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UNIVERSIDADE ESTDUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

DIOGO HENRIQUE CARDOSO

Chefes, Aldeias e suas Histórias:

Memória e Política no Alto Xingu

Campinas

2018
DIOGO HENRIQUE CARDOSO

Chefes, Aldeias e suas Histórias:

Memória e Política no Alto Xingu

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em


Antropologia Social do Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas da Universidade Estadual de Campinas para
obtenção do título de Mestre em Antropologia Social.

Orientador: Prof. Dr. Antonio Roberto Guerreiro Junior

Este exemplar corresponde à versão final da dissertação, defendida pelo aluno Diogo Henrique Cardoso
e orientada pelo Prof. Dr. Antonio Roberto Guerreiro Junior em 05/11/2018.

Campinas, SP

2018
Agência(s) de fomento e nº(s) de processo(s): FAPESP, 2016/04777-8
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9719-3085

Ficha catalográfica
Universidade Estadual de Campinas
Biblioteca do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
Cecília Maria Jorge Nicolau - CRB 8/3387

Cardoso, Diogo Henrique, 1992-


C179c CarChefes, aldeias e suas histórias : memória e política no Alto Xingu / Diogo
Henrique Cardoso. – Campinas, SP : [s.n.], 2018.

CarOrientador: Antonio Roberto Guerreio Júnior.


CarDissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas.

Car1. Etnologia - Xingu, Rio (MT e PA). 2. Índios Kalapalo. 3. Línguas caribe. 4.
História oral. I. Guerreiro Júnior, Antonio Roberto, 1984-. II. Universidade
Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: Chiefs, villages and their histories : memory and politics in the
Upper Xingu
Palavras-chave em inglês:
Ethnology - Xingu, Rio (MT e PA)
Kalapalo Indians
Karib Languages
Oral history
Área de concentração: Antropologia Social
Titulação: Mestre em Antropologia Social
Banca examinadora:
Antonio Roberto Guerreiro Júnior
Aline Fonseca Iubel
Marina Vanzolini Figueiredo
Data de defesa: 05-11-2018
Programa de Pós-Graduação: Antropologia Social

Powered by TCPDF (www.tcpdf.org)


UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Dissertação de Mestrado, composta


pelos Professores Doutores a seguir descritos, em sessão pública realizada aos cinco de
novembro de 2018, considerou o aluno Diogo Henrique Cardoso aprovado.

BANCA EXAMINADORA:

Prof. Dr. Antonio Roberto Guerreiro Junior (PPGAS/Unicamp)

Prof. Drª. Aline Fonseca Iubel (PGGAS/Unicamp)

Prof. Drª. Marina Vanzolini Figueiredo (PPGAS/USP)

A Ata da Defesa, com as respectivas assinaturas dos membros, encontra-se no


SIGA/Sistema de Fluxo de Dissertações/Teses e na Secretaria do Programa de Pós-
Graduação em Antropologia Social do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.
Para Hagema Kalapalo, ―pai‖ (apa),

e Daniel L. Cardoso, uhinhano (―meu irmão mais velho‖)


Agradecimentos

Sem a confiança, o cuidado e a generosidade de minha família indígena, na qual incluo


todos os moradores da aldeia Caramujo, este trabalho não poderia ter sido feito. Minha
mãe, Kaua, meu tio e tia Airá e Kanhu, meus irmãos Napü e Samuel, minhas irmãs
Cida, Ana Maria, Iemanjá, Ligia, meus primos, primas, sobrinhos, sobrinhas,
cunhado(a): Lamati, Nahugigu, Kujauma, Aipatse, Breno, Akuku, Isaura, Jauaikuma,
Tsumaku, Katisa, Jho... enfim, todos que, durante o tempo em que me receberam eu
suas casas, me ofereceram muito mais que um incentivo para fazer essa pesquisa: a
viveram comigo, me ensinando e dando a viver muito mais do que ela através de seu dia
a dia na aldeia: obrigado! Eu tenho muita saudade de estar aí com vocês.
Em especial, agradeço a Hagema Kalapalo, apa (―pai‖), professor, parceiro de
caminhada, quem me acompanhou desde o primeiro dia em que cheguei em Canarana,
me acolheu em sua casa, me incentivando a escrever, a pensar, a ter coragem e força
para construir uma vida melhor para todos nós: eu entrego este trabalho para você.
Também não poderia deixar de agradecer, em particular, a Paiatu: Hehu,
obrigado pelas aulas de kalapalo, de pesca, pelas transcrições e traduções das narrativas
que estão neste trabalho e por todo o companheirismo na aldeia. Agradeço também a
toda a sua família, que mora em Kaluani, pelas inúmeras vezes em que me receberam
em sua casa com tanto carinho e generosidade. Um fraterno abraço no Max, Luano,
Peiecu, Bruce e Mathie, pela parceria, aulas (dadas e recebidas), pelas garupas na moto,
pelas risadas e pela amizade.
Ao meu orientador Antonio Guerreiro, sou grato por toda dedicação e incentivo
com o qual tem me guiado na pesquisa desde a graduação. Sempre acessível, humilde e
horizontal, dentro e fora do ambiente das aulas e reuniões, me abriu incontáveis
caminhos de pensamento. Em particular, agradeço pela confiança, paciência e esforço
em me orientar no mestrado, me possibilitando conhecer o Xingu e ajudando a redigir,
com diversas leituras, críticas, materiais e sugestões esse trabalho.
A minha mãe Mara, meu pai Manoel, e ao meu irmão Daniel: sem o suporte
familiar de vocês, a segurança e o incentivo cotidiano que me dão, jamais teria
conseguido realizar meus estudos, muito menos fazer mestrado numa área que pude
escolher com garra e paixão em razão de seus cuidados e exemplo.
A Lara, companheira, amiga, cuidadora, presente que me aterrizou tantas vezes
nos momentos difíceis da escrita, acompanhando-me de perto com sua silenciosa
tranquilidade, agradeço do fundo do meu coração por tudo que é e me fez ser. Sempre
me dando força e alegria, me fazendo ver beleza nas pequenas coisas, me ajudou a
permanecer em movimento... Se não fosse por ela, teria ficado atolado várias vezes no
caminho.
As amigas e amigos do projeto SiRAT: Luiza Serber, Ian Packer, Fernanda
Amaro, Betânia Lima, Veronica Monachini, entre outros, agradeço por todas as vezes
em que pude compartilhar ideias desse trabalho com vocês e recebi comentários e ideias
que tanto o enriqueceram. Em especial, agradeço a Gabriela Aguillar, pela terna
amizade e por todas as conversas acolhedoras ao longo do processo da escrita.
A professora Suely Kofes, por todas as vezes em que, desde a graduação, se
dispos a me ouvir sobre minhas ideias de pesquisa (que tanto mudaram desde lá).
Depois, por ter aceitado participar do exame de qualificação deste trabalho: obrigado
pelo olhar despertante e sutil com que leu a versão parcial dessa dissertação; sem as
suas leituras boa parte dela (e talvez eu) estaria ainda num zanzar sem rumo.
Agradeço à professora Marina Vanzolini, pela leitura que fez da versão parcial
desse trabalho em minha qualificação, realçando pontos chaves de meu diálogo com a
bibliografia e para a estrutura do texto final, e por ter aceitado a participar da banca de
minha defesa. Por esse mesmo motivo, agradeço às professoras Adriana Testa, Aline
Iubel e ao professor Renato Stztutman, por se/me entusiasmarem a receber este texto
final.
Aos meus amigos Marcelo Hanser Saraiva, Daniel Dinato, Vitor Queiroz e
Pedro Spigolon Barbosa, pelas infintas vezes em que, conversando e se alegrando, nos
demos conselhos e ideias que estão na base desse trabalho (e de outros). Obrigado,
sobretudo, pela amizade, carinho e horas fora das horas, onde o meu e o nosso não se
distinguem.
Agradeço, por fim, à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo
(FAPESP) pelas bolsas de estudo que possibilitaram o desenvolvimento da pesquisa
através do processo nº 2016/04777-8, e ao projeto Jovem Pesquisador ―Sistemas
Regionais Ameríndios em Transformação: o Caso do Alto Xingu‖ (processo FAPESP
nº 2013/26676-0), pelo auxílio na realização de minhas viagens de campo.
[...] Dans des régions diverses de l‘expérience, je crois apercevoir des
groupes différents de faits, dont chacun sans nous donner la connaissance
désirée, nous montre une direction où la trouver. Or, c‘est quelque chose que
d‘avoir une direction. Et, c‘est beaucoup que d‘en avoir plusieurs, car ces
directions doivent converger sur un même point, et ce point est justement
celui que nous cherchons. Bref, nous possédons dès à présent un certain
nombre de lignes de faits, qui ne vont pas aussi loin qu‘il faudrait, mais que
nous pouvons prolonger hypothétiquement. Je voudrais suivre avec vous
quelques-unes d‘entre elles.

Henri Bergson, La conscience et la vie

Para alguém enlouquecer, ensinou o psicanalista Harold Searles, é preciso um


longo exercício de abandono, desafinação e desajuste de dádivas.

Juliano Garcia Pessanha, Recusa do não-lugar


RESUMO

Essa dissertação visa descrever possíveis enlaces entre memória e política a partir do
modo como pessoas e suas histórias estão circulando pelo território indígena do Alto
Xingu. Seu ponto de partida etnográfico é uma pequena aldeia Kalapalo, onde vivem
pessoas provenientes de diferentes coletivos da família linguística karib. A partir de um
diálogo com a literatura sobre esses coletivos, da análise de narrativas orais relacionadas
a eles e da pesquisa de campo, o estudo procura explicitar algumas particularidades dos
discursos alto-xinguanos na construção e expressão de sua própria história. A descrição
das experiências (indígenas e etnográficas) permite perceber, de um lado, como a
produção e a circulação de pessoas e de discursos se complementam e, de outro, como
histórias sobre aldeias e outros lugares são associadas a diferentes formas de memória
(biográfica, mitológica, histórica etc.). Realça-se, com isso, a possibilidade desses
relatos explicitarem modos indígenas específicos de traçar e pôr em evidência relações
dinâmicas que unem (ou separam) pessoas e coletivos entre si, com outros e com o
próprio território onde habitam.

Palavras-chave: Etnologia Indígena, Alto Xingu, Línguas Karib, Narrativas Orais


ABSTRACT

This dissertation aims to describe possible links between memory and politics, taking as
its starting point the way people and their histories are circulating across the Upper
Xingu indigenous territory. The ethnographic focus of the research is a small Kalapalo
village where people from different collectivities of the karib language family live
together. From the information available in the literature, the analysis of documented
oral narratives related to them, and field work, this dissertation seeks to explain some
particularities of the Xinguano discourse in the construction and expression of its own
history. The description of (indigenous and ethnographic) experiences allows
perceiving, on the one hand, how the production and circulation of people and
discourses complement each other and, on the other hand, how histories about villages
or other important places of the region are associated to different forms of memory
(biographical, mythological, historical, etc.). It is also possible to highlight how these
reports explain specific indigenous ways of conceiving the dynamic relationships that
are linking or separating each of them with/from others and with the territory where
they live.

Keywords: Ethnology, Upper Xingu, Karib Languages, Oral Narratives


Lista de Figuras

Figura 1. Cena do interior da casa de Hagema (chefe da aldeia Apangakigi/Caramujo). ........................ 27


Figura 2. Cena do interior da casa de Hagema Kalapalo (anetü da aldeia Apangakigi/Caramujo) ......... 44
Figura 3. Frame da gravação realizada no porto Kahindzu ...................................................................... 46
Figura 4. Caminho entre Apangakigi e a aldeia Paraíso.. ......................................................................... 51
Figura 5. Colocação dos mastros de uma futura casa em Kaluani. ........................................................... 52
Figura 6. Homens olhando o primeiro mastro de longe, a fim de aprumá-lo. ........................................... 52
Figura 7. Airá, morador de Caramujo, serve-se do mingual trazido pelos moradores de Kaluani. .......... 52
Figura 8. Imagem do interior de uma casa em construção em Kaluani. .................................................... 55
Figura 9. A aldeia Caramujo em Junho de 2017.. ...................................................................................... 60
Figura 10. Esboço da aldeia Caramujo vista de cima (junho de 2017)...................................................... 61
Figura 11. Esboço da morfologia de Caramujo, vista de um ponto de vista genealógico. ......................... 62
Figura 12. Alguns dos lugares mencionados por Hagema e Kaua e os caminhos que os interligam ......... 64
Figura 13. Esboços feitos pelo autor da abertura das primeiras casas e roças de Hagema. ..................... 65
Figura 14. Imagem de satélite da aldeia Apangakigi em uma época onde havia apenas duas casas ........ 66
Figura 15. As roças de Érick (esquerda) e de Breno (direita) ..................................................................... 72
Figura 16. Roça da família de Nahugigu, ao lado da casa de seu pai, Airá .............................................. 73
Figura 17. Mulheres retornando da roça. .................................................................................................. 74
Figuras 18 A e B. Árvore de akaga no caminho para Akagagü e Início do caminho que interliga
Apangakigi à aldeia Kaluani .. ................................................................................................................... 78
Figura 19. Hagema se preparando para gravar. ........................................................................................ 82
Figura 20. Detalhe do cordão sendo preparado para ser usado como braçadeira. ................................... 82
Figura 21. Lugares da memória no caminho entre Caramujo e Kunugijahütü. ......................................... 85
Figura 22. Sacola com alguns dos objetos que Hagema levou para a gravação em Kunugijahütü. .......... 86
Figura 23. Frame da gravação feita em Caramujo, antes de sairmos rumo a Kunugijahütü. ................... 87
Figura 24. Mapa contendo os caminhos e o nome dos lugares que ligam Caramujo às aldeias Barranco
Queimado e Paraíso e ao porto Kahindzu. ................................................................................................ 92
Figura 25. Reunião do pequi em Kaluani ................................................................................................... 93
Figura 26. Estrada que liga o Território Indígena do Xingu à cidade de Gaúcha do Norte .................... 118
Figura 27. Placa do Governo Federal (―Área de proteção ambiental e indígena‖) descascada e com tiros
.................................................................................................................................................................. 118
GUIA DA GRAFIA E DE PRONUNCIA DAS PALAVRAS EM KARIB

Ao longo da dissertação, os termos e expressões das línguas da família karib, bem como
os de outras línguas que não a portuguesa, serão grafados em itálico, à exceção dos
nomes próprios. Nomes de pessoas e de aldeias ou povos serão sempre iniciados com
letra Maiúscula. Já os nomes das variantes linguísticas (frequentemente homônimos dos
nomes étnicos) serão grafados em minúscula. Assim, por exemplo: ―muitos dos que
vivem nas aldeias do povo Kalapalo falam a língua kalapalo, mas nessas aldeias
também há falantes de kuikuro‖. Os guias de pronunciação do karib reproduzidos
abaixo seguem a sistematização apresentada no trabalho de Guerreiro (2015a).

Consoantes:
/p/: oclusiva bilabial surda (como p em português)
/b/: oclusiva bilabial sonora (como b em português), sempre pré-nasalizada
/d/: oclusiva alveolar sonora (como em data), sempre pré-nasalizada
/t/: oclusiva alveolar surda (como t em português, não africada)
/j/: oclusiva palatal sonora (semelhante a dj)
/k/: oclusiva velar surda (como c em casa)
/g/: flap uvular
/s/: fricativa alveolar surda (como em saia)
/h/: fricativa glotal sonora (como em inglês hat)
/ts/: africada alveolar surda
/l/: lateral alveolar sonora (como l em português)
/m/: nasal bilabial (como m em português)
/n/: nasal alveolar (como n em português)
/nh/: nasal palatal sonora (como em minha)
/ng/: nasal velar sonora
/w/: aproximante bilabial (como em inglês window)
Bilabial Alveolar Palatal Velar Faringal Glotal
Oclusiva p [mb] t [nd] j k
g (flap
Tepe/Flap
uvular)
Fricativa s h

Africada ts [dz]

Lateral l

Nasal m n nh ng

Aproximante w

Vogais:
/e/: anterior média (como em português; /ẽ/ quando nasalizada)
/i/: anterior alta (como em português; /ĩ/ quando nasalizada)
/a/: central baixa (como em português)
/ /: central alta (/ / quando nasalizada)
/o/: posterior média arredondada (como em português; /õ/ quando nasalizada)
/u/: posterior alta arredondada (/ũ/ quando nasalizada)

Anterior Central Posterior

Alta i ü u

Média e o

Baixa a
Sumário

Introdução ....................................................................................................................... 15
Alto Xingu: sujeitos, objetivos e antecedentes da pesquisa........................................ 16
Memória e política no Alto Xingu .............................................................................. 26
Narrativas indígenas: biografia e territorialidade ....................................................... 35
Potencialidade da perspectiva das aldeias menores .................................................... 39
Organização do texto .................................................................................................. 43
Capítulo 1 | Concentrar ................................................................................................... 45
Capítulo 2 | Dispersar ..................................................................................................... 79
Caminhar para documentar ......................................................................................... 81
Kunugijahütü: a Aldeia Velha .................................................................................... 95
Chefia, feitiçaria e palavra ........................................................................................ 121
Conclusão ..................................................................................................................... 138
Referências bibliográficas ............................................................................................ 143
Anexo ........................................................................................................................... 153
15

Introdução
Esta dissertação fala sobre a mistura das linhas de vida e de histórias de algumas
pessoas e aldeias no território indígena do Alto Xingu. Seu ponto de partida etnográfico
é uma pequena aldeia Kalapalo, fundada em 2007, onde indígenas de diferentes lugares
se reuniram, em especial, aqueles que se identificam com (pelo menos) um dos quatro
povos do subsistema karib dessa região. São eles: os Kalapalo, os Kuikuro, os Matipu e
os Nahukwá — nomes que, além de serem usados para identificar/diferenciar famílias e
coletivos do ponto de vista de suas origens, servem também para designar as quatro
variedades linguísticas da família karib presentes nessa região.
Em 2016, segundo o Instituto Socioambiental (ISA), dezesseis aldeias
vinculadas a esses quatro povos se distribuíam às margens dos rios Mirassol, Culuene,
Tanguro e Sete de Setembro — alguns dos principais formadores do rio Xingu, no norte
do estado de Mato Grosso (Brasil). Já para o ano de 2018, o ISA identificou vinte e sete
delas. Sabendo que a rápida multiplicação de aldeias é um marco da história recente dos
povos karib do Alto Xingu (e também de outros povos dessa região, embora não com a
mesma intensidade),1 este texto trilha possíveis caminhos entre o passado e o presente
de algumas dessas comunidades, refletindo sobre os processos de produção e
fragmentação delas e sobre os enlaces entre memória e política daí resultantes.
O estudo articula-se, basicamente, em torno da análise e comparação de
narrativas orais documentadas (por mim e por outros pesquisadores) junto de pessoas
que se identificam com alguns dos coletivos mencionados acima; de um diálogo com a
literatura sobre a região; e da pesquisa de campo — realizada em duas curtas viagens à
referida aldeia Kalapalo, conhecida como Apangakigi ou Caramujo. Assim, passo a
passo, busca-se refletir sobre o estatuto de tais denominações étnicas e sobre as relações
que unem (ou separam) as pessoas entre si e com os próprios lugares que habitam.
Almeja-se, a partir daí, entender quais eventos estão relacionados à mobilidade e
à mistura de pessoas e histórias entre alguns coletivos do subsistema karib do Alto
Xingu, apontando para as peculiaridades do discurso indígena na construção e expressão
de sua própria história. Essa introdução, além de apresentar a organização do texto, visa
explicar melhor esse recorte temático e seus pontos de partida teórico-metodológicos.

1
Os dados aqui mencionados podem ser conferidos no mapa elaborado pelo ISA e aqui reproduzido na p.
18. A partir dele, é possível ver também a quantidade exorbitante de aldeias Kalapalo, em específico, em
comparação com os demais karib e quaisquer outros povos do Alto Xingu.
16

Alto Xingu: sujeitos, objetivos e antecedentes da pesquisa

As pessoas cujas histórias aparecem nessa dissertação são habitantes do ―Parque


Indígena do Xingu‖; porém, muitas delas têm preferido pensá-lo como Território
Indígena do Xingu (doravante, TIX) — como farei também nessa dissertação —,
realçando que esta área (de aprox. 28.299 km²) abrange hoje um conjunto bastante
heterogêneo de povos que habitam e protegem os territórios contíguos, política e
geograficamente, de quatro Terras Indígenas (TIs): a TI do Xingu (central e à qual
esteve mais diretamente associada a homologação do ―Parque‖), a TI Wawi (a oeste), a
TI Batovi (a sudeste) e a TI Pequizal do Naruvôtub (a sudeste).2
Este estudo toma como base linhas de fatos que se desdobram desde o que, nessa
grande paisagem, é conhecido como Alto Xingu: a região dos formadores do rio Xingu
(na porção sudeste do TIX), na qual coletivos vinculados a dez etnias de três
agrupamentos linguísticos diferentes, mais uma língua isolada, passaram a compartilhar
— através de um longo histórico de casamentos, trocas e da visitação casual ou
cerimonial entre aldeias — de uma série de aspectos práticos e cosmológicos no que se
refere à produção e à percepção da vida nos locais onde habitam.
Conforme propõe o antropólogo indígena Mutua Mehinaku (2010), esse
pluralismo de línguas e etnias permite que o Alto Xingu seja descrito como ―misturado‖
(tradução da palavra tetsualü, das línguas karib), isto é: feito por aldeias e pessoas que
se relacionam ―como uma mistura de cores no colorido de alguma coisa‖ (ibid.: 1).
Além dos já mencionados Kalapalo, Kuikuro, Matipu e Nahukwá (família karib), são
expressão desse ―colorido‖ os Mehinaku, Wauja e Yawalapíti (da família arawak), os
Kamayurá e Aweti (do tronco tupi) e os Trumai (de língua considerada isolada).
Tomando como ponto de partida a recém-fundada aldeia Apangakigi (Kalapalo)
e cruzando o que dizem algumas narrativas orais sobre coletivos e pessoas ligadas ao
subsistema karib alto-xinguano, o objetivo desse trabalho é pensar, então: 1) como tais
relações de ―mistura‖ perpassam diferentes paisagens do Alto Xingu — processo
através do qual as próprias pessoas, os coletivos e os lugares se fazem-e-refazem —; e,

2
A localização, composição social e ano de homologação de cada uma delas podem ser mais bem
observados através do mapa já citado e do quadro na p. 19. Além de a designação TIX ter a vantagem de
pensar essas quatro Terras Indígenas em conjunto, algumas pessoas têm considerado o termo ―Parque‖
pejorativo, o que — pelo que pude saber através de conversas com meus interlocutores —, em parte
decorre da ideia, implícita neste termo, de que este é um lugar de ―visitação‖ para não indígenas (algo
bastante problematizado atualmente, pelo menos pelos habitantes do Alto Xingu).
17

do outro-mesmo-lado, 2) como as pessoas, ao intervirem na forma e visibilidade dessas


relações com seus discursos, atuam nesse processo e o concebem à sua própria maneira.
Para continuar um pouco mais com a tradução de Mutua Mehinaku, a tarefa
seria, portanto, a de matizar algumas ―cores‖ desse ―colorido‖ partindo-se de
tonalidades karib.3 Uma reflexão que, evidentemente, não pretende encontrar resultados
homogêneos ou ―puros‖ por trás da diferença inerente ao contexto estudado. Antes, quer
apenas descrever como determinados eventos, influindo de maneira direta ou indireta na
socialidade regional, parecem quebrar com a circularidade do mesmo e fazer com que
essa mistura vá, continuamente, se misturando. Um breve retrospecto da ocupação
territorial da região ajudará desde já a esclarecer melhor essa abordagem.
Segundo a ―cronologia [alto] xinguana‖ elaborada por Michel Heckenberger
(2001a), pesquisas arqueológicas na margem oeste do rio Culuene indicam que a matriz
de abertura desse pluralismo pode ter sido de origem arawak, já que, por volta do ano
800, os povos que ali foram se fixando produziam objetos de cerâmica e adotavam um
padrão de assentamento que se conecta tanto às tradições associadas aos arawak, quanto
à cerâmica (de tipo saladoide-barrancoide) e ao formato das aldeias alto-xinguanas
contemporâneas (aldeias circulares, com praça central dedicada a uso público e ritual e
as casas erguidas no contorno). Os ancestrais dos karib, por sua vez, teriam vindo em
seguida, por volta de 1400, via setor leste daquele mesmo rio.
Posteriormente (c. 1600-1750), os efeitos da expansão colonial rumo ao Brasil
Central e à Amazônia Meridional, acompanhando os ciclos da borracha e do ouro — e,
claro, a economia do roubo e da venda de pessoas que abastecia esses ciclos com
escravos —, teria feito do Alto Xingu uma espécie de ―cul-de-sac‖ (Galvão, 1953): área
que, pelas condições climáticas e hidrográficas dificultarem o acesso, até meados do
século XIX serviu de refúgio para os que conseguiam escapar das entradas
colonizadoras ou do ataque de outros grupos afugentados. Isso, possivelmente, teria
contribuído para o aparecimento dos ancestrais das demais etnias.

