uma forma de compromisso inconsciente entre o indivíduo e o
mundo inconsciente, ou melhor, o mundo das imagens
históricas ou primordiais. Freqüentemente deparamos com a
anima/animus nos sonhos, onde se apresenta ao homem como
um ser feminino, e na mulher, masculino. Encontramos uma
boa descrição dessa figura na Imago de Spitteler; em seu
poema Prometeu e Epimeteu ela aparece como a alma de
Prometeu, e em Primavera Olímpica, como a alma de Zeus.

Na medida em que o eu se identifica com a persona, a anima se


projeta nos objetos reais que nos cercam, como tudo o que é
inconsciente. Por isso a anima é geralmente encontrada na
mulher que se ama. Podemos reconhecer facilmente tal fato
nas expressões amorosas. Neste particular os poetas também
contribuíram com um farto material de provas. Quanto mais
normal o sujeito, menos aparecem as qualidades demoníacas
da anima nos objetos de seu círculo mais próximo. Essa
projeção recai sobre pessoas estranhas, como que para evitar o
perigo de uma perturbação imediata. Mas quanto mais sensitivo
for o sujeito, tanto mais se aproximam as projeções
demoníacas, a ponto de romperem o próprio tabu familiar,
dando origem aos típicos romances neuróticos familiares.

Quando o eu se identifica com a persona, o centro individual jaz


no inconsciente. Ele torna-se como que idêntico ao inconsciente
coletivo, porquanto toda personalidade é por assim dizer
apenas coletiva. Em tais casos há sempre uma intensa força de
sucção rumo ao inconsciente e ao mesmo tempo uma fortíssima
resistência consciente contra isso, manifestando-se um medo
da destruição dos ideais conscientes. Há casos - pude constatá-
los principalmente entre artistas ou naturezas exaltadas - cujo
eu não se localiza na persona (enquanto relação com o mundo
real), mas muito mais na anima (enquanto relação com o
inconsciente coletivo). Neste caso, indivíduo e persona são
inconscientes.

O inconsciente coletivo constitui uma parte da consciência, ao


passo que uma grande parte do mundo real configura um
conteúdo inconsciente. Tais pessoas sentem um medo
demoníaco diante da realidade, que corresponde àquele que o
homem comum experimenta diante do inconsciente.

• JUNG: INTROVERSÃO E EXTROVERSÃO


seg, 18 de fevereiro, 2008

Resumo do capítulo do livro "Tipos psicológicos", de Carl


Gustav Jung (1921)

Platão e Aristóteles! Não são apenas os dois sistemas, mas


também os tipos de duas naturezas humanas diferentes que,
desde tempos imemoriais e sob as mais diversas aparências, se
confrontam de forma mais ou menos hostil. Durante toda a
Idade Média houve este confronto que veio até os nossos dias.
Aliás esta disputa é o conteúdo essencial da história da Igreja
cristã. Sempre se trata de Platão e Aristóteles, ainda que sejam
outros os nomes. Naturezas apaixonadas, místicas e platônicas
desentranham, do mais profundo de sua índole, as idéias
cristãs e os símbolos correspondentes. Naturezas práticas,
sistemáticas e aristotélicas constroem a partir dessas idéias e
símbolos um sistema sólido, uma dogmática e um culto. A
Igreja absorveu, ao final, ambas as naturezas, enraizando-se
uma sobretudo no clero e a outra no monacato, havendo entre
eles hostilidade sem tréguas.
(H. Heine; Deutschland, I)

Em minha prática médica junto a pacientes nervosos constatei,


de longa data, que, a par das muitas diferenças individuais na
psicologia humana, há também diferenças de tipos; e
chamaram-me a atenção principalmente dois tipos que
denominei de introvertido e extrovertido.
Quando observamos o desenrolar de uma vida humana, vemos
que o destino de alguns é mais determinado pelos objetos de
seu interesse e o de outros mais pelo seu interior, pelo
subjetivo. E, como todos nós pendemos mais para este ou
aquele lado, estamos naturalmente inclinados a entender tudo
sob a ótica de nosso próprio tipo.

O caminho mais simples pra falar dos tipos seria descrever dois
casos concretos e colocá-los, dissecados, lado a lado. Mas todo
indivíduo possui os dois mecanismos, tanto o da introversão
como o da extroversão; e apenas a relativa preponderância de
um ou de outro define o tipo. Essa classificação não se trata de
uma dedução a priori, como poderia parecer, mas de uma
descrição dedutiva de impressões conseguidas empiricamente.
A existência de dois tipos diferentes já era fato bem conhecido
e que chamou a atenção, de uma forma ou de outra, de peritos
no conhecimento das pessoas e da reflexão inquieta dos
pensadores, como Goethe, em seu princípio abrangente da
sístole e diástole (abertura e fechamento, liberdade e
necessidade).
Apesar da diferença de formulações, há em comum nos dois
tipos a concepção básica, isto é, num caso é um movimento do
interesse para o objeto, e no outro, é um movimento do
interesse que sai do objeto e se volta para o sujeito e para seus
próprios processos psicológicos. No primeiro caso
(introversão), o objeto atua como um ímã sobre as tendências
do sujeito; ele as atrai e condiciona em grande parte o sujeito;
ele torna o sujeito alheio a si mesmo e modifica suas
qualidades no sentido de uma assimilação tão grande com o
objeto que se poderia pensar ser este da mais alta e decisiva
importância para o sujeito, como se houvesse uma
determinação absoluta e o sentido especial da vida e do destino
do sujeito fosse abandonar-se completamente ao objeto. Mas
isto não é assim. O sujeito é e continua sendo, em última
instância, o centro de todos os interesses. Poderíamos dizer
que, aparentemente, toda a energia vital procura o sujeito e
impede, por isso, que o objeto receba uma influência de certa
forma ultra poderosa. Até parece que a energia se esvai do
objeto, como se o sujeito fosse o ímã que desejasse atrair para
si o objeto. Este enfoque dá, portanto, mais valor ao sujeito do
que ao objeto. Conseqüentemente o objeto está sempre num
nível de valor mais baixo, tem importância secundária, e
ocasionalmente é considerado como o sinal exterior e objetivo
de um conteúdo subjetivo, algo como a materialização de uma
idéia, mas onde a idéia continua sendo o essencial; ou a
materialização de um sentimento, onde a vivência do
sentimento será o mais importante, e não o objeto em sua
individualidade real.

Já a atitude extrovertida subordina o sujeito ao objeto; o objeto


recebe o valor preponderante. O sujeito tem sempre
importância secundária; o processo subjetivo só aparece, às
vezes, como apêndice perturbador ou supérfluo de fatos
objetivos.

Essas atitudes opostas nada mais são do que mecanismos


opostos: um voltar-se diastólíco para o objeto e uma apreensão
do mesmo; e uma concentração sistólica e liberação de energia
dos objetos apreendidos. Toda pessoa tem ambos os
mecanismos para exprimir seu ritmo natural de vida que
Goethe designou, não por acaso, como conceitos fisiológicos da
atividade do coração. Uma alternação rítmica de ambas as
formas psíquicas de ação talvez corresponda ao fluxo normal de
vida. Mas as condições complicadas e externas sob as quais
vivemos, bem como as condições talvez mais complicadas
ainda de nossa disposição psíquica individual, raramente
permitem um fluxo totalmente imperturbável da atividade
psíquica. Circunstâncias externas e disposição interna
favorecem muitas vezes um dos mecanismos e limitam ou
estorvam o outro. Com isso temos, naturalmente, uma
predominância de um dos mecanismos. Tornando-se crônica
esta situação, surge então um tipo, ou seja, uma atitude
habitual onde predominará um dos mecanismos, sem contudo
poder suprimir totalmente o outro, pois este faz parte
necessária da atividade psíquica. Por isso não pode haver um
tipo puro no sentido de possuir apenas um dos mecanismos,
ficando o outro completamente atrofiado.

Minha experiência mostrou que os indivíduos não podem ser


distinguidos apenas segundo as características universais de
extroversão ou introversão, mas também segundo as funções
psicológicas básicas de cada um. Na mesma medida em que,
por exemplo, as circunstâncias externas, bem como a
disposição interna, causam um predomínio da extroversão,
favorecem também o predomínio de certa função básica no
indivíduo. Segundo minha experiência, as funções básicas, ou
seja, as funções que se distinguem genuína e essencialmente
de outras funções, são: o pensamento, o sentimento, a
sensação e a intuição. Predominando uma dessas funções,
surge um tipo correspondente. Cada um desses tipos pode, no
entanto, ser introvertido ou extrovertido, dependendo de seu
comportamento em relação ao objeto.

TERTULIANO E ORÍGENES

Desde que existe o mundo histórico, sempre houve psicologia;


mas a psicologia objetiva é de recente data. Para a ciência dos
tempos antigos, vale a afirmação: o teor da psicologia subjetiva
aumenta com a falta de psicologia objetiva. As obras dos
antigos estão cheias de psicologia, mas pouca coisa pode ser
qualificada como psicológico-objetiva. Isto se deve, em grande
parte, ao caráter peculiar do relacionamento das pessoas na
época antiga e medieval. Os antigos atribuíam ao seu
semelhante um valor apenas biológico, por assim dizer; isto
transparece de seus costumes e da legislação. A Idade Média -
se é que expressou algum julgamento de valor - fazia uma
valorização metafísica do ser humano, e isto baseando-se na
idéia do valor imperecível da alma. Esta valorização metafísica,
que pode ser considerada uma compreensão do enfoque da
Antigüidade, é tão desfavorável para a valorização da pessoa -
que é o único fundamento de uma psicologia objetiva - quanto
a biológica.

Há muitas pessoas que ainda acreditam na possibilidade de se


escrever uma psicologia ex cathedra, mas a maioria de nós está
convencida de que uma psicologia objetiva deve fundamentar-
se sobretudo na observação e na experiência. Devemos ter em
mente também as diferenças de tipos quando recordamos a
longa e perigosa luta que a Igreja travou contra o gnosticismo
logo nos inícios de sua história. Devido à orientação sobretudo
prática do cristianismo primitivo, o intelectual pouco valor
tinha, a não ser que desse vazão a seus instintos belicosos
numa apologética polêmica. A "norma da fé" (regula fidei) era
muito rígida e não permitia liberdade de movimentos. Além
disso era pobre em conteúdo intelectual positivo. Constava de
poucas idéias e estas, apesar de serem de grande valor prático,
eram um obstáculo decisivo para o pensamento. O tipo
intelectual era mais atingido negativamente pelo "sacrifício do
intelecto" (sacrificium intellectus) do que o tipo sentimento. Por
isso é compreensível que o conteúdo intelectual bem superior
da gnose - que, à luz de nosso desenvolvimento mental
moderno não perdeu, mas ganhou muito em valor - fizesse o
maior apelo possível ao intelectual dentro da Igreja. A gnose
apresentava para ele todas as tentações do mundo. Sobretudo
o docetismo deu grande trabalho à Igreja com sua afirmação de
que Cristo possuía apenas um corpo aparente e que toda a sua
existência terrena e sua paixão haviam sido mera aparência.
Nesta afirmação predomina o elemento puramente intelectual
sobre o sentimento humano. Talvez a luta com a gnose seja
melhor compreendida se tomarmos os dois grandes expoentes
que se impuseram não só por serem Padres da Igreja, mas
também por sua personalidade: Tertuliano e Orígenes, que
foram contemporâneos ao final do século II. Schultz escreve
sobre eles: "Um organismo é capaz de ingerir alimento e
assimilá-lo quase totalmente à sua natureza; outro o elimina,
de igual modo, com sinais de resistência apaixonada. Assim,
Orígenes, por um lado, e Tertuliano, por outro, reagiram de
forma diametralmente oposta. Sua reação à gnose não é
característica apenas das duas personalidades e de sua visão do
mundo, mas é de fundamental importância também para a
posição da gnose na vida espiritual e nas correntes religiosas
daquela época".

