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ncaa’ Oo fom MOYO Vere ro Mad Eduardo Batalha Viveiros de Castro 1S 2007 INDIViDUO E SOCIEDADE NO ALTO XINGU: OS YAWALAPITI 1977 MUSEU NACIONAL 5 el o prt, [GFF Eduardo Patalha Viveiros de Cas INPIVIDUO F SOCTEDADE HO ALTO XINCH: AS VAUrLAPTTI tese te mestrado anresentada a0 proarama de P5s-qraduacto em Antronolomia Social da "niyersidade Federal do Pio “acional, de Janeira, Muss’ MUSFE MPCTONPL = 1977 AGRADECTHENTOS Este trabalho foi realizado enquanta ou era bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientffico c Tecnalagico (€KPq). A Fundag&o Ford concedeu-me um auxTlio de pesauisa que me permitiu viajar até o Alto Xingu. Meus pais, per fin, foram a instituicao financeira (¢ emocional) que mais colabarou para minha tranguili- dade neste perfodo. 0 Diretor do Parque Nacional do Xingu, Prof. Olympio Jo- s8 Trindade Serra, mostrou interesse por mou trakatho, partilhou seu conhecimento da situagio xinguana comigo, c muito me — ajudou com os YawalapTti. A ele sou grato por sua simpatia. 0 pessoal do escritdrio da FUNAI em SA0 Paulo foi atenciase e aentil. A Profa. Charlotte Emerich, do setor de Lingufstica do Museu Nacional, levou-me pela primeira vez ao PNX, transmitindo-mo o que sabia sobre a vida xinguana, permitindo que eu me decidisse pelo estudo de sociedades indigenas. & Profa, Helotsa Fénelon Cos. ta deu-me indmeras sugestdes sobre as questées tedricas que me pre ocupavam, bem como informagées valiosas sobre sua exneriincia com os Mehinaku. 0 Prof. Anthony Seeger, do Museu Nacional, tornou posst- vel minha ida ao campo, ao quiar-nos, a mim aa duas estagiarias do Museu (uma dolas, Bruna Franchetto, permitiu-me o acesso a ma- teriais Kuikira qu: me foram Gteis), na viagom de Snibus até a BR-080. Sobretudo, ensinou-me antropologia e mc incentivou em mo- mentos de desorientagac - @ me fez vor que o Xingu permanace ainda um campo por explorar na pesquisa atnoldgica. Meu orientador, Prof. Roberto Da Matta, por scu trabalho em antronelogia, dirigiu meu olhar para as questdes que mo preqcupam atualmente. Seu trabalho entre os ApinayS foi uma fonte de inspiragio que, evidentemente, me guiou nesta tentativa mais humilde. 0 Prof. Gilberto Velho aju dou-me muito com sua amizade, e @ em boa parte resnoasavel per min nha visdo da Antropologia. Renata Condim ec aria Candida D.M. Bar ros, estagiarias do setor de Linguistica do Museu Nacional, que estiveram entre os Yawalapiti, cederam-me suas notas do campo e ajudaram-me em questdes lingvisticas, pelo que Thes sou muito cra to. Hinha-mulher aturou-me nas idas @ vindas do campo, na Epoca da elaboracao deste trabalho, e torncu nosstvel, de todas as mangiras, que ele ficasse pronto. Os YaualapTti recaberam-me admi ravelmente, @ tenho certeza de quo jamais censequirei transmitir tudo aquilo que se esforcaram por me ensinar. % Neide Sodré datilografou este trabalho em cima da hora, e minha irma Solange fez os desenhos, pelo que Thes agradega. +o central fechadca wo- semivoval bilabial ¥o~ semivocal palatal Consoantes s - fricativa nalatal surda f " " sonora ts- africada nalatal surda ts- africada alveolar surda k - oclusiva volar surda n= oclusiva bilabial sarda 1 - lateral alveolar sonora 1 - lateral palatal sonora fi + nasal palatal sonora a ~ nasal alveolar sonora = nasal biladial sonora h - aspirada clote? r+ vitvante alveolar sinstes senora (9 acento aaudo indica a YOURLAPTTE vona? cantral aberta LIFICARA 48 PALAYEAS anterior fectavta nao-arredondada Simbolcs Parentesco B > homer 9 - muther a 0 = casamento a#0 - divOrcio 4 9 - filiacdo 4, a 0 - fraternidade Bia - falocide ® nosterior yechada arredondada silaha tonica) INDICE - INTRODUGKO Preliminares: 0 Trabalho de Campo = CAPITULO I: 0 ALTO XINGU 0 Alto Xingu A Etnologia no Alto Xingu Este Trabatho: Propostas e Pressupostos - CAPITULO IL: OS YAWALAPTTI Introdugao Historia Atualidade: Composicao da Aldeia Identidade Grupal: Visio dos Outros Grupos; Posicdo no Sistema - CAPITULO III: 0 TEMPO E 0 ESPAGO Introducao Tempo: Fases Modeto e Atualidade 0 Mito no Mundo Ritual e Modelo Espago: A Regiao Espago: A Aldeia A Casa Yawalapiti Outras Dimensdes - CAPITULO IV: CLASSIFICAGAO: OS SERES VIVOS Introduco: Lingua e Classificagio Os Seres Vivos: Distingdes Transformagdes e Relacdes: Regime Alimentar Transformagoes: Os EspTritos - CAPITULO V: CLASSIFICACKO: AS PESSOAS Introducio Parentesco: Algumas Distingdes Respeito e Vergonha: 0 Ethos A Fabricacdo dos Corpos: Sémem e Sangue Lutadores, Chefes, Xamas, Feiticeiros Conclusées pag. 21 39 47 59 63 69 89 98 102 ng 118 119 125 128 141 146 153 161 167 179 184 186 193 203 216 234 INTRODUCKO 0 objetivo deste trabaiho & contribuir para o conhecimen to da cosmologia dos grupos indigenas do Alto Xingu, a partir de uma analise das categorias de pensamento Yawalapiti, grupo de 1in- gua Aruaque atualmente localizado no Parque Nacional do Xingu (Ma- to Grosso), prdximo ao Posto Indfgena Leonardo Villas Boas. Tenta- remos evidenciar as formas basicas de apreensdo da realidade “natu ral" e social, tal como expressas no discurso de membros deste gru po. Trata-se aqui, portanto, de organizar duas grandes areas da cultura YawalapTti (e do Alto Xingu em geral): as representagdes que dizem respeito as relagdes entre os seres humanos e o mundo na tural, e as representagdes que dio sentido as relacdes entre os ho mens, no interior da sociedade!, Meu propésito € tragar as cone- xdes entre estes dois dominios, apontando a especificidade da cul- tura xinguana dentro do que se sabe sobre as sociedades _—tribais sul-americanas. Espero, por fim, que o estudo da cosmologia ajude a compreender certas caracterfsticas da sociedade xinguana, ja des critas e meditadas por pesquisadores que se detiveram sobre outros grupos da regiao. Os temas principais aqui desenvolvidos derivam do que pu de perceber como sendo as preocupacodes dominantes dos YawalapTti em suas reflexdes sobre a sociedade e a natureza. E claro, meu olhar foi guiado por minhas proprias preocupagdes tedricas; mas procuret ajustd-1o ao que vi e ouvi. Assim, boa parte deste trabalho toma como objeto a andiise do pensamento e pratica YawalapTti sobre 0 corpo humano: sua fabricagdo, sua comunicagado como exterior, as regras que o incorporam & sociedade eo transformam em sTmbolo. Nesta diregdo, um dos problemas centrais que persigo @ 0 do esboco de uma 16gica das qualidades sens7veis (ver Lévi-Strauss 1964) que, transformando o pensar sobre substancias naturais (alimentos, flut dos corporais) em aparetho simbdlico que estrutura as relagdes so- ciais, vai permitir a emergéncia conceitual da sociedade, como objeto de reflexdo por parte de seus membros. Outra problematica (1) com vyerems, esta divisio alg artificial, no caso. 0s YayalapTti nfo Parecem conceitualizar seu universo em termos de uma rigida oposicéo Natureza/ Cultura; ademais, o dominio do sobrenatural surge como operador que organiza tanto as relacoes dos humanos como_a natureza, quanto as relacoes dos homens entre si. Terfamos assim tres dominios, Natureza, Cultura e — "Sobrenatural", embora este Ultimo pudesse ser reduzido a uma modalidade de interacao entre os dois primeiros. Mas, se respeitarmos a ontologia dos Yawalapiti, ele se cons- titui em esfera da realidade bem definida. 22, que me guia @ a das relagdes entre individuo e sociedade — menos em termos de uma analise socioldgica, que a partir das categorias culturais que constituem a concepgao Yawalapiti da pessoa humana. Mas, na verdade esta @ uma questao que orienta todo esforgo antro- pologico — as variagées histérico-sociais da nogao de pessoa (ver Mauss 1950 |1938|). Chamo atengdo para ela, contudo, porque no ca so em estudo ela depende da questao anterior: até certo ponto, 0 objetivo deste trabaiho & mostrar a inserg3o do problema “indivi- duo ¢ sociedade" na "Jogica do concreto". Adiante falaremos mais disto. Pre ares; o trabalho de campo 0 trabatho de campo que constitui uma das fontes deste estudo foi realizado durante os meses de setembro e outubro de 1976. A outra fonte é a ja vasta bibliografia existente sobre a sociedade xinguana (ver Bibliografia). Algumas qualificagdes pre- liminares sobre as motivagoes, natureza e limitagées desta pesqui- sa se fazem necessarias. 0 horizonte pessoal do pesquisador, sua interagao concreta com o grupo estudado — tudo isto, egomanias a parte, deve ser explicitado para que o leitor avalie corretamente o que Ihe @ apresentado. Sigo aqui a ja tradicional advert@ncia de Maybury-Lewis (1967, Introduction), e, sobretudo, as refiexées de Lévi-Strauss nos Tristes Tropiques (1955), que chamam a atencio para a inevitavel (desejavel?) mistura de subjetividade e objeti- vidade no trabalho antropoligico: subjetividade do pesquisador (sua histOria de vida) p ,tambin dos informantes; objetividade da teoria (e da cultura) que informa o primeiro, objetividade dos modelos na tivos que orientam os informantes. Mas o importante @ que o pes- quisador faz parte do objeto de estudo, ele interfere, de modo va- riavel, no sistema que analisa. E a singularidade desta insergao que deve ser explicitada. Ha implicagdes gerais da posicao de pes quisador (ver Bourdieu 1971, p. 160): enquanto “observadur", muita coisa ele nao pode ver; seus interesses no sistema sdo radicalmen- te diferentes dos que guiam os "nativos"; ele tende a subsumir em modelos mecanicos e arquitetdnicos o que percebe, e a definir como "regras" o que para os participantss integrais do sistema s%o es- q) . Estou no momento distinguindo "individuo" e "pessoa" em termos simples: “in dividuo" refere-se a realidade empirica - a existencia de seres humanos concre- tos que sao pensados e clasificados diferentemente em cada sociedade. Esta construcao cultural variavel @ a nogdo de pessoa. (Ver Dumont 1966, p. 22). o tratégias automatica e sutilmente selecionadas em funcao do contex to. Em suma, ele = um gramaticr, os nativos sao falantes, ¢ ef vai uma distancia enorme, que ¢ ovinot@ncia ce algumas teorias pa- rece desconhecer (ver Goodenough 1965, apenas um exemplo; e Geertz 1975, cap. I para o ataque a esta posi¢so). -Por outro lado, nao ha fenomenologia que permita superar este abismo que, afinal, @ a limitasio 2 a forga de artropologia: a posigao de “observador" per mite ver muita coisa. Nas tudo isto ja @ sabido. Passemos as sin gularidades de meu trabalho de campo. Meu primeiro contato com os Yawalapiti e com a realida- de xinguana foi em julha de 1975, quando visitei o Posto Leonardo mo auxitiar de pesquisa da Profa. Charlotte por quinze dias, c! Emerich, que realizava um estuao sobre a situacgao lingufstica da Grea, especialmente sobre o uso do portugués e os processos de in- terferéncia com as linguas ali faladas, Visitei as aldeias Txicao, Kamayura e Yawalaptti, e fiz o censo desta @1tima, travando conhe- cimento com alguns individuos Yawalap7ti que posteriormente vieran a ser meus principais informantes. Os Yawalapiti vinhan diaria~ mente ao Posto (sue aideia distava 1,5 quilémetres), demonstravam um amplo dominio do portuyués, @ me impressionaram em geral pela delicadeza e habilidade no trato com os visitantes. Eu uo Xingu por nao saber direito o que fa- zer em Antropologi abia guase nada sobre a regido, mas achava que o estudo de uma so lade ind?gena seria um rito de passagem que me socializania menos ituagio de campo era uwa itentagio « um desafio, que me faria “ser aatropo- compromissos, 0 ecletisme © as lealda- alvera mbiguamente na profisséc. A 5 jogo" integralmente, sem o: des diversificadas que marcavam minha vida na Gpoca. Uepois, eu me interessara pela antropologia ao ler as Mytholoyiques de c. Lévi-Strauss na graduagao; para aléx doz mitos e das gznialidades cuntavam aqueles do autor, acabei me voltenda para os Indios 4 mi tos. G primsiro coutato -com ume sociedade indfgena & sempre um chogue. E uma situagao “total”, que domina em primeiro lugar 9s caneis perceptivos: cores, cheiros, calor, sons, musquitos. 0 grias e asiio de aliena- Poste me parecia um mists de colonia de dost homens nus, vermethos, mutheres e criancas em trapos, me sor- rindo, pedindo coisas de modo estranho, entrando em mau quarto aos grupos, observando em sil@ncio todos us meus gestos- Sentia-me invadido © vigiado ~- mas afinal, eu também estava invadindo e observando. Quando ia visitar as aldeias, me sentia mal, culpado, espiio, consumindo curiosamente o que nao entendia. Acho que foi esta sensacao que me fez querer volta> e procurar compreender. Cs YawalapTti especialmente me faziam sentir assim: sua gentileza hospitalidade me pareciam submissas; mas acabei também me aproxi- mando deles por serem — aparentemente — os “menos diferentes". Falavam bem portugués, interagiam em bases que eram familiares. Isto me leva @ sensacgao mais forte que tive neste conta- to inicial — e que talvez nunca desapareca, por mais que a refle- xio consiga transformar o exdtico em familiar — que € aque se experimenta na interagao face a face com os Tndios. .De repent dava-me conta do dbvio: nio estava entendendo nada. Nao sd a 1in~ gua, mas a postura corporal, o modo de olhar, a distancia fisica na conversa, o jeito de pedir e de oferecer, de (nao) agradecer, de usar o siléncio — em suma, todo o ritual de interagéo nos sepa ra deles, Sao codigos distintos, de diffcil conversabilidade, es- pecialmente porque nao conscientes. A lingua, as vezes, nao era 0 obstaculo; & 0 enorme residuo nao-verbal do codigo de comunica- gio que mais sublinha a diferenca entre eu e este Tndio que conver sa aqui comigo. Por isso, tornava-se necessario o recurso a sinais os mais universais, para que o canal de contato permaneca aberto. £ assim que entendia a frequéncia do sorriso como meio de comunica~ gio entre eu e meu grupo (do qual seis membros jamais tinham este- do 18) e os Tndigs. Sorri-se muito, para muita gente, e este as-~ forgo em superar ia, distancia cultural nao deixa de marcar, em ne- gativo, o abismo que nos separa. Sorri-se, de certa forma, para deixar claro que nao somos inimigos. A amabilidade, 2 gentileza sorridente dos Tndios, exprimiria justamente essa situagao curio- samente tensa. Entre estrangeiros, a conversa @ diffcil, e a al- ternativa @ 0 sorriso ou a guerra.! Na segunda e terceira vezes que voltei ao Xingu, pude observar que o contato entre os visitan tes mais costumeiros do Parque (m@dicos, funcionarios dos servicos de saide ou da FAB), e os Tndios, @ marcado pelo Joking, ora ame- (1) pp Mauss e seu “Essai sur Te Don" (Mauss 1960 1923-24) extraf a intuicio do sorriso como reciprocidade. A constelacao_reciproci dade-estranheza-hosp' tali da Ce-comunicagio servira, como veremos, também para iluminar as relagées entre o: Civersos grupos que formam o sistema social xinguano. e-Brown 1973 [1940], ice entre habia no, ora agressivo - mas sempre (Ravizli IV), uma forma de superar a contratigio b de esferas opostas ay mundo social. 