3
Bruna Franchetto (2001) define o ―subsistema karib alto-xinguano‖ afirmando que, no interior do
sistema multiétnico e multilíngue do Alto Xingu, as identidades sociopolíticas dos povos da família karib
são construídas, principalmente, com base no reconhecimento de diferenças rítmicas e prosódicas, mais
do que de ordem lexical, entre as quatro línguas mencionadas (o kalapalo, o kuikuro, o matipu e o
nahukwá). Desse ponto de vista, elas se deixariam apreender ainda em duas variantes principais: uma
kalapalo/nahukwá, outra kuikuro/matipu. Essa ―bifurcação‖, ainda conforme a autora (op. cit.; 1986),
teria ocorrido a partir de uma ―origem comum‖ desses coletivos. Nesse sentido, a ideia de uma
tonalidade, aqui utilizada metaforicamente como ―cor‖, em um âmbito mais amplo e sonoro, ganha o
sentido bastante concreto segundo o qual diferentes melodias de tonicidade, associações e dissociações
entre picos de altura e de intensidade nos modos de falar etc., são utilizadas como mecanismos de
diferenciação social.
18
19
Terra Indígena DO XINGU Terra Indígena WAWI
(central) (a leste da TI do Xingu)
 Composição social: complexo multiétnico e  Composição social: povo Kĩsêdjê (jê)
multilíngue (cf. a seguir no texto)  Homologação: Decreto s/n - 09/09/1998
 Homologação: reservada em 1961;
oficialização da homologação Decreto s/n -
09/09/1998
Terra Indígena PEQUIZAL DO NARUVÔTU
Terra Indígena BATOVI (a sudeste da TI do Xingu)
(a sudoeste da TI do Xingu)  Composição social: povo Naruvôtu (karib)
 Composição social: povo Wauja (aruak)  Homologação: Decreto s.n - 02/05/2016
 Homologação: Decreto s/n - 09/09/1998

Quadro 1. As Terras Indígenas do TIX e suas características. Fonte: Instituto Socioambiental, 2018.

Olhando esse mesmo período a partir da memória oral indígena, uma imagem é
frequentemente reencontrada: ao longo de uma série de guerras, raptos, migrações,
rupturas e fugas, povos de nomes muito antigos e quase esquecidos foram trocando e
casando uns com os outros, deixando de serem ―canibais‖ e de enfrentarem-se como
inimigos, até tornarem-se de fato ―humanos‖, ou, em suas formas mais objetificadas,4
―Kamayurá‖ (Menezes Bastos, 1992), ―Yawalapíti‖ (Viveiros de Castro, 1977),
―Aweti‖ (Coelho de Souza, 2001) etc.
Rafael de Menezes Bastos (1983, 1992) caracterizou esse processo como
―xinguanização‖, isto é: a transformação de um ―ethos‖ visto como belicoso no respeito
a uma ―etiqueta de pax [paz]‖ que, com a intensificação do contato a partir da década de
1940, passou a reger as relações entre e dentro das aldeias do Alto Xingu de modo cada
vez mais generalizado. A criação, em 1961, do (à época) Parque Nacional do Xingu,5
marcaria então o momento de cristalização desta ―etiqueta‖ como forma por excelência
da socialidade regional, já que, a partir daí, ela seria oficialmente incentivada não só
como modo de vida exemplar das ―tribos amigas do Alto Xingu‖ (na própria expressão
dos Villas Boas, 1979: 20), mas também de um indigenismo estatal cujos resultados,
ainda incipientes, dado o pioneirismo da demarcação do PNX, eram bastante
idealizados (Galvão & Simões, 1966; Menezes, 2008).
No caso específico dos Kalapalo, Ellen Basso associou esse ethos à palavra karib
ifutisu (ihütisu, na grafia atual): um conceito que, segundo a autora (1973: 12),

4
Adoto, nessa dissertação, a definição de ―objetificação‖ dada por Strathern (2006: 267): ―Entendo por
objetificação a maneira pela qual as pessoas e as coisas são construídas como algo que tem valor, ou seja,
são objetos do olhar subjetivo das pessoas ou objetos de sua criação‖.
5
O Parque Nacional do Xingu representa a primeira circunscrição oficial criada no Brasil com vistas à
proteção ambiental e indígena (Decreto nº 50.455, de 1961). Foi assim denominado até 1978, quando
passou a ser chamado de Parque Indígena do Xingu (Decreto n° 82.263, de 1978) — alteração que visava
adequar o nome da reserva aos termos do Estatuto do Índio (instituído pela Lei 6.001, de 1973).
20

expressaria um imperativo de ausência de agressividade e de generosidade, também


traduzido por seus interlocutores como ―vergonha‖ (Basso, 1989: 552). Ainda segundo
a autora (Basso, 1973: 9-10), a avaliação das interações sociais segundo os critérios do
ihütisu permitiriam aos Kalapalo reconhecerem a si e aos outros alto-xinguanos como
kuge (―gente‖), em oposição, de um lado, aos ngikogo (índios de outras regiões, vistos
como tükotinhü, ―ferozes‖)6 e, de outro, aos kagaiha (os não indígenas, designados em
português, de modo genérico, por ―brancos‖).7
Apesar do significado dessas categorias poder variar conforme os contextos de
fala,8 o fato dos povos do Alto Xingu compartilharem de uma série de modos de pensar,
crescer e habitar o seu território, estabelecendo ao longo do tempo relações com base
em um restrito ethos regional, é algo quase sempre mencionado na literatura sobre a
região.9 Assim, desde os primeiros relatos etnográficos escritos por Karl von den
Steinen (1940 [1887]) até aos mais recentes, o Alto Xingu já foi definido em seu
conjunto como ―uma só cultura‖ (Agostinho da Silva, 1993), ―área cultural‖ (Galvão
1979 [1953]), ―sociedade‖ (Murphy e Quain, 1955; Becker, 1969; Basso, 1973; Villas
Boas & Villas Boas, op. cit.), ―sistema regional‖ (Menget, 1977, 1993), ―comunidade
moral‖ (Heckenberger, 2001a), entre outras imagens que destacam a coesão e
homogeneidade desse complexo regional.
Ainda nas palavras de Mutua Mehinaku (op.cit.: 14), tais imagens deixaram ―a
mistura alto-xinguana quase sempre esquecida atrás de uma apresentação de gente toda
igual ou atrás de um discurso de ‗somos todos iguais‘, em diferentes escalas e
perspectivas‖. Essa ressalva, penso, longe de deslegitimar que similitudes ou
continuidades possam ser traçadas entre os coletivos da região, chama atenção para o
fato de que as formas indígenas de nela se viver e habitar devem ser pensadas, apesar

6
Os povos da família linguística karib referem-se assim, especialmente (mas não só), aos Ikpeng
(também karib, mas do Médio Xingu), os quais, segundo eles (e também segundo os Mehinaku) atacavam
suas aldeias antigamente, raptando mulheres e crianças e lhes saqueando (cf. Galvão & Simões, 1965).
Por sua vez, os Kamayurá tendem a considerar como ―bravos‖ principalmente os Juruna (tupi); já os
Trumai focalizam negativamente os Suyá (je). Assim, cada etnia do Alto Xingu parece aplicar tais
―modelos de distintividade‖ de acordo com o histórico de relações extrarregionais estabelecidas no
passado (cf. Basso, 1973: 9), com destaque para uma oposição com os povos do Médio e Baixo Xingu.
7
Tradução que, por isso, será apropriada aqui e ali ao longo desse trabalho para falar dos não indígenas,
sejam eles brasileiros ou de outras nacionalidades, do ponto de vista de meus interlocutores.
8
Ver por exemplo o uso que delas se faz na narrativa que trago no capítulo 2
9
Com efeito, além do já mencionado padrão circular de assentamento, os coletivos dessa região seguem
escolhas alimentares comuns (sendo a base da dieta a mandioca, cultivada em roças mais ou menos
permanentes, o peixe, como principal recurso de exploração aquática, e algumas carnes de caça), fazem
referência a um mesmo repertório de narrativas míticas e de rituais (vários desses, inclusive, praticados
com a presença de mais de uma aldeia/etnia), bem como organizam suas relações de parentesco seguindo
a mesma estrutura terminológica.
21

disso, como sendo da ordem do Múltiplo — o que, segundo a definição de Pierre


Clastres (1999 [1977]: 84), significa realçar os aspectos dispersivos ou centrífugos das
políticas ameríndias, em contraposição às figuras do Um ou do Estado, que ―engloba[m]
todas as diferenças em vistas de as suprimir‖ (ibid.: 85).
Um exemplo já bastante citado de como, apesar de todo olvidamento, a mistura e
o múltiplo podem ser encontrados no Alto Xingu é dado pelo modo como as pessoas
dessa região costumam falar de suas identidades. Assim, não raro um ―Kalapalo‖ pode
se considerar ao mesmo tempo ―um pouquinho Kuikuro‖ ou ―um pouquinho Matipu‖,
sem que isso soe contraditório. Isso é possível porque, com frequência, as pessoas se
reconhecem como descendentes de ancestrais nascidos em diferentes lugares, os quais
elas consideram igualmente importantes para falar de suas origens e condição atual.
Cito, quanto a isso, o testemunho do próprio antropólogo Mutua:

Meus avós foram casando com mulheres de outras aldeias, por isso tem
mistura de povos, de culturas e de línguas. Eu sou o neto deles, por isso eu
sou de etnias misturadas. A mãe do meu avô Utu-Hususu, Hugasa (Magia),
era do povo Lahatua (Kuikuro); ela casou com Nahukwá. A esposa de Utu
Hususu, minha avó, era filha de Mehinaku e Kalapalo. Eu sou a quarta
geração em que diversas etnias se misturaram entre si e com os Mehinaku
(Arawak). (Mehinaku, 2012: 53)

De uma perspectiva biográfica, portanto, a mistura é algo incontornável, já que


saber de sua história é seguir (no sentido de retraçar na memória, mas também de dar
continuidade com seus próprios passos, como falarei mais adiante) os caminhos de onde
vieram seus pais, avós e aliados — caminhos que, como se pode ver acima, são
ramificados e nos quais a diferença de quem neles se encontrou foi somada, e não
suprimida (cada pessoa se tornando, então, o resultado multiplicante dessa soma ao
levá-la para frente com sua própria história).
Comecei a me envolver com os debates acerca da mistura e da homogeneidade
no Alto Xingu em minha graduação, quando realizei uma pesquisa de iniciação
científica intitulada ―Redução populacional, mistura e diferenciação entre os Matipu e
Nahukwá: transformações pós-contato‖.10 Minha principal atividade naquela pesquisa

10
Projeto FAPESP n. 2014/23016-2. Assim como a pesquisa que deu origem a esse trabalho, aquela fazia
parte do Projeto Jovem-Pesquisador ―Sistemas Regionais Ameríndios em Transformação: o caso do Alto
Xingu‖ (FAPESP, n° 2013/26676-0), coordenado Prof. Dr. Antonio R. Guerreiro Junior.
22

era interpretar a narrativa autobiográfica11 de um filho de chefe (anetü)12 Nahukwá,


chamado Kuaku, um senhor de aproximadamente 80 anos que mora atualmente na
aldeia chamada Aiha (dos Kalapalo).
Apesar da chefia no Alto Xingu ser, até certo ponto, hereditária,13 Kuaku diz ter
―substituído‖ (itüpati) seu pai apenas durante um curto tempo, na época em que os
Nahukwá viviam junto com os Matipu em uma única aldeia chamada Magijape. Porém,
ele logo se recusou a seguir nessa posição, sobretudo por receio de que fofocas e
acusações de feitiçaria — que levariam, inclusive, a uma cisão daquele coletivo no
início dos anos 198014 — recaíssem sobre ele e sua família.
Aquela união dos Matipu e Nahukwá (ocorrida por volta de 1954) tivera como
um dos principais fatores a extrema redução populacional pela qual os coletivos do Alto
Xingu passaram entre 1920-1960, em razão da incidência de fortes epidemias de
sarampo e gripe. Nessa ocasião, algumas aldeias chegaram a ficar com apenas cinco ou
dez habitantes.15 Nas palavras de Michael Heckenberger, as perdas populacionais
ocasionaram no Alto Xingu ―padrões precisos de dissociação ou amalgamento de
aldeias‖, com a proeminência de uniões entre coletivos linguisticamente relacionados
(2001b: 96).
Junções também foram incentivadas pelos irmãos Villas Boas — uns dos
principais idealizadores do Parque Nacional do Xingu16 —, para que as comunidades
ficassem mais perto dos Postos de Saúde, os quais, por isso mesmo, começaram a ser

11
Mas, ao mesmo tempo, sobre a origem de sua aldeia natal. Essa intersecção entre biografia e história
coletiva receberá maior atenção no trabalho, pois é uma característica recorrente das narrativas alto
xinguanas.
12
Denominação para os chefes de sexo masculino nas línguas karib. O uso da palavra ―chefe‖ também é
observado no português falado localmente para se referirem a essa categoria de pessoas, bem como a
palavra ―cacique‖. A palavra itankgo é o equivalente feminino da palavra anetü, mas, ela também pode
ser o plural de itaõ (que significa ―mulher‖, tanto no singular, quanto no plural). Assim, itankgo (―chefa‖)
é também uma mulher plural (itaõ, ―mulher‖ + -ko, PL).
13
Cf. Guerreiro, 2015: cap. 2.
14
Dessa cisão nasceu a aldeia Ngah nga, identificada como ―Nahukwá‖, e Magijape passou a ser
reconhecida como lugar dos ―Matipu‖. Porém, as associações étnicas dessas duas aldeias estão longe de
serem um consenso e, muitas vezes, as pessoas as invertem ou se confundem com elas em seus discursos
(voltarei a falar sobre isso no cap. 2).
15
Um quadro dessa situação, quase que década por década, pode ser observado somando-se os dados
levantados por Petrullo, 1932; Oberg, 1953; Lima, 1955; Mota, 1955; Carneiro, 1957; Nutels, 1968;
Baruzzi e Iunes, 1970; Agostinho, 1972; Gregor, 1977; Galvão e Simões, 1996; Heckenberger, 2001b.
Para ter uma ideia do que significou essa perda, considere que a estimativa populacional do Alto Xingu
para o ano de 1897 era de 4.000 pessoas (segundo Galvão, 1996), mas, segundo Pedro de Lima (op. cit.),
entre 1947-1951 ela não ultrapassava 793 pessoas (ou seja, em aproximadamente 50 anos, os censos
indicam a morte de cerca de 80% da população).
16
Trata-se de Orlando, Cláudio e Leonardo Villas Boas, principais líderes da Expedição Roncador-Xingu.
A chegada dessa expedição na região data de 1946; antes dela, a Comissão Rondon já havia passado por
lá em 1920.
23

instalados em pontos estratégicos da região também nessa época. Isso servia, então,
como pano de fundo para a análise da narrativa de Kuaku, e esta ajudava a lançar luz
sobre fenômenos políticos e linguísticos imbricados nos modos como as mudanças
territoriais e as transformações culturais ocorridas após 1940 foram — e ainda são —
vivenciadas e colocadas em discurso pelos indígenas.
Os resultados a que cheguei com aquele estudo mostraram-me aspectos
complexos da cosmologia e do regionalismo alto-xinguanos, os quais mereciam ser
explorados mais a fundo. Uma das coisas que percebi, por exemplo, foi que se os temas
da mistura e da diferenciação social eram, por assim dizer, epidemicamente visíveis após
a intensificação das relações extrarregionais,17 por outro lado, as narrativas orais (de
Kuaku e outras que, desde aquela época, comecei a vasculhar para comparação)
indicavam que se misturar e se diferenciar fazia parte da socialidade no Alto Xingu
desde muito antes (e para além) disso.
Assim, apesar de todo aquele cenário de patologias e perdas, na narrativa de
Kuaku bem pouco — para não dizer completamente nada — aparece sobre epidemias,
sarampo, gripe, ou mesmo sobre os Villas Boas. Por outro lado, muito se fala sobre as
mudanças de aldeia feitas pelo narrador durante sua vida, sobre casos de enfeitiçamento,
problemas com a chefia de determinados lugares, e até mesmo sobre canibalismo. Logo,
se a redução populacional, as crises epidêmicas e o contato influenciaram nos processos
de união e separação de aldeias no Alto Xingu naquela época — tal como literalizado
por Heckenberger na citação acima —, tudo isso revelava que se pautar somente nessas
―causas‖ não esgotava a análise do que realmente foi este período para todos os que o
vivenciaram.
Outras inquietações, nesse sentido, tendiam ainda a ficar inconclusas. Como, por
exemplo, a partir simplesmente do eixo contato-epidemia-demografia, entender que um
determinado coletivo tenha não apenas se unido com outro, mas com aquele outro em

17
Nesse trabalho, utilizo diversas vezes a expressão ―extrarregional‖, ―extra-local‖ e ―extra-indígena‖
para me referir às formações sociais que estão fora do domínio das TIs e do TIX, pois me pareceu melhor
do que induzir polarizações do tipo ―nós‖ x ―eles‖ em um mundo onde indígenas e (agora sim) pessoas
que se reconhecem como não indígenas transitam pelos mesmos lugares. Assim, por exemplo, as cidades,
se forem levadas à sério todas as conexões históricas, geográficas e culturais que as formam, não são, de
fato, parte de um ―mundo não indígena‖, mas sim, configurações que se constroem (quase que
literalmente) à beira do ―mundo indígena‖, o invadindo, tragando ou expulsando de si – algo que o
prefixo extra-, com sua qualidade de indicar abrangência e extrapolação conjuntural me parece evidenciar
melhor. Sobre esse debate, ainda, ver VIVEIROS DE CASTRO, 2006 e CLASTRES, 1974.
24

especial e não com um diferente?18 Ou então: como explicar que esses movimentos de
junção e dispersão do socius indígena tenham continuado a ocorrer mesmo depois que a
intensa mortalidade cedeu lugar ao aumento populacional no Alto Xingu (quadro que
ilustra a situação da região no presente, como já foi dito, conferindo atualidade para o
estudo)? Para responder a essas questões, as pistas fornecidas por narrativas como a de
Kuaku demonstravam-se ainda mais importantes, para não dizer imprescindíveis.
Isso porque, na verdade, mais do que fornecer ―pistas‖ capazes de complementar
a análise com novas informações, muitas vezes essas narrativas possibilitam o próprio
rearranjo dos esquemas utilizados como base para se pensar os temas em questão,
abrindo novas perspectivas sobre eles. No caso daquela pesquisa, isso significava
reconhecer que, paralelamente a uma macropolítica que parecia envolver os coletivos
alto-xinguanos (e, em especial, os Matipu e Nahukwá), por assim dizer, num ―fenômeno
de multidão‖ (Deleuze e Guattari, 2010) — marcado, principalmente, pela repercussão
extensiva do contato na forma de um impacto macrofísico das epidemias sobre a
população de toda a região —, havia também uma micropolítica que os relacionava por
suas singularidades, isto é, por aquilo que lhes reservava posições parciais, e não apenas
genéricas, nesta história.
Nessa dimensão, mais do que a imagem de ―povos‖ que se dispunham como
unidades a priori para se pensar os processos históricos (assim, os ―Matipu‖, os
―Nahukwá‖... e só depois o que acontecia ―entre‖ eles), ganhavam cor, cada uma a seu
modo, as famílias e pessoas afetadas aqui e ali pelas transformações advindas;19 as
tensões que por aí foram despertadas no seio delas e que, só então, repercutiam-se até o
ponto necessário para se ver formar ou fragmentar uma aldeia; a diversidade de
interpretações ou opiniões sobre um mesmo fato; enfim, acontecimentos que não são
facilmente localizáveis à primeira vista. Porém, a intensidade no modo como se
processaram desde escalas infinitesimais demonstra terem marcado a memória do
narrador, produzindo nela sulcos, quer dizer, fendas subjetivas pelas quais, inclusive,
corria o seu relato, preenchendo o passado com palavras, afetos e significados de um

18
E isso mesmo considerando a proeminência de uniões no interior de um mesmo agrupamento
linguístico, os quais, como já foi dito, no Alto Xingu quase sempre possuem mais de duas variantes. Isso
demonstra que tais ―padrões‖ não são, no fim das contas, tão ―precisos‖ assim.
19
Seguindo as pistas de Valeria Macedo em seu estudo sobre a mistura entre os Guarani (cf. Macedo,
2009; 2017), essas famílias e pessoas poderiam ser chamadas de ―parcialidades‖. Elas não são ―partes‖ de
um suposto ―todo‖, mas assim como há formas de socialidade expandida, produzindo uma socialidade
regional, há formas de recortar essa socialidade que destacam, ainda que temporariamente,
―parcialidades‖.
25

modo, ao mesmo tempo, peculiar e criativo que não apenas era impossível de ser
apreendido de antemão, como problematizava o estatuto daquelas unidades.
De um lado, isso chamava a atenção para o valor cosmopolítico de tais
narrativas, já que, ao serem contadas, elas realçam o fato de que ―nossas realidades
estão abertas a diferentes intepretações que devem ser consideradas com cuidado‖
(Latour, 2004: 459). Por outro, implicava em levar a sério que essa micropolítica era
também parte intrínseca dos fenômenos cuja descrição, num primeiro momento, parecia
independer dos fatores por ela colocados em jogo. Isso, em outras palavras, significava
liberar as formas de se falar da história de possíveis ―sobrecodificações‖ impostas por
variantes ―maiores‖ (cf. Goldman, 2015), isto é, variantes majoritárias que — por uma
questão numérica, mas também de poder — tendem a agir de maneira dominante sobre
a interpretação, bloqueando outros sentidos ou caminhos possíveis para um
desenvolvimento mais completo dela.
Romper, porém, de fato com essa ―sobrecodificação‖ exigia muito mais do que
poderia ser feito nos limites da minha graduação. Nesse sentido, este texto poderia ser
visto ainda como uma tentativa de dar continuidade ao exercício de descrever a história
alto-xinguana a partir de escalas ou perspectivas ―menores‖. Quer dizer, tomando como
ponto de partida acontecimentos, contextos e versões da realidade que, ao invés de
conduzirem a pesquisa por generalizações derivadas de um escrutínio exclusivamente
macropolítico dos fatos, levam o pesquisador a assumir antes uma ―direção molecular‖,
através da qual ele ―embrenha-se nas singularidades, nas suas interações e nas suas
ligações à distância ou de ordens diferentes‖ (Deleuze & Guattari, 2010: 395).
Seguindo as pistas de Vanzolini (2010), considero que este tipo de reflexão
aproxima ainda mais essa pesquisa das preocupações atuais dos alto-xinguanos com
quem dialogo, bem como daquilo que foi dito ser meu objetivo no começo desta
introdução: afinal, adentrar nessas escalas ―menores‖ e na micropolítica das relações
que perpassam os coletivos do Alto Xingu é realçar as agências indígenas e os vetores
centrífugos da socialidade nessa região e, assim, ser capaz de descrevê-la de uma
perspectiva misturada ou tetsualü.
Para dar conta, não obstante, de se colocar antropologicamente nas brenhas e
emaranhados dessa microssociologia das relações, havia certas carências incontornáveis
naquela iniciação científica que precisavam ser remediadas: ela não contava, por
exemplo, com o apoio da pesquisa de campo (necessária para auxiliar-me a ganhar mais
intimidade com a língua e os modos de vida dos sujeitos da pesquisa); as tensões
26

exibidas em um só relato apontavam para a necessidade de comparar diferentes opiniões


sobre os fatos (convidando à interpretação e à documentação de outras narrativas); sem
contar que as questões por ela levantadas exigiam um aporte teórico e um estudo mais
refinado da bibliografia.
Considero, nesse sentido, que minha pesquisa de mestrado (base dessa
dissertação) começou e se desenvolveu de modo bastante atrelado com seus
antecedentes, os quais, por isso, continuaram presentes nela (como se poderá ver, em
especial, no capítulo 2, onde inclusive retomo alguns trechos da narrativa de Kuaku para
pensá-la em comparação com outros relatos).
Por outro lado, penso que sem alguns desdobramentos e vivências ligadas
especificamente a este estudo, não daria o mesmo valor para o que realizei na
graduação. Para exemplificar isso de maneira mais concreta, decidi trazer já nesta
introdução um relato de como travei meu primeiro encontro com o chefe da aldeia
Apangakigi. Através dele, explico também em que sentido essa pesquisa procura pensar
os problemas acima mencionados a partir dos enlaces entre memória e política
resultantes dos modos como alguns coletivos e pessoas do subsistema karib se misturam
(ou separam) entre si, com outros e com os próprios lugares onde vivem.