Tertuliano nasceu em Cartago, por volta de 160 dC. Era pagão


e levou vida dissoluta em sua cidade natal até aos trinta e cinco
anos, quando se converteu ao cristianismo. É autor de
numerosos escritos onde transparece bem seu caráter - que
nos interessa em especial. Com nítida clareza aparece seu zelo
nobre e sem par, seu fogo, seu temperamento apaixonado e a
profundeza de sua concepção religiosa. É fanático e de uma
tendenciosidade genial quando se trata de verdade
reconhecida, intolerante e de natureza belicosa sem igual, um
lutador implacável que só admite a vitória após ver aniquilado
completamente o adversário; sua linguagem era espada
flamejante, manejada com terrível maestria. Foi o criador do
latim eclesiástico que perdurou por mil anos. Cunhou a
terminologia da jovem Igreja. "Tendo assumido um ponto de
vista, levava-o às últimas conseqüências, como que aguilhoado
por uma legião de demônios, mesmo que a razão já não
estivesse a seu lado e todo ordenamento racional se lhe
apresentasse em farrapos". A paixão de seu pensamento era
tão inexorável que se afastava sempre de novo daquilo por que
havia dado o sangue de seu coração. Por isso, sua ética era de
uma austeridade rude. Mandava procurar o martírio em vez de
fugir dele, não permitia segundas núpcias e exigia que as
pessoas do sexo feminino se cobrissem completamente.
Combatia com desconsideração fanática a gnose que era
exatamente uma paixão do pensamento e do conhecimento e,
com ela, a ciência e filosofia que pouco diferiam dela. Atribuiu-
se a ele a grandiosa confissão: "Creio porque é absurdo" (credo
quia absurdum est). Parece que isto não corresponde bem à
verdade histórica e que só teria dito: "E morreu o Filho de
Deus, isto é perfeitamente crível porque é absurdo. E sepultado
ressuscitou; isto é certo porque é impossível".

Graças à agudeza de seu espírito, percebeu o lado vulnerável


do saber filosófico e gnóstico e o repudiou com desprezo.
Apoiou-se, então, no testemunho de seu próprio mundo
interior, nos fatos de sua própria intimidade que se
identificavam com sua fé. Estruturou estes fatos, tornando-se
assim o criador das conexões conceituais que ainda hoje
constituem a base do sistema católico. O fato íntimo irracional
que para ele era de natureza essencialmente dinâmica foi o
princípio e fundamento perante o mundo e perante a ciência e
filosofia racionais ou de validade geral. Transcrevo suas
palavras:

Invoco um novo testemunho, ou melhor, um testemunho mais


conhecido do que qualquer monumento escrito, mais discutido
do que qualquer sistema doutrinário, mais difundido do que
qualquer publicação, maior do que o homem todo, isto é, aquilo
que constitui o todo do homem. Venha, então, alma minha,
quer você seja algo divino e eterno, como acreditam muitos
filósofos - tanto menos, portanto, você mentirá - ou não divino,
porque mortal, como só Epicuro afirma - tanto menos, portanto
você ousará mentir - quer você venha do céu ou seja nascida
na terra; quer seja composta de números ou átomos; quer você
tenha seu começo com o corpo ou a este seja agregada mais
tarde; não importa donde você provenha ou como faz para que
o homem seja o que ele é, um ser racional, capaz de percepção
e conhecimento. Mas eu não a invoco, ó alma, treinada nas
escolas, familiarizada com bibliotecas, alimentada e saciada nas
academias e nos salões cheios de colunas de Atenas,
propagadora de sabedoria. Não! Eu gostaria de falar com você,
ó alma, como admiravelmente simples e inculta, inábil e
inexperiente, exatamente como você é para aqueles que nada
mais possuem do que a você, exatamente como você surge das
alamedas, das esquinas e das oficinas. É precisamente de sua
ignorância que eu preciso.

A automutilação realizada por Tertuliano no sacrificium


intellectus levou-o a um reconhecimento sem reservas da
realidade irracional interior, o verdadeiro fundamento de sua fé.
A necessidade do processo religioso que sentia em si, ele a
sintetizou na fórmula incomparável "alma naturalmente cristã"
(anima naturaliter christiana). Com o sacrificium intellectus
sucumbem para ele também a filosofia e a ciência,
conseqüentemente também a gnose.

No decorrer de sua vida, as qualidades acima descritas foram


se exacerbando. Quando a Igreja foi levada a um compromisso
sempre maior com as massas, revoltou-se contra isso e tornou-
se adepto do profeta Montano, um extático, que seguia o
princípio da negação absoluta do mundo e da espiritualização
total. Em panfletos violentos começou a atacar a política do
papa Calixto I. Isto e mais o montanismo o levaram mais ou
menos para fora da Igreja. Segundo um informe de Agostinho,
desentendeu-se depois também com o montanismo e fundou
sua própria seita.

Tertuliano é exemplo clássico de pensador introvertido. Sua


inteligência brilhante, altamente desenvolvida, tinha o flanco
aberto para uma inegável sensualidade. O processo psicológico
de desenvolvimento, que designamos como sendo o cristão,
levou-o ao sacrifício, à amputação da função mais valiosa, cuja
idéia mítica está contida no grande e exemplar símbolo do
sacrifício do Filho de Deus. Seu órgão mais valioso era
precisamente o intelecto e o conhecimento nítido que dele se
originava. Devido ao sacrificium intellectus fechava-se para ele
o caminho para um desenvolvimento puramente intelectual e
viu-se, assim, forçado a reconhecer o dinamismo irracional de
sua alma como fundamento de seu ser. A intelectualidade da
gnose, o caráter especificamente racional que ela imprimia nos
fenômenos dinâmicos da alma devem ter sido odiosos para ele,
pois foi este o caminho que teve de abandonar para reconhecer
o princípio do sentimento.

Em Orígenes temos exatamente o oposto de Tertuliano.


Nasceu em Alexandria por volta de 185 dC. Seu pai foi um
mártir cristão. Ele, porém, nasceu naquela atmosfera mental
ímpar onde se misturavam as idéias do Oriente e do Ocidente.
Com verdadeira ânsia de saber, absorvia avidamente tudo o
que fosse digno de conhecer e aceitava tudo o que o riquíssimo
mundo intelectual de Alexandria podia oferecer: cristão, judeu,
helênico ou egípcio. O filósofo pagão Porfírio, discípulo de
Plotino, dizia dele que sua vida externa era a de um cristão e
contra a lei; em suas opiniões sobre as coisas e a divindade
helenizou e introduziu idéias gregas nos mitos estrangeiros. Já
antes de 211 dC ocorreu sua autocastração, cujos motivos
podemos adivinhar, mas, historicamente, permanecem
desconhecidos. Exercia grande influência pessoal e tinha um
discurso cativante. Estava sempre cercado de discípulos e de
grande número de estenógrafos que recolhiam as preciosas
palavras que saíam da boca do venerado mestre. Foi autor
muito prolífico e tornou-se grande professor. Em Antioquia deu
aulas de teologia, inclusive para a mãe do imperador, de nome
Maméia. Em Cesaréia foi o diretor de uma escola. Sua atividade
professoral era freqüentes vezes interrompida por longas
viagens. Tinha uma erudição extraordinária e uma capacidade
impressionante de pesquisa. Andava à procura de manuscritos
bíblicos antigos e obteve grandes méritos como crítico de
textos. "Era um grande sábio, aliás o único verdadeiro sábio
que a Igreja primitiva teve", disse Harnack. Em total contraste
com Tertuliano, Orígenes não se fechou à influência do
gnosticismo; ao contrário, até mesmo o canalizou, de forma
atenuada, para o seio da Igreja; ao menos foi esta a sua
intenção. Na verdade, a julgar por seu pensamento e pontos de
vista fundamentais, foi quase um gnóstico cristão. Sua posição
perante a fé e o conhecimento foi descrita por Harnack com as
seguintes palavras, psicologicamente significativas: "A Bíblia é
igualmente necessária para ambos: os crentes recebem dela os
fatos e mandamentos de que precisam, enquanto os gnósticos
decifram a partir dela pensamentos e reúnem forças que os
levam à contemplação e ao amor de Deus - e assim todas as
coisas materiais parecem amalgamadas pela interpretação
espiritual (exegese alegórica, hermenêutica, etc), num cosmos
de idéias, até que tudo, finalmente, seja superado e
abandonado como simples degrau, só permanecendo isto: a
relação abençoada e duradoura da alma criada por Deus e para
Deus (amor et visio)."

Sua teologia, em contraste com a de Tertuliano, era


essencialmente filosófica; inseria-se perfeitamente no âmbito
da filosofia neoplatônica. Em Orígenes se interpenetram num
todo pacífico e harmonioso os dois mundos: a filosofia grega e
a gnose, por um lado, e as idéias cristãs, por outro. Mas esta
tolerância ousada e perspicaz, sua imparcialidade, levaram-no
também a ser condenado pela Igreja. Na verdade, a
condenação final só ocorreu postumamente, após, já idoso,
haver sofrido torturas na perseguição de Décio e ter falecido em
conseqüência delas. Em 399, o papa Anastácio I pronunciou a
condenação e, em 543, foram anatematizados seus
ensinamentos por um sínodo convocado por Justiniano, e este
anátema foi confirmado por concílios ulteriores.

