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JORGE DE FIGUEIREDO DIAS Universidade de Coimbra. Sobre a autonomia dogmiatica do direito penal eco- némico. —Uma reflexdo a luz do novo direito penal econémico portugués—* (*) © texto que se segue reproduz —acrescido de notas mas, no resto, sem alteragdes— 0 que me serviu de guiéo na conferéncia que proferi na Faculdade de Direito da Universidade de Santiago de Com- postela em 21 de Novembro de 1984, a convite do Prof. Doutor Agus tin Fernandez Albor, ao qual, por isso, renovo aqui o meu reconhe- cimento. A bibliografia respeitante ao tema tratado é j4 hoje praticamente inabarcdvel, pelo que nio poderia ser aqui recenseada, As notas lt mitam-se assim ao indispensivel; se me permito remeter, por vezes, para obras minhas, é sé porque os temas ¢ os argumentos apenas aflo- rados no texto se encontram expostos nelas com maior desenvolvi- mento, I Confesso que a oportunidade de falar hoje. perante vos constitui para mim motivo de grande honra e de especial regozijo. Nao necessito de encarecer o carac- ter exemplar dos lagos cient{ficos e universitarios que ligam as Faculdades de Direito. de Santiago e de Coimbra: eles documentam-se numa _ bibliografia vasta e valiosa; e constituem resposta viva aos que clamam —com razio— que a decantada irmandade hispano-lusa se nao hd-de predicar em retéricas ind- teis, mas em obras que sirvam o conhecimento e o progresso mituos. Comego antes com uma nota pessoal. H4 pouco mais de quatro anos vivi aqui mesmo, em Santiago, momentos que constitufram para mim, como no di- zer do poeta, ‘‘uma alegria para sempre”. Foi o caso de o vosso ilustre professor e meu querido amigo Fernandez Albor me ter distinguido com o convite para participar nas Jornadas de Santiago dos catedra- ticos espanhois de direito penal. Convivi nesses dias com alguns dos mais nobres espfritos universitérios que até hoje me foi dado encontrar; e acedi a um conhecimento mais perfeito, na sua vastidféo e nas suas potencialidades inesgotaveis, da ciéncia do direi- to penal espanhola. Contraf nessa altura para com es- ta Espanha dos meus avés, para com a Faculdade de 39 Direito da Universidade de Santiago e, em especial, para com Ferndndez Albor, uma divida de gratidéo que jamais poderei pagar. Depois disso, alids, a divida nao parou de crescer. Ainda ha alguns meses Fernandez Albor proferiu na Faculdade de Direito da Universidade Catélica do Porto uma importante conferéncia sobre problemas da reforma do direito penal espanhol, que deixou em quantos a ouviram uma impressdo profunda. Ser- vindo a minha vinda hoje aqui, em boa verdade, mais para aumentar a d{ivida do que para a minorar, acei- tareis em todo o caso que eu me apresente perante vés como romeiro de longa romagem que —um pouco a maneira dos que outrora, de longes terras, deman- davam o tamulo do Apéstolo— se apresta a de- monstar, o melhor que lhe for possfvel, o seu agra- decimento e a sua comunhio de espfrito. Comunhao de espfrito que eu gostaria se tornasse visfvel logo no tema que escolhi para objecto da minha exposigao: a autonomia dogmatica do direito penal econémico, Fernandez Albor escreveu, ha alguns anos, um excelente livro sobre a criminalidade econémica (1); eu mesmo venho desde hd tempos a ocupar-me do tema; ao que acresce que o direito pe- nal portugués revela nesta matéria, desde ha algumas décadas, certos tracos originais, que me parecem abrir pistas de reflexao dignas de serem consideradas, mes- mo fora do 4mbito estrito de relevancia da ordem juridica portuguesa. O meu propoésito é todavia bem menos ambicioso do que um tratamento da proble- mética da criminalidade econ6mica. Deixarei fora de consideragéo expressa, e antes apenas simplesmente pressuposta, toda a questao importantissima do perfil (1) Feméndez Albor, Estudios sobre criminalidad econémica, Bar- celona, Bosch, 1978. 40 criminolégico da criminalidade econémica, para me ocupar apenas dos reflexos desta no plano da dogmd- tica jurtdico-penal. O esclarecimento e a penetracéo do direito penal econémico neste plano —uma tarefa ainda mal esbocada, mesmo nas doutrinas jurfdico- -penais mais evolu{das (2)— sao decerto condiciona- dos pela realidade criminolégica subjacente, bem co- mo pelos propésitos da polftica social, em particular da polftica criminal; mas so, por sua vez, condi¢éo indispensdvel de qualquer tentativa de reforma legis- lativa neste campo. Sendo assim, e estando hoje a Espanha em pleno processo de reforma global do seu ordenamento jurfdico-penal, tanto basta, creio, para justificar 0 relevo actual do tema que elegi. Acrescen- tarei apenas que, apresentando-se o meu tratamento de indole tanto quanto possfvel geral, muitos dos ar- gumentos que avangarei sao pensados 4 luz da evo- lucao e do sentido da ordem juridico-penal econémi- ca portuguesa. Quais deles e o que deles possa ter in- teresse para o movimento de reforma global do direi- to penal espanhol é, por isso, coisa que s6 aos meus ouvintes caberé determinar. (2) Sem com isto esquecer a existéncia de contributos valiosissi- mos, como € o caso ~para além da literatura consagrada, ao longo do filtimo século, ao tema das relagdes entre direito penal de justiga e direito penal administrativo— das investigacdes de K. Tiedemann, Tatbestandsfunktionen im Nebenstrafrecht, Tiibingen, Mohr, 1969, de H. Mattes, Untersuchungen zur Lehre von der Ordnungswidrigkeiten, 2 vols., Berlin, Duncker & Humblot, 1977 e 1982, de E. Correia, “In- trodugdo ao Direito Penal Econémico”, Revista de Direito e Economia 3, 1977, de M. DelmasMarty, Droit pénal des affaires, Paris, PUF, 1973 e de C.A. Paliero, “Il ‘diritto penale-amministrativo’: profili comparatistici”, Rivista trimestrale di diritto publico, 1980. 41 I Seja qual for o sentido da evolugdo no futuro, a Historia reconhecer4 por certo como uma das carac- terfsticas mais marcantes do direito penal dos Ulti- mos vinte anos o movimento em favor da autonomi- zagao do direito penal econémico. Estamos, em Por- tugal, particularmente bem situados para compreen- der e acompanhar este movimento. Por varias razdes. Porque, por um lado, Portugal foi um dos primeiros pafses no mundo nio socialista a possuir uma lei especial sobre os delitos contra a economia —o De- creto-Lei n° 41.204, de 24-7-1957 (3)—. Porque, por outro lado, a Constituigéo portuguesa de 1976 assegurou um figurino constitucional assente no respeito pelos direitos fundamentais das pessoas, mas que confere particular énfase aos direitos eco- ndmicos, sociais e culturais do cidadaéo e 4 organi- zagéo econdmica (4). Porque, em terceiro lugar, 0 @) Este diploma legal despertou alguma atengao mesmo doutri- na estrangeira; cf. por exemplo K. Tiedemann, “Internationale und vergleichende Aspekte der Wirtschaftskriminalitat”, in Aktuelle Bei- trage zur Wirtschaftskriminalitat, Band 4, 1974, p. 122; Idem, Wir Schaftsstrafrecht und Wirtschaftskriminalitit 2, BT, Reinbeck, Ro- wohlt, 1976, p. 218 s.; D. Schaffmeister, “Das niederlindische Wirt- schaftsstrafgesetz”, Zeits. f.d.g. Strafrechtswissenschaft 85, 1973, p. 787. Na literatura portuguesa, além do notavel Parecer n° 46/IV da Camara Corporativa sobre 0 projecto donde resultou o Decreto- Lei n° 41.204 (relator, Vaz Pinto), in Pareceres da Cimara Corpo- rativa, 1957, 1, p. 