9 uo ums yusrra Bs aves: as, que aproxima mantendo a distancia. Mas @ também esta distancia, esse abismo que, quando fran queados por pontes tao frageis quanto um sorriso, tornam gratifi- cante a experiéncia antropologica. Um fiapo de comunicacao, um instante de empatia, um presente oferecido e aceito, um sorriso trocado: s&o essas coisas que — humildes mas indispensaveis resu- mos de uma compreensao posterior e mais elaborada — justificam o esforco penoso, as vezes sentido como inutil e ridfculo, de se ir até o fim do mundo dos brancos. E-sa0 talvez tais pontes frageis, talvez ilusdrias, que encobrem a soliddo imensa em que eue este indio estaremos para sempre imersos, habitantes de dimensdes dife- rentes, que nao podem coexistir em sua plenitude. Juntos, mas in- comunicdveis, cada um de nos prisioneiro de seu proprio tempo: e, neste momento, mais do que nunca sdzinhos. Esta € a sombra do tra batho do antropélogo. Nesta estadia, aprendi mais sobre as relacdes entre os brancos em contato com o Tndio do que sobre uma sociedade indTge- na que mal enxergava. No Posto Leonardo, em julho de 1975 (julho @ tempo de seca no Xingu, e isto, mais as férias escolares, aumen- ta o afluxo de visitantes), estavam alojados: duas jornalistas (Es tado de S. Paulo e Jornal de Brasilia); a equipe de combate @ tu- berculose (7 pessoas); um antropdlogo e dois cinegrafistas, pelo CNRS francés (filhando os Txicdo); um etno-historiador sutcos a equipe do Museu Nacional de que eu fazia parte (6 pessoas). Pouco antes, 18 estiveram médicos da Escola Paulista de Medicina, que vém regularmente @ Grea. Falava-se da chegada de um grupo de sena doves em visita. Nossos quartos ainda tinham pregados as portas o nome de alguns embaixadores que passaram trés dias no Posto. 0s YawalapTti abrigavam uma pesquisadora. Some-se a isso o encarr gado do Posto, sua mulher, e uma enfermeira. Pelo que pude perceber, todos estes grupos hospitaliza~ vam-se mais ou menos veladamente. 0 grande insulto, a cateauria que define e estigmatiza o oponente @: "turisia", Este tipo Je ag80 deve ser visto & luz da situagic peculiar co Peraue Hacis du Xingu (v. p. 38. Cada grupo, de corta forma, se considera © wais experimentado, ou pelo menos aqueie que esta fazendo o tra~ or em we ee de 6, balho mais sério; mais essencial, que tem a visao correta do que sejam as necessidades "do Indio". £m suma, cada grupo tendia a = ver como aliado dos Indios contra os outros brancos, que represen tariam as multiplas deformagdes da imagem do {Indio na dtica dos brancos: teoricismo, boa-vontade ignorante, turismo, etc, etc. Por tanto, o que sucedia era a competicao de diferentes agéncias, cad: qual com uma viséo diferente da realidade xinguana (ver Da Matt: 1976a, para o desenvolvimento da idéia da multiplicidade do conta- to inter-@tnico). £ verdade que a distancia »itre os grupos em competicao nao @ tao grande quanto em outras regides, aqui todos eles — com excecao do pessoal de FAB que traba’sa numa base aérea proxima aos Kamayuré — submetidos ao controle :isoroso da FUNAT; mesmo assim, continuam havendo leituras conflitivas da imagem do Indio. 0 Indio do encarregado do Posto nao & o mesmo Tndio do an- tropdlogo, ou o fndio para uma equipe médica de passagem. Nao ape nas variam os propositos de cada instituigao que mantém represen- tantes na Brea, mas também as modalidades de envolvimento concreto que cada agente tem com a realidade do contato. A situacao neste julho de 1975 nao deixava de ser comica (porque afinal os Indios nao estao sofrendo com isso — talvez pe- lo contrario) € complexa. Existiam sistemas de aliangas entre os grupos, bem como categorias e posicdes sociais mais legitimadas, com mais poder, cuja alianca € desejada — 0 chefe do Posto ou a enfermeira, por exemplo, que controlam recursos estratégicos, ocu- pando também umaiposicao “elevada" na hierarquia dos brancos. Mas 0 grupo ou categéria cuja alianca @ mais desejada, ou melhor, a imagem que orienta todo este jogo de aliancas, &, obviamente, 0 Indio, enquanto identidade complementar aos brancos. 0s n@o-antro "“cientistas" desprezavam as podlogos desprezavam os antropologos; os jornalistas; o encarregado do Posto despreza mais ou menos a to- dos; e todos desprezavam os “turistas" — categoria flexivel. Criava-se, portanto, uma hierargquia consensual de papéis sociais mais ou menos "nobres" (mais ou menos "turfsticos”), a par tir do que seria a "realidade" ou as "necessidades" do Indio. Es. qa) ~ 0 qual, diga-se de passagem aqui, tem seu proprio ponto de vista sobre isso tudo, € que é diferente do de cada grupo de brancos. Cf. por exemplo as rela goes de certas aldeias com a base da FAB, desaconselhadas pela FUNAI, mas onde 0 indios podem conseguir objetos e simbolos que Ihes interessam. 7 sa hierarquia podia ser constatada em varias situacoes: nas priori dades de embarque nos avides da FAB, que fazem o transporte do Par que, por exemplo. Grosso modo, os médicos e funcionarios do Posto esto no topo da escala; os pesquisadores que vao mais frequente- mente 20 Xingu, no meio; os novatos, enfim, por iltimo, sobretudo se seus motivos de estar na area nao sao facilmente identificaveis com a definic&o dominante das relagdes brancos-indios (definigao esta dada em Ultima instancia pela FUNAI). Os jornalistas e cine- grafistas tém posigac ambigua: muitas vezes desprezados por seu en foque "turfstico", possuem um poder de barganha, e uma importancia indireta, que os coloca "no alto". Outro caso de ambiguidade @ o do pessoal da FAB: criticados por sua falta de sensibilidade antro poldgica e pelo perigo de contaminagao que representam, sa0 porém indispensveis, dado que controlam quase que monopolisticamente! as entradas e satdas do Parque. Ha casos mais curiosos, como ° dos embaixadores ou senadores que eventualmente desembarcam no Pos to, Unanimemente desprezados — "o que € que eles vém fazer aqui 2" — possuem um poder de fato que confunde as coisas. Com isto quero chamar a ateng’o para uma dualidade pre- sente na estrutura das relagdes entre os brancos. Existe uma hic- rarquia simbdlica, de direito, cuja estruturacao depende de uma v so dominante do que seja o Tndio e do que @ bom ou mau para ele Esta visdo 8, basicamente, a da FUNAI (variante do que se chamaria a visio humanTstica do Tndio; mas n3o se deve em absoluto esque- cer que a FUNAI fido € uma agéncia ideologicamente coesa). Ha uma série de comportdmentos e manipulacao de stmbolos que servem para classificar as pessoas em fungao desta hierarquia. Para se ficar "no alto" deve-se, por exemplo: ir muito ao Xingu; ir também na estacio das chuvas, quando as condigdes tornam-se mais di ficeis (simbolos de dedicagio, coragem e desprendimento); nao trocar coi- sas demais com os Tndios; no manipular ostensivamente simbolos de “turismo” (maquinas fotograficas, etc.); levar a propria comidas no reclamar com 0 encarregado do Posto; ¢ muitas coisas mais.” (1) qo Fim de 1976 as relecdes entre a FAB e a advinistracao do Parque ficaram estrenecidas, @ a base aévea do Xingu nao mais utiliza o Posto Leonardo como pista de pouso, nao transporta mais carga para a FUNAT. urlando Villas Boas fez inclusive uma lista para orientacéo dos visitantes. Mas ha‘também uma hierarquia de fato, articuladas em te sobre o uso de certos recursos estratégicos (transporte, comida, etc.). E claro que as duas ordens hierarquicas se misturam — a . FUNAI, por exemplo, ocupa posic’o invejavel tanto numa quanto nou- Nitra. Mas ji a FAB esti no topo da escala de poder e 14 embaixo na “hierarquia "simbdlica". £ ha também inversdes da hierarquia da so ,ciedade mais ampla, como por exemplo o fato de que a categoria 4. j!indio doente" tem prioridade em transporte e tratamentc (o contra 5 \crio seria de se esperar, nfo houvesse a mediagdo da FUNAI), ou ‘fato dos embaixadores e senadores serem vistos como hdspedes inde- ta.! A identidade social "Tndio" era o pomo da discérdia no jar- Him tropical do Posto Leonardo, porque @ através desta identidade que se constroem as identidades complementares dos diversos grupos @ agéncias em competigao (ver Da Matta 1976a). ' Na verdade, esta situacdo era aproveitada pelos grupos 1 indTgenas, para quem quanto mais visitantes maior a oportunidade 1 de conseguir bens para consumo e troca, e mais alternativas ao pa- 5 pel de redistribuigao desempenhado pelo Posto. Os YawalapTti, co- ! mo veremos, estavam em situacdo privilegiada nesta outra competi- cio — dos Indios pelos brancos. Proximos ao Posto, carreavam os visitantes sem objétivo muito definido; "tTpicos" da drea, serviam como amostra; excelentes falantes de portugués, conseguiam o que queriam rapidamente. Assim, o Posto 6 a arena onde os brancos 1u-| tavam por um bem simbdlico, os Indios por bens concretos e simbo-” licos. Por fim, quase todos conseguiam o que queriam. { | mos de quem tem mais ou menos poder, isto 8, capacidade de decis cmearregado, nio indo zo Posto. Por outro lado, 0 Diretor do Fargue, tambim restdinan ay Posto naquele pertodo, ava @in conflito como encarregace do tente com a FUNAS por ter permitido a entrada ca avalapTti sem seu conhecimento, No meio iste Porte ~~ @ dese: pesquisedora dos Poo = oe nm a mm em. wa, tudo chego eu, ja naturalmante apavorsds com o perfcdo de campo pi: frente @ escaldado quants ao c Passei nove dias no Posto, espe pesquisadora nos YawalapTti se resolvesse. Ji nfo estava gostandu da situacdo, pois imaginava que os Yawalapiti nao me receberiam bem, ao saberem que eu entrava expulsando a moca!, que ja estivers Va outras vezes e era querida por eles. A id@ia de "esperar vaga", por sua vez, nao combinava muito com minhas fantasias sobre pesqui sa de campo nos sertoes isolados e ignotos do Brasil Central. Por fim, tomei conhecimento de um projeto da FUNAI que ja me atrapalhar de vez: 12 homens Yawalapiti (isto &, quase todos os aduttos e falantes de portugués da aldeia) iriam no comego de junho passar dois meses em BrasTlia, construindo uma casa xingua- na para a inauguracao do Congresso da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciéncia). Ja estavam eles cortando todo o ma~ deirame e comegando a arrancar o sapé para a cobertura — tudo is- so ia ser transportado de aviao para BrasTlia. 0 que acabou nao acontecendo, uma vez que os esteios centrais (postes de oito me- tros de altura e pesando cerca de 700 quilos) furaram a fuselagem se evido.® £ interessante observar, desde j3, 0 papel desempenha- do pelos Yawalapiti como o grupo que representa o Xingu diante da geciedade nasionais como veremos, isto deriva da histéria singular do grupo, ligada ao contacto com os primeiros administradores do Parque e defanscres de seus habitantes — os irmios Villas Boas. de uma semanz no Posto, assistindo ao drama 30- fugue se desenrolava, ainda nao sabia o que fe- zer. Pensei em ir'para outra aldeia, mas o Diretor do Parque con~ vencia-me @ persistir nos Yawalapiti, por echar meu projeto impor~ tante; eu mesmo #30 tinha vontade do ir para grupos ja estudad Por fiw, a situac9 resolveu-se salommnicamente: voltamos eue @ pesquisadora, depois de um atrito entre ele @ 0 Diretor, e em um momento de muita tensao entre este e c enrarregado do Posto — que saTda do filtimo powcs temo depo 0 Diretor ma do Poste. onde que o problema encerrou-se co a} es sobve 9 yuanee. Fla muito me aiudou posteriorsente cos infor Poti, peel tices. mancigca © fue 9 ia ‘sertll rogas, faites wie pediu-me para sair, e concordei imediatamente, pois no desejava iniciar meu trabalho nestas condicies. Quase desistindo, passci junho e julho no Rios; em agos- to, com o aval do Diretor do Parque, recomecei a procurar transpor te. A FAB estava diminuindo seus voos até o Xingu. Mais uma ida aS. Paulo fracassada, até que, no dia 13 de agosto, embarquei num Bnibus, como GItimo e inusitado recurso para atingir o Xingu.! De pois de uma viagem cujo tom "épico" contrastava fortemente com as rapidas viagens aéreas e com a abertura do Alto Xingu aos meios de comunicacao (reportagem, fotografias, filmes), chegamos as margens do Xingu, na estrada BR-080, a duas horas rio abaixd do Posto In- dfgena Kretire (Txucarramie), na fronteira norte do Parque. Fomos até o Posto Diauarum (proximo aos Cajabi, Juruna e Suya - ver mapa 3 p. 26) em barco cedido pela administracao do Parque, e dali ao Parque Leonardo em avido do Correio Aéreo Nacional. Dia 26 de agos to cheguei a aldeia Yawalapiti, retornando ao Rio dia 25 de outu- bro. Os motivos da escolha dos YawalapTti foram basicamente dois. Primeiro, ele talvez seja presentemente o grupo menos conhe cido da Brea, em termos de pesquisa antropoldgica, embora muitos individuos ali residentes tenham sido informantes de outros pesqui sadores, além de introduzi-los aos outros grupos. Isto ocorreu da da a proximidade da aldeia e do Posto, e a fluéncia de alguns Yawa lapiti tanto no portugues quanto nas outras I?nguas do Alto Xingu, @ aos inimeros Lagos que ligam este grupo aos outros. Em segundo lugar, os Yawaldpiti me interessavam por sua historia e composi¢ao singulares: dispersos pelas outras aldeias xinguanas quando da che gada da expedigdo Roncador-Xingu (a ponta de penetracao da socieda de nacional que levou 3 criagdo do Parque Nacional do Xingu) em 1946, praticamente extintos, os Yawalapiti recompuseram sua aldeia com o apoio dos irmaos Villas Boas, carregando consigo seus afins e formando um grupo “mestigo” e multilingue que viria a desempe~ nhar importantes fungdes de medieyio entre os diferentes grupos e 1 7 Esta viagem sd foi possTvel gracas 30 Prof. Anthony Seeger, do Museu Nacio- nal, que, por conhecer a area norte do Parque, prontificou-se 2 acompanhar-nos, a mime a_duas estagiarias do Setor do Linguistica do Museu, que iam ate a al- deia KuikGru. Seguimos por Goianie ~ Harra do Garcas - Sao Felix do Araguaia ~ BR-O80.. r € ry x K x 5 x x x ® x x é ® » » ¥ d ‘ ' ! 