Orígenes é exemplo clássico do tipo extrovertido. Sua


orientação básica era o objeto; isto se mostrava em sua
preocupação escrupulosa por fatos objetivos e suas condições,
bem como na formulação daquele princípio supremo: "amor e
visão de Deus" (amor et visio Dei). O processo cristão de
desenvolvimento encontrou em Orígenes um tipo cujo
fundamento último era a relação com o objeto - uma relação
que sempre se expressou simbolicamente na sexualidade, e
explica o fato de haver certas teorias hoje que também
reduzem todas as funções psíquicas essenciais à sexualidade. A
castração foi, portanto, expressão adequada do sacrifício da
função mais valiosa. É bem característico que Tertuliano
quisesse realizar o sacrificium intellectus e Orígenes fosse
levado ao sacrificium phalli ("sacrifício do falo"), porque o
processo cristão exigia completa abolição do vínculo sensual
com o objeto. Em outras palavras, exigia o sacrifício da função
mais valiosa, da possessão mais amada, do instinto mais forte.
Biologicamente considerado, o sacrifício serve aos interesses da
domesticação. Mas, psicologicamente, abre uma porta para
novas possibilidades de desenvolvimento espiritual, mediante a
dissolução de laços antigos. Tertuliano sacrificou o intelecto
porque este o amarrava fortemente ao mundano. Lutou contra
a gnose porque representava para ele um desvio para a
intelectualidade que envolvia, ao mesmo tempo, sensualidade.
Examinado este fato, vemos que o gnosticismo estava, na
verdade, dividido em duas escolas: uma, que lutava por uma
espiritualidade que excedia todos os limites; outra, que se
perdia num anarquismo ético, num libertinismo absoluto que
não se detinha diante de nenhuma luxúria ou devassidão, por
mais atroz e perversa. Pela automutilação, Orígenes sacrificou
seu vínculo sensual com o mundo. Para ele, evidentemente, o
perigo específico não era o intelecto, mas o sentimento e a
sensação que o ligavam ao objeto. Pela castração, livrou-se da
sensualidade que estava acoplada ao gnosticismo e pôde
entregar-se, sem medo, à riqueza do pensamento gnóstico, ao
passo que Tertuliano, pelo sacrifício do intelecto, afastou-se da
gnose, mas alcançou uma profundidade de sentimento religioso
que falta em Orígenes. Diz Schultz: "Supera Orígenes porque
vivia, no mais profundo de seu espírito, cada uma de suas
palavras e porque não era, como acontecia com Orígenes, o
entendimento que o arrastava, mas o coração. Por outro lado,
fica atrás de Orígenes porque, sendo o mais apaixonado dos
pensadores, esteve a ponto de recusar o saber como tal e
converter sua luta contra a gnose em luta contra o pensar
humano pura e simplesmente".

Vemos aqui como, no processo cristão, o tipo original se


inverteu completamente: Tertuliano, o aguçado pensador,
torna-se o homem do sentimento, enquanto Orígenes se
transforma no sábio e se perde na intelectualidade.
Naturalmente é fácil inverter, também logicamente, a coisa e
dizer que Tertuliano foi sempre o homem do sentimento e
Orígenes, o intelectual. Abstraindo do fato de que a diferença
de tipo não foi, com isso, eliminada, mas persiste, antes como
depois, a concepção inversa porém não explica por que
Tertuliano via no intelecto seu pior inimigo e Orígenes, na
sexualidade.

Na virada de nossa era uma necessidade espantosa e


extraordinária de salvação tomou conta da humanidade, e fez
surgir um florescimento inaudito de todos os cultos possíveis e
impossíveis na antiga Roma. Também não faltaram adeptos da
teoria do gozar a vida que, ao invés da "biologia", usavam
argumentos da ciência daquela época. Também não era possível
satisfazer-se com especulações sobre o porquê de a
humanidade ir tão mal. Por conta do causalismo daquela época
não ser tão restrito como o de nossa ciência, não se retrocedia
apenas até a infância, mas até a cosmogonia, e vários sistemas
foram inventados provando que tudo o que havia acontecido no
passado mais remoto era a causa das conseqüências
insuportáveis para a humanidade. O sacrifício que Tertuliano e
Orígenes fizeram é drástico, drástico demais para o nosso
gosto, mas correspondeu ao espírito da época que era muito
concretista. Foi desse espírito que a gnose derivou a presunção
de que suas visões eram simplesmente reais ou, ao menos,
diretamente ligadas à realidade. E Tertuliano colocou o fato de
seu sentimento como algo válido objetivamente. O gnosticismo
projetou a percepção subjetiva interna do processo de mudança
de atitude como um sistema cosmogônico e acreditava na
realidade de suas figuras psicológicas.

Em meu livro "Símbolos da Transformação" deixei em aberto


a questão sobre a proveniência do rumo peculiar da libido no
processo cristão. Falei aí de uma separação do rumo da libido
em duas metades, voltadas uma contra a outra. A explicação
disso surge da unilateralidade da atitude psicológica que se
tomou tão unilateral que se impôs a compensação a partir do
inconsciente. É exatamente o movimento gnóstico nos
primeiros séculos que melhor demonstra a irrupção de
conteúdos inconscientes no momento da compensação. O
próprio cristianismo significou a destruição e sacrifício de
valores culturais antigos, isto é, da atitude antiga. No tempo
atual é quase supérfluo dizer que tanto faz se falamos de hoje
ou de dois mil anos atrás.

Não é improvável encontrarmos a oposição de tipos também na


história dos cismas e heresias da Igreja primitiva, tão rica em
disputas. Os Ebionitas ou Judeu-cristãos, que se identificavam
talvez com os cristãos primitivos em geral, acreditavam apenas
na humanidade de Cristo; ele era o filho de Maria e José que
recebeu mais tarde sua unção do Espírito Santo. Os ebionitas
são, neste aspecto, o extremo oposto dos docetas. Esta
oposição durou muito tempo. Em 320, surgiu novamente, algo
modificada, na heresia de Ario...

Se quiserem continuar o interessante assunto adquiram o livro


"Tipos psicológicos", já que isso foge do escopo do post.

• ANÁLISE DAS RELIGIÕES

seg, 5 de janeiro, 2009

Ainda baseado no excelente trabalho de pesquisa de Paulo


Dalgalarrondo em seu livro Religião, psicopatologia e saúde
mental, continuarei colocando alguns trechos e misturando
com meus comentários, desta vez numa análise histórica do
pensamento humano acerca das religiões, através dos séculos:

Na Grécia antiga, Xenófanes (570-460 a.C.) foi um dos


primeiros a formular uma análise crítica da religião,
questionando a Divindade e o que dela se pode saber. Ele não
afirma a inexistência dela, ao contrário, sugere que ela existe,
mas é inalcançável pela mente humana. Para ele, o que os
homens fazem nas suas religiões é nada mais do que projetar
nos deuses suas vãs opiniões. Pode parecer um pensamento
óbvio hoje, não para a época (basta ver os deuses grego-
romanos e seus defeitos), mas, mesmo tendo em vista as
religiões de hoje - que colocam Deus acima das concepções
humanas - algumas doutrinas ainda carregam consigo traços
dessa concepção antropormofizada de Deus, seja em adesivos
de carro ("Deus é fiel") ou em passagens do Velho Testamento.

Entre os romanos, historiadores apontaram a relação entre


crença religiosa e alienação, sobretudo política. Políbio (séc II
a.C.) afirmava que, sendo as massas populares instáveis,
cheias de paixões e ira irracional, devem ser contidas pelo
medo do invisível, pelo temor aos deuses que os líderes
políticos conseguem engendrar. Tito Lívio (59-19 a.C.), ao
comentar sobre o organizador da religião romana (Numa),
afirma que este sabia que "a melhor maneira de controlar um
povo ignorante e simples é enchê-lo de medo dos deuses".

Vamos agora ao séc 19, onde analisaremos as religiões


modernas.

Ludwig Feuerbach (1804-1872), ao analisar a religião cristã,


trabalha com a noção de que Deus seria o interior do homem
projetado para o exterior. Nesse processo de projeção do
homem em Deus reside, para Feuerbach, uma alienação
fundamental, pois, embora a religião seja a relação do homem
consigo mesmo, ela é experienciada como uma relação do
homem com outra coisa, externa a ele. Sua essência torna-se
outro ser. A alienação será faltal, pois "para enriquecer Deus, o
homem deve empobrecer-se; para que Deus seja tudo, o
homem deve ser nada". Para Feuerbach, este seria o pecado
fatal da religião cristã (e possivelmente de toda religião). O que
é interessante notar é que, dentro do Novo Testamento, mais
especificamente nas parábolas de Jesus, vemos o movimento
de trazer Deus (ou o Divino) para dentro das relações sociais
(Sermão da Montanha, parábola do bom samaritano, etc).
Aliás, isso foi insistentemente colocado por Jesus, então não se
pode dizer que é um pecado da doutrina cristã, mas talvez das
religiões cristãs que se apossam da mensagem e a distorcem,
especialmente inculcar culpa, medo e inferioridade, e assim
conseguir controlar os fiéis.

Com base nisso Karl Marx (1818-1883) conclui que foi o


"homem quem fez a religião, não foi a religião (ou Deus) que
fez o homem", e desdenha a religião como "o ópio do povo".

Já Robertson Smith (1889) acreditava que a religião não é o


produto de uma elaboração intelectual, e sim o fruto de uma
cultura, de um conjunto de costumes, de uma organização
comunitária que contrói e desenvolve seus ritos. Desse
processo ritual se desenvolvem os mitos, ou seja, as
legitimações ideológicas e as teorizações religiosas. Outra teoria
evolucionista que ganhou grande influência na concepção
científica da religião foi a de James George Frazer (1854-
1941), que acreditava em três estágios da evolução da
humanidade: magia, religião e, finalmente, no topo, a ciência.
Segundo ele, a magia está na raiz de todas as religiões, e
permanece como resquício quando a religião passa a dominar:
"a religião consta de dois elementos, um teórico e outro prático,
a saber, uma crença em poderes mais altos que o homem e
uma tentativa deste para propiciá-los ou aproveitá-los". Vemos
isso constatado na Umbanda, Candomblé e (quem diria) nas
comunidades evangélicas mais populares, bastando ligar a TV
pra ver a fogueira disso, a corrente de oração daquilo, o óleo
sagrado daquilo outro, a rosa ungida e todos os talismãs e
"poderes mágicos" (milagres) que Deus confere aos que
estiverem naquele grupo.