116, cf. Arala Chaves, Delitos contra a Saitde Pii- blica e a Economia Nacional, Coimbra, Coimbra Editora, 1961 ¢, por ltimo, Figueiredo Dias / Costa Andrade, “Problemitica Geral das Infracgdes Contra a Economia Nacional”, Boletim do Ministério da Justiga 262, 1977, p. 40 s. (4) E no entanto —seré interessante noté-lo—, a Constituigéo portu- guesa recusa-se a falar expressamente em “Estado de Direito social”, para usar antes a expressao “Estado de Direito democratico”. Segun- do J. Miranda, A Constituigao de 1976 —Fungao, Estrutura, Princf- pios Fundamentais-, Lisboa, Petrony, 1978, p. 500, tal terd ficado a 42 novo Cédigo Penal portugués de 1982 se manteve fiel 4 ideia, com tradic¢o segura em Portugal, de que um cédigo penal deve conter apenas o direito penal central, classico, de justiga ou criminal, enquanto o direito penal de caracter administrativo, mesmo o de cunho econémico-social, deve constar de legisla- cdo nao-codificada; sem prejuizo de dever existir uma lei-quadro que discipline a variedade e diversi- dade deste direito penal econ6mico-social (5). Por- que, em quarto lugar e consequentemente, se nado perdeu a correcta percepcdo: de que uma reforma glo- bal do ordenamento jurfdico-penal, como aquela que neste momento se encontra em vias de concluséo em Portugal, se nado basta com a reforma do cédigo penal, do cédigo de processo penal, da lei de execu- gao das penas e da lei das infracgdes regulamentares ou de mera ordenacgdo (6), mas ficaria irremediavel- mente incompleta se nao se estendesse também 4 dever-se 4 “degradagdo” que o termo Estado social terd sofrido, em Portugal, entre 1970 e 1974. Sobre o papel —relevantissimo— con- cedido pela Constituigéo portuguesa aos direitos sociais fundamen- tais cf., por outros, Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituiggo Portuguesa de 1976, Coimbra, Almedina, 1983, pp. 97 ss. € 198 ss.; Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 3* ed., Coim- bra, Almedina, 1983, pp. 97 ss. e 512 ss.; Gomes Canotilho / Vital Moreira, I, 2* ed., Coimbra, Coimbra Editora, 1984, pp. 121s. ¢ 318 ss.; J. Miranda, cit., pp. 303 ss. (5) Neste sentido E. Correia, “‘As Grandes Linhas da Reforma Pe- nal”, in Jornadas de Direito Criminal: 0 Novo Codigo Penal Portu gués e Legislagao Complementar, 1, 1983, p. 36 s.; e 0 meu “Sobre © Papel do Direito Penal na Proteccdo do Ambiente”, Revista de Di- reito e Economia 4, 1978, pp. 10 ss. (6) Sao os seguintes os novos diplomas: Cédigo Penal: Decreto- Lei n° 400/82, de 23 de Setembro; Lei de Execugao das Penas: De- creto-Lei n° 265/79, de 1 de Agosto; Lei do Direito de Mera Orde- nagiio: Decreto-Lei n° 232/79, de 24 de Julho, alterado pelo Decre- to-Lei n° 433/82, de 27 de Outubro. Quando ao Cédigo de Proceso Penal, presido neste momento a uma Comissao cuja missio é apresen- tar, em breve tempo, um projecto de novo diploma, 43 elaboragéo de uma nova lei-quadro dos delitos con- tra a economia; e isto mesmo sucedeu recentemente em Portugal, onde o referido Decreto-Lei n° 41.204 foi revogado e substitufdo pelo Decreto-Lei n° 28/ 84, de 21 de Janeiro (7). Temos pois que, em Portugal, existem, em matéria sancionatéria, trés regides bem diferenciadas, ao me- nos do ponto de vista formal: a do direito penal cen- tral, cléssico ou de justiga, que no essencial corres- ponde a matéria contida no Cédigo Penal; a do di- reito das infracgdes regulamentares, ou de mera or- denagéo —correspondentes, grosso modo, as anti- gas ‘“‘contravengées” e, mais exactamente, 4s Ordn- ungswidrigkeiten do direito aleméo, em portugués chamadas “contra-ordenagdes”— que se encontra regida por uma lei-quadro de cardcter nao penal; e a do direito penal econdmico-social, verdadeira face actual do antigamente chamado direito penal administrativo, subordinada aos principios gerais do cédigo penal e aos princfpios especiais contidos numa lei-quadro de caracter penal. Parece assim justificada a minha afirmacdo de ha pouco, de que: estamos em Portugal bem colocados para compreender e aceitar a causa da autonomiza- ¢4o do direito penal econémico. E no entanto, em geral, essa causa —com a transformagdo repetida da face s6cio-econdmica do nosso mundo, com o rapido envelhecimento de muitos princfpios que pa- reciam s6lidos e o rejuvenescimento de tantos outros que pareciam frageis— nao pode ainda dizer-se ganha, a cada momento parecendo que o direito penal eco- némico vai perder o seu rosto proprio, para comple- (1) Sobre este diploma surgiré, em breve, uma colectanea, editada pelo Centro de Estudos Judicirios, contendo um conjunto de confe- réncias proferidas em Coimbra por ocasiao da publicacao daquele. 44 tamente se confundir, numa parte com o direito penal geral, noutra parte com o direito de mera ordenagio, Ora, se vejo exactamente a situacdo das coisas, a pretendida autonomizagao, para que possa ser aceite em definitivo, havera de impdOr-se a trés n{veis dife- rentes: 1°, ao nfvel da especificidade do ilicito, e da consequente possibilidade da sua delimitagdo, face, por uma parte, ao ilfcito penal geral, e face, por outra parte, ao ilfcito de mera ordenaco; 2°, ao nfvel da especificidade das sangdes, dos seus fundamentos, do seu sentido e dos seus limites; 3°, ao nfvel da concreta aplicagao ou determinagGo das sangGes, da sua escolha e da sua medida. Proponho-me considerar perante v6s, sucessiva- mente, cada um destes trés niveis (se bem que com o laconismo e o cardcter quase apodictico que me é imposto pela necessidade de nao exceder sensivel- mente o tempo que me sinto no direito de vos to- mar). Sem todavia perder consciéncia de que é segu- ramente no tratamento do primeiro deles que se ganharé ou perderé em definitivo a causa da autono- mia. Il A minha primeira pergunta deve, pois, ser a seguin- te: existe algum trago caracterfstico no ilfcito penal econémico que sirva para claramente o distinguir, de um lado do ilfcito penal geral e, de outro lado, do ilf- cito de mera ordenagao? Creio poder avangar uma resposta afirmativa, que em seguida tentarei justi- ficar. 1, Parto, para a minha demonstragéo, de uma constatagéo puramente formal e que dificilmente 45 pode ser posta em. divida. O que por toda a parte chamamos direito penal econémico (ou econdmico- -social) 6 um conjunto de normas de natureza puni- tiva que vivem, em regra, em legislacdo situada fora dos cédigos penais. Trata-se, neste facto, de circuns- téncia s6 aparentemente insignificativa, mas que na realidade constitui sintoma material e historicamen- te fundado do modo-de-ser proprio do direito penal econémico-social. Este conforma, por exceléncia, um campo de normas condicionadas, em alto grau, por exigéncias bem definidas no tempo e no espaco; normas que, visando sancionar a violagéo da ordem juridico-administrativa estadual, reenviam em regra para esta no que toca a determinagéo —eminente- mente mutavel— do seu contetdo (por isso consti- tuindo, com invulgar frequéncia, ‘‘normas penais em branco’”). Num certo sentido o direito penal econémico-social é, assim, direito penal administra- tivo: no sentido de que ele sanciona, com penas, or- denagdes da Administragdo e se apresenta portanto, na expresso de Klaus Tiedemann, como direito ad- ministrativo, se néo segundo a competéncia, segura- mente segundo a matéria (8). Mas se assim é, a tarefa que agora me proponho pa- rece facilitada. Se pudermos determinar como esta- mos hoje perante o problema do direito penal admi- nistrativo, parece que do mesmo passo ganharemos clareza sobre a esséncia e o Ambito do direito penal econdmico-social. Vejamos se esta hipdtese se confir- ma e aonde pode ela conduzir. 