Memória e política no Alto Xingu

Em que sentido um estudo que faz uso de narrativas orais para observar e descrever as
relações de mistura que fazem parte da vida e da história de algumas pessoas e coletivos
do subsistema karib do Alto Xingu pode, de maneira mais geral, ter algo a dizer sobre
memória e política? Por que estes temas abrangentes, servindo de subtítulo a essa
dissertação?
Para começar a responder a essas perguntas, seria preciso dizer, antes de tudo,
que atualmente livros e cadernos são objetos requisitados e manuseados cotidianamente
nas aldeias indígenas do Alto Xingu — assim como celulares, máquinas fotográficas,
rádios, entre outros instrumentos de registro e comunicação. Mesmo que tais
ferramentas não estejam ao alcance de todos de modo generalizado (e onde, afinal, elas
estão?), pode-se dizer que se encontram intimamente agenciadas aos fluxos de pessoas e
coisas que interligam os diferentes lugares da paisagem regional alto-xinguana.
27

Frente a esse cenário, portanto, onde atividades rituais e rotineiras da vida


indígena passam a se refletir na ―pele‖ enrustida dos aparelhos advindos do ―povo da
mercadoria‖ (para retomar algumas imagens cunhadas por Davi Kopenawa, 2010), creio
que uma boa maneira de delimitar o lugar ocupado por esse trabalho na etnologia sul-
americana seja posicionando-o no seio de uma antropologia da história e das políticas
ameríndias, nas quais a recorrente e quase naturalizada ligação estabelecida entre
memória e oralidade, paradigmática de boa parte dos estudos sobre as artes verbais
indígenas, tenha que começar a ser problematizada.
Na verdade, é a própria e antiga linha divisória que parecia criar uma diferença
— no nível da cultura — entre sociedades com e sem escrita, que sofre (e sofrerá cada
vez mais) com a presença de pessoas que, pelo menos frente ao olhar do antropólogo em
campo, demonstram-se hoje ávidas por aprenderem a se comunicar dentro de sistemas
discursivos que lhe chegam ―de fora‖ ou, para melhor dizer, por verem esses sistemas
tensionados a exprimir o que, por muito tempo, insistentemente tentou-se manter ―do
lado de fora‖ deles.

Figura 1. Cena do interior da casa de Hagema (chefe da aldeia Apangakigi/Caramujo).

De frente para a porta de entrada, enquanto fuma seu teninhu (―cigarro‖), o chefe de Caramujo olha seu
filho mais novo, Samuel. Este, sentado de frente para o rádio transmissor da aldeia, estuda um Manual de
Enfermagem enquanto aguarda o chamado do ―pessoal da saúde‖ pedindo informações sobre o estado dos
moradores de lá.
28

Os primeiros passos de meu trabalho de campo foram marcados, justamente, por


essa tensão, e os temas da memória e da política despertados por ela. No relato abaixo,
explicito concretamente como isso se deu, aproveitando também para apresentar aquele
que se tornou o principal interlocutor dessa pesquisa: um senhor de aproximadamente
60 anos, chamado Hagema Kalapalo. Foi ele quem, em 2007, abriu os primeiros
terrenos da aldeia Apangakigi/Caramujo, sendo desde então reconhecido como o
principal chefe de lá.
Além disso, a maior parte das narrativas que escutei em primeira mão, enquanto
estava realizando meu trabalho de campo, foram contadas por ele. São, em sua grande
maioria, histórias sobre lugares antigos das redondezas de Caramujo, aos quais Hagema
fazia questão de me levar para contar e que eram considerados parte da história dos
Kalapalo por praticamente todos com quem conversei. Foi, no entanto, na casa de meus
pais biológicos, na cidade de São Carlos/SP, e não na dele, onde Hagema me contou
uma história pela primeira vez.
Depois de muito tempo tentando, fracassadamente, estabelecer contatos com
algum habitante da sua aldeia a fim de planejar minha ida para o campo, vim a saber,
por uma série de acontecimentos tortuosos e inesperados nos quais a sorte e a
coincidência muito corroboraram, que Hagema estava em minha cidade natal.
Combinamos de nos encontrar durante uma manhã e, tomando um café, ele relatou-me
passo a passo o seu percurso, desde que havia saído do TIX, até chegar a São Carlos e
me encontrar.
O principal motivo de sua viagem era ter de ir a Brasília para comparecer a uma
reunião convocada pela Funai com diversas ―lideranças‖ do Alto Xingu (isto é, chefes
de aldeias ou aqueles por eles enviados). Pelo que entendi, porém, essa não foi uma
reunião coletiva, mas sim realizada em dias esparsos, conforme os indígenas
conseguiam angariar os meios necessários para chegar até lá. De Brasília, Hagema
aproveitaria para ir à capital de São Paulo e desta para São Carlos, onde faria uma breve
visita a um amigo antes de retornar.
A razão do chamado da Funai parecia ser uma só — ou melhor, quase. Em
primeiro lugar, o então à época presidente deste órgão (o dentista Antonio Fernandes
Toninho Costa) estava encarregado de repassar para essas ―lideranças‖ a ideia de um
projeto cujo objetivo é preparar e levar indígenas do Alto Xingu para disputarem os
Jogos Olímpicos de 2024. Como fiquei sabendo mais detalhadamente depois, ao ler
29

uma reportagem publicada no jornal Folha de São Paulo,20 esse projeto fora elaborado
por Kanato Yawalapíti — um importante ―cacique‖ e campeão das lutas alto-xinguanas,
chamadas ikindene21 —, em parceria com Ione de Carvalho, antropóloga e então
assessora especial do Ministério da Cultura.
Hagema me contou, sem se aprofundar muito, parte do que lhe falaram sobre
isso naquela reunião. Porém, onde se deteve de fato foi no que ocorreu após a
apresentação daquele projeto pró-olímpico. Disse-me que, tendo demonstrado com
bastante contentamento o seu apoio àquela ideia, Antonio Costa lhe apresentou então
algo que deduzi ser uma pauta suplementar. Tratava-se de fazer uma consulta, passada à
Funai pelo ―pessoal do Congresso‖, na qual procuravam saber se os povos do Alto
Xingu teriam interesse em ceder um pedaço de seu território ―para plantar milho e
plantar soja‖. Em troca — explicou-me Hagema —, o resultado seria que: ―Daí, se
plantar milho, soja, o pessoal do Xingu vai receber um pouquinho de dinheiro também,
assim, como parceria, né‖.
Não sou capaz de dizer o quanto foi oficializado ou não isso que entendi ter sido
uma proposta de arrendamento do TIX elaborada pelo ―pessoal do Congresso‖ e
veiculada pela Funai. Tampouco tenho interesse em utilizar dessa conversa e dessa
pesquisa para criar polêmicas superficiais, do tipo ―ouvi falar‖. Afinal, a tramitação de
vários Projetos de Lei com tais objetivos naquele momento (e ainda hoje),
expressamente divulgada em diversos canais oficiais do Governo brasileiro e da mídia,
não deixam de endossar que os fatos para mim narrados tinham bastante veracidade e,
muito provavelmente, já até algum embasamento jurídico-normativo.22
O interesse em mencionar esse caso, na verdade, é que o considero determinante
para o modo como eu viria a ouvir outras histórias de Hagema durante meu trabalho de

20
Essa reportagem pode ser consultada online através do link:
http://www1.folha.uol.com.br/esporte/2017/07/1903540-projeto-no-xingu-quer-levar-indios-a-disputa-da-
luta-olimpica-em-2024.shtml (último acesso em 07/09/18).
21
Esta é a grafia nas línguas karib. Popularmente, tais lutas ficaram conhecidas como huka-huka, porém,
este é um termo originado do contato e considerado pejorativo por muitos. As lutas ikindene fazem parte
do Egitsü (ou Quarup), um dos principais rituais realizados em escala multiétnica e regional entre as
aldeias do Alto Xingu com o objetivo de homenagear chefes e cantores importantes já falecidos (cf.
GUERREIRO, 2015). Para participar, um lutador (ojotse) tem de passar por um rigoroso treinamento, que
envolve dietas alimentares, se arranhar, uso de remédios tradicionais, reclusões etc.
22
Ver ―Quadro de PLs que tocam em questões de direito indígena‖, em anexo. Vale também conferir,
como complemento a todas essas propostas legislativas, o Relatório ―Violência contra os povos indígenas
no Brasil — dados de 2017‖, publicado recentemente pelo Conselho Indigenista Missionário. Disponível
em:
http://aba.abant.org.br/files/20181004_5bb620a2df3c1.pdf?fbclid=IwAR2GqU4JCvPXip8gTNcr1Zgsj7X
rYfk4gjsdKcoo3mFUTg7QhPOVf3Wzs_8 (último acesso em 09/10/2018).
30

campo. Isso porque, terminando de me contar esse caso, Hagema perguntou-me o que
eu achava daquilo. Aqui, devo dizer que, sem deixar de lado minha postura enquanto
antropólogo, fiz uma análise objetiva para ele (isto é, sem inocência) das possíveis
consequências caso uma ―parceria‖ como aquela fosse aceita. Disse que, sem dúvida,
alguns indígenas poderiam enriquecer, porém, também haveria perdas.
Para tornar concreto o que eu estava querendo dizer com ―perdas‖, fui buscar
meu computador e mostrei-lhe um dos mapas sobre a alteração ambiental em torno do
TIX nos últimos 20 anos (ISA, 2015).23 Complementarmente, através dos recursos
oferecidos pelo aplicativo Google Earth, mostrei-lhe também a diferença de cores entre
a área daquele território e aquela das regiões que a circundam e o que aquilo significava.
Sabendo, no entanto, que a noção de ―dano ambiental‖ e até a de ―meio
ambiente‖ são percebidas de modo um tanto quanto vago pelos coletivos que não são,
na verdade, os principais produtores disso frente ao que é preciso criar mecanismos de
―proteção‖ ou ―separação‖,24 tentei traduzir estas imagens dando-lhe outros exemplos
de casos nacionais em que o arrendamento de Terras Indígenas tinha levado ao
desmantelamento de aldeias e até mesmo à posterior perda do direito à terra.
Nada disso era novidade para Hagema, no entanto. Como um sinal de que
estávamos nos entendendo, Hagema começou a me contar ele mesmo histórias com um
teor parecido. Numa delas, falou de quando trabalhou, junto com indígenas de outras
etnias, em vistorias na fronteira do TIX. Segundo ele, naquela época (c. 1980) eles
encontraram vários invasores realizando serviços ilegais no interior das terras indígenas
e houve ―muita briga para tirar os brancos de lá‖. Disse-me que aquilo, quer dizer,
―brigar‖, não era bom, e que sempre havia adotado uma postura pacífica nessas
situações.
Em seguida, comentou a situação de algumas aldeias do Alto Xingu onde as
pessoas já não faziam mais roças e, por conta disso, seus habitantes estavam tendo que

23
Este mapa está disponível em: https://acervo.socioambiental.org/adv-
search?content_type=mapas_e_cartas_topograficas&page=1 (Último acesso em 07/09/2018), com o título
―Avanço do desmatamento nas cabeceiras do Xingu – 2015‖:
24
Digo ―separação‖ como modo de fazer referência à base conceitual que orienta o pensamento dos
―povos da mercadoria‖ (Kopenawa, op.cit.) no tratamento que dão à floresta: ―Quando falam da floresta,
os brancos muitas vezes usam uma outra palavra: meio ambiente. Essa palavra também não é uma das
nossas e nós a desconhecíamos até pouco tempo atrás. Para nós, o que os brancos chamam assim é o que
resta da terra e da floresta feridas por suas máquinas. É o que resta de tudo o que eles destruíram até
agora. Não gosto dessa palavra meio. A terra não deve ser recortada pelo meio. Somos habitantes da
floresta, e se a dividirmos assim, sabemos que morreremos com ela. Prefiro que os brancos falem de
natureza ou de ecologia inteira. Se defendermos a floresta por inteiro, ela continuará viva. Se a
retalharmos para proteger pedacinhos que não passam da sobra do que foi devastado, não vai dar em nada
de bom‖ (Ibid.: 484).
31

―comprar polvilho do branco‖,25 algo que lhe deixava muito triste. Foi só quando, nos
meandros dessa sutil tristeza que embebia o seu relato, ele se cansou de falar que eu
pude, então, passar para a apresentação de minha proposta de trabalho. Essa foi
explicada da seguinte maneira: disse que queria, antes de tudo, aprender como eles
viviam na aldeia e como eles contavam histórias uns para os outros. Queria, por isso,
em primeiro lugar ―aprender a falar um pouquinho o kalapalo‖.
Também lhe contei que meu orientador, com o qual ele já havia trabalhado antes
em atividades de pesquisa similares, tinha me deixado com uma câmera de filmar, um
gravador de voz e um aparelho para fazer mapas (um GPS). Mostrei a ele esses
equipamentos e ofereci-me, caso fosse do interesse dele, para que visitássemos alguns
lugares que ele considerasse importante e aí fizéssemos uma documentação sobre a
história de cada um deles — deixando claro que gostaria de utilizar esse material para
escrever este trabalho e apresentá-lo, depois, na Unicamp.
Hagema, então, perguntou-me se essa ―documentação‖, da qual eu falava, daria
―assim... pra fazer documento?‖. Complementou a pergunta dizendo que já estava
―cansado de briga‖ e, como viria a escutar posteriormente de muitos outros
interlocutores em campo, queria ―aprender a resolver as coisas do jeito do kagaiha, com
papel e caneta‖. Respondi dizendo que não podia prometer, de imediato, que de nosso
trabalho sairia um ―documento‖, mas que, sim, em alguns casos, a existência de
registros sobre a ocupação da terra pelos povos indígenas era algo importante e que, se
fosse do interesse deles, poderiam se mobilizar e produzir algo desse tipo
posteriormente, já que a documentação ficaria na posse deles.
Então, antes mesmo de eu terminar, Hagema sobre-falava comigo: — ―Diogo,
eu gosto assim. Eu vou contar tudo, tudo... história de lá onde começou, lá, de Kuluene,
lugar dos irmãos Villas Boas, até... lá, Caramujo. Eu sei tudo, tudo, Diogo. Eu vou levar
você lá também, você vai ver lá história, no lugar‖. Terminamos o papo entre conversas
mais à toa (sobre a quantidade de redes que caberiam na minha casa, a necessidade de
comprar mais anzóis para levar, a possibilidade de conseguir uma bola de futebol e
sapatos para o pessoal da aldeia etc.). De lá, fomos almoçar e depois lhe dei uma carona
até a casa daquele seu amigo. A partir do que, tornaria a revê-lo somente na cidade de
Canarana/MT, no dia de nossa chegada conjunta e de onde partiríamos, por fim,
deixando muita poeira e uma série de fazendas para traz, até a sua aldeia.

25
O principal item da base alimentar dos povos alto-xinguanos é a mandioca, utilizada na forma de
polvilho ou do popularmente chamado ―beiju‖ (kine, em Kalapalo).
32

O encontro de Hagema com a Funai e com o antropólogo produziu algo: o


interesse em fazer de seu conhecimento sobre a história de alguns lugares do TIX um
―documento‖ — algo que lhe permitisse resolver as coisas ―do jeito kagaiha, com papel
e caneta‖. Como disse a Hagema, essa pesquisa (embora tenha sido escrita valendo-se
bastante desses dois materiais) infeliz e felizmente ainda não é esse ―documento‖
(strictu sensu): infeliz, porque a atual situação dos indígenas no Brasil demanda que
mecanismos diretos de defesa de seus direitos se multipliquem imediatamente; feliz,
porque permite que características da socialidade do Alto Xingu sejam descritas com
maior profundidade do que caberia nesses aparatos, podendo servir-lhes, quem sabe, de
mastro. Mas, então, no que afinal se torna essa pesquisa?
Ela é uma tentativa de pensar a memória e a política no Alto Xingu, atentando-
se para o fato de que conhecimentos como os de Hagema, sem deixarem de ser
visibilizados regionalmente em suas formas tradicionais, avançam hoje também rumo à
soleira das formas de representação nacionais, reclamando para si posições de
enunciação capazes de influir no mundo tanto quanto as utilizadas, por exemplo, pelos
aparelhos do Estado. Ao falar de memória, portanto, a pesquisa visa observar como
dinâmicas e tecnologias especificamente indígenas de lidar com o passado entretêm
relações intensas com elementos do mundo contemporâneo, sendo ou não alteradas por
eles — mas, sem dúvida, visando elas mesmas provocar alterações neste mundo.
Sob tal viés, este primeiro encontro afirmou ainda mais o potencial
cosmopolítico dos relatos orais com os quais eu queria trabalhar. Afinal, como remarca
Isabelle Stengers em um texto que, de modo indireto, parece não obstante falar
exatamente sobre minha conversa com Hagema em São Carlos naquele dia, na
proposição cosmopolítica o que importa é:

a proibição do esquecimento, ou pior, da humilhação. Notadamente, aquela


[humilhação] que produz a ideia indigna de que uma compensação financeira
deveria ser suficiente, essa tentativa obscena de dividir as vítimas, de isolar
os relutantes se dirigindo antes àqueles que, por uma razão ou outra, aceitarão
se curvar mais facilmente. Tudo terminará talvez com o dinheiro, mas não
―pelo‖ dinheiro, pois o dinheiro não fecha a conta. Aqueles que se reúnem
33

devem saber que nada poderá apagar a dívida que liga sua eventual decisão
às suas vítimas. (Stengers, 2018: 462)

Nesse sentido, a meu ver, quando Hagema me disse que queria ―resolver as
coisas do jeito kagaiha‖, ele não estava simplesmente afirmando que queria aprender a
lidar com determinados problemas da mesma maneira como os brancos fazem. Talvez
ele quisesse isso também, mas aquilo que ele podia tornar visível ―com papel e caneta‖
é que me pareceu ser de fato importante: quer seja, histórias cuja expressão,
independentemente de serem veiculadas oralmente ou por escrito, eram capazes de
produzir um contra-esquecimento ou uma contra-humilhação, o que, por sua vez, seria
uma forma de responder em outra moeda àquela ―tentativa obscena‖ de lhe fazerem
ceder seu território por dinheiro. Uma resposta que segundo o ethos alto-xinguano
causaria ―vergonha‖ se fosse buscada ―brigando‖.
A partir daí, concluí que deveria encarar essas narrativas como verdadeiros atos
enunciativos: expressão que utilizarei aqui e ali neste trabalho a fim de realçar os
aspectos pragmáticos da linguagem e que, apesar de não corresponder literalmente às
noções de ―ato de fala‖ ou de ―performativo‖ de John Austin (1990), tem nelas uma
forte inspiração. Segundo Austin (op.cit.: 24), ―performativos‖ são proferimentos
(utterances) que não se deixam definir pelo fato de ―descreverem‖ ou ―relatarem‖ algo,
nem sobre os quais se poderia dizer serem ―verdadeiros ou falsos‖, mas por que sua
enunciação é, no todo ou em parte, a realização de uma ação.
Nesse ponto, ainda, Austin diz que eles apenas podem ser tratados como
―felizes‖ (eficazes) ou ―infelizes‖ (ineficazes ou ―nulos‖). Esse aspecto, em particular, é
interessante, pois de uma perspectiva alto-xinguana, o ato de ―brigar‖, além de causar
―vergonha‖, é um dos principais responsáveis por provocar também tristeza: um afeto
que, como o primeiro, é extremamente indesejável e até mesmo perigoso — já que,
além de atrapalhar as relações entre os vivos, pode atrair itseke (―espíritos‖ causadores
de doenças e outros infortúnios). Olhar para essas histórias como atos enunciativos,
portanto, é pensá-las também como meios de realizar ações ―felizes‖, entendendo-se,
nesse caso, que a felicidade não decorre apenas da ―eficácia‖ do discurso, mas da
possibilidade mais direta de contra-efetuarem acontecimentos ―tristes‖.26

26
Cf. também a definição de Austin de atos ―abusivos‖ (um tipo de performativo ―infeliz‖), cujo paralelo,
dessa vez, com aquela ―tentativa obscena‖ mencionada na página anterior é tão interessante quanto
(Austin, op. cit.: 30-31).
34

Dado que muitas vezes as condições de tristeza decorrem de uma conjuntura


frente à qual é preciso resistir (como fica claro no exemplo relatado acima), tudo isso
permite sublinhar ainda que, ao fazerem uso da palavra, as pessoas estão realizando, não
apenas uma ação performativa, mas também uma ―ação política‖: entendida aqui, na
esteira das argumentações de Renato Sztutman, como um modo ―de lidar com o poder
político — o que é muito diverso de uma maneira de buscar conquistá-lo‖ (2005: 34).
Desse ponto de vista, talvez existam certas afinidades eletivas entre os modos
alto-xinguanos de se lidar com o poder e aqueles possibilitados por um ―documento‖,
afinidades que Hagema gostaria de explorar com minha ajuda. Porém, isso está longe de
afirmar que ele estava inclinado, apesar de se recusar a plantar milho e soja, a promover
uma substituição burocrática, por assim dizer, de suas formas de se fazer política pelas
do kagaiha (para os quais, agora sim, a busca para se deter o poder, bem como a
propriedade, sobre as coisas é, sem dúvidas, muito importante... ou melhor, rentável).
Quanto a isso, vale ressaltar que a principal conquista desta pesquisa — da qual
apenas uma pequena parte é exibida neste texto, por questões práticas e de espaço — foi
o registro (em áudio e vídeo) de narrativas contadas em mais de 35 sítios antigos da
memória Kalapalo, com o levantamento de seus nomes e de suas coordenadas
geográficas. São histórias com enredos dos quais se diria serem (auto)biográficos,
mitológicos, estórias para diversão, enfim, com características de diferentes gêneros, as
vezes oscilando entre algo típico de um e de outro no interior de um único relato. Em
algumas delas, Hagema fala diretamente sobre elas provarem o quanto aqueles lugares
pertencem aos habitantes do Alto Xingu e, nesse ponto, elas são mais do que materiais a
serem apropriados apenas futuramente para fins políticos: elas são, desde já, a expressão
de como um narrador está fazendo política ao narrar.
Esse engajamento no discurso chama atenção também para o modo como as
ideias e representações de um narrador sobre o passado não podem ser separadas das
expectativas e valores que ele faz sobre sua vida no presente e sobre seus possíveis
desdobramentos no futuro. Afinal, como lembra Alexandra Aikhenvald, ―the ideas of
value are articulated through language use‖ (2013: 53). Assim, é possível se perguntar:
como as pessoas se orientam, veiculam e disputam versões sobre os fatos, construindo
um significado para suas vidas e a de outros seres através de seus discursos?
No que se refere a isso, no entanto, seria preciso definir melhor o que, no
contexto estudado, se está considerando como atos enunciativos, pois, a bem dizer, não
são apenas enquanto ―narradores‖ que as pessoas constroem versões sobre os fatos
35

(sejam eles presentes ou passados), agindo politicamente através de seus discursos.


Como se verá nessa dissertação, elas também o fazem enquanto simples falantes de suas
línguas, ou melhor, em trocas verbais ―menores‖, isto é, através de notícias, fofocas,
micro-histórias sobre acontecimentos mais cotidianos, algo que tem igualmente efeitos
políticos determinantes para a vida de uma aldeia e de seus habitantes.
Entrar nisso agora, porém, implica adiantar pensamentos que só se
aprochegaram do pesquisador após um contato íntimo com seus interlocutores e com os
materiais colhidos em campo pela pesquisa. Por isso, primeiro é preciso ainda definir
melhor a natureza desses materiais e falar um pouco sobre as estratégias metodológicas
adotadas neste estudo para se trabalhar com eles. O leitor os reencontrará,
posteriormente, mais preparado ao longo do texto.