1 +12. os representantes da sociedade nacional’, apesar de seu pequeno ni mero de residentes. Esta importir go tenso. — Com a chegada da Expedicdo Roncador-Xingu @ o estabeleci mento de Posto IndTgenas, o sistema xinguano passou a contar com mais um elemento, que o reorganizou em varios aspectos. As rela~ des entre os grupos locais xinguanos eram marcadas pela igualdade entre os grupos — expressa em varias ceriménias — pela ‘inexistén cia de processos jaye levassem ao estabelecimento de uma hierarquia ou ao surgimento de una lideranca supra-local’, 4 especializacdo 1) Nio s6 dos empregados Tndios - a quem desprezam sobretudo por se canatpa wanakata (“empregados, mandados por brancos") - mas tanbém dos brancos que a~ prenderam a conhecer melhor, come o ex~encarregado do Posto e a enfermeira. Na superficie, seguindo o padrao xinguano, as relacées entre os putakanaw, no Pos- to, diante dos caratpanaw e warayonay, sao sempre cordiais. So scube de inicia tia violenta por parte de alguna aideia para com 0 Posto no caso do incidente entre os Yawalapiti e o ex-encarregado. £, mesmo neste caso, quem prineiro to- cou na clave da interacio brusca foi um branco. (2) tio final deste trabalho discorrerenos con paiores detalhes sobre as rela~ goes inter-aldeias no Alto Xingu. Para uma analise detida da influencia do Pos to Indigena na economia xinguana, ver Junqueira 1967 2 Junquei ra 1975. oS manufatureira de certas aldcias — ceramica Aruaque, colares de 7, machados do pedra Tru concha Carib, arcos Kamayura, slgodéo mai — era orientada para um mercado que garantia e distribui 2 certos mecanismos coibiam a acumulacao de riquezas, forgando sua circulacdo constante (ver cap. ¥). 0 contato com a saciedade na- cional resultou na introduc3o de uma quantidade de itens na econo- mia que nao podiam ser reproduzidos pelos grupos, criando uma de- pendancia para com o Posto, unidade social que, por sua vez, enca- deava o sistema com a estrutura secial nacional. .Surgiu assim um centro fixo no sistema, com fungdes de redistribuic&o econdmicanio submetidas aos principios que guiavam as relagées inter-grupos. © verdade que a introducdo de novos instrumentos de producto © arti- gos de consumo nao foi suficiente para modificar a estrutura econd mica basica do flto Xingu: nao houve incorporacao de mao-de-obra in dfgena ao sistema capitalista, nem mudancas substanciais nas técni_ cas agricolas e de pesca, nemo surgimento de uma classe de indi- viduos que monopolizasse os itens extra-xinguanos. Alguns grupos jocais, @ certo, tém mais condigdes de acesso a estes bens; mas, uma vez introduzidos no sistema, tais artigos submetem-se aos prin cipios de distribuigao xinguanos: @nfase na troca, na partilha e na circulagao acelerada. Do ponto de vista polftico, o aparecimento do Posto teve repercussées complexas, Em primeiro lugar, desencorajou as hosti- lidades entre os xinguanos e as tribos marginais, novamente crian- do um poio central de referancia, menos em termos gcograficos que polfticos. Principalmente, interferiu na estrutura do poder inter no @ aldeia, ao criar uma nove fungao de mediagao — entre o grupo e@ 0 Posto (@ brancos em geral, uma vez que o Posto também se cons- titui no centro de "redistribuigao” dos visitantes) — nio necessa riamente coincidente com a fungio de representante do grupo diante 1 © Algumas especialidades desapareceram, como os machados de pedra Suyd e Tru- mai, substitutdos pelo aco ocidental. Mas artigos como as grandes panalas de barro Waura, ou os colares de conchas Kalanalo, néo perderam sua _inportancia, até agora, diante das panelas de aluninio das micangas. Para >1ém de sua ade quacao tecnologica - caso das grandes panclas de ralar mandioce - ou de scu persistente valor como adorno (colares de concha), 05 artigos tradicionalmente identificados como especialidades "tribais" sao instrumentos de prestacao ceri- monial: "Paganento da noiva" (tinézu ipétsé), pagamento dos xamis, trocas cole- tivas entre aldeias (w£itéi) e outras ocasices. nee daia". Houve assim uma tendén- dos outros, propria do “dono da cia @ duplicagdo das posigées de controle e mediacho, devida a certos fatores. Os indivTduos que passaram a mediadores aldeia/ Posto foram os que recebiam maior apoio da administragio, ¢ isto dependia de alguns imponderaveis: maior dominio do portugués, capa cidade de adaptagao as novas condicdes, etc. E verdade que, embo- ra os individuos que vieram a sa tornar mediadores muitas — vezes fossem relativavante marginais, o sucesso de suas tentativas depen dia de sua situacio dentro do grupo: se nao tivessem'um apoic fac- cional razodvel, poucas eran as chances de sucesso. Portanto, mui tas vezes o “dono da aldeia” ou um membro de sua facgto (basicamen te seu grupo do siblings e elguns afins en posi Jo inferior) torma va-se 0 que ja foi chamado de “capitao de branco", ou “capit#o",em oposigio ao termo nativo para representante da aldeia (ver Zarur 1975, cap. IV). Em outros casos, porém, as fecces em Iut2 numa aldeia se constitufam na base dv um dualismo de "chefia", um lider faccional sendo o representante do grupo dentro do sistema crigi oniais, © 0 outro lider o repre- nal, com fungées basicamente ceri sentante do grupo diante da administraca’o do Parque — © que era instrumento de reivindicacio por parte deste Ultimo @ posigao de representante da aldeia. 0 Posto surge assim como fonte de legiti macio de 1fderes faccionaiS, embora nem sempre detivesce a iTtime Balavra, @ procurasse apoiar individuos ja legitimados pelo qrupo. Arriscando uma hipotese sem exame de cada caso em partt= cular, dirTamos que a tendéncia geral foi a de que os Ifderes de facgdes “dominadast — os individuos cujas reinvindicagdes @ repre sentagio do grupo nao fossem indiscutTveis pelos critérios nati vos! — fizessem o maior esforco em garantir a posicéo de mediador entre seu grupo ¢ a administragao do Parque. Os dades Kalapalo trazidos por Ellen Becker (1969, p. 6-7 e cap. IX) sustentariam es. ta hipdteses os YawalapTti, como veremos, apresentam particulari- q) < fo longo deste trabalho, trataremos de.ir elucidando tais critérios, e os principios que organizam o papel de representante de aldeia. Aqui, basta indi~ car que tal papel @ basicamente corimoniel, gue s liderenca faccional @ outro assunto, @ que 0 conceito de poder xinguano @ algo diferente do ocidental. Reresce que dificilmente um representante de aldeia - pelo nencs — atualmente, dado a depopulaggo -_preenche os critsrios genealogicos necessarios a scu reco nhecimento pela facgdo oposta. dades que os tornam “atipicos". Seeger (1971, pps. 58-63), des- creve as relacées entre o faccionalismo Suya @ a implantagéo da administragdo brasileira que ilustram este processo — embora 8 estrutura politica Suya seja algo diversa da xinguana, certos prin cTpios gerais parecem recorrentes, quande menos da parte da adminis tragio brasileira. Um dos principais momentos de consolidacéo des ta posigado de mediador por parte de alguns individuos foi quando da mudanga do local das aldeias sugerida pelos irmaos Villas Boas, de forma a fazer com que os grupos ficassem dentro das fronteiras do Parque e proximos aos Postos. aldeia se dividia quanto a oportunidade da mudanga, um I7der convencia sua facgao a mudar-se, 0s outros acabavam por segui-lo, ¢ estava assim mais cu menos esta belecido o prestigio do mediador, que normalmente passava a respon der por seu grupo perante a administracao. 0 que houve, portanto, foi a abertura de novas areas de poder dentro da estrutura social xinguena. A natureza da socieda- de brasileira em contato com o sistema xinguano nao permitia a sim ples assimilacio do Posto a mais uma unidade do sistema, de forma ‘a que os mediadores tradicionais — os "donos das aldeias" — pu- dessem tratar com ele como tratavam com as outras aldejas. ‘le cer ta forma, menos do que provocando a transferéncia de uma parcela de poder da aldeia para o Posto (como sugere Junqueira 1967 p.90), © que suc sucedeu foi o surginento de novas reas de recursos sociais, cujo controle, em pa parte esto, podia 6 entanto ser ne- er de fato passivel de madificaro. ma_polftico intra-gru> pal. Tratava-se entéo de saber usa-1o de acordo com as regras Vv gentes no sistema "tradicional" =—iste-6,—dé—implamentar uma es” ~ erosi~ os. at aan de avaliagao do prestigio individual — 9 dace, carater nao impositivo, simpatia pessoal e outros tantos cri rios qué—definém o ethos xinguano. Assim, esta nova funcio de mediagdo néo acarretou uma acumulagao excessiva de riqueza ou pres tigio por parte de seus agentes, tampouco criando mecanismos de exploragao do trabalho ou controle despético. Ume vez que a polf- tica oficial da administracdo do Parque era a mencr interferéncia possTvel na sociedade xinguana, continuou vigorando a poderosa ten déncia de rejeigdo % acumulacdo individual de poder, tendéncia es- +34, ta que parece propria das secigdades trivais de bea parte do conti nente (yor Clastres 1874, caps. II @ XI). Seria preciso uma histdria detal! tos, para que se pudesse estabelecer com precis&o a i administragio brasiicira no sistema politico xinguano. Estes da- dos sio diffceis de conseguir; mas suspeito que muitas das particu da dos casos concre - fiuéncia da Jaridades do Alto Xingu em sua interagéo com a sociedade nacional nio se explicam apenas por caracterTsticas estruturais do sistema social ali vigente, mas resuitam da poderosa infludncia que perso- nalidades individuais exerceram na histdria do Xingu. pds-1946. Re firo-me especialmente, para as aldvias ¢o sul do Parque, a Orlando Villas Boas, que por mais de vinte anos orientou o contato dos fa- dios com os valores e praticas da sociedade envolvente. E inevi- tavel que tenha filtrado estes valores através de seu prisma pes- soal, numa extensdo e diregio que nfo tenho meics de avaliar, Mas @ possivel afirmar que a histdria da politica xinguana é em boa parte a histdria das relagdes entra Orlando Villas Boas @ alguns Tndios que, como intérpretes e ajudantes, ligaram-se a ele desde o infcio, vindo a dosempenhar papel importante no sistema’. Mas, pa ra que possamos escapar dos imponderaveis da psicologie individual, basta atermo-ncs & situacdo formal do contato entre Orlando e os Indios do Alto Xingu. Orlando Villas Boas funcionou como Ider carismitico, respeitado ¢ amado pelos Tndios, ¢ exercende um mono- polio quase absoluto dos canais de contato entre a sociedade donde provinha ¢ a socjedade indTgena; ele classificava previamente os brancos que 14 entravam, mapeando a vis’o que os tndics tam cons- truindo do mundo dos brancos. Orlando cnsinava aos Tndics as misé rias e as poucas maravilhas da scciedade dos caratbas, protegia-os de um contato indiscriminado com forgas que cles mal compreendiam. Quase um xami, se o pensarmos dentro do repertéric de papéis xin- guanos? Talvez. 0 que importa 6 que a situacdo em que se encon- q) Os Kamayuré e Yawalapiti especialmente se beneficiaram da presenca dos Jas Boas. 0 primeiro grupo, pela proximidade com o Posto, e polo fato do fele- cido Leonardo Villas Boas tér-so Tigao bastante a-cles, recobeu a naforia dos visitantes desde os primiros terpos - ¢ ate hoje @ © grupo objeto do-maior nu- mero de publicacdes. Foram tanbem os “nodelos" para filmes e reportagens sobre a regido. 0s YavalapTti reconstrufram sua aldsia gragas a Orlando, dc quem se consideram os "predi letos". +35, trava Ihe conferia um poder muit grande, a partir do qual alguns Indios reorganizavam suas trajetdrias — os mediadores. 9 papel concreto de Orlando Villas Boas, e especialmente sua importancia simbdlica dentro da sociedade xinguana, restam ainda para analisar. Lango aqui apenas uma constatagao, e¢ uma sugestdo. Hoje, cada aldeia possui um individuo que se destaca pa- ra os brancos que a visitam, que @ objetc de conversa no Posto, que funciona como informante privilegiado dos pesquisadores, que recebe os visitantes em sua casa, que aparece nos filmes e repor- tagens sobre o Xingu. Séo “indios" que t8m um nome, um roste @ ura personalidade visTveis para o branco. Alguns solidificaram seu prestigio na eldeia ao longo destes anos, como Kanatu nos Yawala- piti, Takuma (nao sem dificuldades) nos Kamayura, Kuyaparé nos Ne~ hinaku. Qutros, menos habeis ou devido a situaco peculiar de seu grupo, nao tiveram sucesso, como Nahu, des Kuikuro. Todos parecem ter tido relagdes estreitas com Orlando Villas Soas, ¢ alguns tro- caram aliangas solidas —~ como Kanatue Takuma, cunhados. E bem possTvel, por outro lado, que esta individualizagao singular de at guns xinguanos, que os torna verdadeiros personagens dentro do dra ma do contato inter-@tnico, encontre bases na propria estrutura so como veremos adiante. cial “original” As fungdes principais do mediador entre a aideia e a ad> ministragdo so: transmitir as orientagdes do Posto sobre varios assuntos — visitas de equipes médices, medidas contra roubos, evi tagio do pessoal ido “Jacaré" (base da FAB), desencorajamento de execugses de feititeiros (que continuam a acontecer’) — 2 garan- tira distribuic&o equitativa dos artigos ocidentais que atingem a aldeia. 