No início do séc. XX, Emile Durkheim propõe uma nova


compreensão da religião, definindo-a como "uma coisa
eminentemente social", produto - e, mais importante,
produtora - da sociedade. Como Feuerbach, Durkheim formula
que os homens, ao adorarem os deuses, estão adorando a si
mesmos. Entretanto, essa projeção-idealização se dá em um
contexto coletivo, social. Todavia, a religião não representa a
sociedade como ela é (real, concreta), mas sim de um modo
ideal. Isso pode ser mais ou menos vislumbrado no judaísmo e
no islamismo, pois são religiões que não se atém a uma
geografia, nem mesmo a uma cultura regional, e sim a uma
cultura religiosa (no caso do judaísmo ainda pesa o fator
descendência). A teoria de Durkheim difere da de Marx porque
não crê que a religião se limite a traduzir, em outra linguagem,
"as formas materiais da sociedade e suas necessidades
imediatas e vitais". A categoria do sagrado, essência da
religião, relaciona-se à noção de força, de poder especial:

Acredita-se que ela (a religião) consiste em um sistema de


idéias, exprimindo, mais ou menos adequadamente, um
sistema de coisas. Mas esta característica da religião não é a
única nem a mais importante. Antes de tudo, a religião supõe a
ação de forças sui generis, que elevam o indivíduo acima dele
mesmo, que o transportam para um meio distinto daquele no
qual transcorre sua existência profana, e que o fazem viver
uma vida muito diferente, mais elevada e mais intensa. O
crente não é somente um homem que vê, que conhece coisas
que o descrente ignora: é um homem que pode mais.
(Durkheim, 1977)

Não é novidade nenhuma que a religião tem um papel


transformador nas pessoas, que vencem desafios impostos pela
classe social com dignidade e obstinação. Isso é chamado
resilência, e pode ser conferido in loco por quem for ao Coque,
uma enorme comunidade marginalizada pela violência, onde a
ONG Neimfa (Núcleo Educacional dos Irmãos Menores de
Francisco de Assis) se instalou e, através das religiões (católica,
evangélica, espírita, budista, hinduísta e umbandista) e da
ciência (psicólogos, médicos, professores), fornece suporte
físico, psicológico e espiritual para mais de 300 famílias, com
resultados visíveis.

Max Weber (1864-1920) tem uma visão mais pragmática e


funcional da religião, imaginando-a não como um sistema de
crenças, mas sim "sistemas de regulamentação da vida que
reúnem massas de fiéis", voltando-se para o sentido que o
ethos religioso atribui à conduta. Em seus textos Weber visa
expor como as religiões geram ou constituem formas de ação e
disposições gerais, relacionadas a determinados estilos de vida.
Na análise do protestantismo, por exemplo, vemos essa
relação, quando Lutero usa a palavra Beruf tanto pra se referir
à vocação religiosa como ao trabalho secular (embora o autor
diga que a afinidade do protestantismo com o espírito do
capitalismo e do progresso como o entendemos hoje só
remonta ao início do séc. XVIII). Assim, o pedreiro passa a
servir a Deus construindo casas, o padeiro, fazendo pães, o
comerciante, vendendo e comprando. Nessa linha, Deus não
solicitava mais imagens ou templos ornados, mas determinada
disposição em relação à vida cotidiana, à inserção e ao trabalho
no mundo secular; trata-se do ascetismo intramundano, que
nos lembra um pouco a filosofia zen budista de procurar estar
dentro do mundo (não procurando algo fora dele), praticando
sua religiosidade através das ações (mesmo as mais
mundanas).

A ética protestante representa uma ruptura em relação à ética


católica tradicional. A negação da devoção aos santos e seus
milagres, a recusa a certos sacramentos e uma nova
perspectiva de relação com o sagrado e com as ascese
configuraram uma religiosidade menos ritualista e mágica e
mais intelectualizada. O fiel protestante, racional, disciplinado
e, fundamentalmente, previsível, é também o operário
capitalista, necessariamente previsível e disciplinado. Assim,
Weber busca articular o ethos religioso com o ethos econômico
no decurso da história. Segundo ele, pra cada formação
religiosa há tipos específicos de "comunalização religiosa" e de
"autoridade". Dois tipos formulados por Weber são a "igreja" e
a "seita". A igreja implica um certo projeto universalista, que a
coloca para além de laços tribais, familiares ou étnicos, assim
como um corpo sacerdotal profissional, dogmas e cultos
fundamentados em escrituras sagradas que se racionalizam e
se institucionalizam progressivamente. Já a "seita" diz respeito
a tipos de associações voluntárias de fiéis, que se caracterizam
por uma certa ruptura com a sociedade mais geral. Os fiéis não
seguem "profissionais religiosos", mas autoridades
carismáticas. Interessante notar como a Igreja católica entrou
num movimento de reafirmação onde está cada vez mais
distante da sociedade geral, admoestando os "católicos de fim
de semana" e procurando valorizar os dogmas dentro de um
núcleo doutrinário, excluindo o aculturamento... Quase uma
seita.

Weber também se preocupa com as relações entre religiosidade


e os diferentes grupos sociais. Assim, para as classes oprimidas
politica, social ou economicamente, as crenças preferidas
estariam relacionadas à possibilidade de "redenção" ou
"compensação", enquanto as classes privilegiadas e dominantes
buscam formas de religiosidade que permitam "legitimação"
das relações sociais estabelecidas. O espiritismo cumpriu muito
bem ambos os papéis no Brasil quando, em plena ditadura
militar, foi bem aceito pelos dois lados (militares e a população
oprimida pela ditadura).

Peter Berger (1985) acredita que os homens são


congenitamente forçados a impor uma ordem sinificativa à
realidade, e aí entra o sentido da religião, como um escudo
contra o terror.

Em um certo nível, o antônimo de sagrado é o profano (...) Em


um nível mais profundo, todavia, o sagrado tem outra categoria
oposta, a do caos. (...) A oposição entre o cosmo e o caos é
frequentemente expressa por vários mitos cosmogônicos. (...)
Achar-se em uma relação "correta" com o cosmos sagrado é ser
protegido contra o pesadelo das ameaças do caos.

Pode-se dizer que a religião desempenhou uma parte


estratégica no empreendimento humano da construção do
mundo. (...) A religião supõe que a ordem humana é projetada
na totalidade do ser. Ou por outra, a religião é a ousada
tentativa de conceber o universo inteiro como humanamente
significativo.

Sigmund Freud (1856-1939) vê a religião como uma ilusão


infantil, um sistema de defesa socialmente contruído com o
qual o homem lida com sua condição fundamental de
desamparo e sentimentos ambíguos em relação à figura
paterna. Freud, assim, ignora o sentimento de transcendência e
resilência que a religião aparentemente proporciona, preferindo
colocar a experiência religiosa de eternidade e fusão como o
Todo como um sentimento que não teria origem transcendental,
mas sim algo intelectual/afetivo, como um retorno à
experiência primeva do bebê, fundido com sua mãe. Embora
Freud reconheça a religiosidade como vivência humana
importante, tende a considerá-la derivada de outras
experiências, não sendo, assim, uma experiência primária. Já a
relação do Homem com Deus é apenas a projeção da relação
com o pai (a imago paterna). Daí as relações intensas e
ambíguas que surgem, como o Pai/Deus poderoso, dominante,
protetor, onipresente, punitivo, odiado, vítima do ódio dos filhos
e redentor.

Já Erik Erikson (1902-1994) relaciona a religião com a imago


materna, ou seja, a experiência primeva com a mãe, a
separação e a tentativa sempre recorrente de reencontro.

Carl Gustav Jung (1875–1961), como sempre, vai além do


seu mestre e postula a religiosidade como elemento natural do
psiquismo humano, uma parte constitutiva e essencial da
natureza do próprio homem. Dessa forma, a religiosidade seria,
por assim dizer, um instinto. Mas isso não quer dizer que as
representações de Deus e dos elementos sagrados de cada
cultura não sejam fenômenos socialmente construídos, mas sim
baseadas num fundamento religioso humano universal.

Quando, por exemplo, a psicologia se refere à concepção da


virgem, trata apenas do fato de que existe essa idéia, mas não
da questão de estabelecer se essa idéia é verdadeira ou falsa
em determinado sentido. A idéia é psicologicamente verdadeira
na medida mesma em que existe.

O pressuposto da existência de deuses e demônios invisíveis é,


na minha opinião, uma formulação do inconsciente
psicologicamente adequada, embora se trate de uma projeção
antropomórfica. (...) tudo quanto se acha fora, quer seja de
caráter divino ou demoníaco, deve retornar à alma, ao interior
desconhecido do homem, de onde aparentemente saiu.

Não é Deus que é um mito (como podem sugerir as ciências),


mas o mito que é a revelação de uma vida divina no homem.
Não somos nós que inventamos o mito, é ele que nos fala como
Verbo de Deus.

Mas, para Jung, nem tudo na religiosidade é expressão dos


recônditos da alma humana. Determinadas crenças, dogmas e
ritos podem ser, de fato, recursos sociais protetores contra a
experiência religiosa originária, imediata e, potencialmente,
avassaladora:

A experiência imediata do arquétipo da divindade representa


um impacto tão violento que o ego corre o perigo de
desintegrar-se. Com os meios de defesa face a esses poderes, a
essas existências mais fortes, o homem criou os rituais. Poucos
são aqueles capazes de aguentar impunemente a experiência
do numinoso. As cerimônias religiosas coletivas originam-se de
necessidades de proteção, funcionam como anteparos entre o
divino e o humano, isto é, entre o arquétipo da imagem de
Deus - presente no inconsciente coletivo - e o ego.

Como vimos, a religião cumpre os mais diversos (e


importantes) papéis na humanidade. Ela é social, é psíquica, é
estruturadora, reguladora, é instintiva, projetiva, espelhada,
transformadora, é cultural, espiritual, etc. Todos os pensadores
acima não conseguiram englobar a multitude de aspectos da
religião em uma teoria, mas a soma deles nos dá uma boa idéia
de como precisamos encarar com respeito a religiosidade, não
no aspecto do outro, mas de nós mesmos (que aspecto dela
estamos trabalhando em nós nesse momento?).

• EVOLUÇÃO DA CONSCIÊNCIA

ter, 30 de novembro, 2004

Neste fim de semana bati um papo com meus primos sobre a


evolução através das experiências, e falava sobre Jung e a
busca da individuação, através do equilíbrio entre pensamento
e sentimento, intuição e sensação. Muito antes Sócrates já
falava do equilíbrio na educação dos guerreiros (que deveriam
também aprender música) e várias das idéias foram se
encaixando no modelo de evolução em espiral que tinha visto
nas aulas do CEPEC. Resolvi brincar um pouco em cima disso,
fazendo um novo modelo:
Modelo de evolução da consciência, mais conhecido nos
meios esotéricos como "cuscuz evolutivo"

Esse modelo (que serve apenas como apoio visual para falar de
algo tão abstrato) mostra a evolução da consciência como uma
espécie LP, com suas faixas que vão da borda para o centro
(que seriam as "órbitas", onde nós giramos como os planetas
giram em torno do sol) compondo uma subida cônica contínua,
como numa montanha. O centro seria a união, o TODO, o Self.
A maioria das pessoas ficam pelas bordas, por pura inércia
(força centrífuga e gravidade), guiadas pelo instinto, pela lei do
menor esforço, pelo desejo e pelas circunstâncias, sem muita
consciência de si mesmo. À medida que vamos adquirindo
entendimento, galgamos um ponto de altura, ainda na mesma
"órbita", mas já acima da compreensão geral do seu grupo
consciencial.