Narrativas indígenas: biografia e territorialidade

Segundo Ellen Basso, a compreensão e enunciação histórica dos Kalapalo é construída


através de narrativas orais nas quais eventos ou fatos passados são descritos através da
rememoração das motivações e mudanças subjetivas ocorridas na vida de ―named
people‖ (―pessoas com nomes‖), isto é, através da citação dos atos e falas de pessoas
específicas (Basso, 1995: 295). Com isso, a autora realçou em suas obras como o senso
de história dessas narrativas é essencialmente biográfico.
Também escrevi sobre essa relação entre biografia e história ao comentar o
depoimento pessoal de Kuaku em minha monografia (Cardoso, 2010). Naquela ocasião,
remarquei como a história de uma aldeia está intrinsecamente ligada à memória do
narrador sobre si mesmo e sobre os movimentos de entrada e saída de pessoas nesse
coletivo.27 Nesse sentido, falei ainda que um relato de cunho ―autobiográfico‖ também
podia ser visto como um relato ―alterbiográfico‖, no sentido de que a vida de um ―eu‖,
mesmo da perspectiva de um narrador que conta algo sobre si mesmo, só se deixa
apreender através do ajuntamento e da mistura das linhas de vida de outros.
As vídeo-narrativas documentadas com Hagema Kalapalo durante meu trabalho
de campo dão embasamento a tais reflexões, mas fornecem também novos pontos de

27
De fato, a narrativa de Kuaku fora documentada pelo Prof. Antonio Guerreiro na aldeia de Aiha (em
2009), numa ocasião em que lhe perguntaram sobre a origem do ―povo Nahukwá‖ — a qual está
vinculada a uma antiga aldeia, chamada Jagam . Mas, o narrador afirma não saber ―quem foi que abriu‖
aquele lugar. Depois de trocar algumas palavras com sua audiência, ele começa seu relato falando sobre
as próprias circunstâncias de seu nascimento e prossegue a história em tom ―autobiográfico‖.
36

interesse para a pesquisa. De um lado, elas se assemelham a boa parte das narrativas
orais dos povos karib do Alto Xingu já publicadas: foram contadas por um chefe; um
mesmo relato pode ter conteúdos e características de diferentes gêneros narrativos
(elementos míticos, históricos, biográficos); falam sobre personagens e temas
conhecidos pelos povos do complexo alto-xinguano etc. De outro, trazem uma
particularidade: ressaltam que essa ligação entre história e biografia passa pela
territorialidade.
Como Hagema me falou no final de nosso primeiro café juntos: ―você vai ver lá
história, no lugar‖. Naquele dia, essa frase soou-me um pouco estranha, mas
compreendi posteriormente que ela adequava-se perfeitamente às minhas experiências
durante o trabalho de campo. Isso porque ouvir uma história tornou-se, direta ou
metaforicamente, ir por caminhos e recolher eventos a partir de seus lugares.
Igualmente, quando Hagema e outros interlocutores me falavam: ―Diogo, eu tenho
história‖, eles estavam afirmando não apenas saberem um enredo e a forma de
verbalizá-lo, mas, ao mesmo tempo, saber onde aquela história estava ou, mais do que
isso, terem vivido ou viverem ainda naquele lugar — ou seja, considerarem a si mesmos
ou a algum parente como os continuadores dela. Nesse sentido, realizar aquela
documentação era, mais do que ouvir, andar até as histórias, as quais estavam (e não só
falavam) sobre determinados lugares.
Aprendi, por aí, que a experiência de que escutar alguém pode ser, mais do que
literalmente (eu diria territorialmente), tomar ou tornar-se o caminho de suas palavras,
o que permite e convida a aproximar uma etnografia dos discursos de uma etnografia
dos modos de circulação. Seguindo os passos dados por Adriana Testa em seu estudo
com os Guarani Mbya (2014), essa circulação pode ser apreendida a partir do conjunto
de movimentos e/ou paradas realizados ao longo das vias de comunicação e
deslocamento que relacionam diferentes lugares, através dos quais os fluxos de pessoas,
objetos, saberes, histórias etc. são retidos ou propagados, gerando a sua concentração ou
dispersão pelo território.
Em outros contextos etnográficos ameríndios (Basso, 1996; Santos-Granero,
1998; Feld e Basso, 1996; entre outros), a relação entre história e territorialidade foi
aprofundada ainda no sentido de mostrar como a referência a determinados elementos
da paisagem permite às pessoas se posicionarem no interior de relações. Paralelamente,
a manutenção de histórias pessoais permite que dinâmicas de circulação continuem
37

perpassando certos lugares, isto é, mantenham a vida coletiva neles, pois os mantêm
vivos na memória.
Santos-Granero afirma que essa é uma característica das tecnologias de
rememoração tanto das sociedades letradas quanto iletradas, as quais instanciam seus
conhecimentos e sua memória histórica na paisagem onde vivem. Estudando entre os
Yanesha (povo arawak da Amazônia peruana), o autor remarca como o território é
consagrado principalmente pela mitologia, de modo que seus interlocutores são capazes
de produzir conhecimentos e significados sobre suas origens através do que ele
denominou ―escrita topográfica‖: uma forma de registro que está baseada ―on
landmarks resulting from the action of human or superhuman beings‖ (1994: 140). A
esses elementos carregados pela imaginação histórica de um coletivo, então, ele dá o
nome de ―topograms‖:

they are elements of the landscape that have acquired their present
configuration as a result of the past transformative activities of human or
superhuman beings. Examples of human-made topograms are old building or
garden sites, graves, mines, trails, bridges, or battlefields. In contrast,
topograms attributed to supernatural agency are generally natural elements
that stand out in the landscape because of their extraordinary aspect (shape,
size, color) — this, according to the Yanesha, constitute evidence that they
are not in fact natural. (loc. cit.)

―Topogramas‖ de origem ―sobrenatural‖ podem ser facilmente encontrados no


Alto Xingu, por exemplo, ao se conversar com os habitantes dessa região sobre os
gêmeos Taũgi e Aulukumã (―Sol‖ e ―Lua‖, respectivamente) — heróis fundadores da
humanidade em sua mitologia. Praticamente todas as histórias e peripécias vivenciadas
pelos gêmeos são instanciadas com precisão pelos moradores do Alto Xingu na
topografia de seu território.28
Por outro lado, também é possível pensar o funcionamento de uma ―escrita
topográfica‖ a partir da intervenção humana nessa região. Durante os percursos que
realizei com Hagema para realizar aquela documentação, boa parte das histórias eram
associadas a elementos da paisagem com os quais íamos diretamente ao encontro:
pequizeiros plantados em lugares onde antigamente existiam aldeias, copaíbas das quais

28
Os Kalapalo afirmam que os gêmeos Taũgi e Alukumã moravam em M gena (região do interior do
TIX conhecida como Morená), que é a confluência entre os formadores do rio Xingu. Segundo Guerreiro
(2015), esse ponto marca mesmo ―o limite norte do que os xinguanos consideram como seu território,
pois dali em diante, rio abaixo, é ‗terra de índios‘ [ngikogo], inimigos‖.
38

se extrai óleo para passar no corpo, marcas deixadas no chão ou em troncos por parentes
que já faleceram, os caminhos antigos que foram abertos por eles para circularem pelo
território, objetos deixados em aldeias abandonadas etc.
Fui percebendo, por aí, o quanto o senso territorial de meus interlocutores, e não
apenas o seu senso histórico, era marcado por fatores de ordem biográfica, pois, como
venho dizendo, a própria territorialidade parece expressar como as pessoas (ou outros
seres) vieram e estão grafando suas vidas nos lugares.29 Aos poucos, então, fui
entendendo que durante meu trabalho de campo eu deveria estar atento a esses
movimentos de circulação e para o modo como eles se relacionavam com as práticas
discursivas, sendo enunciados, propagados ou retidos por elas.
Nesse sentido, o que trago dele para esse texto está focado, principalmente, em
mostrar, a partir de exemplos mais concretos, como essa relação entre biografia, história
e território se evidencia em alguns movimentos realizados por meus interlocutores, seja
no passado ou no presente. Assim, desde as mudanças entre seus lugares de habitação
até eventos de mobilidade que os levam daqui para lá de modo menos definitivo
(―festas‖,30 trabalhos coletivos, visitas a parentes, reuniões, trocas econômicas etc.),
podem ser vistos como acontecimentos que incitam diferentes modos de utilização da
palavra e que geram, ao mesmo tempo, uma inscrição da vida no território, e do
território na memória.
O leitor perceberá, porém, que procuro levantar ou sustentar poucas hipóteses a
partir de minhas vivências em campo. Esta foi uma decisão metodológica que tomei,
pois, ao todo, minha estadia em campo foi de apenas dois meses e meio — um tempo
muito curto para que eu pudesse fazer isso sem retroalimentar, teórica ou praticamente,
incertezas e dúvidas.31 Trata-se, portanto, de utilizar dessas vivências mais para ilustrar
ou descrever, do que para problematizar, de fato, as coisas. Considero-me, apesar de

29
Lembrando, nas palavras de Suely Kofes, que antes de tudo os termos ―biografia e autobiografia teriam
como referência a vida — parte constitutiva da etimologia dessas palavras, ou seja, grafia da vida, grafia
da minha vida —, mas um malabarismo semântico terminou por conotar o termo ‗vida‘ com o significado
de indivíduo‖ (2015: 20).
30
Nessa dissertação, o termo ―festa‖ e ―ritual‖ serão usados de maneira intercambiável, com um mesmo
sentido, seguindo a opção de tradução feita por Antonio Guerreiro (2015a: 41) da palavra ailene (da raiz
aili, ―alegria‖), palavra utilizada pelos Kalapalo para se referirem a esses encontros e que também está
associada a um ―tirar da tristeza‖ (cf. Guerreiro, op. cit, sobre os efeitos afetivos do Egitsü) e produzir
―felicidade‖, se ligando aos atos enunciativos (e outros) nelas presente.
31
Este período foi, ainda, dividido em duas viagens, ambas no ano de 2017. A primeira pegou parte do
período de estiagem, entre os meses de maio e junho, e outra foi feita no mês de novembro, no início das
chuvas.
39

tudo, ter sido bastante favorecido pelas condições nas quais realizei esta etapa da
pesquisa.
O fato de ter sido hospedado na aldeia Apangakigi/Caramujo, um coletivo
recém-fundado e que (à época) ainda era muito pequeno, permitia-me perceber algumas
dessas dinâmicas de circulação a partir de uma perspectiva ―menor‖ (pensando ainda
esse termo no sentido que lhe atribuí na primeira seção desta introdução, e não apenas
em sua congruência com a pequenez desta aldeia). Na seção seguinte, fecho essa
apresentação explicando melhor o que, para o caso de uma aldeia, significa esta
perspectiva menor.

Potencialidade da perspectiva das aldeias menores

Segundo um dos depoimentos gravados com Hagema (reproduzido no cap. 2


dessa dissertação), ele nasceu na antiga aldeia Kalapalo chamada Kunugijahütü, cujo
terreno, hoje abandonado, fica a mais ou menos seis quilômetros de sua residência atual
em Apangakigi. Entre os caminhos de vida que o levaram de uma para outra, no
entanto, muitos percalços se interpuseram.
Hagema saiu de sua vila natal ainda muito pequeno (c. 1960), numa época em
que, como já foi dito, uma série de mudanças e rearranjos coletivos estavam
acontecendo no Alto Xingu. Como ele conta, da mesma forma que Kuaku e diversos
Nahukwá, sua família e praticamente todos os moradores de Kunugijahütü foram
mudados nessa época mais para o norte do Alto Xingu, onde fundaram aldeias mais
próximas dos postos de atendimento médico. Desde então, ele passou boa parte de sua
vida na aldeia de Aiha.
Foi só no ano de 2007 que, de lá, ele saiu para abrir sua primeira roça na região
conhecida pelos povos do subsistema karib como Apangakigi (de onde vem, aliás, um
dos nomes da aldeia que estava fundando). O impulso para isso veio de uma série de
motivos, dentre eles, conflitos de ordem familiar e política, além, claro, do desejo em
reabitar uma região onde seus pais e avós já tinham morado e onde — como voltarei a
falar no capítulo 1 — abundam os caramujos de concha branca, muito valorados pelos
Kalapalo (e, daí o seu segundo nome), que os utilizam para fabricarem cintos e colares
40

que serão, posteriormente, trocados no circuito regional ou comercializados


extrarregionalmente.32
Justamente porque foi fundada recentemente, a aldeia Apangakigi/Caramujo
desperta interesse não somente sobre os fatores envolvidos na sua criação, mas também
sobre as etapas dela. Por exemplo: uma casa construída nos moldes ―originais‖, quer
dizer, com armações de madeira, embira e sapé, tem um ciclo de vida seguro de sete
anos. Após esse período, aberturas no teto e nas paredes começam a se produzir,
gerando goteiras, invasões de insetos e bichos, visibilidade indesejada, os postes de
suspensão das redes vão trincando, enfim – a casa vai pouco a pouco expulsando seus
moradores. Entre reformar ou reconstruir uma casa, outras podem nascer e novos
terrenos são ocupados.
Assim, como vão se configurando os primeiros espaços de uma aldeia? Em que
aspectos uma aldeia recém-fundada e pequena assemelha-se e diferencia-se do padrão
das aldeias mais antigas e maiores? Procurei, com as informações que obtive através de
conversas e entrevistas informais com os habitantes de Caramujo, fazer um
levantamento das primeiras transformações morfológicas desse padrão para o caso
estudado. A fim, porém, de realçar as dinâmicas de circulação envolvidas nestas
transformações, procurei pensar também a relação entre sair de uma aldeia para abrir
ou se mudar para outra, refletindo sobre o que significa atravessar lugares, arrancar o
mato (para abrir uma roça) e arrastar parentes atrás de si (para ajudar e fazer roça e
viver e cuidar e...).
Do mais, Caramujo indicava que, no processo de abertura de uma aldeia, há uma
sobreposição entre a figura dos fundadores e a dos chefes, algo que merecia ser
analisado com atenção. Nesse sentido, a chefia dessas aldeias menores são, elas
mesmas, chefias em processos de abertura (i. e., de suas aldeias/coletivos e de si
mesmas), permitindo analisar, inclusive, alguns dilemas políticos que podem estar
relacionados à constituição de chefes novos frente a chefes de aldeias maiores, com
reconhecimento já construído (ainda que em disputa).
Uma relação envolvendo o sair e o entrar de pessoas em diferentes lugares
também pode ser pensada, em uma dimensão contínua, a partir das formas de interação
mais cotidianas que interligam aldeias vizinhas na atualidade. No que se refere a isso,

32
Os caramujos em questão fazem parte do gênero Megalobulimus sp. Além de possuírem um alto valor
estético entre todos os povos do Alto Xingu, são motivo de orgulho para os Kalapalo, os únicos que, em
teoria, sabem confeccioná-los no interior da especialização produtiva que rege as interações econômicas
interétnicas no Alto Xingu.
41

foi imprescindível o modo como vivenciei as relações estabelecidas, principalmente,


entre Caramujo e a aldeia Kaluani (ou Paraíso), vizinha daquela por apenas três
quilômetros aproximadamente e cujos moradores estão multiplamente imbricados por
relações de parentesco de diversos graus.
Do ponto de vista de Caramujo, portanto, o regionalismo tinha significados bem
concretos, os quais se resumiam em atividades bem objetivas: ter que visitar ou ajudar
alguém de outro lugar; poder trocar um objeto com tal pessoa ou em tal casa numa
aldeia vizinha; receber visitantes inesperados ou ir convidá-los; sair para pescar e, na
volta, ter que deixar um pouco de peixe para algum parente-vizinho; poder pedir coisas
emprestadas alhures; conseguir se inteirar ou ter que se preocupar com notícias, fofocas
e problemas vindo de outras aldeias etc.
Com base nessas atividades, às quais os moradores de Caramujo dedicavam-se
quase que cotidianamente, procurei também trazer para esse texto alguns exemplos de
como a regionalidade alto-xinguana, descrita na literatura principalmente através de
relações de identidade ou de diferença estabelecidas no nível das estruturas e dos
hábitos, pode ser descrita também a partir de como é vivida na prática pelos habitantes
dessa região. Isso permite, do mais, que a interação regional entre pessoas e aldeias no
Alto Xingu seja descrita para além das dinâmicas rituais, ponto de maior interesse das
pesquisas que se debruçaram sobre o assunto.
Nesse sentido, esta dissertação pensa ainda (sempre partindo de Caramujo e de
sua perspectiva menor) como os significados de avizinhar e habitar às vezes se
confundem e se separam, e quais os efeitos disso na hora das pessoas saberem o que é (e
o que não é ou não pode ser) um parente ou aliado. Isto é: quais as relações entre residir
e frequentar, e como é possível passar de um a outro desses modos de estar nos lugares?
No fundo, é esse o dilema que aparece também ao se analisar a composição
populacional de uma aldeia menor. Dos moradores de Caramujo (segundo meu censo,
em novembro de 2017, 30 pessoas), grande parte deles se dizia, em correspondência
com a identificação regional do local, Kalapalo (8); mas, a maior parte se
autodenominava Matipu (17). Uma pequena parte, ainda, se considerava Kuikuro (4) e
Yawalapiti (1). Através das entrevistas realizadas com alguns deles, percebi que as
parentelas (ou mesmo pessoas desacompanhadas) foram chegando aos poucos, em
diferentes épocas e por diferentes motivos. Algumas anteciparam sua morada com uma
visita (inclusive, o próprio Hagema disse-me ter visitado várias vezes a região antes de
decidir onde abriria sua primeira roça). Assim, o tempo e o espaço de uma aldeia
42

parecem ser o arranjo harmônico de diferentes tempos e espaços. A configuração de


uma aldeia ou lugar é, em suma, uma mais que literal configuração, um colocar junto de
figuras.33
Esses dados problematizam o estatuto e o uso desses nomes que servem ora
como designação étnica (principalmente no caso das relações e colóquios com o mundo
dos ―brancos‖), ora como identificação pessoal e familiar, ora ainda como designação
para uma aldeia ou para determinados territórios da memória — lembrando, mais uma
vez, que o Alto Xingu se deixa apreender por uma perspectiva misturada. Relocando
esses dados na forma de problema, isso implica pensar como pessoas e coletivos
constroem suas identidades em nível local e regional, sem necessariamente entrarem em
contradição com a heterogeneidade daquilo que lhes dá corpo. Assim, por exemplo,
com menos de 30% dos seus moradores se reconhecendo como Kalapalo, Caramujo
continua sendo tratada (pela unanimidade de seus habitantes ou via outros meios de
comunicação, como no rádio ou nessa própria dissertação) como uma aldeia do povo
Kalapalo. Por quê?
Em resumo, para voltar a algo exposto na primeira seção e unir os pontos desta
introdução, esta pesquisa argumenta que: assim como a perspectiva biográfica (a qual,
como foi dito, é a base de enunciação da história indígena e de sua apreensão do
território) coloca a mistura em primeiro plano — fazendo de cada pessoa um ―colorido‖
recorte em uma malha tecida por diferentes linhas de vida cruzando diferentes lugares
—; a perspectiva de uma aldeia menor também tem o potencial de realçar a
multiplicidade de cores dessas linhas, as quais, mesmo quando reunidas, não
―desbotam‖.
Por fim, fazendo um balanço geral do que acaba de ser dito, esse trabalho
poderia ser visto como feito, ele mesmo, por um embrenhamento ou uma mistura de
questões. Mistura que é epidemicamente transmitida para ele (e para esse texto, em
particular) pelos sujeitos e recortes com os quais me propus pensar ao longo da
pesquisa. Frente a esse emaranhado de problemas, mais do que ter a pretensão de
esgotar a todos, a pesquisa se vê simplesmente na tarefa ―menor‖ de lhes permitir terem
continuidade: como terão agora, com essa dissertação, ou como podem ter no futuro,
conforme ela seja misturada com outras pesquisas e pensamentos.

33
Como diz Casey (1996: 25): ―Being in a place is being in a configurative complex of things‖.
43

Organização do texto

Este texto foi escrito e estruturado pensando que, no fundo, as relações existentes entre
algumas aldeias e pessoas do subsistema karib do Alto Xingu se deixam apreender,
então: (1) a partir da mistura de linhas biográficas; (2) que esta mistura é gerada pela
circulação de pessoas e de histórias pelo território.
A fim de corresponder ao primeiro ponto, a leitora e o leitor perceberão que o
texto sempre caminha acompanhando a biografia (entendida, aqui ainda, em sentido
lato, como ―a grafia da vida‖) de determinadas pessoas. Trata-se, portanto, de um texto
que, como as narrativas dos sujeitos com que ele dialoga, é construído pelo acompanhar
de ―pessoas com nomes‖ (―named people‖, na expressão já citada de Basso). Por uma
razão de respeito a alguns interlocutores, porém, em alguns casos troquei os seus nomes
por outros fictícios, para preservá-los de possíveis problemas com as informações
divulgadas no estudo.
Quanto ao segundo, dividi o texto em dois capítulos, nos quais procuro pensar
como a mistura e a circulação de pessoas e histórias entre algumas aldeias do
subsistema karib do Alto Xingu se realizam por dinâmicas de mobilidade
complementares. No primeiro, reflito sobre isso tomando como enfoque alguns fatores
responsáveis por levarem as pessoas a se concentrarem num mesmo local. Para tanto,
acompanhando a grafia de vida dos moradores da aldeia Apangakigi/Caramujo,
descrevo como ela foi fundada e as transformações morfológicas pelas quais passou
desde então. Tento, com isso, refletir sobre algumas das dinâmicas de produção e
dissolução de coletivos a partir do modo como uma aldeia menor vai se instanciando no
circuito de relacionamentos regionais.
No segundo capítulo, por sua vez, dou prosseguimento a essas reflexões
tomando como foco, agora, acontecimentos que provocam a dispersão de pessoas e
histórias. Os raciocínios aí desenvolvidos estão baseados, principalmente, na
interpretação cruzada de duas narrativas orais (uma gravada com Hagema Kalapalo, e
outra já nesta mencionada introdução, a de Kuaku). A partir dessas duas histórias — e
do aprofundamento, através do que nelas se diz, nos movimentos realizados por esses
dois narradores ao longo de suas vidas —, tento pensar como alguns casos de dispersão
que fazem parte do passado de seus coletivos são lembrados e quais dinâmicas políticas
são, por aí, reveladas.
44

Por fim, acrescento uma breve conclusão, na qual faço um resumo dos
resultados a que chegou este estudo, procurando, por aí, pensar quais contribuições uma
pesquisa realizada a partir de uma aldeia menor e atenta aos próprios discursos e às
formas de ação política de seus interlocutores, pode oferecer para a vida deles e para a
compreensão do regionalismo alto-xinguano.

Figura 2. Cena do interior da casa de Hagema Kalapalo (anetü da aldeia Apangakigi/Caramujo)

De frente para a porta de entrada de sua casa, Hagema Kalapalo examina um livro de fotografias sobre
bancos de madeira feitos por diversos povos indígenas sul-americanos (um presente recebido de uma
amiga kagaiha durante uma viagem a Cuiabá).
45

As coisas se duplicam em Tlön; propendem igualmente a se apagar e a perder


os detalhes quando as pessoas as esquecem. É clássico o exemplo de um
umbral que perdurou enquanto um mendigo o visitava e que se perdeu de
vista com sua morte. Por vezes uns pássaros, um cavalo, têm salvado as
ruínas de um anfiteatro.

Jorge Luis Borges, ―Tlön, Uqbar, Orbis Tertius‖, in. Ficções, p. 28

A ideia de que a duração das coisas depende da viva atenção dedicada a elas veio-me
antes do encontro com a aventura ficcional de Borges, utilizada como epígrafe desse
capítulo. Apareceu-me certo dia, durante meu trabalho de campo, quando eu caminhava
com o chefe (anetü) da aldeia Apangakigi/Caramujo, Hagema Kalapalo, pelas encostas
elevadas de um dos portos à beira do rio Kuluene – um lugar conhecido em karib como
Kahindzu. Lá, Hagema queria me contar a akinha (―história‖) da chegada dos irmãos
Villas Boas, ou, como também me dizia, ―de como Orlando chegou primeiro‖.
Em um determinado momento, passando por entre a folhagem seca de algumas
árvores do lugar, encontramos um pilão horizontal de madeira abandonado no chão.
Como me explicou o chefe que ia à minha frente, ele fora fabricado na década de 1940 e
serviu para os kagaiha (―brancos‖) que lá chegavam sovarem arroz e mandioca.
Enquanto contava, Hagema apoiava um de seus pés sobre o pilão, realçando ainda mais
a imagem daquele objeto pesado de tempo e relento. Depois, espaçando suas palavras,
se agachou, acariciou vagarosamente o círculo de sova e a madeira já truncada pelos
cupins, e deu um sorriso — ―Diogo, está aqui, ainda...‖.
Quando terminamos a gravação, Hagema disse-me que um dia iria levar aquele
pilão para sua aldeia – talvez de lá para um museu, ou deixaria na aldeia mesmo, onde
ia reservar um espaço especial em sua casa para guardá-lo junto com várias outras
coisas-relíquias como aquela, para poder mostrar às pessoas que o visitassem. Afinal,
―não é todo mundo que sabe onde tem [essas coisas]‖, e, se deixar, ―vai estragar tudo‖.
Minha etnografia foi bastante permeada por encontros como esse, evidenciando
inusitados arranjos entre pessoas, coisas e lugares. Ao longo deste capítulo, descrevo
brevemente alguns desses arranjos e, por aí, procuro pensar como a vontade de trazer
46

algo ou alguém para perto de si, manifesta por Hagema com relação ao pilão no caso
acima, faz parte também de dinâmicas de circulação mais amplas, as quais levam
pessoas e histórias a se concentrarem num mesmo local.1
Tomo como base (1) alguns eventos que pude presenciar em campo e que
demonstram como dinâmicas de circulação perpassam diferentes lugares da região de
Apangakigi; depois (2) faço uma descrição mais pormenorizada das transformações
pelas quais a aldeia Apangakigi/Caramujo vem passando desde a sua fundação (como
foram abertos e ocupados seus primeiros espaços, como as pessoas se mudaram para lá
e, por fim, quais relações norteiam a ecologia desse coletivo).
A partir do ponto de vista desta pequena aldeia, então, tento pensar como as
relações criadas entre alguns coletivos do subsistema karib convidam a uma abordagem
micropolítica da socialidade alto xinguana e de como os lugares do TIX são por ela
configurados. Assim, uma questão de fundo guia o texto: como as pessoas ou os
coletivos (junto com suas memórias e relatos) se instanciam e circulam no território,
criando ou desfazendo uns aos outros na região do Alto Xingu?

Figura 3. Frame da gravação realizada no porto Kahindzu (o lugar da chegada dos irmãos Villas Boas),
onde Hagema Kalapalo mostrou-me o pilão de madeira dos kagaiha.