0 uso da mediagao em beneffcio proprio condene & perda das atribuigdes € ac chaque com o grupo (ou, mais frequentemente, com a faccio oposta). a) Ha poucos anos atras, 05 Kemayura executeram um faiticetre que se_havia re~ fugiado no Posto. £ comm este papel de asile quo s Poste, come tanbém outras aldeias onde_o acusado tenha parentas, dssempenha. fi forea do Posto nesta fun- G20 deve-se & protecdo que a administraczo @ cbrigads 2 exercar sebre 08 refugi ados. N&o obstante, esta execucéo do feiticeira pelos Kamayura foi realizada 12, dentro da propria casa d2 Orlando (que estava fora do Parque no momento). Isto levou a um certo estrenecimento das relacées entre Orlando e os Kamayura. 4 36. 0 sistema xinguanc & ¢ resuitade do um processo provavel, mente secular de aculturagic intertribal e de adaptagie 3s condi- gées ecoldgicas do Alto Xingu. fi chegada des brancos ¢ sou esta- belecimento definitivo na regiao através dos Postos da FUNAT intro duziu grandes modificagées na tecnologia dos grupos, com a intrody 80 de instrumentos de metal @ outros artigos, e, consequentenan~ te, criou uma dependéncia para com o Posto (em Ultima instancia, para com os centros de decisio de que a FUNAI depende) por parte dos xinguanos para a obteng3o da maior parte destes bens, uma vez que os visitantes ocasionais © a base da FAB no chegam a suprir suas necessidades com regularidade, As modificagdes nao atinairam a esfera das relagées de produgio de forma acentuada — santeve-se a divisdo sexual do trabaTho, o grupo doméstico e especialmente a familia conjugal como unidade de produgao, ¢ os padroes de distri- 23 de relativa de certas es buigde caracterfsticos (autonomia troca; auséncia de equivalente umiversal; Enfase na circulagdo ace lerada de bens pesscais através de trocas cerimoniais ckrigatorias). fs modificagdes polfticas, como vimos, so algo mais com plexas, @ centralizam-se no surgimento de uma nova funcio — nfo toe o necessariamente um novo cargo —~, a de mediacéo entre o Pes Grupo. Eventualmente, certos grupos — como os YawalapTti —- sempenham tal fungao diante de todo o sistema, mas sem — aican privilégics ou acumular riquezas que lhes permitam assumir posi assimétrica. fA funcio de mediagio foi “encaixada" no esquema oposigdes faccionais ja existente, recompondo-o mais ex termos de ; ina de um contedido que transformando-o estruturalmente em don gruge/facgio sobre outro. fs relacées inter-aldeias no “ito Xingu, marcadas pela simetria, a interdependéncia ritual (e interdepondancia em relagao a certas manufaturas que, na verdade, funcionayam también ritualmen, te, como emblemas de identidade grupal), a comunicagie constante ao nivel de trocas matrimoniais, asito a refugiades, parece teram sido relativamente pouco afetadas pelo surgimente do branco e sua sociedade. 0 Posto impds um centro fixe a um sisteme descentrali- zado, © surgiu como unidade que remetia pare fora de sistema, enga tando-o @ sociedade nacional (politica indigenista, introdugic de bens industrializados, introdugio de novos cédigos culturais @ no- vas mensagens); mas, mesmo por querer-se supra-local, nio partici- pa como unidade do mesmo tipo que as aldeias, que persistem no pa- 37. dr&o de eutonomia na esfera polfticc-econdmica e de interdependéa monial. Evidentemente, a violen~ cia como parte de um sistema c ta depopulagao do Alto Xingu @ fendmeno determinante, ave levou @ extingdo certas aldeias, provavelmente aumentando a proporgao de intercasamentos!, acelerando o processo de homogensizacio cultu- ral. FenSmenos como a recriacin de uma aldeia — os Yawalaptti & certo, devem-se a agentes da sociedade nacional, e, no caso rete. rido, tal recriacdo acarretou certas "quebras" de padrdes xingua- nos, como a uxorilocalidade temparatia ~ que traasformov-se em homens, @ deixou de existir para os YawalapTti que caseram com mulheres de otras aldotas. De um certo modo, a "grande transformacio" sofrida pela sociedade xinguana quando da chegada dos brancos deu-se ac nivel da consciéncia. A cultura xinguana passcu a ter que dar conta da existéncia de uma sociedade inteiramente diferente do sua, muito mais poderosa, ¢ dona de objetos e valores estranhos. Seu simbolo permanente para os nao-Yawalaptti & a espingarda (caravpa inukiifa, “a flecha dos brancos"), @ sua origem @ a mesma de todos os homens — os brancos, fithcs do Soi e da Lua, emigraram para longe do Xingu (aonde a humanidade — foi criada) nos primeiros tempos da criagdo. Seus criadores ~ seres mantiveram pensados Z imagem e semelhanga do xinguano (putika)® — junte a si seus prediletos, os xinguanos, mas tristes porque estes nao souberam escolher, dentre o arco, a panela, a armadithe de pes. cae a espingarda, o instrumento que Thes daria poder. 0 dono do poder teve de ir emorasagora ele veltau, e @ preciso conviver com ele. (0 mito de criag#o”xinguano, comum e todes os grupos da Zrea, pode ser lido em Agostinho 1974a M5, Agostinho 1974b 2, para versdes Kamayura. Em apéndice a este trabaiho, transcrevemos uma parte da versio YawalapTti — ver Apéndice ). £ a geragio nascida apis o contato definitivo com a sociedade nacional comega a alcancar posi 1) ©) evar possa haver preferéncia por endogania de aldeia (ver Gregor 1969, p. 4, e Becker 1969, p. 141), as aldeias xinguanas sao aganas, Esta "preferéncia" mecionada, ademeis, pode ser um fato ostatistico; mas realmente indivicuos de filiacio mista podem ver desqualificadas ou questionadas suas pretensces a che~ fia (ver, p. ex., Becker 1969 p. 147). (2) 7 = . E os xinguanos, pelo efeito de reverséo tio caractoristico das religides com herdis culturais, por sua vez tomam 9 Sol e a Lua como arquetipe e modelo (visual, verbal, etc:) de_si mesmos, putaka. A Filosofia da histGria expressa na mitologia xinguana sera esbocada no cap. IIT. 38, gGes de controle, e tudo aquils que eles vem no Posto, ouven nos radios, véem nos visitantes e se dic conta em suas eventuais vie- gens (alguns ao Rio e S. Paulo; outros as fazendas que vio fechan- do um circulo em torno — e dentro ~~ do Parque), faré com cue al- gumas modificagées advenham, mas quais? lo sei. 0 xinguano in= corporou o branco 4 sua cosmogonia (de maneira diferente do fuké Timbira, pois situa o branco na origem dos tempos — vs. fuk3, pro duto de uma sociedade ja estruturada —e ocoloca a0 lado des va- rios grupos que surgiram des macs de Sol e Lua ow do demiurgo Kwa- muty. Ver Da Hatta 1970), antes de um dia talvez incorporar-se & cosmogonia des brancos: seu sistema de crengas, sua escatolegia, seus rituais, nada disso foi ainda seriamente afetado; mas em al- que diziam os guns indivTduos j4 se percebe a divida quanto a: avos (awnati - os mitos). © Posto, assim, @ uma agéncia que tende a monopolizar os canais de contato entre a sociedade nacional ¢ a scciedade xingua~ na. Se excetuarmos a base da FAB, todos os brancos s6 podem en- trar na regi3o a partir do Posto, @ com autorizagdo da FUNAI. Igual- mante, os indios sd podem deixar o Parque com autorizacao da FUNAI — que normalmente sd a concede para tratamento médico ou cutras urgéncias. Mas, como vimos (pps. 7-11, supra), mesmo com este mo~ nopdlio, que the d& poder de definicéo sobre a leitura obrigatéria da identidade "Tndio", muitos conflitcs podem surgir entre as di- versas agéncias que mandam representantes ao Parque, sob 9 abrigo da FUNAL. ; A tmans'a’ mat orta de visitantes constitui-se de pesquisa- dores e reporteres, com predominio numérico destes Ultimes. Isto se deve ao esfergo consciente dos irmics Villas Boas em divulgar 20 maximo informagées sobre o Xingu, chamando assim atengéo para a necessidade de preservagio das fronteiras do Parque © pare a poli tica de ndo-interferéncia nas comunidades indfgenas. 0 Alto Xin- gu, em consequéncia, veic @ funcicnar como modelo do "“fndio brasi- leiro" em incontaveis reportogens, filmes, livros sobre o Brasil publicados no exterior, etc. Forts, saudavel, colorido, morando em suas aldeias circulares ¢ em suas grandes casas d2 palha, com suas lutas pitorescas, o Tndio xinguano veio substituir o velho Ty pinamba dos manuais escolares na func&e de transformagae do part cular em geral, do signo em sfmbolo. A sociedade xinguana tornoun se objeto focal, apoio visual, nas fantasias das populagdes urba-~ ly +39, nas sobre as frontciras entre Hatureza eo Cultura habitadas pola imagem ambTgua do indio — cra admirade 2 idealizado, ora idesliza doe desprezado. Contrariamente @ maioria dos grupos indigenas brasileiros, cuja realidade e presenga se fazem sentir scebretuds frente aos niicleos regionais, aos sitiantes, posseiros, fazendei- ros, patroes, o Xingu existe sobretudo para segmentos da sociedade nacional dictantes geografica e socialmente — 2s populaghes urba- nas, aonde o indic & mais facilmente idealizade come “bom selva- gem", posto que inofensivo, mais facilmente se prestande ac papel de Outro compensatéric. fies os fantasmas lucram alguma ccisa com a crenga neles: o Parque vai subsistindo gracas a esta divulgacao. Has esta funcio de "vitrine”, dosempenhada pela socieda- de xinguana diante da opinido piblica, nZo fof acompanhada de um conhecimento antropolégice aprofundado desta cociedade. Hutto de que sc sabe sobre cla dilui-se em revistas e reportagens, que mar~ telam incansavelmente nc “quarup" (kwaréy, nome Kamayura de uma ceriménia inter-aldeias que comemora a merte de un lider e o renas cer da sociedade — ver fgostinne 1974a), na Tuta corporal, © numa multidao de piteresquices desconexas. Vejamos entio o que se sabe sobre ¢ Xingu através de publicacdes académicas, de Yon den Steinen até hoje — os mais importantes. A _Etnologia e o Alte Xing Karl Yon den Steinen, psicoldgo de farmagio e aluno de Adolf Bastian, f tribos xinguanas.’ °E o fez em publicacdes que at3 hoje sic referén cias importantes (Yon den Steinen 1942 11886] ¢ especialmenre 1940 {1894|). Sua equipe (Paul Ehrenreich, Peter Yogel, Wilaelm — Von den Steinen) realizou duas viagens aos formadores do Xingu,em 1884 e 1887, partindo de Cuiab’ e atravessando o rio Paranatinga, ne divisor de aguas Xingu-Tapaios. Cartografou e explorou uma area inteiramente desconhecids. Na primeira viagem, aTcangou os BakaT- ri do Paranatinga ¢ manteve breve contato com os Suy3; na segunda, subiu o Kuliseu e deteve-se entre os grupos propriamente de Alto Xingu. Um dos objetivos principais de Yon den Steinen era a cole- © primeiro etnSlogo a mencicnar a existéncia das ta de material etnografico para o ftuseu de Berlim, 62 acorde com 0 colecionismo da etnologia da Spoca — especialmente 2 alemi —, que postulava a necessidade de se recolherem os Gltimos vestigios de seciedades fatalmente em extin acelerada. Por outro lado, ° se ng solamentd da sociedade na- Xingu fascinou Von den Steinen per seu i “laberatério", ideal para 2 cional e a manutengdo de um estado de” verificacds de suas hipdteses sebre a ocrigem c a natureza da culty ra. Assim, além de consideragdes sobre es centros de dispersc das famflias linguisticas sul-americanas (Von den Steinen fez importan tes contribuicoes para a classificacao das linguas indTgenas, a partir da situagdo xinguana), o Unter den Naturvdikern Zentral-Br. siliens apresentava inumeraveis conjunturas scbre a conquista do fogo, a passagem da economia da caga para a agricultura, o papel das mulheres na sociedade primitiva (vinculado ao desenvolvimento da agricultura), 0 papel dos animais nas cerimdnias ¢ na arte dos povos primitivos do mundc inteiro ~~ e o autor debatia aqui a ques t&o do naturalismo vs. geometrismo na arte primitiva —, a couvade e@ seu significado, a mitologia solar, a crenca na magia como deri- vada do desejo, etc. Quase tudo que se discutia na antropologia da €poca. f formagao de psicdlogo infletia as hiipdteses de Von den Steinen em direco a uma teoria psicologizante da origem da cultu- ra, embora impregnada de marcado utilitarismo. 0 que resta de precioso na obra de Von den Steinen, para 0 estudioso do Alto Xingu, sdo as descrigées pormenorizadas da cul tura material — mascaras, adornos, instrumentos de trabalho — @ da arte xinguana, além da coleta de alguns textos mitices (Bakatri) e certas informacdes fragmentarias sobre relacdes inter-aldaias. Sobretudo, Von den Steinen permite uma certa profundidade histéri- cana analise de ges locamentos geograficos @ demografia. Depois do pioneiro, sucederam-se visitantes i regiao, co, mo Hermann teyer (Heyer 1897, 1898, 1900), Hintermann (1925). itax Schmidt (Schmidt 1942) e Patrullo (1932). Pouca coisa, entretanto, foi acrescentada as descobertas de Yon den Steinen, @ a preocupa- gao dominante continuava a ser a cultural material. Foi apenas em 1939, com Buell Quain, aluno de Ruth Benedict, que um grupo xingua no mereceu um estudo monografico abordando os varios aspectos de sua vida social: os Trumai. As notas de campo de Quain foram pu- blicadas por Robert Murphy (Murphy @ Quain 1958). 0s autores su- blinharam a exist@ncia de uma sociedade xinguana, nao apenas uma “Grea cultural", mas um sistema de interdependéncia e comunicagao em varios niveis entre os diversos grupos locais (p. 10). (1) ps obras de Mayer permanecem em alenSo, lingua que nao Teio. 4. 0 trabalho de Quain G uma etnegrafia geral, algo ligsi- ra, @ ganha maior interesse na descricao do ciclo de vida Trumai, aonde fica clara a importancia do corpo como suporte simbdlico de estados e processos sociais (op.cit., cap. V). Quanto & organiza- Go social, chama a atencao para a auséncia de mecanismos elabora- dos de controle social (um tema repetido por pesquisadores ulterio res), a Enfase na circulacio acelerada de bens 2 o papel central da familia nuclear como unidade econdmica. 