2. A doutrina largamente dominante em pafses que, como a Alemanha e a Italia, ao problema tém dedicado cuidada atengao, considera que aquilo que (8) K. Tiedemann (como nota 2), p. 6. 46 até ao fim da II Guerra Mundial se chamava direito penal administrativo é no essencial aquilo que hoje se chama Ordnungswidrigkeitenrecht, ou direito de mera ordenagdo. Até ao ponto de Heinz Mattes, na monumental investigagéo que ao tema dedicou —e cujo 1° volume foi traduzido para espanhol com o t{tulo significativo de “Problemas de derecho penal administrativo”—, falar a este propdsito de uma “Renaissance des Verwaltungstrafrechts” (9). A ser assim, terfamos afinal que o chamado direito penal econémico-social nado seria, na’ sua esséncia, outra coisa senao um direito de mera ordenagao, de carac- ter nao penal, nemo ilfcito respectivo possuiria qualquer autonomia. Nao consigo, porém, convencer-me do bom fun- damento de uma tal tese (10). E sabido, na verdade, como a intengdo que presidiu a criagdo do direito de mera ordenacgdo foi —sobretudo por parte do “pai” deste direito, Eberhard Schmidt— a de satisfazer a exigéncia polftico-criminal, ou mesmo polf{tico- -social, de subtrair ao dominio do direito penal um grande ntimero de ilfcitos de duvidosa ou nula rele- (9) H. Mattes (como nota 2), I, p. 174. No mesmo sentido, na dou- trina alema, por outros, H.-H. Jescheck, Lehrbuch des Strafrechts, AT, 34 ed. Berlin, Duncker & Humblet, 1978, p. 44 ¢ G. Jakobs, Strafrecht AT, Berlin, Duncker & Humblot, 1983, p. 41 s. Na dou- trina italiana, Dolcini/Paliero, “L’illecito amministrativo...”, mesma Riy., p. 1154, Na doutrina espanhola, em sentido fundamentalmente id@ntico, se bem que no plano do direito constituendo, J. Cerezo Mir, “Limites entre el derecho penal y el derecho administrativo”, ADPCP 1975, p. 169 s.; Idem, Curso de derecho penal espaftol, Parte general I, 24 ed, Madrid, Tectnos, 1981, pp. 45 ss.;M. Bajo Fernandez, Derecho penal econémico, Madrid, Civitas, 1978, pp. 96 ss. (10) O que se segue é um resumo apertado do que tive ocasiao de escrever no-meu artigo “Vom Verwaltungsstrafrecht zum Nebenstra- frecht”, Festschrift fir Jescheck I, Berlin, Duncker & Humblot, 1985, pp. 79 ss. 47 vancia ética (11). Posteriormente, porém, foi-se a pouco e pouco perdendo a consciéncia da distingao qualitativa, que nos referidos termos de inicio se estabelecera, entre ilfcito penal e ilfcito de mera or- denagao, para se lhe substituir uma distingdo pura- mente quantitativa, que faz do direito de mera or- denagéo um simples direito de “‘bagatelas penais”; e isto sobretudo com base em que, seja em que do- minio do direito for, néo é pensdvel a existéncia de um ilfcito éticamente indiferente (12). Subscrevo, sem reserva, esta afirmagdo (13). Mas continuo, apesar disso, a defender a viabilidade, e mesmo necessidade, de uma distingéo qualitativa (ou, como eu prefiro chamar-lhe, “material’’) entre direito penal e direito de mera ordenagao. Distingao que radico na constatagao de que ha condutas a que, antes e independentemente da sua valoragéo como ilicitos, corresponde, e ha outras condutas a que nao corresponde, um mais amplo desvalor moral, (11) Eb. Schmidt, Das neue westdeutsche Wirtschaftsstrafrecht, Tiibingen, Mohr, 1950. No mesmo sentido, na doutrina portuguesa, E. Correia, Direito Criminal, I, Coimbra, Almedina, 1963, pp. 27 ss. € 217; Idem, Cédigo Penal. Projecto da Parte Geral, Lisboa, Ministério da Justiga, 1963, pp. 68 ss. (12) Em sintese e por outros H.-H. Jescheck, “Das deutsche Wirt- schaftsstrafrecht”, Juristenzeitung 1959, p. 461. (13) Tenho, com efeito, para mim que: por um lado, todo o direito “obra” ou realizacao do ser-livre do homem e participa, por isso, do corpo do dever-ser ético-social; por outro lado, todo 0 direito possui natureza eminentemente histérica; por outro lado ainda, a consciéncia jurfdica comunitéria, como expresso de um valor aut6nomo e trans- cendente, constitui o fundamento de toda a possibilidade de realizagao do direito. Deste ponto de vista, em verdade, nao fica qualquer espago para a existéncia de um “‘ilfcito eticamente indiferente”. Cf. sobre estas, Perspectivas, mais de espago, os meus trabalhos O Problema da Cons- ciéncia da Micitude em Direito Penal, 2* ed., Coimbra, Coimbra Edito- 1a, 1978, pp. 19 ss., 287 ss. e 339 ss. e Liberdade, Culpa, Direito Penal, 2 ed., Coimbra, Coimbra Editora, 1983, pp. 156 ss. 48 cultural ou social. A conduta em si mesma, indepen- dentemente da sua proibigaéo legal, é no primeiro caso axiologicamente relevante e pertence, por isso, ao dominio do direito penal; no segundo caso é axiologicamente neutra e pertence, por isso, ao do- minio do direito de mera ordenagao. E este o prin- cfpio normativo de distingéo entre os dois ilfcitos (14), que de resto releva para diversos efeitos e, no- meadamente, para efeitos de fiscalizagéo constitu- cional. Pois sendo diferentes os princfpios constitu- cionais, materiais e organicos, a que se submete a le- gislagéo penal e a legislagdéo de mera ordenacdo, o legislador ordindrio poderia, através da qualificacio de todo injustificada de uma certa conduta como crime ou antes como contra-ordenagéo, subtrair-se A incidéncia dos preceitos jurfdico-constitucionais que ao caso devessem caber. E a jurisprudéncia da Comisséo Constitucional portuguesa mostra como € possfvel e necessério, em certos casos, sindicar decisbes tomadas a este propdsito pelo legislador ordindrio (15). Mas se é a que aponto a distinc¢do material entre ilfcito penal e ilfcito de mera ordenagao —o primei- ro referido a condutas axiologicamente relevantes, o segundo a condutas axiologicamente neutras—, entdo logo se vera que o direito penal administrati- vo dos nossos dias, e com ele 0 direito penal econé- mico-social, néo pode ser reconduzido ao direito de (14) Critério que defendi em 1969, na 14 edicao do meu O Proble- ma da Consciéncia da Micitude (como nota 13), pp. 397 ss., ¢ a0 qual julgo ainda hoje dever manter-me fiel. (15) Fundamentais, a propésito, os Acérdaos da Comissao Consti- tucional n° 159, Boletim do Ministério da Justica 292, p. 247, e n° 164, Suplemento ao Ditrio da Reptiblica de 31-12,1979, p. 78. No son- tido do texto 0 meu “O Movimento da Descriminalizagao e 0 Iifcito de Mera Ordenagao Social”, in Jornadas... (como nota 5), p. 328 s. 49 mera ordenacgéo. Com efeito, as tarefas da Dase- insvorsorge nao foram assumidas pelo Estado contem- poraéneo sem a correspondente “eticizagéo” de uma boa parte das providéncias destinadas a melhorar a condic¢do sécio-econémica dos homens. E af estdo a atestélo —nota-o exactamente Eduardo Correia— as normas de caracter sancionatério em 4mbitos como os da garantia do trabalho, da satide publica, da economia popular, da educagao, da cultura. Tra- ta-se aqui, indiscutivelmente, de ilfcitos referidos a condutas as quais pertence a mais terminante rele- vancia axiologica (16). 3. O balango intermédio a retirar do que deixei dito cifra-se, pois, numa dupla concluséo: 14.