Os círculos vermelhos são as alturas dentro do mesmo


raio de cada "órbita". Na "órbita" central já não há
necessidade de gradação de altura

Talvez a pessoa nessa faixa fique orgulhosa de seu


"conhecimento", mas mal sabe ela que ainda está na periferia.
Mas é o destino de todos nós sermos atraído para o centro,
alguns mais rápido, outros mais devagar. Alguns procuram um
atalho: em vez de subir essa montanha em espiral (uma
caminhada mais suave e onde se curte mais a paisagem, o que
proporciona um grande aprendizado) seguem uma linha
íngreme direto para o topo. Essa é a porta estreita, que Jesus e
Buda nos falam. Nada contra quem quer apreciar a paisagem:
cada um tem seu ritmo de caminhada, e só evoluímos quando
aprendemos a respeitar e compreender cada pessoa em cada
nível dessa espiral. Afinal, quem vê a paisagem do alto da
montanha pode até prever o próximo movimento de quem está
embaixo, ver suas dificuldades na escalada e ajudar com
alguma orientação sobre qual o melhor caminho a tomar.
Aí entramos no Dharma: todos nós temos aptidões naturais
para alguma coisa. Isso significa que já cumprimos aquela
espiral em alguma encarnação, e quando podemos exercer
plenamente essa aptidão, significa que estamos rodando na
mesma órbita novamente, mas um pouco mais acima (como
uma mesma nota musical, só que uma oitava acima). Um
Senna, ou um Schumacher, possuem imensa vantagem sobre
um Rubinho. Mas quem garante que o aperfeiçoamento de um
talento é o ideal para a "subida do cuscuz"? Às vezes ficamos
tão concentrados em fazer o nosso melhor que esquecemos de
melhorar nossas imperfeições. Não se pode buscar o caminho
dos extremos e negligenciar o desenvolvimento do espírito.
Rubinho pode ser até um perdedor nas pistas, mas um
vencedor em casa, como um bom pai, bom marido, boa
pessoa... ao menos não se tem notícia de Rubinho quebrando
hotel ou esmurrando jornalistas...

Mas a própria natureza humana nos impulsiona a viver novas


experiências. Alguém que já atingiu o máximo de sua
habilidade em certa coisa, mesmo que sinta prazer naquilo, vai
chegar um tempo em que não irá satisfazer-se mais, o que
acarreta um extremo vazio. É o caminho pendular dos
extremos: muitos dos soldados que lutaram na 2ª guerra
mundial desejavam que, quando tudo aquilo terminasse,
fossem passar o resto da vida numa cidade bucólica, ou uma
fazenda, algo longe de qualquer barulho. Já Senna compensava
a agitação das corridas com uma forte introspecção natural.
Mesmo os extremos servem para o aprendizado, ninguém deixa
de crescer e aprender. Mas este é o caminho longo e prazeroso,
com muitas armadilhas que podem fazê-lo rodar na mesma
órbita (que seria o Samsara) por muito, muito tempo...

Saiba que quem não se altera na tristeza ou na alegria, e


em ambas se mantém firme, é digno da eternidade
(Krishna; Bhagavad Gita 2:15)

Então meu primo me apareceu um exemplo extremo e


condenável: o assassino. Será que um serial killer está
evoluindo ao cometer seus crimes? Infelizmente (e felizmente)
a resposta é sim, embora ele esteja tornando sua vida bem
mais difícil. Felizmente porque cada assassinato é um pequeno
passo em direção à lição de não-matar, e uma pedra a mais que
ele terá de carregar nas costas em sua penosa caminhada.
Vejamos então a parábola budista do assassino Angulimala, que
é bastante ilustrativa:

ANGULIMALA SUTTA
Gautama, o Buda, andava de um vilarejo a outro, acompanhado
de seus discípulos, pregando a Verdade. Certa vez, seguiam por
uma estrada fechada, quando depararam com alguns guardas
do rei. E eles disseram:
- Voltem e sigam por outro caminho, porque por estas paragens
está escondido um perigoso assassino, conhecido por
Angulimala. Dizem que já matou 999 pessoas, das quais cortou
um dedo de cada uma e fez um colar e está à procura da
milésima para completar seu colar de 1000 dedos. Por isso o
Rei mandou bloquear a estrada, para evitar que
algum incauto seja a próxima vítima. Você pode
pegar uma estrada mais longa à frente.

Mas Buda disse: Se eu não for, quem irá? Somente


duas coisas são possíveis: ou eu o mudo (e eu não
posso perder esse desafio) ou eu fornecerei o dedo
que lhe resta para realizar seu desejo. De qualquer
forma, eu vou morrer algum dia e me queimarão
numa pira funerária. Acho que é melhor realizar o
desejo de alguém e dar paz de espírito a esta pessoa. Ou ele
me matará ou eu o matarei.

Então Buda continuou a caminhada, com seus discípulos desta


vez bem de longe, acompanhando a cena. Finalmente
encontrou Angulimala, que estava sentado em uma rocha.
Angulimala mal pôde acreditar no que via: "Pessoas em grupos
de dez, vinte, trinta e até quarenta seguiram por esta estrada e
assim mesmo foram minhas vítimas. E agora esse monge vem
sozinho, sem companhia, como se empurrado pela fé. Porque
eu não deveria matar esse sujeito? Ele nunca ouvira falar de
Siddhartha Gautama, mas podia sentir que este homem era
especial, com um imenso carisma que tocava de alguma forma
seu coração. Já não sabia se queria realmente matar aquele
homem, embora quisesse muito o milésimo dedo.

Então, de espada em punho, Angulimala gritou: "PARE! Não dê


nem mais um passo, ou a responsabilidade pela sua morte não
será minha. Talvez não saiba quem eu sou!"
E Buda respondeu:
- E você sabe quem você é?
- Esse não é o ponto! Aqui não é a hora ou lugar para discutir
essas coisas. Sua vida está em perigo! - Disse Angulimala.
- Pois eu já penso diferente: sua vida está em perigo.
Angulimala riu:
- E eu que pensava que eu era louco... você é que é louco,
aproximando-se desse jeito! Depois não diga que eu matei um
homem inocente. Não quero matá-lo, posso achar outra pessoa
para completar o colar, mas não me force a fazê-lo, andando
em minha direção!
- Você está totalmente cego. Não pode ver uma coisa tão
simples: eu não estou me movendo em sua direção, você é que
está vindo até mim.
- Que maluquice!! Todos podem ver que é você que está se
movendo e eu estou parado nesta rocha!
- A verdade é que, desde o dia em que alcancei a iluminação,
não me movi nem um centímetro. Estou centrado, totalmente
centrado, sem movimento. É sua mente que está
continuamente se movendo em círculos, sem parar. E
você ainda me diz que eu devo parar. Você deve parar! Eu já
parei há muito tempo. Eu me abstenho da violência para com
os seres vivos, mas você não tem nenhum refreamento em
relação àquilo que tem vida: Essa é a razão porque eu parei e
você não.
- Parece que sua loucura é incurável. Você está destinado a ser
morto. Sinto muito, mas o que mais eu posso fazer?

Então Angulimala levantou sua espada, mas suas mãos


estavam tremendo. Ele já havia matado tantas pessoas, mas
nunca havia sentido essa fraqueza. Então Buda falou:
- Por que hesita? Você é um grande guerreiro, e eu sou apenas
um pobre mendigo. Você pode me matar, ficarei feliz por
satisfazer seu desejo de completar o colar. Minha vida já foi
muito útil e assim minha morte também o será. Mas antes de
cortar minha cabeça, ao menos satisfaça meu último desejo,
como também vou satisfazer o seu de completar o colar, disse
Gautama.
Angulimala, que àquela altura faria qualquer coisa para evitar
aquela morte, respondeu: "o que quer?"
- Quero que corte um galho daquela árvore tão florida. Um
galho que tenha bastante flores para que eu possa sentir sua
fragrância pela última vez, pediu o Buda.
Angulimala golpeou um galho com o facão e foi entregá-lo,
quando Buda disse:
- Essa é apenas a metade do meu desejo. Agora quero que
você cole outra vez esse galho na árvore.
- Que tipo de louco você é? Como vou colar o galho na árvore
outra vez?
- Se você não pode criar, não tem o direito de destruir. Se você
não pode dar a vida, não tem o direito de dar a morte a
nenhuma criatura.

Seguiu-se um momento de silêncio, de transformação. A


espada caiu das mãos de Angulimala, que caiu aos pés de
Buda, dizendo:
- Eu não sei quem você é, mas seja lá quem for, leve-me para o
lugar onde você vive. Inicie-me.
Os discípulos de Buda, que ao longe escutavam, aproximaram-
se e disseram: "Não inicie este homem! Ele é um assassino de
pessoas inocentes!"
Mas Buda disse:
- Se eu não iniciá-lo, quem o fará por ele? E eu admiro a
coragem deste homem, que lutou sozinho contra o mundo,
apenas com uma espada. Agora ele lutará contra o mundo
usando a consciência, que é muito mais afiada que qualquer
espada. Eu lhes falei que um de nós iria morrer hoje.
Angulimala está morto. Quem sou eu para julgá-lo?

E assim Angulimal foi iniciado.

Assim se dá a evolução. Mesmo um assassino cruel aprenderá o


valor da vida, talvez de forma mais marcante e duradoura do
que aquele que nunca passou por esta experiência. Então não
nos apressemos em julgar os que estão mergulhados na
ignorância, pois eles podem estar sedimentando a sua espiral
de evolução, para poderem realizar um importante salto no
nível de percepção.

Vemos a mesma lição em um sutta mais moderno, O Senhor


dos Anéis (As duas torres), de J. R. R. Tolkien:
- Não sinto nenhuma pena de Gollum. Ele merece morrer.
- Merece! Suponho que sim. Muitos que vivem merecem morrer
E alguns que merecem viver morrem. Você Pode dar-lhes vida?
Então não seja tão ávido para condenar à morte em nome da
Justiça, temendo por sua própria segurança. Nem mesmo os
sábios conseguem ver os dois lados.

Mas, e o resultado das ações de Angulimala? E seu karma?