0 trabalho de Kalervo Oberg (Oberg 1953) @ também uma etnografia geral dos Kamayura, trazendo informagées scbre a forma- ¢%o dos grupos residenciais (aonde constata uma acentuada flutua- gdonarcomposigao e recrutamento, bem como a auséncia de regras ni tidas“de residincia), sobre a aquisicdo e significado d2 — certos statuses centrais (lutador, "chefe", xami), ¢ sobre ¢ parantesco — onde indica a vigncia de regras aparentemente inexistentes, co mo a do casamanto prescritivo com = prima cruzada (op.cit., p. 663 ver Viertier 1969 para o uso extensivo e cr¥tice dos dados de Oberg). Entre 1947 ¢ 1952, pesquisadcres do Museu Nacional visi- taram a regigo, publicando artigos sobre demografia, situs, de contato, fauna regional, cerimonias inter-aldeias, culture mate- rial (ver Carvalho et alii 1949, Carvatho 1951, Galvao 1950, Lima 1950). Eduardo Galvao faz uma sintese da cultura e sociedade xin- guanas com destaque para os sistemas de parentesco;em Galvao 19535 apresenta listas xgmparativas das terminologias de aiguns grupos, 2lhantes. +)» due~ nterpreta © sugere que os principios que cperam nestas sao muito Em 1950, 0 mesmo autor descreva a corimonia do yauant (Ka lo inter-aldeias com o uso de propulsores de dardos, = este jogo como canalizador de tensSes, superaco ritual da guerra, apontando para a natureza potencialmente conflitiva da relagao en- tre os grupos jocais do sistema xinguanc. Robert Carneiro e Gertrude Dole, além de um levantamento geral da cultura dos Kuikure (Carneiro e Bole 1956-58), publicaram artigos que tratam de aspectos particulares da snciedade xinguana, especialmente economia, politica intra-aldeia e relacSos sociais in formais. Carneiro (1973 |1961| © 1960), em trabalhos #e crienta- cao neo-evolucionista/ecoldgica, faz uma analise da diet2 e agri- cultura Kuikiiru, questionando algumas idéias classicas sodre a agricultura de coivara ("slash and burn") ¢ as economias de subsis 42. téncia, como o esgotamento acelerade de sclo e a ausincia de exce- dente. Chama a atengao para a abundancia de suprimentos dla econe- mia KuikGru, a disponibilidade de terras ardveis que leva ao seden tarismo docruza, a independéncia de cada far de produg&o, a produgdo de um éxcedente sazonal de mandioca (que perfaz 85% da dieta) para estocagem na Spoca das chuvas, ¢ cronom_ Tlia nuclear em termos tra o tempo de trabalho necessario @ subsist@ncia: 5 horas didrias, entre roca e pesca, 0 que daria margem a um largo perfodo de 1 zer, contrariamente ao que se postulava para as economias de “sub sisténcia". Embore apciado em oposicées discutTveis (tradalho/ia- zer), os artigos de Carneire contribuiram para a recolecagao da questéo do excedente em Antropslegia Econdmica (ver Godelier 1969, cap. III). Soe Carneiro (1956-58) discorre sobre as relagées extra-mari tais entre os Kuikiru, sugerindo a independéncia de casamento e da sexualidade, bem como indicando (sem desenvelver, o qua Ellen Becker faria mais tarde) uma area de escolha individual dentro des ta sociedade — embora prefira atribuir a difusdo das relagdes ex- tra-conjugais a uma "permissividade” ¢ auséncia de controle sccial, o que € antes uma abdicagdo que uma analise. Dole (1966), a par- tir das mesmas constatacdes de auséncie — de agéncias de sangao social, de autoridade dos chefes — vai procurar os mecanismos que evitam 0 caos na sociedade Kuikiiru: as acusacdes de feiticaria co- mo forma de assegurar a sociabilidade e a adesio a um ethos (de generosidade, cooperacao ¢ comportamento pacifico); o xamanismo co mo agSncia de aldcacao de responsabilidades sancionada pelo sobre-~ natural (adivinhacao). Dole choma ainda a atencao pare a articula gio entre a organizagdo cerimonial @ a mobilizagdo do trabalho co- letivo, que se faria assim fora da ostrutura politica (7), ¢ que se apdia na nogao de "dono" de amprasas cerimoniais ou econdmicas, entre um individo e 2 comunidade implicando prestagées alimentar (0 que @ retomado em Dole 1956-58). Finalmente, correlaciona a fraca autoridade da chefia com a depoputacdo pis-contate © sobretu do com a existéncia de uma estrutura de parentesco cognatica, que levaria "superposicao de lealdades" ¢ & impossibilidade de agio corporada, redundando numa “anarquia". Das pesquisas realizadas apds 1960, as mais importantes s%o a de Ellen Becker sobre a organizacao social dos Kalapaloe a de Pedro Agostinho sobre a cerimania do kwarép entre os Kamayura. He Xingu Society (Becker 1969; 0 material @ interpretacics ai contidos aparecem também em Basso 1970, 1972, 1973a ¢ 1875, sem grandes mudancas) & sobretudo uma an@lise da arganizagao de parei- tesco Kalapalo. Seu objetivo & descrever os princfpios que organi. zam uma sociedade nZo-segmentar, sem linhagens, com reconhecimento cognatico, sem grupes de descendéncia (p.20). Identifica assim uma categoria central — 0 ofomo, kindred bilateral —~ que no funcio- na como grupo, mas como termo mais abrangente de uma taxonomia de relagdes baseadas em certos sfmbolos de filiacto ce — fraternidade (siblingship). fo otomo como categoria de clessificaghe do indivt duos vai corresponder uma categoria basica da sistema de atitudes — 0 dgutisu, vergonha ou respeito, melhor traduzfvel como genero- sidade, comportamento pacifico ¢ elusio da indivicualidade. A andlise da terminologia oferece uma selugio original ia xinguana: a classificagéo dos primos cruzados, ora reportada como “havaiana" (primos cruzados = a um problema antigo da etnolo paralelos = irméos), or2 como “iroquesa® ou “dravidiana” (primos cruzados biletcrais # primos paralelos @ irmios). Dole 1969 (ver também Dreyfus 1969) sugeria que estas duas terminologias refletis, sem estados histdricos: a “iroquesa" correspondende a um estado "original" de casamento prescritivo com a prima cruzada bilateral e GZ exogamia de aldeia, a "havaiana" ou geracional a uma endogamia de aldeia posterior & depopulacin'. Elien Becker vai explicar es- ta alternatividade na classificacio dos primes a partir do cri té- rio que batizou de ,"afinabilidade" (affinibility) — op.cit., p. 53. 0 sistema terminolégico funcionaria assim em dois nfveis de contraste — no primeiro, a terminologia & geracicnal, apoiada na unidade da categoria de siblings: no segundo, os tracas"travidiancs" refletem o sistema de casamento, onde a prima cruzada (classi fica- téria e/ou socialmente distante) @ cénjuge potencial. A autora aponta a inexist@ncia seja de crupos, seja de categorias de descendéncia, e vai procurar vestigios ds agac corpo vada ao nivel do grupo doméstico e da aldeia. Ainda aqui, reconhe ce a auséncia de regras rigidas de residancia, a qual melhor se ex plica pela combinago de miltipios fatores de ordem polftica (status, qa) - < Por que motive a depopulacdo levaria a esta endogamia algo que gscapa a neu entendimentos acresce que recorrar 4 depopulacéo para explicar fenomenos aue nao se compreends & sempre discuttvel. <4. relacgoes anteriores entre afins, formas de casamento). Na verda~ de, esta-se diante de uma sociedade sem grupos corporados — base- ados ou _n&o em parentesco! — onde a questac de fronteiras e leel- dades nio se coloca, e onde o numero de “regras" € pequenoe sua aplicagao fluida e limitada. Becker ataca o problema a partir da nocio de categoria (opesto a gruga) e de uma abordagem que busca estratégias mais que regras; sai assim para o lado da taxcnomia (ws. analise de grupos sociais concretos) ¢ da andlise de casos ilustra tivos de estratégias (de casamento, de aquisigée de certs statuses). Em sua conclusao geral, a autora estabelece um ponte crucial: " .. 9 modelo aprosentado para o Xingu implica uma nitida Gnfase sobre a ‘pessoa’ |signifi- cando aqui conjunto de identidades sociais sub sumidas em um indivfduc — Goodencugh 1965] mais gue sobre qualquer ‘grupo’. Isto @ uma fungao necessaria dos dados, e nic uma predis~ posigao tedrica do antropdlogo. Numa socieda- de em que os individuos nado sio classificados icagao em em unidades ou 'segmentos', a classi ‘categorias de relaco' torna-se crucial, @ as categorias de relacicnamento |"categorias de relagdo" significa aqui rotulos de classifica- go de individuos como "tipos de parente' tegorias de relacionamento" refere-se acs rotu los qué: denotam dircites/deveres diante das cate§orias de ralago|, ¢ seus sTmbclos,tor nam-se og meios principais de determinago do sistema enquanto processc ... ... Num sistema sem 'segmentos', tudo se passa como se as cate gories relevantes fossem as que concernen ‘status’ (em sentido Tatc), © ado, comm nas so ciedades segmentares, ‘categorias de descendén cia"" (Becker 1969, p.285-6). 1 a Este € um ponto intaressante. fo tomar_como "outro" de cemparagic es socie dades segmentares - mas cujos "segmentos” sc, no tipo ideal, cefinidos a par= tir do parentesco - E. Becker erre o alvo. Pojs inumeras sociedades ndo-segmen. fares ao nivel do parentesco, organizadas em kindreds, pessiem grupes corpora - dos © segmentos de outra natureza, p. ex. certmontal, come € 0 caso dos Ge (Tim bira, Suya). 45. Isto nos leva a interrogagdes sobre o papel do indi viduo em tal sistema social, sobre a natureza des modelos nativos (pois do modelo analftico ja sabemos algo a partir da citacao acima), © sobre o que seria especifico da sociedade xinguana diante ce ou tras sociedades ndo-segmentares ao nivel do parentesco'. Com a tese de Ellen Becker, atingimos um momento em que a etnologia xinguana passa a sec if cativas, saindo da esfera do descritivo e das interpretagées par- ciais para alcancar o nivel das discussdes sobre modelos de socie- dade. Mas seu trabalho carece, per autrs lado, de sensibilidade para com a cosmologia e 0 simbolismo xinguanes, sua andlise de or- ganizacéo social @ "rasa" e algo formalista, deixande marger a uma maior exploragdo das ressonancias simbdlicas des fendmoncs que es~ tuda (ver Becker 1976, para uma crTtica um pouco exagerada deste aspecto do trabalho de £. Brecher Basso). 0 trabalho de Pedro Agestinhe (Agostino 1974a) situa-se no extreme oposto. Trata-se de uma etnografia detalhada do kwanép Kamayura, a cerimOnia inter-aldeias realizada no fim da estagac sé car questées realmente sig ca em honra de mortos pertencentes a categoria dos “capitaes"(Kam. morenekwat, Yaw. amufaw). Sua preccupacéc @ articular 2 ritual ¢ uma parte do ciclo miticc Kamayura sobre a origem dos homens (embo ra recorra a outros mitos), de forma a que e mito elucide cs aspec tos do ritual, a verdade, 9 movimento unidirecional, pois, sen. doo objato de Agostinho o ritual, este nunca é usado para eluci- dar o mite, que pérmanece como referéncia Ultima, dagma da cultura xinguana. ad 0 autor descreve fase por fase o “ciclo do kwanép", da morte do futuro comemorado, com os ritos de imposigas 2 suspensdo do lute, até 4 luta corporal antre membros da aldeia anfitria e das aldeias convidadas para @ corimonia, em seu Ultimo dia. Incor- pora as festas da estagdo chuvosa, especialmente a do pequi (Caryo car Villosum), ao ciclo do kwaxép. Analisa a organizacio sScio-e- condmica do kwarip, chamando a atengio para c fato de que as ceri- mnias sfo um dos principais mecanismos de integragao entre os gru pos residenciais, normalmente. auto-suficientes em termos de produ- qa) ~ 4, = 0s trabalhos de E. Becker Basso fornecem informagées ¢ interpretagies em va rias areas da vida Kalapalo, de que beneficiarei ao Tongo deste trabalho, como ser vera. 46. 80 e consumo, e, ‘mais ainda, de intearacdo entre os grupos 1o- cais (caso de algumas festas) — cap. II. Descreve os diverses pa- péis cerimoniais do kwaaip, todos eles construtdos a partir da no- g3e capital de “dono” (Kam, yayat), ¢ acompanha as prestacies ¢ contraprestagdes econdmicas (alimentos vs. bens de valor) efetive- das durante a festa entre estos papsis cerimoniais. Descreve em seguida, em detathe, as dangas, a luta corpo ral, as pinturas e enfeites usados na cerimfnia, buscando, neste Gltimo caso, uma légica (novamente referida ao texto mftico) no uso da pintura e enfeites corporais. Nas conclusdes, Acostinho vai interpretar o kwarép como encenagic do mito de ortgem da huma~ nidade, e uma representagio da reiagio de alianga que une os gru- pos locais (hostilidade e cooperacic) — um recriar dos cosmos xin guanos (p.156) a partir da desordem introduzida peta morte, negada pela atencao dedicada pela comunidade aos vivos: & nesta cerimonia que as mocas saem de sua reclusao pubertaria, tornando-se simbolos ceneretos da continuidade — procriagio — da sociedade. 