— Di- reito penal administrativo e direito de mera ordena- ¢4o sdo realidades materialmente diferentes: 0 direi- to de mera ordenagio é apenas um “limite negativo”” de todo o direito penal, nele inclufdo o direito penal administrativo. 24.— Sendo o direito penal econdmi- co-social, no sentido que atrds apontei, direito penal administrativo, entao ele nado é materialmente direito de mera ordenacao, ele é, sim, verdadeiro direito penal. S6 que —é a pergunta que logo se suscita—, nao se terd deste modo perdido a possibilidade de configu- rar um espectfico problema do direito penal econé- mico, capaz de conferir autonomia ao respectivo ilf- cito? Ser4 ainda possfvel contrapor este ilfcito ao ilf- cito penal geral, como um Ambito especial dentro do ambito do direito penal? Uma coisa me parece segura: tentativas de traduzir imediatamente, no plano dogmatico, diferengas deri- (16) E. Correia, “Direito Penal e Direito de Mera Ordenagao Social”, Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra 49, 1973, p. 266. 50 vadas da especificidade do perfil criminolégico da cri- minalidade econdmica estéo votadas ao insucesso, nomeadamente no que toca ao diferente estatuto sOcio-econdmico dos respectivos agentes, que faria do direito penal econémico o equivalente da “white- -collar criminality”. Pois a verdade é que a generali- dade dos tipos-de-ilfcito penais econémicos pode também ser preenchida por “‘blue-collars”. Se a con- traposigéo for possfvel, ela hé-de derivar —s6 pode derivar— de diferengas no conteido dos ilfcitos e na natureza dos bens jurfdicos protegidos (17). A verdade porém é que décadas de especulacdo doutrinal acerca do ilfcito penal administrativo ndo conseguiram estabelecer a contraposigao, neste pla- no, entre aquele ilfcito ¢ o ilfcito penal (18). Talvez porque toda aquela especulagao tinha na base um pre- conceito individualista, que impedia a valoragdéo da personalidade comunitéria do homem como funda- (17) Desejaria deixar bem claro que, com as afirmagoes contidas no texto, nao pretendo minimizar em nada o relevo que, para uma correo. ta definigdo do perfil criminologico da criminalidade econémica, cabe ao conceito da criminalidade de colarinho branco: cf. Fernindez Albor (como nota 1), pp. 9 ss. S6 que nao é este o problema de que trato no texto, antes o da expressio domético-juridica do direito penal econémi- co. Talvez tenha interesse lembrar que com 0 conceito de white-collar crime se nao visava —ao menos na interpretagao original de E.H. Su- therland, na sua comunicagao 4 American Sociological Society, em 1939— a introdugio de um novo tipo de crime, mas a extensao de ti- pos de crimes j4 existentes a categorias de pessoas que até ai nao eram —ou sé raramente eram— consideradas delinquentes. Permito-me outrossim recordar que também 0 Conselho da Europa, no Anexo & sua Recomendagao n° R (81)12 sobre a criminalidade econdmica, reconhece que a qualidade do agente no serve, s6 por si, para uma definigdo formal daquela criminalidade, cf. La criminalité des affaires, Strasbourg, Conseil de Europe, 1981, p. 11. (18) Isto é revelado, a saciedade, pela investigagao histérica e com- paratista de H. Mattes (como nota 2), I, passim ¢ Il, pp. 93 ss. Cir. ‘também o meu trabalho para o Festschrift flar Jescheck. 51 mento jurfdico autonomo de validade; e que, por isso mesmo, nao podia subsistir apds o advento do Estado de Direito material, de raiz social, onde o ser-homem para o direito é sempre ser-com, ser-socializado, ser- -em-comunidade. Mas se, por esta raz4o, na distingao entre ilfcito penal e ilfcito penal administrativo nao pode mais tratar-se da oposigéo entre individuo e comunidade, entre ordem jurfdica e administracao, entre justiga e bem-estar, entre bem jurfdico e bem administrativo —se néo mais pode tratar-se disto, de que se trata entéo? Creio entrever uma safda para o impasse; e a doutrina portuguesa esta hoje em boa posigdo para a divisar. Baseado na Constituicdo por- tuguesa vigente sustento, em suma, que deve afirmar- -se a especifica juridicidade do direito penal adminis- trativo e a especificidade dos bens juridicos que este protege; e que daf deve concluir-se, logo ao nivel dos ilfcitos respectivos, pela (relativa) autonomia do direi- to penal econémico-social no corpo, fundamental- mente unitdrio, do direito penal. 4. Uma tal autonomia relativa s6 é pensdvel, em meu entender, no quadro de um Estado de Direito material, de cariz social e democratico (19). S6 nele, com efeito, se compreende bem a existéncia de duas zonas relativamente aut6nomas na actividade do Es- tado: uma que visa proteger a esfera de actuacdéo (19) De que sao exemplos os Estados portugués e espanhol, segun- do 0 modelo aceite pelas respectivas Constituigoes vigentes. Cfr., para Portugal, Gomes Canotilho (como hota 4), pp. 281 ss.; J. Miranda (como nota 4), pp. 155 ss.; Idem, Manual de Direito Constitucional, I, 28 ed., Coimbra, Coimbra Editora, 1982, pp. 284 ss.; e o meu Di- reito Penal e Estado de Direito Material, Revista de Direito Penal (Rio de Janeiro) 31, 1982, pp. 38 ss. Para Espanha ver, por outros, M. Bajo Ferndndez, ‘La Constitucién econémica espafiola y el derecho penal”, in Repercusione de la Constitucién en el derecho penal, Bilbao, Univ. de Deusto, 1983, pp. 153 ss. 52 especificamente pessoal (embora nao “‘individual’”’) do homem e que é conformada em primeira linha através dos direitos fundamentais da pessoa; outra que visa proteger a sua esfera de actuagao comunitd- ria ¢ é conformada sobretudo através dos seus direi- tos e deveres fundamentais de caracter econémico, social e cultural (numa palavra, através dos seus di- reitos sociais fundamentais). De que maneira, porém, se traduz esta especffica juridicidade do Estado de Direito material em termos jurfdico-penais? Dela resulta, desde logo, que funcéo de todo o direito penal s6 pode ser a protecgdo de bens jurfdi- cos, considerados como interesses socialmente rele- vantes cuja defesa e promogao € condigdo indispen- savel do livre desenvolvimento da personalidade de cada homem (20). Ora também no direito penal admi- nistrativo —como no direito penal de justiga— se tra- ta do livre desenvolvimento da personalidade do ho- mem no espago social e se tem que ver, portanto, com auténticos bens jurfdicos. S6 que, no ambito do direito penal administrativo, a actuagao da perso- nalidade do homem verifica-se como fendmeno so- cial, em comunidade e em dependéncia recfproca desta. Expresso desta relacéo sao, a nfvel jurfdico- (20) Ponto sobre © qual, por me parecer de particular relevancia para a compreensio de todo o moderno direito penal, venho desde ha muito insistindo —sobretudo desde a minha conferéncia de Madrid, La reforma del derecho penal portugués— Principios y orientaciones fundamentales, Madrid, Real Academia de Jur. y Leg., 1971, pp. 23 © 46 ss.; cf. depois 0 meu “Os Novos Rumos da Politica Criminal e © Direito Penal Portugués do Futuro”, Rev. da Ordem dos Advoga- dos 43, 1983, pp. 13 ss. Fundamentalmente na mesma linha, agora, Costa Andrade, “O Consentimento do Ofendido no Novo Cédigo Pe- nal”, in Para Uma Nova Justiga Penal, Coimbra, Almedina, 1983,p. 117; Idem, “A Nova Lei dos Crimes Contra a Economia & Luz do Conceito de Bem Jurfdico” (a publicar na colectanea citada na nota 7 € cujo original foi gentilmente posto pelo autor A minha disposi¢a0). 