Bastou se converter pra "virar santo"? Bem, a história continua:

Após Angulimala ter se convertido em um dos arahants, certo


dia ele tomou sua tigela e foi para a cidade de Savathi, para a
coleta habitual de alimentos. Naquela ocasião alguém jogou
uma pedra e atingiu o corpo de Angulimala, outra pessoa jogou
um pau que também o atingiu, e outra jogou um pedaço de
cerâmica. Então, com o sangue jorrando da sua cabeça cortada,
com a sua tigela quebrada e com o seu manto externo rasgado,
o venerável Angulimala foi até Buda, que falou: "Agüente,
brâmane! Agüente, brâmane! Você está experimentando aqui e
agora o resultado de ações pelas quais você poderia ser
torturado no inferno durante muitos anos, por muitas centenas
de anos, por muitos milhares de anos."
Referência: Parábola budista adaptada do Angulimala Sutta e do cap. 24 do livro A grande
peregrinação, de Osho

• TEMPO E DIMENSÕES

qui, 17 de abril, 2003

Uma coisa que sempre me intrigou nos livros espíritas era a


perda temporal que sofriam os espíritos ao chegar lá do "outro
lado". Vários relatos em livros dizem que pessoas passaram não
sei quantos anos no umbral, apesar de só terem lembrança de
pouco tempo, ou então acordam refeitos do desencarne e
notam que já se passaram quatro anos terrestres... Eu nunca
acreditei que alguém passasse tanto tempo desacordado, mas
só entendi a coisa quando dei de cara com o livro O universo
numa casca de Noz, de Stephen Hawking. Estava folheando-o
na livraria quando dei de cara com o modelo de universo de
Einstein (vejam o post em que falo a respeito disso) e de
repente tudo fez sentido. O que valia para a nossa dimensão
valia para todas as outras! Pena que não consegui me fazer
entender muito bem no post anterior, e por isso retomo o tema,
com uma animação mais detalhada.

Imaginem uma visão 2D das várias dimensões (que no


espiritismo chamamos de Faixas vibratórias), sendo a mais
próxima do centro a mais densa (física), onde nos
encontramos. Estão todas em rotação, como um LP. Quanto
maior a velocidade das partículas (vibração) menor a
densidade, e então teremos os planos mais sutis,que são
invisíveis para nós, mais pra beirada do LP.

Suponhamos que um acontecimento ocorra simultaneamente


nos dois planos. A linha azul indicaria uma seqüência de
eventos (que é o que chamamos de tempo). A faixa verde
serve pra ilustrar uma linha temporal de comum acordo pra
todas as freqüências, que poderíamos chamar de ano, mês ou
dia.

Notem que o acontecimento começou a se tornar real para o


observador mais próximo ao centro, antes mesmo de chegar na
faixa de tempo do segundo observador. E passa muito
rapidamente pelo observador 2, e deixa de acontecer enquanto
ainda está lá, ocorrendo com o observador 1.
Percebem então porque um ano (ou um dia) nas faixas
vibratórias mais altas passa muito mais rápido que aqui? Por
isso o ano terrestre não pode ter uma comparação com o dos
planos superiores, e exatamente essa a dificuldade de prever
quando um acontecimento se dará por aqui. Não tenho certeza,
mas o que dá a entender das comunicações é que as coisas
acontecem primeiro nos planos mais sutis e só então vão se
manifestando nos planos mais densos.

• AS DUAS DORES DO AMOR

dom, 3 de novembro, 2002

Por Martha Medeiros

Existem duas dores de amor. A primeira é quando a relação


termina e a gente, seguindo amando, tem que se acostumar
com a ausência do outro, com a falta de perspectiva, já que
ainda estamos tão envolvidos que não conseguimos ver luz no
fim do túnel.

A segunda dor é quando começamos a vislumbrar a luz no fim


do túnel. Você deve achar que eu bebi. Se a luz está sendo
vista, adeus dor, não seria assim? Mais ou menos. Há, como
falei, duas dores. A mais dilacerante é a dor física da falta de
beijos e abraços, a dor de se tornar desimportante para o ser
amado. Mas quando esta dor passa, começamos um outro ritual
de despedida: a dor de abandonar o amor que sentíamos. A dor
de esvaziar o coração, de remover a saudade, de ficar livre,
sem sentimento especial por ninguém. Dói também.

Na verdade, ficamos apegados ao amor tanto quanto à pessoa


que o gerou. Muitas pessoas reclamam por não conseguir se
desprender de alguém. É que, sem se darem conta, não
querem se desprender. Aquele amor, mesmo não retribuído,
tornou-se um souvenir de uma época bonita que foi vivida,
passou a ser um bem de valor inestimável, é uma sensação
com a qual a gente se apega. Faz parte de nós. Queremos,
logicamente, voltar a ser alegres e disponíveis, mas para isso é
preciso abrir mão de algo que nos foi caro por muito tempo,
que de certa maneira entranhou-se na gente e que só com
muito esforço é possível alforriar. É uma dor mais amena,
quase imperceptível. Talvez, por isso, costuma durar mais do
que a dor-de-cotovelo propriamente dita.
É uma dor que nos confunde. Parece ser aquela mesma dor
primeira, mas já é outra. A pessoa que nos deixou já não nos
interessa mais, mas interessa o amor que sentíamos por ela,
aquele amor que nos justificava como seres humanos, que nos
colocava dentro das estatísticas: eu amo, logo existo. Despedir-
se de um amor é despedir-se de si mesmo. É o arremate de
uma história que terminou, externamente, sem nossa
concordância, mas que precisa também sair de dentro da
gente.

E só então a gente poderá amar, de novo!!!

• ESCOLHAS

sáb, 31 de maio, 2003

No filme Matrix Reloaded a grande mensagem é sobre o livre


arbítrio. Até quando somos livres para decidir nosso futuro?

Neo - Mas se você já sabe o que eu ia escolher, como


poderei fazer uma escolha?
Oráculo - Porque você não veio aqui para fazer uma
escolha. Você já a fez antes. Você está aqui para tentar
entender o porquê da sua escolha.

Essa frase tenta colocar no inconsciente das pessoas o porquê


de elas estarem aqui na Terra. Oráculo representa a guia
espiritual, que nos ajuda a fazer aquilo a que nos propusermos
fazer antes de encarnarmos. Claro que nem todo mundo pode
organizar como vai ser sua encarnação, que desafios terá de
encarar, etc. Mas também não é um luxo para poucos. Basta ter
vontade de acertar e discernimento. Só que, uma vez que
mergulhamos na carne (na Matrix) perdemos todas as nossas
memórias (ou seja, qualquer chance de burlar a Lei da
Evolução), ficando somente as conquistas espirituais (caráter)
que são as lições que você realmente aprendeu e incorporou ao
seu "código" (espírito). Por isso a importância do (a) Oráculo, o
(a) guia espiritual, que é um espírito como você, mas que está
sabendo de toda a programação. Ele obviamente não vai contar
as dificuldades que virão nem contar quem você foi ou o que
você fez no passado, senão você poderia "colar" na prova,
podendo até ser aprovado, mas não numa outra encarnação
(na próxima você perderá qualquer contato com seu guia. No
fundo, quem se prejudica é você, pois é apenas atraso pra sua
evolução).

Quando você está do "lado de lá", se preparando pra


reencarnar, geralmente sabe no que errou e se compromete a
procurar melhorar. Essa é sua escolha. Só que saber
intelectualmente é muito fácil, o difícil é aprender "na pele". E é
por isso que estamos aqui. Para botar em prática nossa
escolha, saber das conseqüências desta escolha, e assim nos
conscientizarmos dela. Ao fazer isso, sua escolha não se torna
apenas uma escolha, e sim uma AÇÂO SUA (Karma = ação).
Você SE TORNA sua ação, que passa a ser o que você É, e não
o que você escolheu (meio confuso, eu sei, mas meditem
nessas palavras).
É como o Arquiteto falou: existem escolhas na Matrix, mas as
probabilidades apontam sempre pra um caminho previsível. Por
quê? Porque nosso "código" (espírito) é previsível. É mais fácil
um criminoso ter vontade de matar do que de cultivar a vida.
No momento em que ele quebrar a seqüência do seu próprio
código (que ele mesmo criou em sucessivas encarnações), vai
poder ser livre pra dizer "não vou matar nunca mais" e aí cria a
tal "anomalia sistêmica contraditória" que o Arquiteto menciona
no filme, que nada mais é que um passo em direção à
iluminação (evolução).

Enquanto isso há aqueles que vieram pra cá compulsoriamente,


não se arrependem de nada do que fizeram e vão continuar
fazendo besteira por aqui até um dia se cansarem e
perceberem que o mundo é muito mais do que fazer tudo o que
seu ego quiser. É muito comum que essas pessoas,
extremamente materialistas, atinjam idades elevadas ou fiquem
gravemente enfermas, para que o corpo fique inútil e a mente
possa se soltar para reflexão (coisa que não fariam com saúde).
É por isso que o espiritismo condena a eutanásia, pois a doença
é na verdade uma chave para a evolução (pena que seja um
remédio tão doloroso, mas quem não aprende por bem...).

No blog Conciliábulo vemos a transcrição do diálogo de Niobe


com Oráculo, retirado do jogo Enter the Matrix, que também foi
escrito pelos irmãos Wachowsky:

Oráculo - Niobe...
Niobe - Eu conheço você?
Oráculo - Você me conhece, embora você possa não estar me
reconhecendo.
Niobe - Você está me dizendo que você é o Oráculo?
Oráculo - Eu sei que pode não ser fácil para nenhum de vocês,
a mudança nunca é fácil. Eu gostaria que o rosto do qual você
se lembra fosse o rosto que eu ainda uso, mas aquele rosto não
existe mais.
Niobe - Se você é o Oráculo, diga-me se eu acredito no que
você diz.
Oráculo - Você ainda não acredita, mas vai.
Niobe - Você vai me dizer algo que vai me fazer acreditar em
você?
Oráculo - Vamos lá, Niobe. Você sabe que eu não posso fazer
isso.
Niobe - Por que não?
Oráculo - Porque eu não posso obrigar você a fazer nada.
Niobe - Pelo menos você fala com o Oráculo.
Oráculo - Como eu disse, você pode não reconhecer meu rosto,
mas quem e o que eu sou por trás deste rosto ainda permanece
igual.
Niobe - Posso lhe perguntar o que aconteceu?
Oráculo - O Merovíngio me avisou que, se eu fizesse certas
escolhas, me custaria muito. Ele é, entre outras coisas, um
homem de palavra.
Niobe - Que escolha foi essa?
Oráculo - A mesma que você terá que fazer: A escolha é ajudar
Neo, ou não.
Niobe - Então Neo está vivo?
Oráculo - Sim. Ele tocou a Fonte e separou sua mente de seu
corpo. Agora ele está preso num lugar entre o seu mundo e o
nosso.
Niobe - Nós podemos libertá-lo?
Oráculo - Trinity pode, mas ela terá que lutar através do inferno
para fazê-lo.
Niobe - Eu posso ajudar?
Oráculo - Foi por isso que eu chamei você. Eu não posso dizer a
você o que vai acontecer. Tudo que eu posso fazer é esperar
que, quando a oportunidade aparecer, você vai ter coragem de
fazer o que você puder.
Niobe - Certa vez você me disse que você sabia tudo o que
você precisava saber.
Oráculo - E eu sei. Eu sei tudo do início ao fim deste caminho.
Niobe - Eu não entendo.
Oráculo - Até mesmo eu não posso ver além do fim.
Niobe - O fim? Você está tentando me dizer que o mundo vai
acabar?
Oráculo - Sim, se nós não pudermos salvá-lo, ele irá acabar.
Niobe - Você quer dizer Neo...
Oráculo - Eu quero dizer nós. O caminho do Escolhido é feito
por muitos. Eu tenho um papel nele, assim como você.
Interessante como casa com o que postei anteriormente,
principalmente no trecho "Eu não posso dizer a você o que vai
acontecer. Tudo que eu posso fazer é esperar que, quando a
oportunidade aparecer, você vai ter coragem de fazer o que
você puder".