1
Digo que tanto as pessoas quanto as histórias podem se concentrar, pois, como este capítulo e o próximo
deixarão mais claro, uma aldeia concentra, ao redor de si, histórias de aldeias antigas que lhe servem de
―surporte‖ (por exemplo, a aldeia Apangakigi/Caramujo e a aldeia Kunugijah t ). Por outro lado, uma
aldeia, em suas relações de vizinhança com outras aldeias na atualidade, concentra (e dispersa) histórias
em sentido lato, ao criarem malhas de circulação de notícias, fofocas etc.
47

Gostaria de começar falando sobre o nome desta aldeia. Venho me referindo a ela, até
agora, por um binômio (Apangakigi/Caramujo), em que um dos termos está em
kalapalo e outro em português. Essa duplicidade de tratamento precisa ser esclarecida.
Fato é que, durante o tempo que estive em campo, escutei meus interlocutores fazerem
referência a ela por esses dois nomes, de modo intercambiável.
O termo ―caramujo‖, nas línguas karib do Alto Xingu, é equivalente à palavra
inhu. Por outro lado, não consegui nenhuma tradução para a palavra apangakigi. Sei
somente que esse era o modo como os falantes de língua karib designavam toda ―a
região‖ onde esta aldeia está hoje localizada e que, antigamente, os Kalapalo tiveram
outra aldeia com o mesmo nome por ali, mas não exatamente no mesmo local, como
indicado no mapa da página 51.
Apangakigi, dessa forma, parece ser um epíteto herdado do lugar. E, com
―Caramujo‖, por sua vez, não é muito diferente. Os habitantes da aldeia me explicaram
mais de uma vez que ela havia sido batizada daquela forma, pois, nas matas dos
arredores, tinha ―muito caramujo‖ (referindo-se ao molusco de concha branca apreciado
pelos Kalapalo, já mencionado na introdução). Portanto, seja no alcunhamento em sua
língua natal, seja na adoção de uma palavra estrangeira, os nomes utilizados parecem ter
sido colhidos do onde.
Esses caramujos, aos quais os habitantes dessa aldeia fazem referência
praticamente todas as vezes que falam o nome do lugar onde vivem, são considerados
por eles como sua ―moeda‖ — algo que eles expressavam para mim através de
comparações muito literais, do tipo: ―Diogo, aqui na região tem muito caramujo, inhu...
Caramujo pra gente é igual dólar. Aqui, Apangakigi, região, é que nem o Banco
Central‖. Ou então: ―caramujo é que nem kagaiha chama, ‗dinheiro‘, né‖.
Como já foi mencionado, os colares e cintos fabricados pelos Kalapalo com a
concha desse animal são trocados com um alto valor durante as festas regionais ou em
negociações especiais entre as pessoas. Eles são, por exemplo, objetos apreciadíssimos
como pagamento pelos pajés, pelos mestres de cantos, ou então usados para pagar
partos e remédios. Além disso, chefes precisam, necessariamente, tê-los e trocá-los
entre si (GUERREIRO, comunicação pessoal). Quer dizer, colares e cintos de
caramujos são instrumentos de impressão estética e de troca apreciados por todos (ainda
48

que produzidos — supostamente2 — apenas pelos Kalapalo), o que explica, pelo menos
parcialmente, algumas razões para tais comparações.
De todo modo, uma das perguntas que mais me coloquei quanto a isso foi: por
que escolheram tomar Apangakigi, um apelido-antigo daquela região, para a versão em
língua materna do nome da aldeia e, para a versão brasileira, uma palavra-traduzida de
uma entidade desse mesmo lugar (o molusco inhu)? Ou, dito de outra forma, se
caramujos são uma ―moeda‖ valiosa do ponto de vista Kalapalo no circuito de trocas
regionais, por que não chamar a aldeia de Inhu (―caramujo‖, mas em karib mesmo),
evidenciando no código natal uma riqueza que preferiram ostentar através da língua dos
que não utilizam esse tipo de ―dinheiro‖?
Infelizmente, ainda que latente à época em que estava no campo, responder a
essa pergunta fugiria de meus objetivos de pesquisa, pois isso implicaria: 1°. investigar
a fundo o fato de algumas aldeias tirarem seus nomes de características ou elementos do
território onde estão localizadas – pois, não foi apenas com Caramujo que isso
aconteceu, mas em uma porção de aldeias antigas e atuais da história karib e, em âmbito
comparativo ainda maior, tal modo de nomear os lugares encontra ressonância para
além da etnologia alto-xinguana (BASSO, 1996; SANTOS-GRANERO, 1998); 2°.
colocar como objetivo da pesquisa a descrição de como elementos do circuito regional
de trocas fazem parte também das relações e do comércio com os ―brancos‖ e,
paralelamente, como conhecimentos e valores externos ao contexto regional passam a
fazer parte de contextos internos.3
A questão vale, de qualquer forma, para ressaltar como a mistura entre os falares
do português e o de línguas indígenas foi uma constante de minhas experiências no
interior do TIX. Todos com quem conversei consideravam o aprendizado do português
―importante‖.4 Quando tentava descobrir a razão de pensarem assim, recebia como
respostas motivações parecidas com aquelas que já havia escutado de Hagema: queriam

2
Atualmente, algumas pessoas têm conseguido caramujos junto dos Xavante e dos Pataxó em viagens
para fora do TIX. Isso tem permitido outros povos xinguanos se dedicar à produção de objetos de concha
— ainda que sua troca pública em rituais pelos chefes seja evitada, pois isso segue sendo uma
prerrogativa Kalapalo e, de modo geral, karib. Quanto a esse ponto, é preciso dizer que o senso estético
dos Kalapalo é extremamente rigoroso com relação às conchas utilizadas: diversas vezes em campo, por
exemplo, Hagema pegava caramujos vindo dos Xavante para comparar com os que se encontravam
arredor de sua aldeia. Esses últimos eram sempre muito maiores, mais brancos, e Hagema me ensinava a
distinguí-los até mesmo pelo som que faziam quando batiamos em sua concha.
3
Quanto a esse assunto, porém, remeto o leitor ao trabalho de Marina Pereira Novo, 2018.
4
Apesar disso, dominar de fato o uso do português para além da pronuncia de algumas poucas palavras
esparsas não era, de modo algum, algo generalizado, mas, tampouco algo raro.
49

―aprender o costume do kagaiha‖, ―resolver as coisas com papel e caneta‖ ou


consideravam que isso podia lhes auxiliar de alguma forma a ―ajudar a comunidade‖.
Por esse motivo, quando cheguei a Caramujo seus moradores queriam que eu
assumisse a posição de professor na Escola da aldeia. A princípio, essa proposta de
trabalho foi discutida como uma forma de troca direta entre mim e os moradores dessa
comunidade, em específico: era uma maneira de retribuir os conhecimentos e a
hospitalidade que eu receberia durante o tempo que lá permanecesse. Mas, não demorou
muito para que ela corresse também por outros lugares da região, despertando a
curiosidade e o interesse de outras pessoas por minha presença.
Tudo isso acontecia através dos fluxos de notícias que, rapidamente, cortam a
paisagem alto-xinguana através das diversas formas de comunicação hoje lá praticadas:
em especial, por meio das conversas que ocorrem entre parentes e aliados durante as
visitas prestadas entre si, ou então pela constante comunicação que hoje se mantem
pelos rádios transmissores.5 Foi assim que, em poucos dias, os moradores de uma aldeia
chamada Kaluani (ou Paraíso) — a vizinha mais próxima de Caramujo (aprox. 3 km) —
começaram a nos visitar e a fazer com que as trocas estabelecidas entre mim e os
moradores dali se estendessem também para os moradores de lá.
No caso, o principal fio condutor da ligação entre essas aldeias era o genro de
Hagema, chamado Paiatu. Ele tinha se mudado de Kaluani para Caramujo por ocasião
de seu casamento com Angasagu, uma das filhas de Hagema (ver genealogias na p. 62).
Depois de concluído seu magistério, assumiu ali a profissão de professor. De todo
modo, fui capaz de traçar diversas outras relações de parentesco entre os moradores
dessas duas aldeias e — embora Paiatu tenha sido a única pessoa que conheci a ter se
mudado de uma para outra, tais vínculos criavam um fluxo intenso e cotidiano de visitas
entre elas e reforçava que, de fato, as responsabilidades e relações de troca criadas por
mim em Caramujo não ficariam apenas por lá.
Assim, logo depois que me fizeram a proposta de ser professor, percebi que
minha ―turma de alunos‖ ia ficar muito maior do que previsto no início. Levaram-me

5
Como falei na introdução, é muito comum que nas aldeias as pessoas tenham celulares, notebooks e
outros aparelhos eletrônicos que servem à comunicação. Porém, o acesso às redes sociais virtuais não é
tão fácil e pouquíssimas aldeias têm sinal para que esses aparelhos assumam funções comunicativas
imediatas. Desse modo, na maior parte do tempo, eles parecem funcionar, sobretudo, como meios de
entretenimento ou de registro de informações, as quais, é claro, podem ser veiculadas e transmitidas, mas
de modo mediato ou em situações futuras. Por outro lado, praticamente todas as aldeias possuem rádios
transmissores (os quais, quase sempre, ficam na casa dos chefes), o que permite que elas se comuniquem
entre si e também com outros pontos/lugares fora do TIX (como a CASAI de Canarana ou a CASAI de
Brasília, por exemplo)
50

para Kaluani e, lá também, queriam que eu assumisse as aulas da Escola. Comecei,


então, a me sentir um pouco inseguro — pois não sabia se daria conta de assumir a
carga de aulas das duas Escolas (e nem sabia se tinha os meios e o direito de fazê-lo, já
que em ambas havia magistrados contratados para tal função, e se deslocar, para mim,
era um jeito a mais de depender dos outros). A saída que encontrei foi: montaríamos
uma turma de aulas apenas com os próprios professores ou jovens magistrados, os quais
tinham motos à disposição para ir e voltar de um lugar ao outro, e participaria, quando
possível, das aulas dadas por eles (seja em Caramujo, seja em Kaluani), como ajudante.
Então, em pelo menos dois dias de cada semana de minha estadia em campo
(tanto na primeira quanto na segunda viagem), professores e jovens vinham de Kaluani
(ou me levavam até lá) para tirar dúvidas e aprender sobre uma série de temas de seus
interesses (sendo o principal deles aprender a ―escrever redação‖). Não obstante, com o
passar dos dias, esse compromisso foi se naturalizando e, ser professor, tornou-se algo
muito mais flexível e constante. Em diversas ocasiões era chamado para tirar dúvidas na
casa das pessoas ou ia dormir respondendo a perguntas de minha família indígena,
sobre, por exemplo, o que era ―propina‖, ―democracia‖, ―célula‖, ―indústria‖, ―lotérica‖
etc. Nesse sentido, fui colocado, não tanto na posição de professor, mas na de
informante frente a entusiasmados pesquisadores — fruindo, mais do que cumprindo,
um acordo que trouxe diversas reflexões importantes para essa pesquisa.
Além de servirem como testemunho do modo como estabeleci meus primeiros
contatos com os habitantes desses lugares, esses eventos de visita entre Caramujo e
Kaluani provocados pela minha presença (e pelas possíveis atividades que ela
desencadeava, como ―aprender com o kagaiha‖), dão indícios também de como forças
motrizes da ordem mais cotidiana são capazes de fazer as pessoas se deslocarem de um
lugar para outro e se reunirem. Como passarei a descrever agora, tais movimentos de
concentração ocorrem em outras escalas e por motivos mais interessantes do que a
fugaz presença de um antropólogo.
As fotografias da página seguinte, por exemplo, retratam uma ocasião em que
diversos moradores de Caramujo foram até Kaluani a fim de ajudar na colocação dos
pilares de sustentação de uma casa que iria começar a ser construída. O dono desta casa
era sobrinho uterino (-hatu ) de Hagema e irmão mais velho (-hinhano) de Paiatu.
Algumas pessoas foram de moto, outras de bicicleta, outras caminhando. Hagema fez
questão que fossemos a pé, acompanhados de seu cunhado, Airá. Quando começamos a
caminhar, logo percebi por que.
51

Enquanto andávamos, Hagema e Airá iam conversando um com o outro,


nomeando e explicando para mim algumas plantas e seus usos, às vezes paravam,
miravam aberto e a fundo uma determinada paisagem, um perguntava ao outro sobre
certa história e iam, por aí, se ajudando a lembrar o nome dos personagens e de seu
enredo. Hagema, então, me traduzia quase tudo com brevidade, de modo a apenas
anunciar que ainda iríamos voltar para lá e gravar tudo com mais detalhes.
O trajeto que realizamos pode ser observado através do mapa abaixo (linhas em
vermelho). Antes de adentrar na discussão daquela prestação de ajuda entre as duas
aldeias, aproveitarei essa curva do texto para falar um pouco sobre o próprio ir ajudar e
sobre esse caminho. Nele, diversos lugares foram destacados pelos meus interlocutores,
os quais estão nomeados no mapa. As câmeras amarelas da legenda indicam lugares
para os quais voltei posteriormente com Hagema para gravarmos as histórias em vídeo.

Figura 4. Caminho entre Apangakigi e a aldeia Paraíso. Inseri também a localização do porto Kahindzu,
utilizado como principal acesso a essas duas aldeias e local preferido de pesca de seus moradores.
52

Figura 5. Colocação dos mastros de uma futura casa em Kaluani. (A maior parte dos jovens da fotografia são moradores
de Caramujo. Hagema é o último do canto esquerdo da imagem).

Figura 6. Homens olhando o primeiro mastro de longe, a fim Figura 7. Airá, morador de Caramujo, serve-se do mingual
de aprumá-lo. trazido pelos moradores de Kaluani.
53

O primeiro lugar em que paramos era onde antes estava a antiga aldeia
Apangakigi (etepe Apangakigi). Segundo a versão que ouvi de Hagema posteriormente,
o chefe dessa aldeia era chamado de Hatisagü. Procurei checar se havia relações de
parentesco que pudessem ser estabelecidas entre um e outro, mas nada obtive, o que me
levou a descartar qualquer hipótese de que ligações genealógicas diretas entre eles
tivessem motivado Hagema a abrir uma aldeia ali perto com o mesmo nome. Por outro
lado, como ele me contou:

Kangamukei gele ũãke uatani ina ũãke inhu Quando eu ainda era criança, eu vinha aqui
uhijuinha procurar caramujo

Tigitahagalilabe Tigitahagalilabe tigitahagalila Era bem aberto, era aberto

Etepe beha te labeha atipügü A aldeia era aí mesmo onde a vegetação cresceu

Etepei leha ũãke atani ingita uheke te labeja Eu vi quando ainda existia a aldeia velha [se
inhingo leha ige atipügü ila leha igei refere a Kunugijahütü, onde nasceu], era muito
lindo mesmo, aí então a vegetação cresceu aqui

Apangakigi higei Essa é Apangakigi

Egepe higei etepügü e segepügü tepügü Aqui é terra preta, a terra preta vai até longe

Angiha uetu naha atühügü Até onde eu estou morando

Inhuha ande inde inhu etu higei Tem caramujo aqui, aqui é lugar de caramujo

Tratava-se, portanto, de fato de uma relação ecológica ou toponímica. Por sua


vez, com Kaluani, nosso destino naquele dia, era a mesma coisa. Este era o nome do
segundo lugar onde Hagema e Airá quiseram parar para me mostrar. Diferente da região
de Apangakigi velha, já coberta pelo mato e por árvores de copas altas (vegetação que
os Kalapalo chamam de itsuni kapohongo, lit. ―mato alto‖), Kaluani era um ―campo‖
(oti) onde saltavam apenas aqui e ali algumas árvores de médio e pequeno porte.
Mirando algumas delas, os dois passavam a mão pelo ar, indicando a região onde o
―dono‖ (oto) de um remédio/raiz utilizado pelos lutadores da luta ikindene tinha uma
aldeia ―invisível‖. Kaluani é justamente o nome desse ―dono‖.6
Segundo a história do lugar, esse remédio fora utilizado pela primeira vez por
um jovem chamado Maikijana. Sendo um grande e reiterado perdedor, Maikijana fora
proibido de ir a um egitsü por seu pai, que teve vergonha de apresentá-lo frente aos

6
Conforme Hagema contou, ―inhal ma ingil i hale kupeha‖ (―nós não podemos vê-lo‖), ―hüati tsügütse
hale ingite‖ (―só os pajés conseguem ver‖). Resumo essa história com minhas palavras, abaixo.
54

moradores da aldeia que os convidava. Inconformado e triste com a decisão do pai,


porém, Maikijana pegou seus enfeites e saiu escondido em direção à festa. No caminho,
encontrou-se com alguns ―espíritos‖ que o levaram para a aldeia invisível de Kaluani;
lá, então, lhe ensinaram a lutar e lhe curaram, passando a raiz sobre seu corpo que
estava cheio de impurezas.
Em seguida, foi liberado e seguiu (acompanhado pelos ―donos invisíveis‖) em
direção ao egistü. Quando chegou, os lutadores estavam no centro. Passou na frente de
seus irmãos mais velhos para lutar primeiro, chamou um a um seus adversários e os
derrubou todos. Seu pai, mudando do espanto para o orgulho, saudou o filho campeão
que, apesar disso, não retornou para sua aldeia natal com seus parentes, mas sim
―desapareceu‖, ―assim mesmo, em pessoa‖, ―sumiu aqui mesmo‖ e assim permanece
―até agora‖. Nesse processo, o nome do ―dono‖ da raiz ficou conhecido no lugar, e daí
foi herdado pela aldeia Paraíso.7
Depois de Kaluani, seguimos mais alguns metros e paramos em Eginhe, lugar
onde hoje há uma pequena ponte de madeira sobre um alagado que se mostra com vigor
tão logo se inicia a época das chuvas (as quais têm começado no mês de novembro)8.
Ali, falaram-me de Hukuagü, um homem que ficou com o pênis gigante depois de lá ter
feito sexo com a viúva de seu irmão, chamada Tinhai Kuẽg . O nome desse lugar
(eginhe) serve também para designar a ―terra branca‖ que, conforme me indicaram Airá
e Hagema com pisadelas fortes e apontando seus indicadores reiteradamente rumo ao
chão, era característica daquele lugar.
Como essa última história tinha um teor engraçado, continuamos um pouco do
caminho entre risos. Antes de chegarmos ao nosso destino, passamos ainda por Tüala
Engetoho (algo que me traduziram como ―lugar de comer jacu assado‖, em referência à
prática de seus antepassados, os quais por ali paravam durante suas viagens para comer
esse animal). Quando chegamos na atual aldeia Kaluani, nas costas os homens já
traziam o segundo dos troncos que iriam ser fincados no chão para servirem de mastro à

7
Quanto ao segundo nome da aldeia Kaluani, ―Paraíso‖, conforme alguns interlocutores de lá me
contaram, ele fora adotado depois que o antropólogo Carlos Fausto passou pelo lugar, na época em que
ainda estavam abrindo as primeiras roças, e disse que ali era um ―paraíso‖. Os moradores gostaram da
palavra e de seu significado (um ―lugar bonito‖), passando a reproduzi-la até que se tornou nome.
8
Diversos de meus interlocutores indígenas reclamavam das alterações climáticas e do atraso nas épocas
de colheita ou da manifestação das estações. Cf. sobre isso o curta-documentário ―Para onde foram as
andorinhas?‖ (ISA/Instituto Catitu, 2016; disponível online em https://vimeo.com/179228552 ; último
acesso em 12/02/2018). Ver também o mapa já citado sobre o desmantamento nos entornos do TIX.
55

casa do sobrinho de Hagema. Todos que já haviam chegado de Caramujo estavam


ajudando e Hagema e Airá imediatamente se integraram ao time.
O trabalho daquele dia consistiu no buscar e trazer os dois mastros da casa desde
a mata, no cavar dos buracos onde seriam fincados e no aprumar dos paus dentro deles.
Tanto durante o trabalho quanto depois, os parentes do ―dono‖ da casa (em especial as
mulheres) trouxeram mingau, água, café e comida para os que estavam ajudando. Nas
palavras de Guerreiro (2015a: 287), ―como qualquer pessoa, uma casa é o produto da
relação entre consanguíneos e afins‖.

Figura 8. Imagem do interior de uma casa em construção em Kaluani. N.B.: Não se trata da mesma casa
do sobrinho de Hagema, mas de uma vizinha dela.

Dessa perspectiva, o fato dos moradores de Caramujo terem sido alimentados


não deve ser visto apenas como uma forma de ―pagamento‖ pela ajuda que ofereciam.
Como já foi amplamente discutido (Basso, 1973; Viveiros de Castro, 1997; Vanzolini,
2010; Guerreiro, 2015a; entre outros), além das ligações genealógicas, a convivência e
comensalidade são aspectos fundamentais da construção do parentesco no Alto Xingu.
Nesse sentido, ao alimentar as pessoas de Caramujo, o ―dono‖ da casa em construção e
seus parentes estavam não só retribuindo, mas também reafirmando os laços de
parentesco com seus visitantes-ajudantes.
56

Cabe notar, porém, que nas aldeias maiores esse tipo de atividade costuma ser
feito apenas pelos moradores do local, enquanto nesse contexto uma atividade local
mobilizou uma malha supralocal de pessoas. Nesse sentido, este evento tem a
particularidade de demonstrar como, via laços de consanguinidade e de afinidade,
acontecimentos e atos ocorridos em um determinado lugar podem se reverberar e gerar
efeitos/movimentos alhures. Se não geram, é porque cortes ou interrupções foram
operadas no caminho.
Ainda com base nas concepções alto-xinguanas acerca da pessoa e de sua
produção, outros aspectos dessa capacidade de repercussão de certos eventos através do
parentesco podem ser descritos. Diz-se, quanto a isso, que determinados processos
corporais de uma pessoa (em especial, as primeiras fases de seu desenvolvimento ou o
acometimento de alguma doença) são também vivenciados por seus consanguíneos, que
os sentem em si mesmos e às vezes, são por isso obrigados a cumprir certas práticas de
restrição alimentar e de cuidado. Através dessas práticas, as pessoas participam na
produção e manutenção dos corpos de seus parentes.
Desse ponto de vista, a circulação envolve também as potenciais transferências
de substâncias que podem ocorrer entre corpos interligados pelo parentesco. Não
importa quão distante um pai esteja, por exemplo, de seu filho, se um deles ficar doente,
isso pode se manifestar no outro; algo muito perigoso, em especial, para pais com filhos
recém-nascidos e que ilustra como, no nível dos próprios corpos, comunicações
supralocais podem ser estabelecidas (o idioma dessa comunicação, nesse caso, sendo o
do próprio ―sangue‖9).
Casas, no entanto, também são/têm corpos (Guerreiro, 2015a: 287;
Heckenberger, 2011) — as pessoas reconhecem nelas ―axilas‖, ―pescoço‖, ―cabeça‖ etc.
Tomadas a partir dessa transposição de escala, então, as íntimas conexões envolvendo
os corpos dos parentes pode se expressar quase que diretamente com relação também às
casas das quais são ―donos‖. Em um contexto onde as relações de parentesco entre esses
―donos‖ extrapola o ambiente de uma única aldeia, processos envolvendo uma
casa/corpo aqui provoca movimentos em corpos/casas acolá.
Se, portanto, em escalas menores uma aldeia participa nos processos de
construção dos corpos/casas de outra, as próprias aldeias podem ser vistas como
assumindo posições de parentes umas frente às outras. Olhar para elas desse modo é

9
Para uma discussão da noção de ―sangue‖ entre os Kalapalo, cf. Guerreiro, 2015a: cap. 2.
57

pensar os coletivos que as compõem como compostos abertos de substâncias (mais do


que como blocos fechados que se inter-relacionam sem se misturarem), transpassados
por caminhos (físicos e virtuais) que são, e às vezes precisam ser, re-alimentados
cotidianamente.
Sobre esse último ponto, além de acompanhar outras situações de troca de
serviços como a acima citada, durante o curto tempo que passei em Caramujo pude
participar de outros tipos de eventos que faziam as pessoas circularem entre um lugar e
outro: festas de trocas (conhecidas como uluki); visitas a doentes; jogos de futebol;
festas cerimoniais etc. Seguindo as pistas de Nancy Munn (1986), nestas situações são
criados ―contextos de interação intersubjetiva‖, nos quais valores são produzidos ou
reavaliados a partir da ação das pessoas em um ―mundo vivido‖. Nas palavras da autora,
esse ―mundo vivido‖:
is not only the arena of action, but is actually constructed by action and the
more complex cultural practices of which any given type of action is a part.
By act I mean simply the operation of an agent (or agents) that has the
potential for yielding certain outcomes. […] An act‘s various culturally
defined capacities are those aspects of its meaning that specify what an actor
can expect from performing it. (op.cit: 8. grifos meus)

A fim, porém, de manter o texto atrelado de maneira mais íntima aos objetivos
desse capítulo, para explicitar como esse ―mundo vivido‖ é construído pelas ações e
pelas diferentes modalidades de circulação dos habitantes de Caramujo, deixarei agora
esses eventos de interação um pouco de lado para me dirigir diretamente à descrição do
próprio processo de fundação dessa aldeia — algo que farei acompanhando informações
genealógicas e outras obtidas através de entrevistas com os moradores de lá. A partir
daí, retomo alguma das considerações levantadas nessa primeira seção para aprofundá-
las, em especial, no sentido de perceber como pessoas e histórias podem ser levadas a se
concentrar em certos lugares e qual a natureza, de fato, dessa concentração.