53 -constitucional, as partes da Constituicgéo em que se consignam os direitos sociais fundamentais e a orga- nizagao econémica; enquanto a parte da Constitui- go que trata os direitos, liberdades e garantias, isto é, os direitos pessoais fundamentais, respeita a uma forma de actuagéo do homem em que a dependéncia recfproca com a comunidade ou se nao verifica, ou nao €, pelo menos, necessaria. A isto acresce uma minha convicgdo ja antiga, mas que agora tenho o gosto de ver expressamente acolhi- da pelo artigo 18, n° 2, da Constituigéo portuguesa, apés a sua reforma de 1982: a de que a ordem jurfdi- co-penal dos bens jurfdicos tem de constituir, nos quadros do Estado de Direito material, uma ordem de valores como a que preside 4 Constituigao; de tal modo que entre aquelas duas ordens tem de dar-se (como na Alemanha foi notado por Walter Sax) uma relagdo de mitua referéncia (21). Relagdo que nao é de “‘identidade” ou sequer de “‘recfproca cobertura’”’, mas de analogia material, fundada numa essencial correspondéncia de sentido, que deriva de a ordem constitucional constituir o quadro de referéncia e, ao mesmo tempo, o critério regulador da actividade pu- nitiva do Estado. E nesta acepgao que me permito concluir esta pri- meira e decisiva parte da minha exposigéo: os bens jurfdicos protegidos pelo direito penal geral devem considerar-se concretizacdes dos valores constitucio- nais ligados aos direitos pessogis fundamentais, en- quanto os bens juridicos protegidos pelo direito pe- nal administrativo, e portanto pelo direito penal eco- némico-social, se devem considerar concretizacdes (21) W. Sax, Grundsdtze der Strafrechispflege, in Bettermann/ Nipperdey/Scheuner, Die Grundrechte II-2, Berlin, Duncker & Humblot, 1959, p. 911. 54 dos valores constitucionais ligados aos direitos so- ciais e 4 organizagao econémica, O que, de resto, cor- responde ao reconhecimento da dupla forma de rea- lizagéo do homem na comunidade, determinante por sua vez de uma forma diferente de actividade do Es- tado: por um lado a via da sua realizagéo pessoal —“‘como este homem”—, que acarreta para o Estado a obrigacgéo de proteger directamente a esfera de ac- tuacio propria da pessoa, autolimitando-se perante ela; por outro lado a via da sua realizagao social —“como membro da comunidade”’—, que vincula 0 Estado 4 tarefa positiva de promover a satisfagdo dos interesses decorrentes dos principios e objectivos de conformagdo comunitéria. A proteccdo da primei- ta actividade se dirige o direito penal geral; 4 pro- teccdo da segunda se dirige o direito penal administra- tivo e, portanto, também o direito penal econdmico- -social. IV Demonstrada, assim, a relativa autonomia do direi- to penal econémico face ao direito penal comum ao nivel dos ilfcitos respectivos —o nivel de todos mais essencial—, importa agora indagar se essa autonomia relativa é confirmada e continuada ao nivel das pro- prias sangoes (22). (22) As consideragdes seguintes encontram-se mais desenvolvidas na minha intervencao preparada para as Jornadas Internacionais da Fondation Internationale Pénale et Pénitentiaire que tiveram lugar em Kristiansand (Noruega), em Setembro de 1983, sob o titulo “Quel- ques considérations sur le fondement, le sens et l'application des peines en droit pénal économique”. Cfr. as respectivas Actas, subordinadas & epigrafe Les sanctions en matiére de délinquance économique, 1984, pp. 33 ss. 55 1. Em termos de direito penal geral, talvez que eu possa esperar da maioria dos meus ouvintes que acei- tem a seguinte proposigéo: num Estado de Direito de cariz social e democratico, a compreensao dos fun- damentos, do sentido e dos limites das penas deve partir de uma concepgao de prevengio geral positiva ou de integragdo, ligada institucionalmente a uma pena da culpabilidade, a ser executada com um sen- tido predominante de (re)socializagao do delinquen- te (23). Nao se trata aqui no entanto, desejaria acen- tud-lo, da reedicio de uma qualquer teoria eclética em matéria de fins da pena, mas do produto de trés conviccées fundamentais: 14. A de que, como ja atrds disse, nuth Estado de Direito democratico, fun- cdo do direito penal sé pode ser a proteccdo de bens juridicos; pelo que também finalidade primdria e irrenunciével da pena sO pode ser a conservagdo ou 0 reforco da norma violada pelo crime, como modelo de orientagéo do comportamento das pessoas na in- teracgaéo social. S6 dentro destes pardmetros, pois, pode actuar a ideia tradicional da prevengéo geral negativa ou de pura intimidagdo. 24. A de que, pe- rante a exigéncia, primordial num Estado de Direito democratico, de respeito pela dignidade do homem, a aplicagéo de uma pena, mesmo comandada por uma preveng4o geral positiva ou de integragdo, supde sempre e sem alternativa um elemento de censura &ético-pessoal do facto ao seu agente, e por isso de culpabilidade. 34. A de que, perante a exigéncia, pri- mordial num Estado de Direito social, de ajuda aos membros da comunidade que se encontrem em parti- cular estado de necessidade, néo ha alternativa para uma exécugdo da pena dominada pelo propésito de oferecer ou de proporcionar ao delinquente o maxi- (23) Desenvolvidamente sobre esta proposigao o meu “Os Novos Rumos...” (como nota 20), pp. 24 ss. 56 mo de condigdes favordveis ao prosseguimento de uma vida sem praticar crimes. Sendo estes os princfpios que, em meu jufzo, de- vem dar fundamento e sentido 4 pena no direito pe- nal geral, vejamos entéo se, em que medida e em que sentido sdo eles vdlidos também —ou antes devem ser modificados— no A4mbito do direito penal eco- némico. 2. No que respeita 4 prevengdo geral positiva ou de integragio, poderia pensar-se nao haver lugar para ela em direito penal econémico, mas sé para uma prevengdo geral negativa, de pura intimidagdo ou dissuasdo. E isto, dir-se-ia, porque a este direito néo poderia atribuir-se uma fungdo de protec¢do de ver- dadeiros bens jurfdicos, mas s6 —como j4 em seu tempo Goldschmidt notou (24)— de simples: bens imateriais e sem sujeito, destinados a servir de pro- tecgfo antecipada dos auténticos bens juridicos de- fendidos pelo direito penal geral. Todas as minhas consideragées anteriores visaram, porém, demonstrar o erro desta consideragéo, pelo que sobre ele nao devo insistir. O que com razdo pode dizer-se —isso sim— é que o direito penal econdmico tem que responder a exi- géncias acrescidas de intimidagfo e de dissuaséo. E isto por varias razGes (25): dada a menor “‘visibilida- (24) J. Goldschmidt, Das’ Verwaltun gsstrafrecht. Eine Untersuchung der Grenzgebiete zwischen Strafrecht und Verwaltungsrecht auf rechts- geschichtlicher und rechtsvergleichender Grundlage (reedigao da 1° ed., de 1902), Aalen, Scientia, 1969, pp. 532ss. ¢ 584s. (25) Uma discussio aprofundada de alguns destes argumentos pode ver-se em Ferndndez Albor (como nota 1), pp. 10 ss; A. Beristain, “Eficacia de las sanciones penales frente a la delincuencia econémica”, L'Indice Penale 16, 1982, pp. 375 ss.; Bajo Fernéndez (como nota 9), pp. 78 ss.; Braithwaite/Geis, “On Theory and Action for Corporate Crt me Control”, Crime & Delinquency 28, 1982, pp. 300 ss. 37 de’’ dos respectivos delitos (tanto no que respeita ao seu cometimento como aos