É exatamente o que um guia espiritual diria!

No mesmo blog levantaram a questão de que Merovingian teria


sido um dos predecessores de Neo. Persephone diz que
Merovingian já foi como Neo (não sabemos em que sentido)
enquanto Oráculo diz que Merovingian é um programa antigo e
perigoso. Logo, Neo também pode ser um programa. Minha
opinião é que ele é um programador da Matrix, no mesmo nível
de Oráculo. O que explicaria o fato de ele ter reprogramado o
"rosto" dela em Revolutions.

• MATRIX RELOADED

sáb, 24 de maio, 2003

Neo: "Achei isso tão legal que eu quis fazer de novo!"

Nesta continuação os diretores resolveram enveredar pelo


aspecto psicológico e existencialista mais do que filosófico, mas
infelizmente não conseguiram a mesma capacidade de
transmitir (com diversão e sabedoria mescladas) a mensagem.
As coreografias das lutas deixaram as de Matrix 1 no chinelo
(que se tornaram muuuito lentas e enfadonhas em comparação
com o 2... quem diria?!). O Neo está lutando com MUITA
velocidade e segurança! Vai levar um bom tempo pra
superarem em qualidade e beleza as lutas apresentadas aqui,
que na minha opinião são as melhores da história do cinema
(incluam-se aqui as produções chinesas que passavam na Band
antigamente, e o recentíssimo Hero,que foi o trabalho anterior
do coreógrafo Yuen Woo Ping, o mesmo dos Matrix).

Claro que eu tenho ressalvas, mas já foram tão


comentadas que eu prefiro não ficar batendo na
mesma tecla. A cena da rave em Zion ficaria legal
se fosse num videoclip da Christina Aguilera, mas
não dentro de Matrix. Foi a coisa mais estranha e
deslocada de todo o filme. Qual seria a mensagem?
Ou teria sido uma imposição dos produtores, que
queriam o ingrediente sexo na fórmula (ingrediente
este que esteve ausente de todo o primeiro filme,
notem!). Mas, mesmo sendo uma imposição, tomou muito
tempo, num filme já longo. Então começo a achar que foi coisa
dos diretores mesmo. Talvez queiram apresentar Zion como a
Kundalini, que fica escondida no subsolo e constitui-se de uma
grande força sexual que está prestes a explodir em ira (o que
acontecerá no terceiro filme).

Outra cena que comentarei en passant é a reunião dos


comandantes das naves, dentro da Matrix. O lugar era escuro,
de noite, e a grande maioria tava de óculos escuros. Será que
não perceberam o ridículo??? Mais uma vez pus em dúvida a
sanidade mental dos irmãos Wachowski e mais uma vez tive de
reconhecer que esses caras não são idiotas. Então, por que será
que fizeram isso tão de graça, só por ser cool? Daí comecei a
analisar o uso dos óculos escuros por parte de todo mundo no
filme. Eles são usados tão somente na Matrix. Por que não fora
dela? Se eles curtem tanto os óculos, poderiam fazer um
facilmente. O trabalho em vidro já era conhecido até mesmo
pelos antigos egípcios. Seria moleza pra quem construiu a
Nabucodonosssor. Mas não! Os óculos são um símbolo de
status. Só os tampas de crush usam (e os agentes se incluem
nesse arquétipo). Provavelmente a simbologia quer dizer "estou
afastado do colorido da Matrix, dos estímulos sensoriais que me
distraiam do meu objetivo. Sei que aquilo não é real. Mas
também não estou cego para a Matrix".

Mais um detalhe legal: quando Neo vai visitar Oráculo num


bairro chinês, vemos numa mesinha uma foto de Jesus, um
Buda e outras coisas religiosas, todas juntas. E todas para
vender...

O guarda-costas de Oráculo tem o código diferente dos outros.


É brilhante, e seu brilho se irradia pelo corpo todo. Pela sua
postura, provavelmente aquele brilho é o seu Chi, e aquele
guerreiro seria como o galo de briga da parábola, centrado e
impassível. Neo teve de "queimar seu cosmo" pra poder lutar
melhor com ele, e só aí revelou que era o predestinado. (leia
mais sobre Seraph)

Não, eu não tenho nenhuma explicação filosófica, budista ou


intelectual pra frase imbecil de Morpheus: "Algumas coisas
nunca mudam. Já outras mudam". Só pode ser filosofia de
botequim, mesmo. Até porque, ser formos ver a filosofia
Budista, TUDO muda o tempo todo. Tudo é impermanente, por
isso não devemos nos apegar a nada. Mas eu encarei isso no
filme como uma frase de efeito do tipo "Hasta la vista, baby",
então tá bom...

Fui na primeira sessão do dia 23. A nata dos viciados estava lá,
e muitos covers de Neo transformaram a sala de cinema no que
parecia ser uma reunião de corvos. Apareceu até um Morpheus,
com espada na mão, que levou a galera ao delírio. O momento
mais perturbador foi quando uma senhora entrou na sala e o
pessoal começou a gritar "Oráculo, Oráculo!". Depois acabei
achando tudo isso engraçado.

Quando o filme começou seguiu-se pelo menos 1 minuto de


aplausos entusiasmados. Aí começaram meus temores: Trinity
caindo do prédio num ultra-fake-slow-motion e depois a
chegada em Zion, totalmente computadorizada e irreal, ao som
de uma música triunfal. Nesse momento pensei "Episódio 1
não! Episódio 1 não!". Meus temores ficaram ainda mais
fundamentados quando começaram a falar em Conselheiros.
Esperei a qualquer momento ver o Jar Jar Brinks fazendo uma
ponta. E depois veio a Rave, já comentada aqui. Mas felizmente
o filme entrou nos eixos e virou uma continuação de Matrix,
com cenas de ação, quebra de paradigmas (inclusive os
paradigmas criados no primeiro) e efeitos especiais que fizeram
a platéia urrar (como na cena da explosão do caminhão). Pense
numa mentira legal!

Agora, o detalhe preferido por mim no filme: o babão de Neo,


em Zion. Ele nada mais é do que o arquétipo do fã doente de
Matrix! Sim, aquele que acha que Matrix tem todas as
respostas, que quer fundar uma religião com São Neo, São
Morpheus e Santa Trinity. Neo passa o tempo todo dando gelo
no cara, que tem os olhos e a fala de um viciado, um fanático.
Quando o cara diz "você me salvou, Neo" ele olha pra traz e diz
"você se salvou!". É excelente pra fixar na mente das pessoas
que elas não precisam de ídolos, de salvadores, de estátuas
que podem acabar lhe esmagando...

Numa leitura desatenta deste blog, pode até parecer que eu


seja mais um fã destes. Ledo engano. Matrix foi o veículo que
encontrei para expressar melhor meu ponto de vista do mundo.
E ainda assim tenho de me limitar a expressar-me por
metáforas que nada mais são do que reflexos grosseiros,
sombras de algo ainda mais sutil e intrincado (que me é ainda
velado à cognição, mas revelado aos sentimentos, e por vezes
chega a ser assustador). Mas tudo bem. Algum tempo atrás
sequer poderia estar falando isso aqui sem ser taxado de louco,
maconheiro, obsediado ou algo assim. Também não quero falar
pra seitas, fraternidades ou pessoas que se considerem
melhores que as outras. Afinal, eu não sou sério, nem me
considero "elevado", como carne, falo palavrão e estou
justamente tentando tirar um pouco os óculos escuros pra ver
tudo colorido novamente...

• ANDRÉ LUIZ TINHA RAZÃO

seg, 5 de setembro, 2005

Por Gilberto Perez Cardoso

No capítulo três do livro "No Mundo Maior", psicografado por


Chico Xavier, o autor espiritual André Luiz nos transmite uma
interessante aula do instrutor espiritual Calderaro sobre o
cérebro. O capítulo se intitula "A casa mental" e Calderaro, após
uma demonstração da fisiologia cerebral, indica a André a
divisão cerebral em três províncias distintas, adotada no Plano
Espiritual. Essas três áreas correspondem a três setores, a
saber:

1: Lobos frontais
2: Região situada desde o córtex motor até a extremidade da
medula espinhal
3: Gânglios da base, postados mais inferiormente

Mais adiante, de maneira didática, Calderaro faz analogia entre


o cérebro e um "castelo de três andares". No andar mais baixo
Calderaro situou "a residência de nossos impulsos
automáticos"; no intermediário, "o domínio das conquistas
atuais"; no superior, "a casa das noções superiores".
Acrescentou ainda o sábio instrutor que no primeiro andar
residiam "o hábito e o automatismo"; no segundo, "o esforço e
a vontade"; no terceiro, "o ideal e a meta superior".
Explicou ainda Calderaro que os três andares poderiam
corresponder, respectivamente, a "subconsciente, consciente e
superconsciente", representando, respectivamente, "passado,
presente e futuro". As explicações de Calderaro são preciosas e
coincidem com aquelas que encontramos em outra excelente
fonte de pesquisas, "A Grande Síntese", de Pietro Ubaldi, obra
merecedora de prefácio de Emmanuel por meio do mesmo
médium, Chico Xavier. Pois neste livro também se estuda o
cérebro dessa maneira, arquitetado em três níveis distintos.

A ciência começa a trilhar mais claramente o mesmo caminho


já delineado por André Luiz e Pietro Ubaldi. É o que
depreendemos ao ler o Jornal da Família, suplemento do jornal
"O Globo", de 20 de junho de 2004, na reportagem intitulada
"Freud tinha razão", de M. Cezimbra.

A matéria comenta e comemora recentes descobertas de


neurocientistas, que propuseram um novo mapeamento do
cérebro, coincidente com o modelo mental proposto por
Sigmund Freud, o criador da Psicanálise.