Se, por um lado, o fato de Caramujo ser uma aldeia muito pequena e recentemente
aberta (lembrando que Hagema diz ter chegado primeiro por lá em 2007) a torna um
interessante exemplo de como vão se configurando os primeiros espaços de socialidade
58

do padrão de habitação alto-xinguano; por outro, essas mesmas características a


impedem de ser considerada como um arquétipo desse modelo.
Assim, por exemplo, em 2017, a nova Apangakigi ainda não tinha uma praça
central bem delimitada, não haviam construído a famosa kuakutu/―casa das flautas‖10
(embora os homens já começassem a falar sobre ela em minha segunda viagem), e a
própria ideia de um círculo ou anel bem delimitado de chão limpo, separando com
nitidez um interior e um exterior da aldeia, esperava pelo aumento do número de casas
para ganhar maior nitidez na paisagem.
Outro fator importante a ser levado em conta para diferenciar o caso de
Caramujo (e de outras aldeias pequenas) do que foi mais comumente descrito como um
padrão regional geral é que, como me disse certa vez um dos genros de Hagema, aquela
era uma ―aldeia particular‖. Esse genro de Hagema morava na aldeia Curumim
(Kuikuro) e, conforme ele me explicou, tanto Caramujo quanto Curumim eram aldeias
―particulares‖ porque nelas ―só tem parente, todo mundo é parente‖.11 Esse fator é bem
mais complexo de ser descrito e interpretado, afinal, pelo que aponta a literatura, em
uma aldeia idealmente todas as pessoas se consideram, em alguma medida, ―parentes‖
ou ―irmãos‖ – traduções utilizadas como possíveis equivalentes para um termo de
parentesco extensivo da língua karib do Alto Xingu, o ihisu daõ (cf. sobre isso BASSO,
1973; GUERREIRO, 2008).
Em sua tese de doutorado, Marina Pereira Novo (2018) faz uma discussão
detalhada da utilização dessa ideia do ―particular‖ (ou patikula,12 como se diz nas
línguas karib) no contexto de Aiha. Segundo a autora, os moradores dali costumam
chamar de patikula coisas que se opõem àquelas ―da comunidade‖ (katutolo engü, ou
―coisa de todos‖). Diferenciação marcada, sobretudo, para fazer referências aos recursos
oriundos de programas do governo ou de relações travadas com instituições ou agentes
extrarregionais (projetos, bolsas, transações econômicas etc.).

10
Trata-se de uma pequena casa construída no centro das aldeias (um pouco a oeste, na verdade), onde
ficam guardados os kagutu, aerofones proíbidos aos olhos das mulheres. Por isso, elas não podem entrar
na kuakutu. Os homens, por outro lado, estão sempre se reunindo em sua frente ou interior para conversar
ou se preparar para as festas.
11
Algumas semanas depois de minha chegada, em Junho 2017, a filha de Hagema casada com esse genro
de Curumim se mudou com ele para essa última aldeia. No Alto Xingu, a residência após os casamentos
segue um padrão uxorilocal, mas, às vezes, filhas saem da casa de seus pais para irem morar com os
genros/sogros. Diversas tensões nascem daí entre parentes e afins; por exemplo, os serviços que
normalmente um genro deve ao seu sogro continuam latentes, mas precisam encontrar outras formas de
serem realizados que não pela convivência contínua.
12
Uma apropriação da palavra ―particular‖. Na forma possuída/relacional, fica u-patikula-sü, modo como
um determinado indivíduo faz referência a um objeto por ele possuído (cf. PEREIRA NOVO, 2018).
59

Essa oposição, no entanto, longe de embasar que determinadas coisas sejam


então ―propriedade particular‖ — afinal, o socius local, por suas dinâmicas de
multiplicação do Um, impede também que o patikula seja ―só meu‖ —, seria empregada
mais para indicar que o acesso de alguém ou de uma família a recursos deste tipo ocorre
―de forma não mediada, não ‗comunitária‘‖ (op.cit.: 29). Mas, como entender então essa
ideia de ―particular‖ que, marcando uma diferença com relação ao que é ―de todos‖,
parece poder ser empregada ao mesmo tempo para definir uma coletividade onde todos
são iguais do ponto de vista do parentesco?
Naquela conversa que tive com o genro de Hagema, ele me disse também que
em aldeias grandes as coisas eram bem diferentes do que nas ―particulares‖, o que
permite refinar a definição do patikula como algo que se opõe, não apenas ao que é de
todos, mas ao que é ―de muitos‖. Em suas palavras: ―aldeia grande tem muita fofoca,
cunhado...13 ixi, o pessoal briga muito... lá em Curumim não, pessoal não está
brigando... Aqui em Caramujo também não... Todo mundo é parente... Quando vai
pescar, depois oferece comida, está dividindo as coisas. Não tem briga‖.
Cruzando essa segunda explicação do genro de Hagema com as ideias
desenvolvidas por Pereira Novo, é possível dizer então que um coletivo pode, ele
mesmo, ser qualificado como ―particular‖, sem que isso gere paradoxos, pois neles é o
próprio acesso entre as pessoas o que foi imediatizado.14 Essa imediatização se deixa
aprender em dois níveis. No primeiro, ela pode ser observada nas relações que
permeiam consanguíneos e nas próprias ideias alto-xinguanas sobre o parentesco. Na
medida em que parentes participam, literalmente, uns (dos corpos) dos outros — como
falei na seção anterior —, uma coletividade de parentes pode ter algo de ―particular‖, já
que os caminhos/circuitos entre eles podem ser percorridos de modo contínuo.
Esse tipo de acesso direto entre os parentes, por sua vez, expressa-se também no
domínio dos atos enunciativos que (espera-se) mantenham entre si. É o que o genro de
Hagema quis me dizer quando afirmou não haver fofoca (uma [má] mediação

13
Esse genro de Hagema me chamava de ―cunhado‖, assim como Paiatu, pois logo na primeira semana
em campo fui adotado pelo chefe de Caramujo como seu filho (mugu), a partir do que, minha imagem
social foi imediatamente reatualizada na teia de relações com todos os demais moradores dali e região.
14
Nesse sentido, seria interessante ainda contrastar essas aldeias ―particulares‖ com as ―fazendas‖
(hihitsingoho): essas eram pequenas estruturas construídas por algumas famílias perto de suas roças, para
passarem um tempo do ano produzindo comida, mas que depois, no tempo das festas, voltavam a residir
numa aldeia grande (cf. sobre isso Basso, 1973). Não encontrei, porém, referências à produção das
hihitsingoho atualmente (ainda que, mesmo em Caramujo, uma aldeia pequena demais se comparada às
outras do complexo alto-xinguano, alguns de meus interlocutores diziam que gostariam de fazer casas
para ficar mais perto de suas roças na época da colheita/plantio). As aldeias ―particulares‖ parecem, desse
modo, contrastar tanto com o modelo das aldeias grandes quanto com o das hihitsingoho.
60

comunicativa dos outros sobre/entre parentes) nas aldeias ―particulares‖. Com efeito,
em seu estudo sobre a feitiçaria entre os Aweti, Vanzolini discuti como um dos efeitos
da fofoca é ―virar do avesso‖ as relações de parentesco, tencionando as conexões
intrínsecas que existem entre pessoas que participam umas das outras ao ponto de as
transformarem em relações de inimizade — uma inserção, via correio da má notícia, da
outridade no interior própria identidade parental.
Isso direciona a atenção, então, para uma intersecção entre a própria imagem das
aldeias pequenas (ou ―novas‖) e essa forma de manter relações ―particulares‖ com as
coisas e com as pessoas. Algo que pode ser melhor interpretado à luz dos possíveis
desdobramentos sociológicos gerados, então, quando aldeias vão aumentando de
tamanho e, por esse caminho mesmo, tornando as relações entre seus moradores
potencialmente mais perigosas. Para chegar até aí, contudo, o melhor jeito é retomar a
descrição de como esses lugares vão se configurando e ir, passo a passo, acompanhando
seus desenvolvimentos.15
Coloco abaixo a imagem em panorâmico da disposição das casas de Caramujo,
tal como estavam na ocasião de minha primeira viagem (em julho de 2017). Um esboço
feito à mão de como ela seria se olhada de cima encontra-se um pouco mais adiante.

Figura 9. A aldeia Caramujo em Junho de 2017.

Podem-se ver quatro construções, dentre as quais, três são casas de habitação
familiar e uma é a Escola, cuja estrutura é quase idêntica à de uma casa (com suas
envergaduras de madeira e formato ovular), mas coberta com uma lona de cor branca. A
escola, juntamente com uma casa pequena à sua esquerda, marcam bem o centro desta
fotografia.16 Nas extremidades da foto, veem-se duas casas bem maiores. A casa da

15
O assunto será retomado, posteriormente, na discussão sobre a feitiçaria realizada no capítulo seguinte.
16
Essa pequenina casa à esquerda da escola, se bem reparado, também está parcialmente coberta por uma
lona, de cor preta. Esse é um recurso muito utilizado hoje em dia nas aldeias e que auxilia os moradores
de uma casa ainda em construção a poderem ir se abrigando o mais cedo possível em uma residência,
adiantando o usufruto de uma casa ―particular‖, enquanto o trabalho de arrancar e colocar o sapé no
telhado ainda tem que ser realizado.
61

direita é onde moram Hagema e sua esposa Kaua Yawalapíti. A casa da esquerda,
disposta de forma simétrica e oposta à casa do chefe, é onde moram a irmã de Hagema
(chamada Kãnhu Kalapalo) e seu cunhado (Airá Matipu). Já a casinha menor, do centro,
é praticamente uma junção (e, ao mesmo tempo, uma disjunção) da estrutura relacional
que envolve as duas casas maiores. Ela foi construída recentemente para abrigar um
casal formado naquela aldeia alguns anos antes da minha chegada: Napü Kalapalo (um
dos filho de Hagema e Kaua) e Katisa Matipu (filha de Kanhu e Airá, portanto, FZD de
Napü).
Apresentar as casas a partir de casais não significa que apenas uma mulher e seu
marido moram em cada uma delas. Esses casais, na verdade, são apenas os ―nomes
principais‖, através dos quais eu podia me expressar para dizer para aonde estava indo
quando me deslocava pela aldeia (algo que eu falava, sem saber se estava certo ou
errado, como Napü üngati, ―a casa do Nap ‖, por exemplo). De todo modo, são também
os nomes dos que são considerados ―donos‖ (oto) dessas casas: a iniciativa de construí-
las partiu deles, são eles os responsáveis por cuidar do espaço etc. Em todas elas,
porém, uma porção de filhos, netos, sobrinhos, primos, genros e noras estão quase
sempre subentendidos entre os moradores. Abaixo, coloco um esboço da configuração
de Caramujo que acaba de ser descrita:

Figura 10. Esboço da aldeia Caramujo vista de cima (junho de 2017).


Legenda dos números no desenho: (1) Casa de Hagema-Kaua; (2) Casa de Airá-Kãnhu; (3) Casa de
Napü-Katisa; (4) Escola.
62

Numa tentativa de valer-me da visualidade das relações de parentesco que


envolvem os habitantes dessas três casas, esbocei também o seguinte desenho para
mostrar Caramujo de um ponto de vista, ao mesmo tempo, topo e genealógico:

Figura 11. Esboço da morfologia de Caramujo, vista de um ponto de vista genealógico.

Legenda das cores: Ligação Preta = Geração 0 (tomando Hagema Kalapalo como Ego); Ligação Verde =
Geração -1; Ligação Vermelha = Geração -2. Nomes com asterisco (*) indicam pessoas que conheci, mas
que se mudaram e saíram de Caramujo ainda durante a minha primeira viagem.

Cada uma dessas famílias possui pessoas que nasceram, mudaram-se e vieram
passando por lugares diferentes ou compartilhados até chegarem em Caramujo. Nesse
sentido, as relações que no desenho acima tentei posicionar de modo a corresponder aos
lugares físicos onde as famílias se instanciaram na aldeia, muitas vezes, precederam a
fixação das casas no terreno. São relações que vieram, por assim dizer, se esticando,
encurtando, dobrando, subindo, descendo, cortando, se desenvolvendo mesmo pelo
território, até assumirem, como uma de suas formas de cristalização, a da aldeia
Caramujo. Por isso, farei um breve detalhamento do que pude descobrir acerca da
história de chegada de cada uma dessas famílias.
Durante as caminhadas que fizemos para gravar as narrativas de nossa
documentação, conversava muito com Hagema sobre sua chegada e o que tinha lhe
motivado a abrir Caramujo. Conforme alusão feita anteriormente na introdução,
Hagema nasceu em Kunugijahütü, uma aldeia também chamada pelos Kalapalo por
63

―Aldeia Velha‖. De lá, mudanças consecutivas aconteceram, a maior parte durante sua
infância, no período em que as crises epidêmicas atingiam drasticamente o Alto Xingu.
Foi assim que mudou-se com sua família para Aiha. Viveu ali por muitos anos,
até que casou-se com Kaua, a qual considera-se Mehinaku (por linha materna) e
Yawalapití (por linha parterna). No início de seu casamento, Hagema foi residir junto de
seu sogro, tendo passado alguns anos na aldeia Yawalapití. De lá, ele e Kaua voltaram
juntos para Aiha. Segundo o que me contou, o período vivido entre os Yawalapití
cobriu praticamente toda a sua juventude (mas nunca se lembrava exatamente dos
números). Depois, já mais velho, disse ter assumido a posição de chefe em Aiha,
embora fosse considerado um chefe ―pequeno‖ (indzonho anetü)17 naquela comunidade.
Hagema mencionou também ter passado algumas vezes, ainda que de modo
esporádico, pelas aldeias Mirassol e Ngahünga – identificadas, pelos moradores de
Caramujo, como Matipu.18 Parecia conhecer esses lugares, mas nunca ficaram
perfeitamente claras para mim quais ligações mantinha diretamente com eles. Algumas
vezes, porém, mencionava relações de parentesco com o pessoal dessas aldeias na
geração de seus pais e avós (o que, em sua própria geração, devia se repercutir numa
profusão de primos e cunhados que continuavam ali, o que, por si só, é um fator de
atração e de frequentação entre diferentes aldeias durante a vida de um alto-xinguano).
Em 2005, já casado e tendo alguns filhos, contou-me que começou a conversar
com Kaua sobre mudar-se novamente. Segundo Kaua, por sua vez, nessa época Hagema
sempre pegava o barco (ou ―saia a pé mesmo, para andar no mato‖), e ia visitar os
lugares onde seus pais e avós tinham vivido no começo de sua vida – isto é, pelas
redondezas de Kunugijahütü. Inúmeras vezes, se referindo ao modo como Hagema
voltava dessas viagens para Aiha, ela me dizia: ―Papai ficava muito triste, muito triste,
iii... muita saudade... estava chorando, chorando...‖. Algo que ela me contava entre um e

17
Os ―chefes pequenos‖ contrastam com aqueles que são chamados ―chefes de verdade‖ (anetü/itankgo
hekugu). Segundo Basso (mas também Guerreiro, 2015a), essa distinção se assentaria no reconhecimento
de que a chefia pode ser ―herdada‖ tanto por parte paterna quanto materna, ou pelas duas. Esse último
caso, define os ―chefes de verdade‖, havendo ainda uma preeminência da patrilinearidade sobre a
matrilinearidade no caso de herança por uma única linha (Basso, 1973: 133-134). Por outro lado, são
hierarquias que podem se colocar no interior de um único caso (chefes que descendam de ex-chefes,
ambos, por parte de pai e mãe, por exemplo), indicando que outros fatores políticos quanto ao ―fazer-se‖
ou ―ser feito‖ chefe, via rituais e outras práticas sociais, contam muito.
18
Embora, como já mencionei na introdução, algumas pessoas digam que Ngahünga seja Nahukwá.
Segundo Guerreiro (comunicação pessoal), o pessoal de Aiha também tende a inverter a identificação de
Mirassol, região de uma antiga aldeia Nahukwá (Jagamü) e que, por isso, os faz dizer que lá é lugar
Jagamü (Nahukwá).
64

outro balançar de rede, num português docemente simplificado, quando eu sentava ao


seu lado para conversar sobre os mesmos fatos.
Tristeza, bem como o medo, também era o afeto mencionado por ela ao me
contar sobre os encontros e relações que nesta época travavam com os outros habitantes
de Aiha. Relações às quais não me sinto no direito de descrever aqui, dado que
provocavam tais sentimentos, justamente, porque pareciam já marcadas por demasiadas
―mediações‖ entre corpos e histórias ―particulares‖. Por isso, muitas vezes, saíam os
dois juntos para irem até o lugar de antigas aldeias, como Kuapügü e Atütüpe, depois
seguiam na direção de Kunugijahütü, do igarapé conhecido como Akagagü, e daí
partiam para a região de Apangakigi ou Kaluani, trajeto pelo qual visitavam parentes,
chegando às vezes até o porto Kahindzu (atual porto de Caramujo, no rio Culuene).
Kaua disse-me que gostava muito de realizar esses passeios com Hagema e,
vendo a qualidade da terra, a abundância de peixes, papagaios, caramujos e de outros
animais nesses novos-antigos lugares, começou a incentivá-lo a retornar para lá, para
abrir sua própria aldeia. Em 2007, então, Hagema desceu de barco para essa já
conhecida região com um de seus filhos (o mais velho deles, que hoje é chefe da aldeia
Tangurinho). Com ele, derrubou o mato de um pequeno terreno, onde abriu sua primeira
roça e ali mesmo levantou uma casinha (―assim, não é grande não, menor que a do
Nap , menor ainda‖).

Figura 12. Alguns dos lugares mencionados por Hagema e Kaua e os caminhos que os interligam. Pode-
se ver o rio Culuene ao fundo e dois caminhos alternativos que ligam Caramujo até lá. A linha vermelha,
ao fundo, indica o limite do TIX.
65

Em pouco tempo, levantou uma nova casa, dessa vez em outro lugar do terreno e
foi abrindo mais e mais roças pequenas. No começo, ―era muito difícil‖, disse-me,
porque tinham que ficar trazendo comida de Aiha (isto é, principalmente beiju, pois a
pesca era até mais fácil de ser obtida ali, através do acesso à Kahindzu). Aos poucos, a
roça foi crescendo e, enquanto iam abrindo mais o mato, sua mulher e seus filhos foram
vindo. Em 2010, tendo já chegado também seu cunhado e sua irmã (2009), começaram
a construir a sua casa atual.
Antes de passar a falar sobre chegada das demais famílias, deixo abaixo alguns
esboços do modo como entendi ter sido essas mudanças das duas primeiras casas e
roças de Hagema, a fim de indicar melhor o modo como o terreno da aldeia foi sendo
aberto. Na página seguinte, adiciono também uma imagem obtida via satélite da aldeia,
num período onde Hagema habitava ainda a segunda casa que erguera e Aira já tinha
levantado a sua primeira:

Figura 13. Esboços feitos pelo autor da abertura das primeiras casas e roças de Hagema.

Em 2007 (primeiro círculo imaginado à esquerda), a casa era onde hoje se encontra a casa de Napü; a área
com linhas rastreadas indica aproximadamente onde foi aberta a primeira roça. No ―círculo‖ à direita, o
lugar onde foi aberta a segunda casa de Hagema e a expansão das roças (áreas com rastreado).

Como se pode ver, são atividades fundamentais e pioneiras da abertura de uma


aldeia o limpar, o fazer roças e o levantar casas provisórias que vão sendo pouco a
pouco substituída por casas maiores. Ao longo do encadeamento e da repetição dessas
atividades, novos terrenos ou clarões vão se produzindo, permitindo a maior circulação
de pessoas pelo espaço — as quais, aliás, não tardam a chegar, sendo na verdade as
66

verdadeiras responsáveis por ―engordar‖ o espaço e as casas. Um interessante detalhe


quanto ao repetir dessas atividades é que essa repetição se verbaliza de modo homólogo
(isto é, bastante à miúde) nas narrativas.

Figura 14. Imagem de satélite da aldeia Apangakigi em uma época onde havia apenas duas casas: a de
Hagema (à direita, sendo esta a segunda casa construída pelo fundador naquele terreno) e a de sua irmã
e cunhado (à esquerda, sendo esta a primeira casa desse casal). Fonte: Bing

N.B.: É interessante ver como as casas de Hagema e de sua irmã estavam inicialmente lado a lado; só
depois é que ficaram de frente uma para a outra. Nota-se também a expansão dos terrenos/roças para os
lados e para trás. Manchas brancas indicam áreas recentemente limpas e queimadas.

Nelas, a descrição da chegada de alguém a um determinado lugar é dada pela


recolocação espelhada de sentenças (em repetições e paralelismos) que descrevem,
passo a passo, o chegar, roçar, plantar e construir como formas de instanciação da
pessoa no território. Para exemplificação, antecipo aqui um pequeno trecho da narrativa
de Kuaku (discutida no capítulo seguinte), no qual o narrador descreve a abertura da
aldeia Ngahünga desde a chegada de seu primeiro morador:
67

Ülepe etelü leha Depois disso, ele [fundador de Ngahünga] foi

Itsa sünkgülü takiko Dormiu lá dois dias

h n g iheke apungu higei uetui itsani n g "Isso mesmo", ele disse, "pronto, aqui será minha
iheke aldeia", disse ele

Ina tiha uentani ina tiha uentani "É pra cá que eu virei, é pra cá que eu virei"

Sinünkgo leha ata angiha uketuko nügü iheke angi Eles voltaram: "Que bom, lá está nossa aldeia", ele
tsüha uketuko disse, "lá está nossa aldeia"

Ülepe etelü leha etelü hõhõ totohinhaketigi Depois eles foram, primeiro foram limpar o mato

Totohinhaketako leha etükilü sinünkgo hõhõ Quando terminaram de limpar o mato, vieram
novamente

Ülepe ihotelüinha Para queimar

Ülepe sinükgo leha ami tüte ahutsilüinha Depois disso, eles voltaram mais uma vez para cavar
a terra

Egepe ikenügü leha ihekeni tsekegüi ekugu kuigi Eles abriram uma roça em lugar de terra preta,
ititsündelü ihekeni ülepe ihenta leha ihekeni fizeram uma roça bem grande de mandioca, e depois
plantaram

Tütüki bele kuigi etükilü egepe bama Devagar a mandioca cresceu, a terra preta era boa

Kuigi etükilü leha A mandioca cresceu

Ana etükilü leha O milho cresceu

Atange hinke etelüko lahale Aí então é que eles foram

Tülimo ake tsügütse hutsü hõhõ Só com seus filhos ainda

Ijimo geleha ijimo ijimo ijimo nago hõhõ etelüko Só seus filhos foram primeiro, sem encher de gente
inhalü hõhõ pururui hõhõ ago telüi tsüha ainda

Ülepe itsako leha itsako leha Depois ficaram, ficaram

Aiha Pronto

Do ponto de vista desse amiúde que é abrir um novo lugar, uma forma de tentar
se instalar num território que não passe por essas etapas, se fosse narrada para um alto-
xinguano, seria, no mínimo, estranha. Algo que voltará aparecer no capítulo seguinte,
no espanto manifesto por Hagema em uma das narrativas que aqui reproduzo sobre o
surgimento das fazendas nas redondezas do TIX.
O processo de chegada e desenvolvimento das construções de Hagema, apesar
de pioneiro, não destoa dos realizados pelos demais habitantes. A primeira casa
levantada para sua irmã, Kanhu, e seu cunhado, Airá, também foi pequena. Porém,
68

conforme Hagema me contou, pouco tempo depois que eles estavam lá já começaram a
construir outras duas casa para eles, de modo que uma ficasse de frente para a outra (o
mesmo padrão das casas atuais). Segundo Guerreiro, a construção de casas de cunhados
em posições simetricamente opostas parece ser uma espécie de estrutura mínima da
formação das aldeias do Alto Xingu. O modelo ideal de uma aldeia, então, seria o de
quatro casas, em formato de cruz (GUERREIRO, 2015a: 288).
De fato, quando conversei com Paiatu (o genro de Hagema, casado com
Anagasagu) sobre a construção de sua própria casa, ele me disse que iria levantá-la em
breve, talvez já no próximo ano (2018), e que ela seria ao lado da casa de seu sogro e de
frente para a casa de Napü (seu WB). Isso confirma as hipóteses e informações acima.
Sobre a chegada de Paiatu, aliás, há uma coisa interessante a ser dita: ele casou-se com a
filha mais velha de Hagema em 2010, levando-a primeiro para morar em sua aldeia
(Kaluani/Paraíso). O retorno só ocorreu em meados de 2016, evento que marca também
a construção e início da escola de Caramujo (pois Paiatu assumiu o cargo de professor,
viabilizando a realização das aulas de modo contínuo).
Considero que essa re-ativação da uxorilocalidade (direção normal das
residências pós-matrimoniais no Alto Xingu, na verdade) e o nascimento da Escola de
Caramujo com um ―genro‖ como professor não foi fortuita. Hagema manifestava uma
preocupação (e cobrança) especial com as aulas dadas por Paiatu em Caramujo; uma
preocupação que transparecia para mim quando Hagema reiterava que eu deveria cuidar
de ―ensinar direitinho‖ principalmente a seu genro, e que este, por sua vez, deveria estar
ali para ensinar as crianças da aldeia. De outro lado, Paiatu sempre demonstrava muito
zelo com relação às suas aulas e presença na aldeia para isso. Algo que, de seu ponto de
vista, não se referia apenas a seu engajamento e vontade de ser um bom professor, mas
também em corresponder às expectativas de seu sogro e de sua família.
Já sobre os moradores da casa de Airá e Kanhu, todos vieram da aldeia
Ngahünga (Matipu). Mesmo os mais novos nasceram naquela aldeia, com exceção do
filho mais novo de Nahugigu Matipu, filha daquele casal, que deduzo ter sido o
primeiro a nascer em Caramujo mesmo, seguido depois de uma filha de Katisa e Napü e
de um filho de Angasagu e Paiatu.19

19
Este intervalo entre a geração das pessoas que fundam um lugar e as gerações que, de fato, nascerão ali,
parece-me interessante por realçar que o ―pertencimento‖ a um determinado lugar é, ele mesmo, móvel,
quer dizer, não necessariamente atrelado a uma origem como ―nascimento‖ (ao momento de colocação do
―eu no fora‖), mas sim, talvez, à capacidade de um lugar permitir que novas origens nasçam (i.e., permitir
69

Airá disse-me ter nascido na aldeia dos Nahukwá chamada Ihumba, à beira do
rio Mirassol. De lá, consecutivas mudanças o levaram até Ngahünga (vizinha de Aiha).
Segundo hipóteses levantadas pelos cruzamentos de histórias que realizei, os conflitos
que levaram Hagema e sua família a se mudar de Aiha foram os mesmos que
influenciaram Airá a sair de Ngahünga rumo a Caramujo. O caso desses cunhados
indica mais uma vez, portanto, como relações de tensão, surgidas a princípio no interior
de uma única comunidade, podem afetar pessoas em comunidades vizinhas ou
aparentadas, algo sobre o qual voltarei a falar no capítulo seguinte.
Do mais, tanto quanto Hagema, Airá demonstrou-se diversas vezes ser um
frequentador antigo daquela região de Apangakigi. Infelizmente, não consegui gravar
nenhuma história com ele para que pudesse reproduzir, na íntegra, seu testemunho. De
qualquer forma, abro um pequeno parêntese nesse texto para citar um fragmento de meu
caderno de campo, no qual essa vinculação com a paisagem do lugar se revela através
da própria memória de meu interlocutor.