0 livro de Agostinke contém muita informagdo scbre simbo lismo xinguano, especialmente — 0 que nos interessa sobremodo aqui — escatologia © ritos corporais (reclusio, escarificagdo, etc.). Vamos nos referir constantemente 2 ele no decorrer deste trabalho. Devo lembrar ainda os artigos de T. Sregor sobre a re~ clusic dos adolescentes dos xamis na sociedade Nehinaku, e sobre as relagdes extra-conjugais; ambos quiados pela hipdtese de que as sociedades xinguanas (ou sub-sociedades, grupos locais), por se or ganizarem de formd a tornar muito expostos os individues ac olhar da comunidade, desenvolveram mecanismos de compensagéo desta "fal- ta de privacidade" estrutural (Gregor 1970 e 1973!). Finalmente, a etnologia xinguana j& conta com varias co- letineas de textos m¥ticos: Schultz 1965/66 con cs mites Wauras 1 $0 tive acesso a tese d2 Thomas Gregor (Gregor 1969) quando a redacéo de presente trabalho estava em curso. Rasicamente, seus artigos publicedés reto- mam_os temas da tese. Esta toma como cbjete as estratégias de desempenho dos papéis sociais na_sociedade fieninaku, partindo da constatacde (pressunosto?) de uma fraca definigao de papeis, associada ao tamanho da cominidade: inspirando- se também em Sinm1 ¢ Goffman, Gregor analisa as formas de controle de informa~ {G0 exercidas pelos individuos, dentro de uma sociedade extremanente cniscienta, por seu tamanho ¢ estrutura espacial. Quando possivel, as interpretecces e da~ dos de Gregor sergo utilizados. Villas Boas 1972,:mitos Kamayura e (poucos) kuikGry; fgos tin’ 19742 2 1974 mitos Kamayurd; Honod-Becquslin 1975, toma IT, mi tos Trumai. Algumas etnografias trazem vers3es abreviadas ov pardfra- ses de mitos, como Murphy e Quain 1955, Oberg 1953 ¢ Becker 1969. Em todas as fontes, verifica-se uma homogcneidede neotavel nes mi~ tos de diferentes grupos lingufsticos, cantrada em : um longo ci cle de criagdo da huna: sin, Yaw. Kwanaty), do Jaguar, de mulheres feitas de pau, ¢ de Sole Lua, g@meos, filhos do Jaguar ¢ das mogas so os instituidores dos costumes tribais, inventores da maioria ade, a partir de um demiurgqo (Kan. Havut- pau, Selo Lua das artes da civilizacao xinguana (ver Laraia 1970). *Como se vera, usaremos o material mitico como fonte cdicionat de dad siderar que o discurse de informante sobre aspectos da organizacas por con- esmo tipo de trata - mento — a analise est} pligque considsrar nos mito @informacio seciolégica como discursos no mesmo plano de "pealidadé™ ‘Oua"verdade". mbes so modelos, diante dos processos sociais concretos. social e a narrative mitica sic passTveis do nm sem que isto i ural = Este Trabalho: Propostas ¢ Pressupostos A citagio de Ellen Becker &@ p. 44 coloca uma questao que se entrevia nas etnografias © artigos sobre a sociedade xinguana: de como encarar a “fluidez®, a ausncia de unidades soctais niti- das, a flexibilidade das regras naste sociedade. Quain pudera a~ tribuir estas congtatagdes ac setado de desagregags em que se en- contravam os Trumé? Carneiro limitava-se a constatar una "permis~ sividade" @ a auséncia de grupos de parentesco que wediassem entre a fanflia nuclear e a comunidade; Dele buscayva os mecenisens fun- actisaghes de feitigaria, xenan cionais de integracao socia moe (ponto crucial, que n3o explora co a do *done* da certas ceriminias. Becker fi- 2 devia) a organizagi: cerimo- nial baseada na id nalmente, teorizou sobre estes “traces”, mestrando cono seria pos~ bre categories de relagio @ regras/estratégias de relacionamento, mais que scbre 0 estabelecimento de inexistentes grupos ou segmentcs corpsrados. Is to a levava a indicar a prevaléncia da nocko de "pessoa axplo~ vada) no sistema, @ a desenvolver os princTpios formsis da um sis- tema de categorias cognaticas (em oposicio a sistemas grupes ‘eo uma Enfas: sfvel compreendé-los 4 partir 248. cognaticos — ver Scheffler 1963 para esta distingao}. fas, quais as implicagées desta focalizagéo na “pessoa” —- que para a autora 3 simplesmente um locus pontual de superposigade ts statuses — ? 0 que significa isto para uma compreensao da cosmologia xinguana? 0 problema de Ellen Becker ere constrastar o sistema de parontesco Kalapalo com o da sociedades scgmentares, com grupos de doscendén cia — isto 8, sociedades onde o parentesca define grupos, unida - des sociais bisicas, alam de disper de uma terminologia e de um sistema de atitudes. Isto @ justemente o que nao ocorre com o pa- rentesco no Xingu, e cm muitas sociedades sul-americanas, onde ou- tros princTpics de integrag%o do individuo na sociedade (aldeta. grupo local ou sistema inter-grupal) vigoram. Has ent&o, quais se riam estes princTpios no caso xinguano, e como eles se articula- riam com o dominio do que se chamou de "parentasco" (na falta de outro nome), este tino afinal uma mediacho dificilmente cispensa vei no fornecimento da matéria-prima social — es individuos bicld gicos? Para as sociedades "unilineares", Meyer Forte ja pestula- ra a linhagem como o ele que articularia a famflin.com@stice com as instituigdes polftico-jurais mais amplas (Fortes 1953). Para outras sociedades — sem linhagens, sem unilinearidade ou estuda- das por antropdlogos nao-tradicionais — outros sistemas cu insti- tuicdes desempenhariam esta funcic: sistemas de nominagio, graus de idade, grupos cerimoniais racrutados sem base na terminclogia “de parentesco", @tc. (3 0 case das sociedades G8 do Brasil Can- tral). Em qualquer casos pordm, surge o mesmo problema, que afi- nal & 0 problema cantra da antropelogia social: que — mécenismos, ingtituigdes e sTmboles engrenam os indivfduos bicligicrs ac siste ma social, tanto em termos “simbdlicos" — i.e. humani os in= tornando-os sere A idSia de grupo foi pedra do toque deste grebleme por muite tempom corporacao, fonteiras, identidade: uma constelacio de temas tecida em volta da relagdo abstrata entra “indivfduo" 2 “sociedade". fas a visio da sociedade come sistema organizadc e estavel de relagies entre grupos (idealmente linhagens} parece votada & erftica antro- poldgica moderna. Haveria sociedades que ndo funcicnem assim. Pa ra guiar nossa discusséo, tomemos outra passagem de £. Becker so- bre o Xingu: "NK sociedade Kalapalo € também instrutiva en~ quanto exempto de um sistema em que unidades dividuos — quanto "reais" — i +. sociais como © erupe local ¢ os grupos domésti cos (households) existem apenas gragas ac indi viduo que decide neies viver e af cooperar. Diferentemente de muitas outras sociedades nac- ocidentais aonde seus membros edquirem, — por nascimento ou outros meios, a obrigacgac de par ticipar em unidades sociais cujas relagdes re- ciprocas estado pré-determinadas, indenendente- mente da identidade de seus membros, a organi- zagio social Kalapalo se carac incorporacéo a grupos (group membership) extra mamente flexTvel e por uma variagao considerd- vel na identificag3o des individuos com grupes especTficos" (Basso 1973a, p. viii}. erize por .uma Esta observacggo de Ellen B. Basso insere-se no movimento geral de critica aos modelos, baseados sobretudo na experténcia com sociedades africanas (e inspirados na Roma dos juristas), da antropologia social britanica. 0 progresso da etnografia na Amé- rica do Sul (especialmente com ¢s astudos sobre os grupos Gé — ver Maybury-Lewis 1974 |1967| @ Da Matta 1976b|1970|, na Oceania e no sudeste asiatico tém desmentido as formulacdes mecanicistes ¢ idea listas desta escola “jural" que tem em Radcliffe-Brown seu patro- no, chegando mesmo a por em divida a eficicia de tais modelos na propria Africa (ver Barnes 1962, Keesing 1970). A crise do concei to de descendénciasunilinear, a “dascoberta" de sistemas cognati- cos, a preocupagdo‘em se confrontarem os modeles idzais (nativos ou do antrop6loge) com os processes concretos — tude iste aponta numa mesma diregao. Consequentemente a esta reaco, desenvalyeram-se modelos de anilise aonde as variaveis “contexte” e “ascolha” sic bEsicas, aonde a sociedade passa a ser vista como disponde de modelos alter nativos de agao, capazes de serem manipulados pelos individuos em funcdo de seus interesses conjunturais — ver especialmente Leach 1954 para a primeira formulagao explfcita deste ponto. Pare esta tendéncia, a sociedade xinguana seria um caso privileciade — fle~ xibilidade das regras, auséncia de grupos corporados, pré-determi- nados, sistema cognatico que permite o uso de modelos estraté- gias (ver Leach 1962 para a conex3o entre sistemas cognaticos e estratégia). Aqui, entretanto, gostarfamos de fazer algumas discrimi- nacdes importantes, que indiquem a posigio deste trabalho. Em pri meiro lugar, dizer que uma sociedade nao se estrutura a partir da exist@ncia de relagdes ordenadas entre segmentos cu grupos corpora dos nio € a mesma coisa que dizer que esta sociedade esta frouxa - mente estruturada. Além de regras ¢2 incerporagéo a crupes e rel: cionamento entre estes, existem regras ~~ oodem existir — que in- corporam o individuo & sociedade de outras formas. Neste caso, "so ciedade" nZo significa sistema de relagies entre unidadzs sociais concretas, mas @ melhor compreendida como conjunte de simbclos e regras de relacionamento entre pessoas, que sao comuns a um certo nimero de indivfduos. Estou aqui lembrando uma distingao de Mary Douglas entre categoria (grid, sistema de regras que ligam os indi. vTduos numa base ego-centrada) e grupo ("a experiéncia de uma uni- dade social fechada") (Douglas 1970, p. viii). consideragao con junta destas duas variaveis daria conta, segundo a autora, de ca- racterfsticas gerais das sociedades!, como sua atituds diante do desvio, sua concepgio do destinc, sua concepcdo de papel e lugar do indivTduo, sua forma de pensar o corpo e a linguagen, etc. Co- mo se vé, tal ponto de vista permite articular a organizagao so- cial com a cosmotogia de uma sociedade — e @ af que a lembranga de M. Douglas possibilita transceder observacées analogas, sobre a oposicao grupo/categoria, mas que se atinham a esfera do parentes- co (como a desenvolvida por Ellen Becker). Desta forma, nosso pro blema neste trabajho € desenvolver as implicagdes do que yem sendo afirmado sobre a Sociedade xinguana, a saber: que ela & frouxamen- te organizada em termes de "grupo", ¢ que seu sistema de regras, ou também & fluido, ou esta ancorado em outros sTmbclos que os que marcam a existéncia de grupos. Em outras palavras, de que forma se da a incorporacao dos individuos a sociedade enquanto sistema simbélico? E considerar a sociedade come sistema simblico — 9 que nao @ negar sua existéncia evidente ao nivel empirico — @ re- meter este problema para uma analise da cosmolcgia. Isto nos leva a uma segunda distingao. f reagio aos mo- delos classicos de andlise da organizacdo social 2 0 resultado de um progresso na descricao etnografica, de um exame mais atento dos (1) permitindo a construgée de tipologias - tentacic perene da antrepologia bri tanica. ela fatores dinamicos da vida social. ileste sentido, tal reagic vai ter consequéncias no estudo de qualquer socieda dades sao mais frouxamente organizadas do que fazia crer a antropo logia "jural". Assim, por exemplo, Naybury-Lewis (1374, Preface) vai afirmar, a propdsito dos Gé: “ "Todas as sociedades GS sio mais fluidas e mais fracamente organizadas do que pederia supor a : todas as socie tecria antropoldgica tradicional ... Esta niti dez |das sociedades ‘unilineares' caras 2 an- tropologia dos anos 40| & na verdade um artefa to dos modelos antropoldgicos. Uma vez que cuidemos de documentar, aZo somente as regras, mas as varias estratSgias de sua aplicagio co resultado que estas acarretam, entdc a nitidez surge como mascarando uma consideravel flexibi, tidades! Isto posto, nossa questao na verdade & cutra: para ume caracterizagio especTfice da sociedade xinguana, que a — permitia distingut-1a de outras da Am@rica do Sul (dos 68, por exemplo, as~ sie me sunto da citagao acima), nac basta subscrevermos uma propos todoldgica geral. Pois, 9 que nos interessa aqui saber @ at@ que ponto também as “regras" — cu os modelos nativos — sfo ou nto fluidos e flextveis. f oposigzo pertinente nfo & mais, ou apenas, entre "modelo" @-t!pratice", mas uma oposich compartiva implfci ta” entre diferentes hedelos nativos. fissim, as sociedades Gé, apesar de sua fluidez orgdnizacional concreta, oferecem uma grande comple xidade ao nivel da organizagao social “ideal”: metades, classes de a) 7 Ecos de Leach (1954, p. $e 55.). Mas @ evidente que a “flexidilidade" re. centemente descoberta tambem @ um “artefato dos modelos antropelogices"; negar {sto € cair na ilysdo de que as novas teorias refletem linpidemente uma realida, de confuse. No maximo, o que se pode dizer é que a cocumantacgo de estratégias @ resultados de aplicagéo das regras leva a um modeTc antronotagico mais comple to. (2) Implfcita porque neu objetive neste tradalho nao @ realizar yn estudo com parative entre a sociedade xinguana e cutras; mas pretendo centribuir para a cempreensae conjunta do Xingu @ das sociedad2s sul-americenas, ne redidn em que estarei usado ~ ver adiante - conceitos ¢ desccbertas elehorados tudo des- tas outras sociedades. bee idade, sistemas intrincados de nominacao, etc. £, se nem todos os G@ possuem linhagens cu podem ser estudados do ponto de vista da antropologia tradicional (ver Seeger 1976), apresentam em contra - partida certas regras de residéncia muito nftidas, que permitem ac antropdlogo a elaboracac de modelos mecanicos (no sentide de Lévi- Strauss 1958, cap. XV) — enquante o Xingu, em termos de organiza~ So social, seria melhor descrito por modelos estatTsticos (cf. op.cit.). Nosso objetivo, portanto, @ analisar o “modelo nativo" — as categorias de pensamento Yawalapiti — sobre o lugar de sua so- ciedade dentro da Natureza, o papel do individuo dentro desta rela Gao entre Sociedade e Natureza enquanto domfnios simbdlicos. as etnografias sobre os grupos xinguanos sublinham a fluidez organiza cional para terminar focalizando o individuc. Seguindo estas cons tatagdes, resta saber o que & este "individuo" dentre da cosmolo- gia xinguana. Por cosmologia entendo @ visdo que uma — seciedade tem de si mesme dentro de uma classificagaic geral do mundo — como ela se distingue de outras esferas de realidade, como se ¢iferen- cia internamente — através de que simbolos —, como pensa o esta- tuto de sua matéria-prima — os individuos biol@gicos. 