Nesse mapeamento cerebral, concebido após aplicação à


neurofisiologia de recentes técnicas de obtenção de imagens
tecnológicas, os neurocientistas identificaram uma espécie de
"andar superior" no cérebro, correspondendo anatomicamente
ao córtex dorsal frontal e funcionalmente ao que Freud chamou
de "superego"; propuseram ainda a existência de um "andar
intermediário", correspondendo ao "córtex cerebral posterior" e
ao que Freud denominou de "ego"; por fim, localizaram os
pesquisadores um "andar inferior", correspondendo ao tronco
cerebral e, em termos de função, ao que Freud denominou de
"id".

É muito interessante e significativo que na própria reportagem


se faça referência ao "andar inferior", tronco cerebral ou "id"
como sede de impulsos inconscientes; ao "andar intermediário",
córtex posterior ou "ego" como área consciente; e ao "andar
superior", córtex dorsal frontal ou "superego" como sede de
"repressões culturais. A neurofisiologia e a psicanálise
caminham afinal para um entendimento, ao que parece, e essa
concordância tende a se dar em torno de um modelo para o
cérebro que data, na literatura espírita, de 1947 (ano em que
André Luiz nos ditou a obra "No Mundo Maior") e na obra de
Pietro Ubaldi, de 1933 (época em que surgiu "A Grande
Síntese", e mesmo ano da descoberta de Freud).

Não tenho conhecimento de registros anteriores desse modelo


para explicar o funcionamento cerebral.
Também é justo acrescentar, complementando a reportagem
"Freud tinha razão", dizendo que André Luiz também tinha
razão...

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Íntegra da matéria do Globo:

FREUD TINHA RAZÃO

Marcia Cezimbra

Que a psicanálise ajuda a viver melhor, os bons terapeutas e


seus pacientes já sabem há décadas. Mas agora neurocientistas
europeus e americanos comprovam, em exames do cérebro em
laboratórios de imagens de alta tecnologia, que a psicanálise —
tida por muitos como um discurso ficcional — tem fundamento
científico. Sigmund Freud estava certo em suas descrições do
funcionamento da mente humana.

Os neurocientistas constataram que o que move o ser humano,


como Freud dizia, são impulsos inconscientes, que sofrem
repressão para não se tornarem conscientes. E confirmaram
que as experiências da primeira infância influenciam o padrão
de conexões cerebrais que moldam a nossa personalidade e a
saúde mental para o resto da vida. Tecnologias de imagens
mostram que a psicoterapia também atua no cérebro, alterando
circuitos neuroquímicos.

Outra descoberta, feita por neurocientistas como Joseph Le


Doux, identificou os sistemas de memória que controlam o
aprendizado emocional. Le Doux demonstrou a existência de
uma via neuronal que conecta as informações coletadas pela
percepção às estruturas do cérebro responsáveis por reações
de medo. A ação dos neurotransmissores, sobretudo a
dopamina, mostram que a compulsão, como Freud dizia em
suas experiências com a cocaína, está ligada à busca pelo
prazer que ele chamava de libido e que tem um fundamento
neuroquímico. Além disto, as pesquisas apontam em direção
ambiciosa: provar que a produção inconsciente de imagens nos
sonhos tem por base efeitos de neurotransmissores em certas
fases do sono, controladas por uma rede de circuitos
"instintivos-motivacionais" do cérebro. Noutras palavras: os
sonhos seriam gerados por motivações inconscientes, num
paralelo ao dito freudiano de que "os sonhos são a realização
de desejos inconscientes".
O professor de neuropsicologia Mark Solms, em artigo da
revista "Scientific American", afirma que os neurocientistas
ficaram tão empolgados com as descobertas que criaram a
Sociedade Internacional de Neuropsicanálise. A idéia de
reconciliar neurologia e psicanálise numa teoria unificada
resultou na revista "Neuro-psychoanalysis", da qual fazem
parte especialistas internacionalmente reconhecidos como
Antonio R. Damasio, Joseph E. LeDoux, Benjamin Libet e Eric
Kandel, prêmio Nobel de medicina de 2000.

— É interessante que a psicanálise, negada como ciência no


século XX, seja cientificamente comprovada por neurologistas
cognitivos — diz o psicanalista Joel Birman.

Estudo mostra cérebro que Freud imaginou

Ateoria freudiana da estruturação do psiquismo, de 1933, fugia


da anatomia cerebral da época. Para Freud, o sistema psíquico
era formado pelo inconsciente (id), fonte dos impulsos e da
motivação dos seres humanos. Boa parte desses impulsos eram
limitados pelo consciente (ego), para impedir que eles
comprometessem o pensamento racional. Havia também o
superego, uma estrutura que intermediava os conflitos entre o
ego e o id, constituída em boa parte pelas leis da cultura.
Quando essa repressão não funcionava bem, segundo Freud,
ocorriam as fobias, o pânico, as obsessões, os ataques
histéricos, a psicose. A psicanálise teria então a função de
trazer o inconsciente à consciência, elaborando o que
exatamente deu origem às ações inconscientes.

Hoje estes processos mentais inconscientes foram comprovados


em laboratórios de neurocientistas. Os mapeamentos
neurológicos recentes combinam com as concepções de Freud.
O tronco encefálico reticulado e o sistema límbico, responsáveis
por instintos e impulsos, correspondem ao id freudiano. Na
região frontal ventral, que lida com a inibição consciente e
seletiva desses impulsos inconscientes, estaria a repressão
proveniente do ego. Na região frontal dorsal, que controla as
funções conscientes, estaria o superego freudiano. O superego
e o ego também estariam no córtex posterior, que percebe o
mundo exterior.

Os exames mostram como a repressão de lembranças é


deliberada e seletiva: danos da região parietal direita fazem
com que a pessoa não perceba danos físicos, como a paralisia
de um braço. Danos na região límbica frontal, que controla
aspectos essenciais da consciência, por exemplo, faz com que a
pessoa invente histórias fantásticas a seu respeito, sem
contatar imagens inconscientes que tem de si mesma.

O resgate da teoria dos sonhos

As idéias de Freud de que os sonhos são um modo de


vislumbrar desejos inconscientes foi desacreditada a partir dos
anos 1950, quando pesquisas mostraram a relação entre o ato
de sonhar e o movimento rápido dos olhos (o sono REM), este
controlado por substâncias químicas, como a acetilcolina, e
estruturas cerebrais que nada tinham a ver com emoção e
motivação. Hoje, pesquisas mostram que os sonhos e o sono
REM são controlados por mecanismos distintos, embora
interajam. Segundo o professor Mark Solms, os sonhos são
produzidos por circuitos instintivos-motivacionais do cérebro. "A
conceituação "psicológica" dos sonhos voltou a ser
cientificamente respeitável", escreveu ele na "Scientific
American". Já o professor de psiquiatria de Harvard J. Allan
Hobson continua a achar que a bizarrice dos sonhos é gerada
por mecanismos químicos do tronco encefálico durante o sono
REM. "Remendos neurobiológicos não vão dar um jeito na
enrascada da psicanálise", rebateu ele, na "Scientific
American".

Exames confirmam memória corporal

Uma das confirmações importantes da neurociência refere-se


ao funcionamento da memória: as estruturas cerebrais
essenciais para a formação de memória consciente não
funcionam durante os primeiros dois anos de vida. As vivências
desse período não ficam registradas no cérebro, mas no corpo.
A constatação mostra que Freud também estava certo ao dizer
que "o eu é acima de tudo corporal", em "O ego e o id" (1923).
E explica ainda o que Freud chamava de amnésia infantil. Hoje,
os neurocientistas mostram que esse período não foi esquecido,
mas não vem à consciência porque, quando foi vivido, não foi
registrado pelo cérebro, que não estava pronto.

A memória está nos olhos, na boca, nas vísceras

O psicanalista Joel Birman considera esta comprovação


importante para que alguns psicanalistas percebam que, sem
uma abordagem afetiva, que dê acesso à memória corporal,
não há tratamento:

— Uma parcela significativa da psicanálise esqueceu que o


psíquico é corporal. Foi por isso que as chamadas terapias
corporais, como a bioenergética e as reichianas, ampliaram-se
tanto em todo mundo, nas últimas décadas.

Birman diz que esta memória, que não está concentrada no


cérebro, será mantida a vida inteira nos olhos, na boca, no
abdômen, nos dedos:

— São as zonas erogenizáveis pela relação da mãe com o bebê.


Nessa fase, o cérebro não tem ainda a mielinização das fibras
nervosas e a memória se mantém no corpo. É por isso que o
psicanalista precisa desenvolver uma linguagem afetiva, que
chamo de linguagem das intensidades, para que ele tenha
acesso a essa corporeidade.

Wilson Chebabi diz que o analista também deve trabalhar com


seu corpo:

— Não tocando o paciente, mas como presença física e


acompanhamento emocional de vivências que não foram
registradas como lembranças, mas como ambiência.

Freud no laboratório

AÇÕES INCONSCIENTES: Freud constatou que o ser humano é


movido por impulsos inconscientes, mas uma força repressora
impediria que estas motivações se tornem conscientes. Quando
essa repressão não funciona bem, poderiam ocorrer ataques
histéricos, obsessões, fobias, pânico e surtos psicóticos. A
função da psicanálise seria rastrear a origem dos sintomas
neuróticos e retrabalhar tais associações mentais de modo a
aniquilar o seu poder. Agora, neurocientistas comprovaram a
existência de processos mentais inconscientes por meio de
exames do cérebro em laboratório.

MEMÓRIA VISCERAL: Os neurocientistas comprovaram que as


estruturas cerebrais essenciais para a formação de memória
consciente não são funcionais durante os primeiros dois anos de
vida. Isso explica o que Freud chamava de amnésia infantil ou
recalque primário. Esta memória ficou retida no corpo e, por ser
anterior à formação completa do cérebro, não é articulada
mentalmente.

RELAÇÃO MÃE-BEBÊ: A neurociência comprovou em


laboratórios que as experiências dos primeiros meses de vida
entre mãe e bebê influenciam o padrão de conexões cerebrais
de modo a moldar a nossa personalidade e a saúde mental
futuras.
MEMÓRIA EMOCIONAL: Uma via neuronal sob o córtex
consciente conecta a percepção presente com estruturas
primitivas responsáveis pela geração de medo. Como essa via
neuronal atravessa o hipocampo, acontecimentos presentes
desencadeiam lembranças emocionalmente importantes,
provocando sensações que parecem irracionais.

HOMEM-ANIMAL: Freud chocou ao pensar o homem como um


animal de instintos primitivos, sexuais, infantis e às vezes
agressivos. Hoje a neurociência classifica o ser humano como
um animal que, como todos os mamíferos, tem quatro circuitos
cerebrais instintivos: o de recompensa e busca (do prazer),
regulado pelo neurotransmissor dopamina e envolvido com os
quadros de compulsão e vício; o circuito de raiva e de
agressões raivosas, não predatórias; de medo e ansiedade; e,
por fim, o de pânico, circuito cerebral que comanda os impulsos
maternais e as relações sociais.

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