30/05/2017 — Tomar banho é ocasião de acompanhamento. Airá foi quem tomou a iniciativa para me
levar com ele dessa vez, me chamando desde sua casa, de onde o vi sair com um sabonete na mão
enquanto eu, sentado num banco praticamente na soleira da casa de Hagema, mirava o pátio da aldeia
pingando de sol. Há dois igarapés ao redor de Caramujo. Diferentemente dos mais jovens, ele e Hagema
parecem preferir sempre se dirigir ao mais distante, lugar que chamam de Akagagü. Para chegar até
Akagagü, pega-se uma trilha que se estende pelo lado direito da casa de Hagema (se olhada de frente) e
que, em poucos metros, se bifurca, trifurca e se perde em diversas outras pelo mato. Airá, indo à minha
frente, disse-me que iríamos pelo ―caminho antigo‖ e guiou-me por uma rota mais estreita e embrenhada
do que de costume, já quase desaparecendo no chão queimado e renascido de mato. ―Precisa abrir de
novo‖. Foi me contando como, junto com seus pais e avós, ele ia com medo por ali na época do egitsü,
quando saiam de Mirassol ou da ―Aldeia Velha‖ [Kunugijahütü] para ir a esta festa (em Kahindzu,
talvez?) e por lá se quedavam a fim de tomar banho ou pescar.
Um tronco seco, encurvado no topo sobre a estreita vereda, o fez parar com melancolia. ―Quando
eu era pequenininho, assim [medindo com a palma da mão a altura de sua coxa], [tinha] muita fruta aqui
no chão: doce doce. A gente gostava muito. Hoje já morreu, né. Está velho, Diogo, eu sou velho‖ —
disse-me ainda passando a mão sobre as ranhuras do tronco velho. Aquelas frutinhas a que se referiu
chamam-se akaga, de onde, inclusive, vem o nome do igarapé para onde íamos (Akagagü, que segundo
Paiatu é ―lugar de akaga‖). Depois, do mesmo modo, mostrou-me ainda outra árvore e uma direção outra
que por ali o caminho tomava sob uma mais alta rasteira de mato. Era de onde eles vinham antigamente.

a criação de ―interioridades‖, de ―bolhas‖, nas quais ―alianças bem sucedidas‖ tornam o nascimento um
―nascer para dentro‖, para usar algumas expressões dispersadas por Juliana Garcia Pessanha, 2018).
70

Referia-se aos seus antepassados com frequência por jatsitsü. Falava esta palavra e, logo em
seguida, a traduzia repetidamente: ―coitados, coitados, Diogo, coitados...‖. Num determinado momento, a
estreiteza da trilha se alargou um pouco e eu, então, tentei meter-me ao seu lado. Ele, porém, parou de
andar, olhou para mim e apontou o meu lugar atrás dele, dizendo: ―assim, ó, fila, fila!‖, como que
indicando que eu estava entortando algo muito reto sobre andar no mato. Em fila de dois, pois, chegamos.
Entramos no igarapé e ele me contou ainda como levavam beiju para lá, assavam cascudo e repousavam
da longa caminhada na beira da água que mergulhamos. Indicou-me também algumas folhas que
abundavam na margem como ―remédio para sonho ruim‖ e ensinou-me a passá-las no rosto. Fiz-fizemos.
Entre um causo e outro, uma porção de borboletas e abelhas inundavam o lado de fora, nos golpeando de
vez em quando nas pernas de amarelo e silêncio.

A filha de Airá, Nahugigu, é casada com Lamati Matipu. Este casal e seus filhos
foram uns dos últimos a chegar em Caramujo, no ano de 2014. Também vierem a partir
de Ngahünga. Do ponto de vista da organização política de Caramujo, porém, Lamati e
Nahugigu tinham já uma visível presença na aldeia. Nos casos em que Hagema
precisava viajar, por exemplo, Lamati era sempre informado, ―assumindo‖ então o lugar
do primeiro. Em diversas ocasiões, inclusive, ele era designado por meus interlocutores
como o ―segundo chefe de Caramujo‖. Isso implicava, não apenas em agir como um
―substituto‖, por assim dizer, de Hagema nas ocasiões em que este se ausentava, mas
em dividir com ele uma série de conversas acerca dos recursos da aldeia (por exemplo,
sobre as divisões das quotas de gasolina enviadas pela Funai e pelo ―pessoal da Saúde‖),
sobre a manutenção de contatos com outras aldeias ou com órgão governamentais para
conseguir benefícios, sobre a ajuda nas ―festas‖ para as quais eram convidados etc.
Nahugigu, por sua vez, era uma das que mais frequentava e circulava livremente
pela casa de Hagema. Nas ―reuniões‖ que pude presenciar na aldeia (pelos motivos
acima mencionados ou por outros), sua opinião sempre era especialmente esperada e
demandada, quando já não vinha naturalmente. Além de ser sobrinha uterina de Hagema
(que é seu MB), ela é irmã de Katisa, a esposa de Napü (filho de Hagema), e ambas
nascidas do casamento de Kanhu (irmã de Hagema), com Airá.
Pelo que pude saber, todos, nessas famílias, possuíam pelo menos um pouquinho
de ―sangue‖ de chefe, de modo que percorrer as veredas de suas relações de parentesco
sempre despertou em mim muito interesse. Afinal, mesmo no interior de uma pequena
aldeia a definição das posições políticas das pessoas não era um simples ―resultado‖ de
onde vieram, e sim, uma expressão de como tornaram-se o que são com as relações que
71

traziam consigo. Airá, por exemplo, era filho de chefe por parte de pai e mãe, e mesmo
assim, a posição de ―segundo cacique‖ (na expressão deles) era associada ao seu genro.
Infelizmente, nos limites dessa pesquisa não fui capaz de deslindar tais injunções
nem de ir a fundo nessas questões, inclusive para saber se eram mesmo profícuas. Em
parte, essa limitação se deu porque meu campo foi curto demais para mergulhar de fato
na genealogia dessas pessoas; de outro lado, porque isso implicaria em dividir meu foco
em pensar a política a partir dos atos enunciativos para pensá-la, em específico, na
dimensão do parentesco. De todo modo, valem ser anotadas aqui, seja para atrair
pensamentos de pesquisa futuros, seja por sua capacidade em demonstrar como, mesmo
no interior de uma aldeia ou de uma única casa, diferenciações relativas à chefia são
estabelecidas. Mas, era sobre outro tipo de diferenciação que falava: a do próprio lugar,
em seu processo de desenvolvimento.
Até meados de 2017, Nahugigu, Lamati e todos os seus filhos (10 no total)
estavam abrigados na casa de Airá. Segundo Nahugigu, porém, iriam construir sua
própria casa em breve, ao lado de onde Paiatu estava planejando construir a sua, só que
mais à esquerda, de modo a ficar ao lado da casa de Airá. Assim, se mais acima se
indicou algumas hipóteses sobre um princípio que orienta as casas de cunhados(as)
ficarem de frente uma para a outra, também seria possível pensar num princípio de
aproximação entre as casas de sogros e a de seus genros.20
Entre minha primeira e minha segunda viagem, pude perceber que essas
mudanças já começavam a acontecer. Roças que não existiam durante minha visita em
junho apareceram quando retornei em novembro e isso parecia ocorrer por iniciativa de
todos os moradores. Assim, por exemplo, no local indicado por Nahugigu para sua
futura casa, um de seus filhos já havia limpado o mato e começado a plantar mandioca;
eu mesmo ajudei Napü a cortar algumas árvores e a capinar a área de trás de sua casa.
Igualmente, as filhas de Hagema haviam aberto duas roças pequenas atrás da habitação
de seu pai. Segundo elas, aquelas eram as roças de Érick (o filho de Cida) e de Breno (o
filho do meio de Angasagu e Paiatu): duas crianças que, apesar da tenra idade,
demonstravam assim ter também agência nesse processo de expansão do território.
20
Isso vai totalmente à contramão do que afirma Ellen Basso, em sua etnografia da aldeia de Aiha na
década de 1970, para a qual: ―Location of houses within the village circle is largely fortuitous; houses are
not located near one another according to the relationships of persons who live in them‖ (1973: 48).
Acredito, porém, que as coisas vão ficando bem diferentes conforme a aldeia vá crescendo, afinal,
conforme vão nascendo novas pessoas, essas relações se complexificam e ―engordam‖ umas às outras,
extrapolando esses princípios. Do mais, é preciso levar em conta também que Basso fez sua pesquisa no
período pós-epidemias, o que deve ter causado uma série de ―buracos‖ nas relações das pessoas com
quem ela travou contato.
72

Figura 15. As roças de Érick (esquerda) e de Breno (direita), atrás da casa de Hagema Kalapalo

O encontro com essas roças ―de segunda viagem‖, por assim dizer, foi uma das
coisas que mais me chamou atenção, pois, na primeira viagem, todas aquelas a que me
levaram para ver estavam relativamente distantes das casas. Minha interpretação sobre
isso é que estavam querendo reocupar e expandir os espaços próximos das casas, pois,
em breve, pretendiam alargar um pouco o círculo da aldeia. Isso me foi indicado de
modo indireto, por exemplo, quando Napü disse que também iria levantar uma casa
maior para sua família um pouco mais pra trás de onde estava a sua.
73

Figura 16. Roça da família de Nahugigu, ao lado da casa de seu pai, Airá. Nahugigu e Lamati previam
levantar sua própria casa nesse local em breve.

Do mais, percebi que ter roças longe é algo que ―dá muito trabalho‖. É preciso
cercá-las praticamente inteiras, para evitar a aproximação de porcos-do-mato ou de
outros animais que destroem as covas ou comem a mandioca do plantio. Vi diversas
vezes Airá cortando, com um machado, dezenas de árvores para cercar as suas roças e a
de seus netos e filhos (as quais eram exuberantemente limpas). Sem tirar que as
mandiocas colhidas são levadas em grandes quantidades pelas mulheres até as casas
(ficando aos homens a função de limpar, cercar e cuidar do plantio), o que, tendo-se
plantado perto, facilitaria um pouco o trabalho.
Daí também a vantagem de ter pontos d‘água próximos à aldeia, algo que
Hagema disse ter sido decisivo para escolher o local, bem como apreciado pelos demais
moradores nas comparações que faziam sobre o tempo que se gastava para ir pescar em
Aiha e em outras aldeias. Do mais, diferentemente de algumas aldeias maiores,
Caramujo não tinha nenhum tipo de sistema de bombeamento ou de canalização de água
instalado (embora isso também fosse algo para o qual Hagema estava articulando alguns
74

contatos junto da prefeitura de Canarana na ocasião de minha segunda visita, a fim de


que fossem lá construir o sistema de poços artesanais).

Figura 17. Mulheres retornando da roça. Kãnhu (primeiro plano), junto de outras mulheres que vão à
frente, carrega na cabeça uma bacia com a colheita de mandioca desde a sua roça até sua casa.

Até que isso acontecesse, as mulheres iam duas ou três por dia vezes buscar e
trazer água dos igarapés – o que, em algumas situações, era facilitado se elas ou seus
maridos pegavam uma moto, mas, na maior parte das vezes, eu as via chegando firmes
com grandes panelões de aço cheios de água na cabeça, equilibrados por uma só mão,
trazendo roupas, sabonetes e às vezes até mesmo uma criança na outra.
Do que se acabou de descrever, parece evidente que abrir e cuidar de uma aldeia
não é algo fácil e simples. Uma aldeia está em constante devir, bem como o ambiente
75

que a circunda e no qual ela se faz um lugar de/para alguém, sendo necessário ocupá-la
de modo contínuo. Ventos, mato, bichos e forças de toda sorte agenciam-se às relações
sociais existentes ali, tornando a vida numa aldeia pequena ―difícil‖ e trabalhosa, como
me expressaram várias vezes meus interlocutores.
Entre o trocar e o fazer novas casas e roças, nota-se que uma complexa
microssociologia vai se instanciando aos poucos na paisagem, assim como é aos poucos
que pessoas vão chegando de outros lugares ou nascendo, sendo possível perceber uma
constante alteração da relação entre a ―imagem‖ e o ―fundo‖ — expressões utilizadas
aqui de modo provisório,21 apenas para expressar os processos de ―fixação‖ ou
―instauração‖ de territórios pela ação das pessoas, mas que talvez possam ser
substituídas por termos mais justos, tirados, quem sabe, dos próprios modos de
expressão indígenas.
Assim, por exemplo, não sei ao certo todas as facetas da palavra otsogitsügü
(―origem‖ ou ―aparecimento‖), utilizada muitas vezes para pensar o início de uma
aldeia. Porém, acredito que o estudo de um maior número de exemplos desses processos
de formação delas, casado com a análise de narrativas orais, poderia ser frutífero para a
compreensão dos esquemas de pensamento indígenas no que toca à própria ideia de
―começo‖. Algo para o qual, sem dúvida, seria necessária também uma aproximação
colaborativa entre a antropologia, a linguística e a filosofia.
De todo modo, tendo feito essa descrição, algumas primeiras conclusões podem
ser elaboradas. Em primeiro lugar, é interessante como, no caso da aldeia Caramujo, o
processo de abertura de um novo coletivo evoca processos de abandono mais antigos, os
quais estão, quase sempre, associados às lembranças de infância de seus moradores.
Essa evocação é dada pela menção aos próprios caminhos que interligam suas andanças
passadas às aldeias para onde foram e que os trouxeram de volta até lá. Nesse sentido, a
fundação de Apangakigi pode ser descrita como um colocar de seus moradores ―em
fila‖ com relação aos seus antepassados (para usar a expressão de Airá no trecho que
reproduzi acima de meu caderno de campo). São os seguidores, os que continuam
abrindo o caminho por eles aberto ou os que voltaram por eles — e não perambulantes
que se quedam à revelia por lugares quaisquer.

21
A relação entre figura e fundo é justamente o que define, segundo o Eric Hirsch (1995: 3), uma
―paisagem‖, na qual a figura seria o ―primeiro plano‖ onde se desenrola ―a atualidade concreta da vida
social cotidiana (‗a maneira como estamos agora‘)‖, e o fundo ―a pontecialidade percebida colocada em
relevo por nossa existência no primeiro plano (‗a maneira como deveríamos estar‘)‖.
76

Em um artigo sobre a transmissão de cantos e saberes entre os Kuikuro, Bruna


Franchetto, Carlos Fausto e Tommaso Montagnani (2013) afirmam que as tecnologias
da memória karib tendem a codificar as informações com base em uma relação de
indexação na qual uma ordem deve ser rigorosamente respeitada. Isso se expressaria na
ideia de que as coisas devem estar tinapisi (―em fila‖), ―isto é, em ordem sequencial‖
(op.cit.: 7). Quanto a isso, dizem os autores:

Ce qui est en file s‘opose à ce qui est « dispersé » (tapehagali). Le savoir


traditionnel ordonné en séquence est toujour plus valorisé que celui qui est
« dispersé », et lui seul est l‘objet d‘une transmission formelle contre
paiement. La notion de tinapisi exprime l‘obsession kuikuro pour la ligne
ordonnée. Tout peut et doit être disposé en séquence : il y a toujours un
premier, un deuxième, un troisième, etc. Les Kuikuro s‘intéressent, dans une
séquence, à la position des éléments par rapport au premier, celui qui est « la
pointe ». Cette obsession s‘aplique aussi bien à la politique qu‘au rituel.
(idem)

Opondo-se ao que é disperso, da mesma forma, é percorrendo trilhas já andadas


que as pessoas se concentram e se puxam umas às outras para morarem juntas. No caso
de Caramujo, esta relação é ainda mais evidente se pensada em ordem cronológica:
primeiro vieram Hagema e sua família; em seguida, sua irmã e cunhado; em seguida...
Até que o círculo da aldeia se feche, sua morfologia vai expressnado essa pontiaguda e
trabalhosa tarefa de amarrar linhas ou caminhos dispersos, os colocando ―em fila‖ (daí,
aliás, poderia surgir uma bela definição do que é um círculo: algo que, se desamarrado,
gera uma linha com tendências de continuidade infinita).22
Daí decorre uma segunda conclusão. A partir dessas ideias, seria possível dizer
que as aldeias são reuniões de separações: elas são um colocar junto de pessoas vindas
de outros lugares, um modo de concentrar o que está ―disperso‖ (tapehagali).23
Consequentemente, são também o colocar junto das memórias desses lugares, memórias
que são destacadas de onde estão para irem habitar o lugar de outras. É um concentrar,
nesse sentido, não apenas de pessoas, mas também de histórias e lembranças.

22
Isso pode ser mais do que uma metáfora. Lévi-Strauss, em ―As organizações dualistas existem?‖
(2012), discute as transformações de círculos em linhas, passando por semi-circulos, em morfologias
sociais centro-brasileiras. Em sua tese ―O traço e o círculo‖, Marcela Coelho de Souza (2002) tira seu
título do modo como essa oposição aparece recorrentemente na morfologia social dos povos jê ou em seu
sistema estético e ritual. Em suma, há uma continuidade entre linha e círculo que não é meramente
―geométrica‖.
23
Rafael de Menezes Bastos (1995) tem uma abordagem semelhante para o caso dos Kamayurá.
77

Do mais, a separação dessas pessoas de seus lugares de origem demonstra,


muitas vezes, que ―separar‖ não é necessariamente ou de maneira peremptória operar
cisões ou divisões ao meio. Em alguns casos, separações são o resultado de tensões que
se expressam em nível menor, como cismas ou ―trincamentos‖ (uma imagem que irá
reaparecer no capítulo seguinte), sem pôr um fim total ao que existia antes. Por
exemplo: todas as aldeias de origem das famílias de Caramujo continuam existindo
atualmente.
Com a licença de um neologismo, o que se observa então são esfagulhamentos,
ou, com um retorno à etimologia da palavra ―detalhe‖ (de + talhar/cortar), poder-se-ia
dizer que separar muitas vezes é o mesmo que produzir des-talhes, algo que lembra um
tirar de talos, de ramos ou de outras miudezas de um tronco central ou emaranhado. No
caso, as ramagens obtidas no corte não ficam soltas, mas sim, são levadas ou puxadas a
se reunir novamente, de modo que, na nova configuração formada, continuam
expressando seus detalhes.
Assim, os movimentos de concentração num determinado lugar são, se vistos de
outras perspectivas, movimentos de dispersão que ocorreram alhures. Isso implica na
realização de uma abordagem de mão dupla, capaz também de descrever as relações que
têm o potencial de separar tais (re)uniões. Essa segunda via da análise é a que será
construída no capítulo seguinte.
78

Figuras 18 A e B. Árvore de akaga no caminho para Akagagü (fotografia da esquerda) e Início do caminho que
interliga Apangakigi à aldeia Kaluani (fotografia da direita). Fotografias tiradas em junho de 2017.
79

Os historiadores sentem e objetam com razão que os sociólogos fazem


demasiadas abstrações e separam demais os diversos elementos das
sociedades uns dos outros. É preciso fazer como eles: observar o que é dado.
Ora, o dado é Roma, é Atenas, é o francês de classe média, é o melanésio
dessa ou daquela ilha, e não a prece ou o direito em si.
Marcel Mauss, Ensaio sobre a dádiva, 2003 [1938], p. 311

Que pessoas habitam territórios (uma ―Roma‖, uma ―Atenas‖, ―essa ou aquela
ilha‖ ou tal aldeia e região etc.) parece evidente a qualquer um e, em especial, ao
antropólogo — pois, para encontrar, observar e conversar com elas, muitas vezes, é
preciso ir até lá. Porém, seria possível imaginar onde habitariam os territórios eles
mesmos?
À luz do que diz boa parte da teoria social moderna, territórios não podem
habitar senão em sentido metafórico, já que não são gente, mas entidades inanimadas
que fazem outrossim parte de algo: de um ―planeta‖, de uma ―região‖, de um ―(meio)
ambiente‖, em suma, de um espaço concebido de maneira transcendental como
condição a priori da possibilidade mesma de existência das coisas e de suas relações.
Territórios podem até ser propriedade das pessoas, mas permanecem exteriores a elas, e
as formas de controle ou domínio criadas parecem se colocar como um véu estendido
por cima, a cobri-los de fora.
Contudo, se for tomada a perspectiva do que é dado – e aqui vale lembrar o que
dizia Marcel Mauss de que ―o dado é Roma, é Atenas, é o francês de classe média, é o
melanésio dessa ou daquela ilha, e não a prece ou o direito em si‖ – os espaços em si
também não há. O que existem são lugares, com histórias e nomes específicos, aos
quais as pessoas estão conectadas através de suas experiências de vida e que,
paralelamente, se conectam uns com os outros por meio delas (cf. Casey, 1996; e Feld
& Basso, no mesmo volume).
No capítulo anterior, procurei discutir e exemplificar, a partir das histórias de
fundação e desenvolvimento da pequena aldeia Apangakigi, a profunda conexão entre
pessoas e lugares, mostrando que habitar um determinado território (e não outro) é
alinhar o presente e o passado, quer dizer, ocupar também territórios da memória e
80

(re)criar, por aí, lugares novos. Nesse sentido — seja isso apenas metafórico ou não —,
pessoas habitam lugares que moram ou que passam a morar um pouquinho nelas
também.
Daí, também, ter concluído aquela descrição afirmando que aldeias podem ser
vistas como reuniões de separações, processo através do qual o presente não apenas se
amarra ao passado, mas reúne aquilo que ele guardou (ou gerou) de dispersão. Como,
porém, descrever esses desligamentos que, produzidos aqui, possibilitam rearranjos
alhures, e em que sentido as narrativas de pessoas do subsistema karib do Alto Xingu
pode auxiliar nessa empreitada? Neste capítulo, tentarei responder a essas questões
cruzando, dentre outros fragmentos, dois relatos: um deles documentado com Hagema
Kalapalo durante minha primeira viagem de campo; outro concedido por meu
orientador para uma análise que venho fazendo e refazendo desde a graduação (e à qual
já fiz referência na introdução) acerca da vida de um descendente de chefes do povo
Nahukwá, aqui chamado de Kuaku.
O capítulo está dividido em três seções. Na primeira, procuro contextualizar o
relato de Hagema que aqui será interpretado. Como realça Joe Sherzer em seu estudo
acerca das artes verbais dos Kuna (povo chibcha que habita as Ilhas de San Blas, no
Panamá) — contextualizar esse tipo de material significa dar conta, minimamente, de
relacioná-lo com duas coisas: primeiro, com ―o plano de fundo sociocultural, composto
pelo conjunto de assunções, crenças e associações simbólicas próprias à cultura
analisada‖; e depois, com ―o local e a situação imediata em que uma forma discursiva
particular ocorreu ou foi gravada‖ (1990: 4).
Para tanto, nessa primeira seção, vou acompanhando passo a passo o processo de
documentação que eu e Hagema realizamos, o qual, nesse caso em específico, implicou
em caminhar de Caramujo até a antiga aldeia Kunugijahütü, onde ele me contou a
história que aqui reproduzo, em específico. Como falarei, porém, nesse caminho
passamos por diversos outros lugares onde Hagema quis parar e realizar mais
gravações. Aproveito, então, essa jornada descritiva para falar um pouco sobre esses
outros lugares e histórias, pensando, tal como fiz no capítulo 1, o que esse trajeto
permite dizer, de um lado, sobre as relações travadas entre os atuais moradores dessa
região com seu território e, de outro, sobre as relações que estabelecem entre si por
meio dele. Além de ajudar a fornecer mais elementos para se pensar ―o plano de fundo
sociocultural‖ dos povos estudados, essa seção permitirá também detalhar melhor como
foi que realizei esse e os demais registros com Hagema ao longo da pesquisa.
81

Na seção seguinte, então, apresento alguns trechos da narrativa gravada em


Kunugijahütü e, em linhas gerais, procuro refletir sobre alguns fatores ligados à
dispersão de pessoas visibilizados nesta história. Na terceira seção, a partir de alguns
trechos do relato de Kuaku, complemento as reflexões iniciadas na seção anterior e
procuro pensar como a variabilidade de pontos de vista sobre o passado, produzida
pelas narrativas pessoais e pelo entroncamento (ou de-talhamento) de seus caminhos,
encaminham sua audiência, não para posições neutras de consideração sobre os fatos,
mas sim a assumir posições, isto é, a ocupar determinados lugares num território que é,
portanto, ao mesmo tempo social e de memórias.