seus efeitos), que conduz as altfssimas “cifras negras’” aqui existentes; dado, depois, o elevado status econédmico-social da maio- ria dos respectivos agentes que —e foi mérito das mo- dernas orientagdes criminolégicas, em especial do labeling approach, 0 té-lo posto em relevo (26)— Ihes concede um lugar privilegiado no processo de selecgao da delinquéncia, em particular face ao com- portamento acentuadamente re-activo das instancias de perseguigdo penal neste dominio; dada, enfim, a dificuldade conhecida de prova judicidria com que aqui se depara —em especial quando o autor do delito for uma pessoa colectiva— e que conduz a que seja excepcionalmente alta, neste ambito, a percentagem de absolvicées. Estas consideracdes conduzem 4 fundada conclusio de que o delinquente econdmico tem uma esperanga maior que a do delinquente comum de escapar 4 punicdo, ou de ser menos severamente punido. Esta concluséo nao justifica, porém, que devamos aban- donar aqui uma prevengao positiva ou de integracio, em favor de uma prevencdo negativa ou de pura inti- midagao. Para além de que esta depararia sempre com a objecgdo de principio de violar a dignidade do ho- mem, sacrificando inadmissivelmente a justiga a uma (pretensa) eficacia e utilidade, ela nao se adequaria sequer a especificidade do direito penal econdmico. Ela esqueceria, com efeito, que o potencial delin- quente econdmico —sendo em regra, relativamente ao delinquente comum, mais racional e calculado, e in- correndo em maiores riscos de degradagdo do status (26) Desenvolvidamente sobre este ponto Figueiredo Dias / Costa Andrade, Criminologia. O Homem Delinquente e a Sociedade Crimi- négena, Coimbra, Coimbra Editora, 1984, pp. 42 ss., 159 ss., 342 ss., 365 ss. 58 em caso de condenacio— pode, na generalidade dos casos, deixar-se mais facilmente motivar pela norma. A minha conclusio é, assim, a de que ponto de partida da fundamentagao da pena deve ser, também em direito penal econdmico, uma ideia de prevengao geral positiva ou de integragdo. S6 que, num campo como este —onde se encontram em causa orientagdes estaduais em matéria econémico-social, que exigem ser promovidas e reforgadas na consciéncia social—, o nivel necessdrio e legitimo de integragdo pode, por vezes, ser superior Aquele com que se basta o direito penal geral. Por isso —mas s6 por isso—-pode em tais dominios assinalar-se um mais lato papel, em termos que a frente procurarei precisar, 4 componente da intimidagdo e da dissuasao. 3. Também no que respeita 4 funcao retributiva, ligada 4 pena da culpabilidade, se podem suscitar —e se tém suscitado— reservas 4 sua subsisténcia em direito penal econdmico (27). Assim se afirma: que a neutralidade. axiologica das condutas proibidas im- pede que se possa falar de uma culpabilidade baseada numa censura ético-pessoal; que nao é possivel falar de culpabilidade nos casos, que neste campo devem ser aceites, de responsabilizagaéo penal de pessoas colectivas; que existem, de todo 0 modo, dificulda- des gravissimas, e muitas vezes inultrapassaveis, de comprovagdo judiciéria da culpabilidade neste do- minio. (27) Uma interessante discussao deste tpico encontra-se, por exem- plo, em Y. Suzuki, “The Role of Criminal Law in the Control of Social and Economic Offences”, UNASEI, Resource Material Series 15, 1978, pp. 198 s., e em M. Levi, “Business Regulatory Offences and the Cri- minal Law”, paper apresentado as Jornadas de Kristiansand referidas na nota 22. 59 Mas esta argumentacdo ndo me parece suficiente- mente fundada. Por um lado —ja o disse e repeti—, as infracgdes econémicas supdem uma referéncia a auténticos bens juridicos de natureza econdmico- -social; a censura da culpabilidade encontra-se neles, portanto, plenamente justificada. Por outro lado —e € este um tema que nao posso aqui seno aflorar—, eu creio possivel, através daquilo que chamarei um pensamento analdgico, considerar as pessoas colecti- vas como capazes de culpabilidade (28). Por fim, as maiores (e irrecusaveis) dificuldades de comprovagio judicial da culpabilidade neste dominio podem ser ultrapassadas por varios meios, dos quais destacarei dois: uma técnica legislativa adequada de formula- g4o das incriminagdes, que transforme os chamados delitos de perigo abstracto (que visam a proteccdo s6 mediata de bens juridicos individuais) em delitos de desobediéncia (que protegem ou promovem ime- diatamente bens juridicos sociais) (29); e o estabele- cimento, neste campo, do principio da responsabili- dade penal das pessoas colectivas como tais. (28) Se bem deva reconhecer nao ser essa a opiniao largamente dominante, tanto em Portugal como em Espanha. E certo que na culpabilidade juridico-penal se tem em vista um ser-livre como centro éti- co-social da imputacao juridico-penal e que esse é, seguramente, 0 do homem individual. Mas sugiro nao dever esquecer-se que as organiza- goes humano-sociais sao, tanto como o proprio homem individual, “obras de liberdade” ou “realizacoes do ser-livre”; pelo que me pare- ce aceitével que em certos dominios especiais e delimitados, como o do direito econémico-social —e de acordo com o que poderd chamar-se, seguindo Max Miller, “Freiheit”, in Stastslexikon, Il, 6 ed., Freiburg i, B., Herder, 1959, p. 533, 0 principio da identidade da liberdade—, 20 homem individual possam substituir-se, como centros ético-sociais de imputagao jurfdico-penal, as suas obras ou realizagdes colectivas e, assim, as pessoas colectivas, associagGes, agrupamentos ou corporagdes em que o ser-livre se exprime, (29) Sobre isto, com mais pormenor, o meu artigo citado supra (como nota 5). 60 Acima de tudo importa porém nao esquecer que razOes de outra natureza podem conduzir ao reforgo da exigéncia de retribuicgdéo da culpabilidade em direi- to penal econdmico. A este compete, na verdade, desencadear ou promover a transformago das repre- sentagdes colectivas, no sentido de actualizar a consciéncia comunitéria da especial ‘gravidade das praticas anti-econdmicas e de mobilizar um contri- buto activo na luta contra elas. Algo contraditoria- mente, porém, o delinquente econdmico pode, com’ maior frequéncia e em mais. larga medida que o de- linquente camum, subtrair-se ao efeito estigmatizan- te da pena, ou em todo o caso minoré-lo. Esta con- tradigéo conduz a que a culpabilidade nao deva ter aqui apenas o cardcter limitador que, em nome da garantia dos direitos do cidadao, por muitos —entre os quais merece justo destaque Claus Roxin— lhe é hoje atribuido no direito penal geral (30). Mas deva antes assumir caracter fundamentador e constitutivo da responsabilidade do agente, revelador da raziéo da censura social de que se tornou passfvel pela sua actuagao. 