0 caso Gé permanece como marco comparative — por oposi cio — interessante, por dois motivos: foram objeto, estas socieda des, das meThores etnografias recentes sobre sociedades brasilei- ras, € permitem o acesso diretc ac autor que melhor caracterizou a cosmologia indfgéha sul-americana: Claude Lévi-Strauss. Em primed ro lugar, os trabathos sobre grupos G& nes levam a colocer certas questées basicas sobre a realidade xinguane. Assim, ror exemplo, Da Matta (1976b|1970|, 1973), desenvolvendo uma sugestas de Melatti (1976 |1968|), demonstrcu come os grupos Timbira jodum ser analisados a partir da oposigao entre uma esfera doméstica, atuali zada na periferia da aldeia! ¢ écominada pelo parentesce bilateral baseado em crencas sobre grupes de substancia fisioldgica, @ uma esfera publica, vigente no centre e apoiada numa nega goes que definem a esfera domésticz, substituindo-as pelas rela - (1) igo apenas no caso G8 - que leva isto ao limite - mas tanbém ay Xingu, _ organizagao social e a cosmologia sa> conczitualizadas atraves de us> referéne cia privilegiada ao espago - 0 que € ccerente com a cnfase nos grucs e regres de residencia, em oposigac as sociedades ccm linhagens, onde a referencia pare- ce sera dimensio temporal. gdes de nominagdo e os grupos cerimoniais. Esta oposigio, por sua vez, se apdia num dualismo cesmoldgice entre Hatureza e Cultura, 0 qual, a crermos em Lévi moldgico-saciais nas sociedades sul-americanas (ver Lévi-Strauss 1964, 1967). Hesta diregdo, como a sociedade xinguana articularia es- tas duas esferas? Como veremos, 2 nocéo de substancia também capital na cosmologia xinguana, definindo categorias de parentes, engrenando 2 Sociedade na Naturoza, @ estabelecendo relagées entre individuos e a comunidade. Has, diferentemente dos G3 (pelo menos dos Timbira e Suya), os xinguanos n3o parece separarem radicalmen- te os mecanismos de fabricagis do individuo bioldgice dos proces- sos e@ simbolos que mobilizam a comunidade come um todo. A organi- zagao cerimonial xinguana ~~ Iocus da integracte da comunidade — est@ intimamente associada aos rites de ciclo de vida, colocantt assim em comunicagao direta as concepgdes fisioldgicas e as rela - goes sociais nao redutTveis a um substrato etno-bioldgico. Por ou tro lado, a cosmologia xinguana parece n¥o pader ser reduzida a0 dualismo Natureza/Cultura, caracteristicamente encontrado nas so- ciedades Gé (ver Seeger 1971 para uma analise detalhada destes do-~ minios entre os Suya. grupo que nos interessa especialmente por Strauss, subsumiria todas as oposigdes cos partilhar de alguns tracos da culture xinguana mantendo 2 armadura sOcio-cosmoldgica Gé) — nao hZ aposictes radical entre homens e animais, entre “biologia" e "sociedade", ¢ assim por diante. Isto no invalida absojutamente 2 ubilizacio das categorias de Natureza @ Cultura cono instrumentos conceituais, que dever apenas ser refi nados diante da cosmologia xinguana, que, néo-dualista, parece an- tes basear-se num esquema de gradactes entre modelos-arquatipos e atualizagdes destes modelos; dualismo, se ha, reduz-se 4 oapesi¢cao entre modelo e atualizacio, nunca transcedida (esta @ a mensagem constante dos mitos xinguanos). fas este nZo-dualismo pode ser iluminado pelo exemplo de sociedades dualistas. £ isto se inscreve auma hipdtese mais ge- ral, que adianto aqui: seguindo Lévi-Strauss, as sociedades indTge nas da América do Sul partilham de um repertGrio simbGlico limita- do, diferentemente combinado em cada uma delas; trata-se aqui de elucidar a combinacdo singular efetuada no Xingu. Certss nogbes serio encontradas aqui e acola: a nogae de substancie fisiclogica comun a um grupo de indivfduos, qu2 acarreta certo namerc de cren~ gas © praticas muito semelhantes em sociedades por vezes onos outros aspectos, pode servir de exemple nriviiegiaca. Hla verdade, esta nogio — substancia — que anroxima va- rias sociedades sul-americanas, permitindo desenvoiver inéias a ternativas ao complexo linhagem-corporagio (ver Seeger 1976), nos remete @ um tema importante da antropologia sut-americana, elabora do por Lévi-Strauss. Refiro-me 3 nocdo de “légica das qualidades senstveis" (Lévi-Strauss 196%, p. 10) que abriu caminhc @ toda uma linha de pesquisa em cosmotogia. Ela parte da constetagao de que o pensamento indigena utilize certas substancias naturais (sangue, s@mem, fogo, agua}, materiais da oxperiéncia concreta da percepgio (cheiros, estados slimentares, atributos animais, correlagdes espa o, soxualidade, a- ciais) @ experiéncias sociais basicas (casamen Jianga) como instrumentos de conceitualizagao da sociedad € orge- nizagio dos homens nos cosmos. fissin, Lévi-Strauss constréi o con ceito de cédigo (1964, p, 205) — dimensdo semntica organizada em torno de oposicées especTfices (sociolégicas, alimentares, senso- riais, etc.) — para dar conta desta conceitualizacéo, e procura mostrar come o discurso mftico de uma sociedade estrutura homologa mente varios cédigos, estabelecende correspondéncias entre eles de forma a transmitir a mesma mensagem em varios canais. Esta mensa~ gem @ um conjunto de variacdes sobre o tema Natureza vs. Cultura, sobre as condigdes necessarias ac estabelecimento conccitual da Sociedade: uma Filosofia social. Ko presente trabalhc, nic nos manteremos preses 20 dis- curso mitico dos YawelapTti cu dos xinguancs em geral, mas tratare mos nosso material — o discurse dos informantes ¢ shservacies con cretas — como uma forma de mitclogia “implfcita” (ver Sument 1976), isto 8, como elaboragdo conceitual sobre a Sociedads 2 partir de uma légica das qualidades sensfveis, Ora, uma das negtes que con- gic desta lagica dantro des proces- sidero basicas para a atuali sos sociais concretos & justamente » nogio de “substancia“, ques como veremes, nao reduzirei aos fluidos sexuais tidos como respon- siveis pela concepgao humana e pela delimitacko de categorias de individuos (os “parentes de sudstancia"), mas, a0 contrario, pro- curare{ integrar num esquema mais ample de comunicags entre a so- ciedade e seus instrumentcs de pensamento: substancizs noturats, qualidades sensTveis e relacées sociais. Uma hipdtese espoctfica que tratarei de eladara ginas que seguem diz respeite eo papel fecal que o corps nha no pensamento Yawalapiti, enquanto suporte de sTmbolos de tran sigio social (passagens ~ reclusdo) ¢ referencial privilegindo pa- ra 0 simbolismo de relagdes sociais globais - cariménias. Aqui nos encontramos com as obscrvagées de Yicter Turner sobre e polari. dade dos “sTmbolos rituais", que estabeleceriam uma rolacze metafo rica entre significados sGcio-morais, normativos, referentes @ es- trutura social enquanto relagées entre grupos ¢ papSis scciais, e significados referentes a processos naturais e fisiolégices (Tur- ner 1967, p.28-29; 1973). 9 corso como metafora da sociedade @ um tema bastante desenvolvico na antropelogia do simbolisma moderna (Douglas 1966, 1970, Turner op.cit. de varias maneiras como matriz simbolica, o que nem sempre esta mas 9 corpo pede ser usado claro para estes autores (especialmente . Douglas). No caso os YawalapTti — e das sociedades conde foram identificadas a crenca em grupos de substa@acia — a Gnfase @ monos em “limites o frontei- ras" corporais,.que mimetizariam a chados, do que em uma légica das substancias soxuais e alimentares que devem ser retidas, expelidas, incorporadas ou mantidas fora. fA Enfase € menos na forms que na substancia , menos nas frontei- experiancia de grupos ais fe ras que na comunidade de uma substancia partilhada. Nestes casos - no caso Yawalapiti — o corpo & aigo mais que uma superficie @ um conjunto de oriffcios capazes de receberem a fungio de matriz metaférica cas fronteiras e interstTcios no sis tema de classifichgio geral da sociedade~. Sem deixar de desempe- q) Mas ha diferencas significativas no use do corpo como simolc dentro des- tas sosiedades con grupos "corporais® (por.cpcsicae 2 gociadaces con | grupos corporados — Sceyer 1976). fssim, os Suy3 € outros Ge inscrevem no corpo, ¢€ {ncorporam n2 sociedade, o$ atributos sensfveis que define o horem social - fa Ja, audigao (Seeger 1975)3 enquanto os xinguancs preocupam-se mais com um sinbo lismo fisiclogico que visual. ~ (2) - Carneiro da Cunha (1975, p. 112) estabeTece uma relacao entre o resguardo, a perda de sangue e a pele como fronteira fisice-social entre os Kraha3 mes, em bora intarprete 9 resguardo do grupo de substancia cone mecanisms de delimi ta~ gio de fonteires , evita explicitancnte reduzir sua interpretacso a0 esquema de Mary Douglas (1970) acnde corpo = modelc formal da experiencia sccial. Por outro lado, @ autora vai dar ao sengue_uma énfase - talvez compatTvel com ¢ pen. samento Kraho - que termina por reifica-lo como a substancia por exceléncia (pps. 105 e ss.)3 no caso xinguanc, deve-se cclocar o sangue dentro ce um siste ma mais anpTo; acnde entram o sémem, o vomits (uso de enetices), e clguns ali mentos. nhar este papel, como veremos, ele no entantc focos cantrais de preocupacdo da cultura xin pracesso continuo de fabricacéo, e nao @ aparentemente negado por um princTpio opostc, que distinguisse o individuo bicldgice da per sonalidade social, ou persona. Novamente, os GE nos servem de ter mo de comparagao: enquante estes opdem claramente o “ator” @ o “per sonagem® (Hellati 1976 [1968], p. 175-8), isto 3, os aspectes bio- légicos individuais dependentes da relag8o com um genitor @ os as- pectos socioldgicos coletives dependentes da relag%o com um nnming realmente ¢ ma, abjeto de ain dor, 0 individuc xinguano nao padece de um duelismo t32 radical, @ & através de sfmbolos retirados da asfera “bioldgica” que statuses que _socializam 0 individuo dentro ¢o repertdrio xinguano sac pense dos', Westa altura de meu trabalho, nfo tenho isto cinda claro: mas desde j8 indico a corporalidade como dimensao focal do sist: xinguano em tades os niveis -- nao apenas 20 nivel da “esters méstica". & propria modalidade basica da relagao inter-aldeies — 2 luta corporal, esporte para c quel es jovens sio exaustivamente preparados — se funda nesta dimanso, Das observagdes sobre a fluidez org a vizacional xinguana, chegamos @ atribuigio de uma importancia inusitada (nas sociedades nBc-ocidentais) ao “individuo". Passando por atguns conc: elaborados pela Antropologia de sociedades indTgenas — brest lei (substancia, légica do sensTvel, cosmelogia baseada em disting do tipo Natureza/Cultura), chegamos 3 corporalidade como dimens focal — hipdtese:— da cultura xinguana. Neste camino, algo d xou de ser considetado. posig&o expressa por £lton Becker na citegho & itos deste trabalho fazia 2 organizagae social Kalapalc depender de uma "decis%o" do “individuo” em se iacorporar ou n&o a grupes. Isto nos traz 4 memdria uma outra tradigéc da fintropologia, melhor re- presentada na obra de Leach (195%), que, em cposig&o aos modelos formais e@ automaticos da fintropologia de Radcliffe-Brown e seguido res, defende a idSia de que os sistemas sociais devem ser vistos co mo sistemas dindmicos, e — este @ 9 pento — tal dinemismo se de~ ve ao confronto de indivfduos que, manipulando as categorias cuitu ttase psico rais disponfveis, lutam por posigdes de peder, Uma ai -sociolégica universal scbre as motivagdes da age social (Leach CY 9 sinbotisme xinguano ndo & do tipo "enegético" caro aos Ndenbu, mas_exiqe a elucida ae dos "contextos significantes" por parte do antroploge (Turner 987, p. 57. 1954, p.10). Ora; a descoderta de sociedades om que a margem de escolha deixada acs individuos @ alta (o que, come ja dissemos, nZo & a mesma coisa que — sociedades "fluidas" cu "frouxamente or ganizadas") parece nfo ter, na Antropologia mederna, levado em con ta o fato de que a nocdo de individuo # talvez o produto mais tipi, co da cultura ocidental (ver Dumont 1966). Antes que se afirme que tal ou tal sociedade esta centrada no individuo, que sua compo sigio varia de acordo com os interesses destes individuos (interes ses que, em ltima analise, se seguirmos Leach, resumem-se na bus~ ca de posigdes de "poder"), que cs grupos sao fluidos, € preciso saber como a sociedade em questdo define indivTduo, Nosso recurso portanto, as nogdes de substancia, de corpo, de mecanismos de in- corporagdo do individus biolagico a Scciedade enquanto esfera sim- bdlica, pretendem justamente ser um ataque inicial ao problema de saber qual a concepgao de indivfduo no Alto Xingu. Uma palavra sobre o uso aqui feito de estudes sobre os GE. NGo estamos supondo nenhuma similaridade estrutural — o que seria absurdo — entre as sociedades G8 e cs xinguanos. que ha de comum entre estas duas sociedades (cu culturas) sio certos te~ mas gerais, cuja combinacdo especTfica no Xingu me interessa. claro que, se quiséssemes buscar semelhangas estruturais ~ @ nao diferencas, como € 0 caso na comparacdo Gé/Xingu — seria mais a- juizado ir-se ao Alto Solimées, UaupSs cu Venezuela — aos grupos Carib © Aruaque da area —, ou cinda ir aos ini@mercs grupos Tupi, cuja cosmologia parece ter alguns pontos em comum coma xinguana. Has nossa quest&o ‘aqui @ apenas lancar mio de algumas idéias que foram desenvolvidas pelos estudantes das sociedades Gi — © quen’o se esgotam nestas sociedades. Eventualmente, recorraromos a mono- grafias sobre as regides etnocraficas acima referidas, qu minarem aspectos especificos da realidade xinguana. Outra palavra, sobre c uso de materiais colhides em ou- do ilu- tros grupos xinguancs que os YawalapTti para completar e€ esclare- cer nossos parcos dados. Uma vez que pretendc trabelhar a partir de categorias nativas de pensemsnto, coloca-se de imediate a ques- tac da 1?ngua: qual o estatute de conclusdes tiradas e partir ¢¢ recurso a categorias Yawalapfti misturadas com ternos Xelapalo ou Kamuyura? Linguas tao diferentes nao recortariam o real ce ranei- ra diferente, invalidando nosso artiffcio? E possTvel. ‘as estou partindo de uma constatacdo — talvez um dia desmentida—: cs gru- 58. pos xinguanos, apesar da diferenga linguistica, partilham um 36 sistema cultural (além de constitufrem uma sociedade), i.e. racor- tam a realidade de forma aproximadamente igual. A Teitura dos tra balhos de E. Becker e de P. fgostinhe, checada no campo através de tradugdes para o Yawalapiti, forneceu-me este impressao. E claro que ha diferengas de grupo para grupc, devidas a pressGes es. pecificas que cada lingua exerce sobre a cultura comum; mas, an- tes que um problema, isto nos ajuda 2 slucidar problemas. Como ve vemos, a classificagéo animal YawalapTti permite que se entenda me animal Ka- Thor — por uma questao linguistica — 2 classifiers Japalo, analisada por E. Becker em suas relagdes com a dieta xin- guana (Basso 1972). Passemas entio a uma descric&e dos YawalapTti, tal como os vi em 1976 e como cles me contaram. No irei me demo- rar sobre detalhes etnograficos que nos desviem do abjetive deste trabalho, pretendendo neste capTtule seguinte apenas tecalizar 0 grupo dentro do sistema xinguano. 