4. No que respeita, por Ultimo, 4 ideia da preven- ¢ao especial, pode igualmente considerar-se a situa- gao no direito penal econdmico como possuidora de especificidades dignas de atengao. Em primeiro lugar, um efeito eficaz de prevengao especial parece, sob diversas perspectivas, mais facil (30) Precursor nesta direcgao foi o estudo de C. Roxin, “Krimi- nalpolitische Uberlegungen zum Schuldprinzip”, Monats. f. Krimino- logic 1973, pp. 316 ss. (em espanhol, na colectinea Culpabilidade y prevencién en derecho penal, Madrid, Reus, 1981, pp. 41 ss.); e, por iltimo, do mesmo C. Roxin, “Concepcién bilateral y unilateral del principio de culpabilidad”, na referida colectinea, pp. 187 ss. 61 de alcangar aqui (31). Para tanto contribui logo a circunstancia, j4 referida, de a estigmatizagdo deri- vada da pena ter menor capacidade para afectar a auto-imagem do delinquente como pilar de respeita- bilidade. A reaccéo normal do delinquente 4 apli- cagéo da pena sera, muito provavelmente, de in- dignagéo moral e de negacéo ou neutralizagéo da culpa, de vergonha e de humilhagiéo. Nomeada- mente, o receio de ma publicidade fara com que, no futuro, o delinquente se afaste do crime, antes que nele persista e se encarnice. Por outro lado, enquanto, no direito penal geral, razdes de defesa da dignidade da pessoa e de humanizagao das reac- goes criminais conduzem a uma restrigaéo drastica, quando nao 4 recusa pura e simples, de penas de incapacitagdo, tal nfo sucede no direito penal eco- nomico, nomeadamente quando esteja em causa a aplicagdo de sangdes penais a pessoas colectivas. A propria pena capital —o encerramento definitivo da empresa ou a dissolugao da pessoa colectiva— néo depara com objecgées de principio. O que, afinal, nao € senio consequéncia do facto de a activida- de delinquente neste dominio pressupor, as mais das vezes, a manutengdo da legitimidade do agente para o desempenho de papeis formalizados no dominio da economia. Em segundo lugar, porém, tem-se. posto em causa —com maior insisténcia ainda que no direito penal geral— a finalidade (re)socializadora da pena no direi- to penal econdmico. Com o argumento de que néo tem qualquer sentido visar a recuperagao social de pessoas que possuem ja um alto grau de socializacéo, dado o seu estatuto econdmico-social, a respeitabili- (B1) Decididamente nesta perspectiva Braithwaite/Geis (como no- ta 25), pp. 300 ss. 62 dade de que se reveste o seu modo de vida e a estabi- lidade da sua insergéo comunitaria (32). Mas, devo dizé-lo, este argumento nao me convence minima- mente —demasiado apegado como ele se revela ainda a uma concepgdo, digamos, maximalista (e mesmo, em certo sentido, “totalitaria”) da recuperag4o so- cial, como uma espécie de tratamento imposto no sentido da alteracéo das concepgdes globais do de- linquente (33). E ndo é a uma concepgdo destas que poderei augurar um bom futuro. Também o crime econdmico revela em principio um defeito de sociali- zagdo, que nao tem a ver com a Weltanschauung do delinquente ou com a sua inserc4o comunitaria glo- bal, mas concretamente com a sua atitude pessoal perante uma determinada orientagdo estadual em matéria s6cio-econdmica (34). Um tal defeito deter- mina, ele também, a obrigagdo para o Estado de pro- porcionar ao delinquente o m4ximo de condicédes (32) Abertamente neste sentido Bajo Fernindez (como nota 9), pp. 80s. (33) E esta concepgao de ressocializagdo que estd presente na ge- neralidade dos autores —penalistas ou crimindlogos “criticos”— que a criticam na base de que no se trataria nela senao de um “mito”, de que resocializacao exige-a, mais que o delinquente, a propria “socie- dade punitive”. Fundamentais a este propésito K. Sessar, “Die Re- sozialisierung der strafenden Gesellschaft”, Zeits f.d.g. Strafrechtsw. 81, 1969, p. 372 e, depois, A. Baratta, “Sistema penale ed emargi- nazione sociale”, La Questione Criminale 1976, p. 237 e, Idem, “Cri- minologia critica y politica penal alternativa”, Rev. int. de dr. pén. 49, 1978, p. 43. Completamente dentro deste ponto de vista, em Es- panha, F. Mufioz Conde, “La resocializacién del delincuente. Anélisis y critica de un mito”, Doctrina Penal 7, 1979, pp. 625 ss. e, em Portu- gal, Teresa P, Beleza, “A Reinsercdo Social dos Delinquentes: Recupe- ragao da Utopia ou Utopia da Recuperagao”, in Cidadao Delinquente: Reinsergao Social?, Lisboa, Instituto de Reinsergao Social, 1983, p. 159. (34) Neste sentido, do meu ponto de vista com razao, A. Beristain (como nota 25), pp. 378s. 63 favoraveis 4 prevengdo da reincidéncia (35). E, da- das as razGes que acima apontei, haver4 mesmo por- ventura bons motivos para esperar que uma tal estra- tégia esteja destinada aqui a maior sucesso do que em muitos dominios do direito penal geral. Vv Julgo ter demonstrado, com esta segunda parte da minha exposigao, que a autonomia revelada pelo direito penal econémico ao nivel do ilfcito se conti- nua de algum modo ao nfvel das sangdes. Resta-me agora tentar determinar de que modo as diferengas no fundamento e no sentido das sangdes do direito penal econémico se reflectem concretamente no processo de “‘sentencing’’, quer dizer, nas operagdes judiciais de determinagao da pena e, portanto, da sua escolha e da sua medida. 1. No que toca 4 operacao de escolha da pena —se o juiz deve condenar em prisdo ou em simples multa, se deve substituir aquela por esta, ou se deve antes preferir, quando tal seja possivel, uma condenagdo condicional, um regime de prova, de prisdo por dias livres, de semi-detengdo, etc.—, uma doutrina de inspiragéo germanica (e que af é conhecida por (35) Creio ser este na verdade, diferentemente do que parece susten- tar Bajo Fernéndez (como nota 9), p. 81, 0 moderno e correcto sentido da (re)socializagao do delinquente: cf. o meu artigo citado supra (como nota 20), pp. 24 ss. Uma pormenorizada e —a meus olhos— concludente defesa desta concepgao foi levada a cabo, em Portugal, por Anabela M. Rodrigues, A Posigao Juridica do Recluso na Execugao da Pena Priva- tiva de Liberdade, Seu Fundamento e Ambito, Coimbra, Bol. Fac. Dir. Coimbra, 1982, pp. 99 ss. e Idem, “Polémica Actual Sobre o Pen- samento da Reinsergao Social”, in Cidadao Delinquente... (como no- ta 33), pp. 175 ss. 64 “Stellenwerttheorie” ou “teoria do valor de posi- go”) defende, para o direito penal geral, que o juiz se deve servir exclusivamente de pontos de vista de prevengao, ndo de retribuicao da culpabilidade (36). Mas esta doutrina parece-me duvidosa sobretudo no direito penal econémico, onde, como disse, se fazem sentir acrescidas exigéncias de retribuicéo da culpa- bilidade e de prevengdo de integragao. Assim é que, por exemplo.no que toca 4 escolha entre a pena de priséo e a de multa, se torna com- preens{vel que o juiz prefira aquela a esta com mui- to maior frequéncia do que em direito penal geral (37). Tanto mais que a situagio ser4 diferente tam- bém na Optica da prevengdo especial. Com efeito, a prisio n4o ter4, relativamente ao delinquente econd- mico, 0 mesmo efeito crimindgeno que possui relati- vamente ao delinquente comum: quer porque as téc- nicas de aprendizagem nao podem ser transmitidas ou desenvolvidas na prisio; quer porque nao haver4 em principio que recear os efeitos negativos irrever- stveis da experiéncia prisional, que em geral advém da estigmatizagdo, da distancia social, da escassez de oportunidades legitimas, da aquisigéo de uma identi- (36) Esta teoria foi fundada por H. Henkel, Die ‘richtige’ Strafe, 1969, pp. 23 ss. e reelaborada por Horn, “Wider der ‘doppelspurige’ Strafhoungzumessung”, Festschrift fiir Schaffitein, 1975, p. 241 © Idem, “Zum ‘Stellenwerttheorie’ ”, Festschrift fir Bruns, 1978, p. 165; fundamentalmente no mesmo sentido Schéch, “Grundlage und Wirkungen der Strafe — zum Realititsgehalt das § 46 Abs. 1 StGB”, Festschrift fiir Schaffstein, 1975, p. 255. Criticamente, por outros, C. Roxin, “Privention und Strafzumessung”, Festschrift flir Bruns; 1978, p. 183 (em espanhol, na colectinea ja citada, como na nota 30, pp. 1175s.). . (37) Uma discussio detalhada desta tematica em Bajo Ferndndez (como nota 9), pp. 78 ss. e em A. Beristain (como nota 25), pp. 375 ss. 65 dade e de uma auto-imagem desviante, da entrada numa carreira delinquente. Por estas razées, também o requisitério contra as penas curtas de prisdo perde aqui muita da sua forca. Nao é que —desejo sublinhd-lo— 0 sharp-short-shock da pena curta de prisdo seja aceitdvel, como as vezes se pretende, contra todos os delinquentes de elevado estatuto sdcio-econdmico; o que aqui est4 em questdo nao é, ou nao é tanto, o estatuto pessoal do agente, quanto a natureza da infracgéo que praticou. Nao se- ra aceitavel, por exemplo, que o juiz aplique uma pena curta de prisio ao responsdvel de um pequeno acidente de viagaéo s6 porque se trata de um “white- -collar”, quando ao “blue-collar”, nas mesmas cir- cunstancias, aplicaria uma pena de multa. Mas j4 se pode aceitar a diferenca de tratamento se, em vez de um acidente de viacdo, se tratar por exemplo da frau- dulenta e ainda que pequena degradacao da qualidade de um produto alimentar ou medicamentoso. Até porque se conhece a facilidade com que, nas in- fracgées econdmicas, a multa é integrada no cAlculo dos potenciais delinquentes, de modo a que os ganhos com o crime excedam os custos da pena, ou os efeitos desta se repercutam sobre os operadores econémicos situados a juzante e, em definitivo, sobre os consumidores. Nao desejo, com isto, invalidar o papel da pena de multa em direito penal econémico, tanto mais que ela tera de ser mesmo, pela prépria natureza das coisas, a pena-regra para as pessoas colectivas. Quero sim, apenas, sublinhar o especial papel e aptidao —e, em certos casos, mesmo necessidade— que neste dominio cabe 4 pena de prisdo, em vista nomeada- mente de desencadear a transformacao das represen- tag6es colectivas e da consciéncia comunitaria face ao crime econémico. 66 2. Uma vez escolhida a pena, coloca-se ao juiz 0 problema de determinagao da sua concreta medida. Ainda aqui parece deverem reconhecer-se certas especialidades em direito penal econdmico. Parto da ideia de que também neste dom{fnio a pe- na da culpabilidade pode —nos termos da doutrina germanica da “‘teoria da margem de descricionarida- de” ou “Spielraumtheorie”— oscilar dentro de certos limites (38). S6 que, diferentemente do que porven- tura deva acontecer em direito penal geral, nao parece que no dominio do direito penal econémico possa sem mais afirmar-se que a pena a fixar dentro daque- les limites precisa de atender as exigéncias da pre- vencao especial, mas nao as da prevengdo geral (39). Pois bem pode acontecer que s6 um particular nivel da pena cubra as necessidades de prevengao geral de integragio e as legitimas exigéncias de intimidagéo que dentro daquela se fazem sentir; e, em particular, que s6 aquele nivel permita 4 pena contribuir para a transformagio necessdria das representagdes e da consciéncia comunitaria face a actividades anti-eco- nomicas. Nao pretendo, com isto, excluir de todo a possi- bilidade de o juiz acabar por impor, em nome de exigéncias de prevencdo especial, uma pena inferior ao limite minimo imposto pela culpabilidade. Mas tal sO devera acontecer a titulo de todo em todo excepcional e poderaé ser mesmo legitimamente proibido pela Jei em certos 4mbitos do direito penal (38) Sobre a polémica & volta desta teoria C. Roxin (como nota 36), pp. 184 s. e Idem, “Strafzumessung im Lichte der Strafzwecke”, Festgabe fiir Schultz, 1977 (em espanhol, na colecténea jé citada, co- mo na nota 30, pp. 95 ss.). (39) Posigio defendida com insisténcia, para o direito penal geral, por C. Roxin, “Srafzumessung...” (como nota 30), pp. 104 ss. da ver- sao espanhola, 67 econdémico. Ainda aqui de acordo com a ideia de que a este direito ndo compete uma simples funcio de proteccéo de bens juridicos, mas também de pro- mogao de valores econdmico-sociais no seio da co- munidade (40). VI E tempo de terminar, voltando ao princfpio. Co- mecei por perguntar se haveria, no actual direito pe- nal econémico, algo que o contradistinguisse do di- reito penal geral. Esforcei-me por demonstrar que, a cada um dos nfveis a que a distingéo pode relevar, existem muitos pontos de apoio para uma resposta afirmativa: 1) 0 ilfcito penal econémico apresenta aprecidveis especificidades face ao ilfcito penal geral, baseado como esta numa especffica ordem legal e jurfdico-constitucional dos bens juridicos que protege e promove; 2) especificidades se dao, depois, ao nivel do fundamento e do sentido das sangdes em direito penal econdmico, derivadas da acrescida intensidade com que aqui se fazem sentir as exigéncias de pre- vencao geral positiva ou de integracéo e de retri- buigéo da culpabilidade, bem como da luz particu- larmente favordével a que surgem a realizacéo das finalidades de prevengao especial e a estratégia de tessocializagéo; 3) especificidades existem, final- mente, ao nivel da determinacdo concreta das san- gdes, derivadas das circunstancias de a preferéncia (40) Concorde-se ou nado com as posigdes defendidas, nesta matéria, no texto, uma coisa parece certa: a plena razao que assiste a Bajo Fer- ndndez (como nota 9), p. 79, quando escreve: “en cuanto al segundo aspecto, el relativo a la teorfa de la pena..., a mi juicio, la delincuen- cia econémica puede aportar un importante aumento en la eterna disputa entre preventistas y retribucionistas”. 68 pela pena de prisio —mesmo que se trate de uma pena curta—, em confronto com a pena de multa, se impor numa gama mais larga de hipdteses, bem como de serem maiores as expectativas de evitar o efeito de-socializador e criminégeno da privagaéo da liberdade. Sado tais diferengas suficientes para se concluir pela autonomizagéo do direito penal econdémico face ao direito penal geral? Se pensarmos uma tal autonomizagéo em termos absolutos, capazes de fazer do direito penal econdmico um tertium genus entre o direito penal e o direito de mera ordenacio, entéo a resposta tera de ser negativa. Mas ja devera ser positiva se pensarmos a autonomizagao em ter- mos relativos, legitimada 4 luz da dupla funcdo, pessoal e comunitdéria, desempenhada pela personali- dade do homem no contexto do Estado de Direito e traduzida numa ordem legal dos bens juridicos de indole especiffica. Numa ordem legal que tem por critério a ordem axiologica constitucional que preside aos direitos sociais e 4 organizagéo econémica e que, no plano das sancdes, impée critérios mais estritos —e, em certos casos, mesmo mais severos— a sua de- terminagao. Em todos os Estados —e decerto também em Es- panha— perpassa hoje um sentimento generalizado de injustiga estrutural, em relacdo ao qual a impuni- dade dos delinquentes econdmicos ou a sua menor punigdo injustificada adquirem acentuada ressonan- cia simbélica. E para inverter este estado de coisas e para obviar 4 generalizacdo de atitudes de cinismo e de evaséo que a sociedade deve formular exigéncias particulares ao seu ordenamento penal econdmico. Com o que, afinal, em nada se contraria, mas antes substancialmente se realiza, um principio de igualda- de material entre os cidadaos. 69

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