59. CAPITULO IT OS YAWALAPITE Introdug¢ Os YawelapTti, como os demais xingusnos, vivem basica- mente da egricultura e da pesca. A caca redun-se @ algun: aves consideradas comestTveis (jacu, mutum, macuco, pombe), Raca- cos-prego, também comidos, @ a aquisicac de penas para enfe certas aves sio tamb&m procuradas para animais ce estima no cuitive da mandioca brave (maniot ‘uti~ lissima, Pohl), que perfaz, segundo Carneiro (1973), 95% da dieta xinguana, Gutras variedades de mandioca também sao rlantadas, em muito menor quantidade!. Milho, banana, algumas espacies de fei- plantas cultivada nandioca, os YawalapTti manti- agricultura concentre-s j3o, pimenta, tabaco e urucum s%o outri + Due rante meu perfodo de campo, alm nham pequenas rocas de milho, piantavam pimenta ¢ tabacc. Estes dois iltimos itens sao principalmente condimentos prdprios des xa- mas — o tabaco, sobretudo, tem importancia na vida sobrenatural. © urucum serve de tintura corporal. fA pesca (que preenche 10% da dieta, segundo Carneiro, op. cit.) & atividade masculina por exceléncias os rios da recide sie abundantes em peixe, e, na Gpoca da seca, quando os rios baixen, os Yawalapiti utilizam redes (de procedéncia brasileira), eis zeis, flechas © timbd (cipd cuja seiva asfixia os peixes) para a obteng3o deste alimentc, 0 rio em que se localiza a atual aldeia YawalapTti n&o camporta peixes muito grandes; em certas ocasides os homens se destocam até c Kuluene para grandes pescaries os peixes sdo comidos assados direto no fogo, moqueades — (colocados sobre jiraus @ fogo lento) ou cozidos. Este iltimo processo @ usa do quando a comida @ pouce. 0 fruto do pequizeiro, que abunda no auge das chuvas de janeiro e fevereiro, completa o trianguic basico da alimentagao xinguana. Os pés de pequi sao ditos de propriedave individual, e cada aldeia costuma ter em sua volta extensas plantacoes desta ér- vore. Os Yawalapfti sao podres em vequi Epoca da coleta e & em parte armazenado sob a agua at? a Gpoca das cerimonias inter-aldeias (julho-seterbro), quando, juntc 2c peixe 0 peaui @ processado na (1) so piantadas na divisa das rocas. -60. moqueado @ ao mingau de mandioca e beijls, constitui o alimento ce rimonial por exceléncia. 0 pequi do cru, assado ou diluido no mingau de mandioca. Seu armazenamento sod a Agua por meses da- The um gosto acido e delicado. A mangaba € também fruta consumida na regido; os Yawata- piti ndo possuem plantacdes de mangabeira, ¢ seu sTtio atual & po-~ bre nestas drvores. Na Spoca das chuvas, comem-se outras varieda- des de frutas, como o inga, a macaliba 2 outros frutos do palmeiras. aproveitades peles Yawala~ fibras de buriti para das casas, taquara para fle- A regiae & seus recursos sao piti para a totalidade de suas necessidades redes e cestos, sap® para a coberty chas, madeiras variadas para fins variados, rafzes e folh como remédics. 0 sal usado na ali pelos Mehindku, @ provém da coccae das cinzas de uma planta aqua- tica. As grandes panelas de preparagdo da mandioca proven dos Hehindku e Waur&, que detém a tecnologia do sua fabricacic @ 9 acesso ao barro do funde de cortos rios. A mandioca @ plantada pelos homens, que derrubam, quei- mam, limpam as rocas, Estas sao proprietade individual, masculi~ na, assumida t&o logo o jovem entra em reclusée (14-17 anos). =A terra em si nio @ objeto de propriadade, mas sim a plantacie de mandioca. As mulheres arrancam as rafzes, carregam-nas, ravam-nas e@ espremem 0 suco veneneso destas. A mandioca @ consumida basica- mente sob a forma de beijd (uéart) -- torrada de polvilho, chata, assada em tachos circulares —, de mingau de beiji dissolvido om Agua (ueuai), @ ep jun mingau resultante da fervura do suco veneno-~ so (nukaya). 0 polvilho que resta no fundo ¢as panelas de espre- mer, bem como parte da massa, armazenado am silos no centro das ontacha & fornecido op cipalmente casas. A cozinha & feita indiferentemante por homens e mulhe- res, no que diz respeitc aos produtos da pesca; a manipulagdo da mandioca depois de plantada, contuco, @ inteframente feminina, fs mulheres $30 encarregadas além disto de trazer toda a agua consumi da pela aldeia. So elas que fiam o algodao — também plantado—, tecem as redes, as esteiras de espremer mandioca, preparam a pasta de urucum, o dle0 de pequi e a tinta de jenipapo, usados na orna ~ mentag3o corporal. Os honens fazem os cestos, os instrumentos ce- rimoniais (flautas e chocalhos), e realizam tedos os trabalhos em madeira — bancos, arcos, pildes, pas de virar o beiji, etc. Sao 61. os homens que constroem as cases (ver Junqueira 1975 para uma anad- lise da divisdo do trabalho). 0 ciclo anual de atividedes pode ser assim esquematize- dor coleta 2 processamento do pequi; chuvas fortes, pouce peixes consumo dos estoques de mandioca. Cerindnias in tra-aldeia, ligadas ao pequi cu nao, e Focalizanda a ope sigdo Homens/Mulheres. Fevereiro:Aguas no maximo, escassez alimentar. Margo: comego da colheita da mandioca; baixa das Aguas. Abril: derrubada, queima e plantac&o das rocas. Naio: comeco da Epoca da abundancia de neixes. Junho-dulhe: Frio; colheita de mancincas ceriminia éaataka (Ka yawort) ligada @ apariche vespertina das Pidindes no he rizonte ocidental. Agost desova dos tracajas; plantacao de mandicca. Preparatives para a cerimonia amakak@té (Kam. kwanép). Setembro-Outubro: comego da estagdo das chuvas; realizacae das grandes ceriménias inter-aldeias. Processamento e esto- cagem da mandioca. ezembra: chuvas, pequi. Novemb ro-D. (Adaptado de Becker 1959, p. 317; ver adiante as cateco- rias de tempo YawalapTti). Este ciclo de atividades marca a vida econdmica e cerimo nfal das aldeias txinguanas, com perTodos de abundancia/contate in tergrupal e perTodes de escassez/vide fechada na aldein, qu respondem as épocas de seca e chuva, respectivamente. Wo ha, en- tretanto, oscilagées ¢ deslocamentes espaciais importantes; as tri. cor- bos sto sedentarias, ¢ a abundancia de terras disponfveis para a agricultura (ver Carneire 1973) faz com que todos os grandes deslo camentos j@ ocorridos no Xinge devessem-s2 e guerras e & interfe- réncia da sociedade nacional. A aldaia YawalapTti tYpica, assim comc todes as oldeias xinguanas, @ circular, com uma praga (Yaw. uékaka) iimpa de mato no espaco interior. No centro desta praga costuma erguer-se uma casa destinada a ocultar as flautas apapazu dos olhos das mulheres, © ponto de reunide masculino. Ao entardecer, os adultos, horens, 62. da aldeia reunem-se em frente a esta casa para fumar e conversar. 0 centre & o lugar onde se enterram os mortos, aonde os hemen 5 se retinem, aonde os visitantes so recebidos fermelmente, aonds se realizam es lutas (kaat) entre membres de aldeias diferentes du- rante todos os encontros formais inter- apapaiu tocam, 2onde ¢ chefe profere seus discurses e axortacoes, aonde os pagamentos cerimoniais de alimentos so feites. Na peri- foria erguem-se as casas, idealmente de planta elfptica, ccbertas de sapé, de propriedade geralmente masculine. A composigéo resi - dencial de cada casa varia, o niicleo sende geralmente compesto de uma familia extensa virilecal ou de homens que trocaram irmis. Nas casas se dorms, se cozinha, se morre, nascem os fiihos, tém-se re- Jagoes sexuais. £ igualmente em gabinetes fechados que se encer~ rupais, aonde as flautas ram, no interior das casas, os adclescentes em reciusdo pubertaria, os casais com filhos recém-nascidos ¢ os villvos no perfods de Tu- to. Cada casa forma uma unidade de cooperacko econdmica relativa- mente independente das outras, especialrente no caso das ativida- des femininas. 0 espago interng da casa ndo comporta divisdes, ex ceto os gabinetes de reclusao, e as famflias armam suas redes con~ tiguamente; a separagio se faz principaimente no uso dos esteics que sustentam a extremidade interior das redes: nunca se ve mem- bros de grupos de substancia (i.e. pai/mia/fiihos) diferentes arma rem suas redes no mesmo "poleire” (amaka manéia@ea)', a nao ser que este seja um dos osteics da casa, quando entio recebe cordas de varias redes. fs redes formam um Teque, ao longo das paredes in- ternas, deixando'um espaco central para circulagio préximo as por- tas, que s¢ abrem no cixo maior das casas, uma yoltada para a pra- ca, outra para o exterior. E prodximo a estas portas que sentam as pessoas que precisam de luz para realizar alcum trabaihc, pois 0 interior das casas @ muito escuro. flo centro da casa, do lado da porta traseira, hd um fogo comunal para a fabricacao do beijis ca- da casal, por sua vez, tém um fogo nraximo as reces para cozinha e calor. A aqua & cuardada ew crandes paneles (de aluminic, nos YawalapTti} que ficam geralmente junto aos esteios centrais da ca~ sa, do lado da porta da frente. Pela madrugads c ao mio-dia, as (1) enbora no tenha que haver ums® poleiro para toda a “femfli2" Lesbo ainda que marido € mulher, condicho da existéncia deste “grupo de “substincia", de que falaremos adiante, néc esto Tigndos por laces de supstancia. 63. mulheres v3o em grupo até o ric, buscar agua. A vide na aldeia comeca as 4.30/5.00 horas, cuando as mulheres vao buscar agua; pouce depois, as rapazes vac tomar ba~ nho — este banho na manha fria @ censideradc ben@fico para o tuta dor —, @ um pouco mais tarde os mais valhos. Em sequida os ho- mens partem para a roga, langando gritos agudas Thar na matas ou entio organizam uma pescaria. co antes retornam; entéo se come o que na. fs manh3 processando a mandioca trazida no dia anterior — ou nesta madrugada — da roga, ¢ & tarde pedem fervar ¢ mineau aukaya. x tarde os homens descansam, fazer trabalhos manuais ou vio pescar/ fas fic » con ot eatar — pio- Thos, pentear-se. Os jovens se pintane se crfeitam. 0s homens mais valhos dirigem-se ao centro, convocedos 7 para “fumar". As 19.00 horas todos comecam 2 se racether, 2 socis bilidade se reduz % volta do fogo das redes (famflias aucleares) e por volta das 22.00 horas todos dermem. cagar. No cair da tarde az fa = na portn das casa ipulando mutu: i versando, mi te os cor; © cono da alde Historia Os Yawalapiti ocupam um sTtio denominado Emakay © sua aldeia atual — pois neste sitio ja se ergueram, prdximas tre si, tras aldeias, todas referidas coro *Emakepaku” — esth per to da margem esquerda do Tuatwart!, afluente da margem esquerda de Kuluene. Ela dista cerca de 1,5 km a sudceste do Poste Leonardo, e abrigava, em setembro-outubre de 1976, 86 pessoas, distribufdas em § casas. f aideia anterior, a 200 matros da atual, possufa 8 casas, e foi abandonada em fins de 1975 — por estar infestada de formigas e por ter sido a cena de un acidente (morte de um adoles- cente Kuikiru por disparo acidental de uma espingarda, atribuTdo a outro rapaz Yawalapiti) que levaria perice mistico a seus habi- tantes ®. A aldeia atual ainda est& inacabace sua praga ainda (1 patavea Kanayura? En Yaw. Tépa-tipa ("pedra") em sua boca, Vanapueu — uéfia — rio Yanapiku” (=?) — em seu madic curss @ Sduku-taku wina — "ric do buri- tizal" — em suas cabacciras. 2 @) © pai _do_rapaz, quo abandonou os YawalapTti pouco depois, teria proferide uma encantagdo, por vinganea, destinada a “acabar com a aldoia™. 6 n&o tinha side limpa fora erguida, ¢ algumas familias estevam morande na casa da “done da aldeia" (Sa irua)!, planejando contruir suas casas em brave. Von den Steinen (1940, pps. 142-148) visitou duas alde- jas YawalapTti em 1887, localizadas no alto curso do Twatwart, nu- ma regiao entre lagoas e pantanos identificada nelos YawalapTti atuais como sitie de indmeras aldcias suas. 9 etndloge aleméo im- pressionara-se com a pobreza destes Tndios, que mal dispunham de alimento para oferecer aos visitantes — e os YawalapTti idontifi- caram esta @poca como o inicio de sua decad@ncia come grupo, que iria culminar na dissoluc3e da aldeija ha 40 anes atras, Yon den Steinen nomeia dois chefes Yawalapiti, Mapukayaka, 9 velo cego, e mato, a “casa das flautas" (Kuakati) nao Moritona (Aritana?), xam& — nomes que ainda hoje mantém-se nos YawalapTti, os quais sao capazes de tragar su aqueles contemporaneos ce Yon den Steinen. O nome “YawalapTti® significa “a aldsia dos tucuns®® ¢ @ usado pelo grupo como autodenominacao, alternativamente 2 Ema- kapuku wékéia (“donos de Emakapuku"). Esta aldeia dos tucuns se- ria a mais antiga recordada pelo grupo; os YawalapTti afirmam ter movado antigamente mais co norte, neste “YawalapTti", situada en- tre o Posto Diauarum e o travessde Horena (sTtio proximo 4 conflu- Encia Kuluene-Batovi). De 18 teriam safdo devido a ataques dos Manitsawa? — alguns dizem dos Trumai — que dizimaram muitos Ye~ walapTti. 0 chefe desta aldeia, @ ancestral histdrico mais remoto ascenddrcia até 1 7 Esclarego que dsdrei nas paginas que seguen os termos “chefo" e “represen- tante" como sinonimos de putakd wikéti - "donc da aldzia"; esta funci normal ~ mente deve ser preenchide por um sé individuo, e nac deve ser confundide com 0 termo "capi tao" ou "Tider", que usarei_as vezes como tracucao de amufav ~ clas- se de individuos Ifderes de grupos comisticos, com prerrogativas nes cerimonias jnternaldeias, e centro os quais cestuma sair'o “dona da aldeia". — "Capitéo" por outro lade, refere-se mais proprianonts ao medindor brencos~aideia; ele po- de ser un “chefe", quase sempre @ un amulai. Amudamas ("ifderes") normalmente Sao chefes de faccdes. Tudo isto sera ciscutide em detalhe quance discerrermes sobre as categories de poder e representacac Yaualapiti. (2) PYavatal - paineira tucun (Bactris setosa)s_ /pUtl/ = aldeta meragio de individuos de uma especie, por cposigao a putaka, ald social e também "Indio xinguano". 3 (9) ventas Boes 1972, p.32. 0s Manitsawa, grupo instrusivo, teriam side dizi- mados pelos Suya (Villas Boas, op.cit.) cu pelos Kamayura (Seeger 1271, p.61, que observa que "Kamayura" & o nome genérico des xinguanos usado pelos Suya). local de glo em sentido

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