Caminhar para documentar

A narrativa que trago mais adiante foi documentada com Hagema no dia três de junho
de 2017 na ―Aldeia Velha‖ do povo Kalapalo, lugar conhecido pelo nome de
Kunugijahütü. Meus interlocutores traduziam a palavra Kunugijahütü como ―lugar de
kunugija‖, uma árvore de pequeno porte presente nos arredores daquela aldeia,
principalmente, na época em que ela ainda era habitada.1
De modo geral, as gravações que realizei com Hagema seguiam sempre um
mesmo padrão organizacional. Normalmente, no dia anterior à documentação, ele se
aprochegava de minha rede quando eu não estava fazendo nada e me informava que no
dia seguinte gostaria de me levar até um determinado lugar. De manhã, então,
levantávamos bem cedo e ele se arrumava muito, preparando acessórios especiais para
ir me contar suas histórias. Colocava colares de caramujo, brincos de pena de tucano,
braceletes, cintos de miçanga, passava óleo de pequi com urucum nos cabelos e no
corpo, desenhava no rosto com jenipapo e arranjava aqui e ali objetos que julgava
interessante levar consigo para mostrar na hora da filmagem.
Sempre, durante o tempo em que se arrumava, Hagema me dava instruções
sobre cada uma dessas coisas: por exemplo, dizia que o óleo do pequi e o urucum
deixavam o corpo ―forte‖, sendo muito utilizado pelos lutadores no ikindene; ou,
mostrando-me uma arranhadeira (instrumento sobre o qual voltarei a falar mais adiante),
dizia que iria levá-la para me arranhar (e ele sempre levava), caso eu ficasse cansado.
Muitas vezes, além disso, ia me ensinando o nome das coisas e dizendo: ―tem que

1
Infelizmente, não fui capaz de identificar a espécie e o nome científico que se atribuiria a essa árvore.
82

escrever, viu filho, escrever o nome, para você aprender‖. Nesse sentido, mais do que
um interlocutor e ―pai‖, tive também um ótimo ―professor‖ em campo.

Figura 18. Hagema se preparando para gravar. Na imagem, o cordão branco que Hagema está esticando
(de linha Cléa) será utilizado como braçadeira na parte superior de seu braço direito, à exemplo do que já
havia colocado no esquerdo.

Figura 19. Detalhe do cordão sendo preparado para ser usado como braçadeira. Os desenhos colocados
próximo à porta de entrada da casa são dos netos de Hagema (as crianças que estão sentadas no banco,
observando-o, na fotografia acima). Depois de esticado, o cordão é enrolado com muita força nos braços,
de modo a pressionar e deixar marcas na pele.
83

A determinação de Hagema em se arrumar para as gravações, por si só, é um


indício de que ele é um akinha oto (―dono/mestre de histórias‖) — uma especialidade
que se espera ser dominada pelos chefes (anetaõ) entre os Kalapalo, mas que encontra
ressonâncias no tratamento conferido a eles por praticamente todos os povos do Alto
Xingu.2 Nas palavras de Ellen Basso (1985: 16), acerca da performance desses
narradores:

Uma boa performance, de acordo com os Kalapalo, não apenas comunica


traços da história [story] acuradamente, permitindo a extensa repetição e
promovendo detalhes suficientes para assegurar o interesse do ouvinte, mas
também chama atenção e intensifica a experiência através da construção de
imagens verbais vívidas (hutofo, ―usado para conhecer‖),3 as quais fazem
com que o ouvinte ―veja‖ (isto é, pense mais vividamente sobre) o que está
sendo narrado.

Sua preocupação, portanto, estava em afetar também visualmente sua audiência:


no caso, primeiramente a mim, que lhe acompanhava naquelas ocasiões, mas não só.
Como já falei na introdução, Hagema sabia (e queria) que suas histórias fossem exibidas
também para muito mais gente, que elas virassem um ―documento‖. Além disso, ao
final dessa narrativa em Kunugijahütü, especificamente, disse-me que gostaria que eu
a(s) colocasse em DVD, em livros, e levasse isso de volta para a aldeia. Em parte, esse
―levar de volta para a aldeia‖ não demorava muito para ocorrer, pois tão logo
retornávamos das caminhadas, os moradores de Caramujo (e às vezes de Kaluani)
vinham logo pedir para assistir os vídeos que havíamos feito em meu computador.4
Nesse sentido, cada uma das coisas apanhadas por Hagema, mais do que
parafernálias de um requintado modo de contar, eram instrumentos que potencializavam
ainda mais o emprego dessas ―imagens verbas vívidas‖, de que fala Basso. Dito de outra
forma: eles potencializavam ainda mais a capacidade dessas histórias de produzir efeitos
no ―mundo vivido‖ (Munn, op. cit.) dos narradores e de sua audiência. Por esses e
outros meios, a relação entre ―história‖ e vida pode, de fato, ser expressa como um

2
Cf. FRANCHETTO, 2000 e 2003a, para uma análise detalhada de gêneros verbais específicos à chefia
Kuikuro.
3
Aqui, Basso se equivoca ao glosar o termo hutoho. Da raiz hu-, a expressão se traduziria melhor por
―que serve para imitar‖. A raiz para conhecer/experimentar é uhu-.
4
De outra parte, uma das formas de corresponder a esse desejo vem sendo concretizada através de um
Projeto de Extensão Comunitária, coordenado pelo Prof. Antonio Guerreiro, que visa publicar algumas
dessas histórias na forma de materiais didáticos para as Escolas Indígenas Kalapalo do Alto Xingu. Algo
que possivelmente irá expandir ainda mais os efeitos estéticos almejados por Hagema durante suas
performances e que, sem dúvida, será interessante de ser acompanhado no futuro.
84

único cordão que dobra-se sobre si mesmo para tomar outra direção. Nas palavras e
imagem de Ingold (2011: 161):

―Story and life. In storytelling, past occurrence are drawn into present experience. The lived present,
however, is not yet off from the past of the story. Rather, past and present are continuous‖

Do mais, estas considerações servem também como base etnográfica para


esclarecer porque falo tantas vezes nessas narrativas como modos de visibilizar relações
ou movimentos de meus interlocutores. Seguindo as reflexões de Strathern em seu livro
Learning to see in Melanesia (2013), acredito ainda que ao visibilizar determinadas
coisas, mais do que simplesmente me mostrarem algo, meus interlocutores estavam
também colocando questões para o meu modo de ver. Cada uma das coisas apanhadas
por Hagema, nesse sentido, fazia parte de uma performance (Bauman, 1974)5 iniciada
desde esses momentos de preparação, nos quais, como falei mais acima, Hagema
inclusive me dizia o que eu deveria aprender através de cada uma das coisas.
No caso da narrativa transcrita mais adiante, Hagema não apenas se aprontou
com uma série de artefatos estético-corporais, como levou consigo uma série de objetos,
os quais pretendia mostrar ao longo do relato. Esses objetos eram: uma panelinha de
metal (na qual, normalmente, se leva tilisinhü, ―mingau de beiju‖), uma arranhadeira,
uma caixa de fósforos, um pacote de sabão em barra, uma velha cartucheira calibre 32,
um facão, uma lata de leite em pó, flechas feitas de bambu para pescar e, por fim, uma
bandeira do Brasil.
Devo dizer que desde o dia anterior à nossa ida para Kunugijahütü, Hagema
demonstrava-se especialmente disposto e contente. Chegou inclusive a convidar Airá
(seu genro) e Lamati (o ―segundo chefe‖ de Caramujo e pai de seus netos) para nos

5
Nas palavras do autor: ―Performance, as we conceive of it [...] is a unifying thread tying together the
marked, segregated esthetic genres and other spheres of verbal behavior into a general unified conception
of verbal art as a way of speaking. Verbal art may comprehend both myth narration and the speech
expected of certain members of society whenever they open their mouths, and it is performance that
brings them together in culture-specific and variable ways, ways that are to be discovered
ethnographically within each culture and community‖. (op. cit.: 291)
85

acompanharem, mas apenas este último foi.6 Como mencionado anteriormente, este é
um lugar pelo qual o narrador tem uma grande afeição: foi lá que ele nasceu e onde seus
ancestrais passaram boa parte de suas vidas. Sendo assim, Hagema era um grande
conhecedor desse território e, durante a trilha que fizemos naquele dia, ele escolheu
também outros sete lugares da paisagem onde deveríamos fazer paragens para gravar.
Esses lugares e seus respectivos nomes estavam dispostos pelo caminho conforme o
mapa abaixo:

Figura 20. Lugares da memória no caminho entre Caramujo e Kunugijahütü.

Infelizmente, nem todas as narrativas gravadas nesses outros lugares


conseguiram ser transcritas e traduzidas nos limites desta pesquisa. Tampouco, caso
esse trabalho tivesse sido feito, haveria espaço suficiente nessa dissertação para falar
sobre elas. De qualquer forma, afim de não deixar passar despercebida a importância
que esses lugares (e seus caminhos) têm para meus interlocutores, abrirei aqui um

6
A fim de incluir mais pessoas nessas atividades de documentação e compartilhar do conhecimento que
trazia, eu mesmo convidava diversas pessoas (especialmente os jovens) para irem conosco gravar as
histórias. Porém, poucas tinham a disponibilidade ou interesse de ir, pois isso implicaria deixar suas
atividades cotidianas para depois (o que, numa aldeia pequena, sobrecarregava as pessoas), ou porque
tinham vergonha.
86

desvio no texto para falar sobre o que foi ir até eles naquela ocasião. Aproveitarei esse
desvio para explicar melhor que tipo de relação os atuais moradores dessa região
estabelecem com esses lugares e com esses caminhos. Em seguida, retomarei a direção
que levará o texto para Kunugijahütü, que estará mais bem contextualizada.7

Figura 21. Sacola com alguns dos objetos que Hagema levou para a gravação em Kunugijahütü. Do lado
de fora, um instrumento que, quase sempre, ele carregava nas mãos: a arranhadeira (falo sobre ela mais
adiante).

Antes mesmo de sair de Caramujo, Hagema disse-me que queria contar primeiro
em sua aldeia. Então, saindo e ficando de costas para a porta da frente de sua casa,
chamou sua família, as crianças e os jovens que estavam no pátio, para que ficassem
atrás dele. Em uma das mãos, Hagema segurava duas compridas flechas de bambu; na
outra, três enormes conchas de caramujo. Esticando as conchas na minha direção,
começou por expor o nome daqueles brancos objetos (— ―inhu higei! inhu higei...‖;
―isso é caramujo, isso é caramujo...‖) e por apresentar Apangakigi. Disse que ali era
lugar de inhu e que estes eram coisa dos Kalapalo.

7
Passei por Kunugijahütü com Hagema duas vezes, uma em junho e outra em novembro de 2017. Nessa
segunda caminhada, seguimos um pouco mais adiante, em direção as aldeias Kuapügü e Kalapalo. Sobre
a história dessas aldeias, ver GUERREIRO 2015a: cap. I, bem como o mapa reproduzido no capítulo
anterior, com os lugares mencionados por Hagema e Kaua em suas memórias daquela região. No relato
que farei a seguir, mesclo experiências oriundas dessas duas caminhadas, a fim de tornar a leitura mais
fluída e completa.
87

Figura 22. Frame da gravação feita em Caramujo, antes de sairmos rumo a Kunugijahütü.

Depois, virando-se um pouco de lado, circulou com a mão cheia de conchas as


crianças que zanzavam atrás dele, e as designou como sua família: ―filhas‖, ―sobrinhas‖,
―sobrinhos‖... Quando se desvirou, fez uma breve pausa e apontou com os caramujos,
dessa vez, para frente, mudando o rumo de seu discurso. Disse que os kagaiha
(―brancos‖) estavam chegando por lá, vindo dos arredores. Estavam chegando e
querendo tomar a terra deles. Por que, no entanto, ele ―daria‖ aquele lugar para
kagaiha? Era ali que toda sua família, todos os que estavam atrás dele, estavam
vivendo; eles tinham ido para lá e, no futuro, as crianças iam ainda continuar ali.
Enquanto falava sobre isso, Hagema ficou bem de frente para a câmera,
contrastando com sua postura de início (na qual uma leve curvatura de seu tronco já lhe
permitia ver o pessoal atrás de si). Dessa vez, porém, assumia de fato o primeiro plano,
chegando a dar alguns passos para frente. Entre mirar reto a câmera e erguer e abaixar
seus braços (desenhando no ar um território abrangente que por aí era ―abraçado‖),
tombou seu olhar sobre sua mão contendo as conchas e fez mais uma pausa. A partir
daí, retomou a direção anterior de seu discurso: os caramujos, o modo como iam buscá-
los naquela região e, posteriormente, usavam suas conchas para fazer colares como o
que ele trazia no pescoço. Quando concluiu, voltou para dentro de sua casa, deixou as
três conchas e logo saiu, passando rapidamente ao meu lado: — ―Kigeha Diogo!‖
(―Vamos, Diogo!‖). Estava iniciada nossa caminhada.
88

O caminho que leva a Kunugijahütü inicia-se a partir da pequena área de trás da


casa de Kanhu e Airá (ver figura no capítulo 1, p. 61). Para ter acesso a ele, portanto,
partindo-se da casa de Hagema (que fica bem de frente para aquela) é preciso passar ou
beirando a casa de sua irmã (pelo lado esquerdo de quem a olha de frente), ou por
dentro dela mesmo. Naquele dia, passamos por dentro, a fim de encontrarmos com
Lamati, que havia combinado de ir conosco.
Poucos metros depois de sair pela porta de trás da casa de Kanhu, chegamos a
um descampado chamado Ogi Akegü (lit. ―campo curvo‖ ou ―curva do campo‖)8.
Hagema quis parar ali para dizer que a partir daquele ponto iniciava-se o caminho que
seus antepassados faziam quando saiam para pescar desde Kunugijahütü. Nesse trajeto,
passavam por Apangakigi, iam até Akagagü, às vezes paravam ali para descansar e,
depois, atravessando o buritizal que se emenda naquele igarapé, seguiam até Kahindzu.9
De Ogi Akegü até Anha Titagengo (lit. ―caminho reto‖), onde fizemos nossa
próxima parada, a trilha tinha diversas curvas (daí o nome daquele primeiro lugar). Dali
para frente, porém, conforme o mato começava a crescer, tornando-se cada vez mais
denso e fechado à nossa volta, a estrada tornava-se bem mais estreita e retilínea.
Hagema parou ali para chamar minha atenção para esse fato e, mais uma vez, para dizer
que aquele caminho tinha sido aberto por seus tios e avós e que foi através dele que os
―brancos‖ passaram quando vieram de Kahindzu, indo direto10 para Kunugijahütü.
Do ponto de vista de uma ecologia das relações, porém, a imagem inaugurada na
paisagem por Anha Titagengo — de um ―caminho reto‖ — tem a particularidade de
indicar como os moradores de uma aldeia não apenas se conectam, mas procuram se
―alinhar‖ com os lugares à sua volta. As próximas duas paragens que fizemos fornecem
algumas pistas de como essas linhas são criadas e qual a real natureza delas, pois, para
além de serem visíveis ao rés-do-chão, quer dizer, nos caminhos propriamente ditos que
interligam determinados pontos do território, esses alinhamentos podem ser apreendidos
também em outras dimensões.
Em Indze Mukugu (lit. ―filho de/do pequi‖), Hagema contou-nos a história de
um ―branco‖ chamado Maia, encontrado certa vez pelos moradores de Kunugijah t

8
Ogi é uma palavra antiga para o atual oti, substantivo para ―campo‖. Ake é curva.
9
Este trajeto pode ser observado no mapa da página 92 (onde consta também o nome dos lugares que
interligam estes destinos). Essa passagem também é similar à história que Airá me contou sobre as
viagens de seus antepassados (reproduzida no capítulo anterior).
10
Em Kalapalo, a palavra para ―reto‖ e ―direto‖ é a mesma: titage. Normalmente, os caminhos de
chegada/saída de uma aldeia são ―retos‖, tendo o mesmo nome geral dos caminhos que são
―retos/diretos‖: tanginhü.
89

comendo pequi (indze) embaixo de um pequizeiro que lá permanece até hoje. Em


Imühisoho (lit. ―que serve para colocar o rosto‖), a parada seguinte, novamente fez-me
primeiro filmar outros pés de pequi, e então contou a história de um homem que
costumava ficar embrenhado no mato, mirando de tocaia caminho reto afora, à espera
da passagem das mulheres.11
Em The Kalapalo Indians of Central Brazil, Ellen Basso (1973: 34-35) faz uma
série de considerações interessantes para se pensar a relação dos moradores de uma
determinada aldeia com lugares antigos onde existem pequizeiros. Normalmente, o
plantio do pequi é feito em roças de mandioca ainda ativas, às vezes durante o próprio
processo de limpeza do terreno ou de abertura de suas covas. Plantam-se sementes que
sobraram do consumo da colheita passada (que é anual) e, como Hagema me falou certa
vez enquanto lhe ajudava nessa tarefa em uma roça nova que estava abrindo em
Caramujo: quem planta o pequi torna-se ―dono‖ de sua safra. No entanto, nas palavras
de Basso:

By the time the trees bear fruit, the fields in which they were planted have
been abandoned for many years. For example, the trees which presently bear
fruit are those which were planted by the parents and grandparents of persons
who are today adults. In places where settlement has been continuous, groves
of piqui trees extend for several miles around the village sites, still bearing
fruit as much as fifty years after planting. (1973: 35)

Como resultado, então, Basso acrescenta que:

The right to harvest specific piqui orchards (which are named according to
some prominent feature of the fruit of the trees, or after an event which took
place near where they are planted) is inherited by the descendants of the
original planter […]. (idem)

Esses trechos colhidos do livro de Basso descrevem, justamente, o plano de


fundo das relações que os atuais moradores de Caramujo estabeleciam com os
pequizeiros que me foram mostrados naqueles dois lugares (bem como com outros que

11
Antonio Guerreiro (comunicação pessoal) disse-me ter ouvido outra versão sobre o lugar e o nome
Imühisoho: era um lugar de passagem de veados, e os veados ficavam observando o caminho que cortava
a mata. Naquela ocasião, Hagema me sugeriu que traduzisse imühisoho por ―ficar de tocaia‖: expressão
que lhe sugeri quando ele me perguntou como se falava, em português, o ato de ficar escondido atrás de
algum lugar esperando alguém ou um bixo aparecer e que, naquele dia, ele mesmo encenou enquanto
gravávamos.
90

se encontra por diversos pontos dos arredores). Durante minha segunda viagem de
campo, em novembro (pegando então parte da colheita do pequi, que se inicia em
setembro), vi diversas vezes as mulheres irem por aquele ―caminho reto‖ e voltarem
com bacias carregadas com essa fruta. No caso daquele ano (2017), em específico, isso
ocorreu com uma intensidade especial (e não apenas ao longo daquele caminho, mas
também por outros lugares da região), porque Hagema e Lamati tinham sido convidados
para ser tajope (―coordenadores‖) de uma festa na aldeia Kaluani. Segundo meus
interlocutores, aquela festa era ―uma preparação‖ para o Egistü de 2018 — ao qual,
aliás, os moradores de Kaluani pleiteavam realizar pela primeira vez em sua aldeia.
O nome daquela festa de ―preparação‖ era indze tuhutelü (―ajuntamento do
pequi‖) ou indze tundomi (―para dar pequi‖). Eles me diziam que era apenas a primeira
das festas que iriam fazer para o Egitsü e que, posteriormente (por volta de julho/agosto
do ano seguinte), teriam ainda duas outras: para ―juntar polvilho‖ e ―para juntar peixe‖.
Acerca do Egitsü, diz Guerreiro (2015a; p. 383): ―o que mais demanda esforços do dono
da festa e sua família é a distribuição de alimentos (afinal, é preciso muito mingau de
pequi, peixe e beiju para pagar dançarinos e cantores ao longo de todo o ciclo, e
distribuir aos convidados no final)‖.
Toda minha estadia em campo nessa segunda viagem foi marcada por diversas
dicussões acerca dessa questão, na verdade; afinal, aldeias como Aiha e Ipatse já
estavam falando sobre realizar o Egitsü de 2018 também e, sendo estas aldeias muito
maiores, tinham um grande potencial para fazer tudo agilizadamente e de modo bem
sucedido. No entanto, no final de outubro de 2017, um dos chefes de Kaluani — o qual,
inclusive, era pai de Paiatu e irmão do cunhado de Hagema — falecera e foi enterrado
naquela aldeia. Por esse motivo, os familiares do morto queriam a qualquer custo sediar
o evento no ano seguinte, em ―homenagem‖ ao ente falecido.12
A fim de manter esse capítulo alinhado a seus objetivos, não irei me aprofundar
na descrição dessa festa. Isso já foi detalhadamente feito, aliás, por Guerreiro (2015a:
382-390), a cujo trabalho remeto o leitor interessado.13 Se a menciono aqui é apenas
para exemplificar como esses caminhos, e as relações estabelecidas pelos atuais
moradores dessa região com lugares específicos deles, continuam ―alimentando‖ a vida
das pessoas que os conhecem de longa data. Ela é interessante também, no contexto

12
O que de fato aconteceu. O Egitsü de 2018 foi realizado entre os dias 19 e 23 de agosto nesta aldeia.
13
Concernente às etapas da festa e ao seu modo de desenvolvimento prático-ritual, a festa que
acompanhei em Kaluani é identica a acompanhada por Guerreiro em 2010 na aldeia Aiha. O autor faz
também uma descrição das duas outras festas, para juntar polvilho e peixe.
91

específico ao qual esta etnografia esteve situada, por revelar algumas dinâmicas
menores de relacionamento que perpassam algumas aldeias Kalapalo por meio desses
trajetos e, por isso, ainda que de modo breve, merece ser retomada.
Conforme fala Guerreiro (op.cit.: 384), quando realizada em aldeias maiores, a
festa indze tundomi é uma festa ―exclusiva do grupo local, da qual não participam nem
mesmo outras aldeias kalapalo, com duração de três dias‖. No caso de Kaluani, porém,
apesar da festa também ter durado três dias, sua organização, mais uma vez,14
movimentou uma malha supralocal de famílias que residem em diferentes aldeias
―menores‖. De fato, além de Hagema e Lamati (tajope de Caramujo), mais três tajope
foram chamados de aldeias vizinhas, quer sejam, um de Tanguro e dois de Barranco
Queimado. O mapa na página seguinte ilustra alguns dos caminhos que interligam essas
aldeias, bem como traz o nome de alguns pontos onde eu e Hagema realizamos mais
gravações por ocasião de outras caminhadas.
Acompanhando o intenso ir e vir de alguns moradores de Caramujo (em
especial, de Hagema e Lamati) por esses lugares durante os dias que antecederam e que
abrangeram a realização daquela festa, pude perceber que o pequi juntado para realizá-
la era o resultado de sucessivas colheitas, realizadas em parceria, por assim dizer, pelas
aldeias dos ―coordenadores‖. Mobilizando seus parentes, esses transitavam muito entre
as aldeias uns dos outros, bem como a lugares antigos, a fim de apanhar pequi e levá-los
para serem descascados em Kaluani. A quantidade de pequi que arranjavam era
tamanha que chegaram mesmo a alugar fretes e caminhoneteiros de Canarana e das
pousadas dos arredores para fazer o transporte.
Para poderem ter acesso, no entanto, a esses lugares e aos seus frutos/produtos
era preciso que estivessem alinhados15 com eles (i. e., com seus donos, atuais e antigos),
e isso não simplesmente (ou não tanto) por caminhos, mas do ponto de vista de suas
relações. Dito de outra forma: essa reunião, se vista à luz dos movimentos de circulação
necessários para realizá-la na prática, isto é, juntando pessoas para reunirem alimento,
acontece visibilizando e objetificando nexos genealógicos e de parentesco que, ao
menos no caso dessas aldeias ―menores‖, se encontram dispersos pelo território.

14
Algo que relembra o exemplo citado no capítulo anterior, da construção da casa do sobrinho do
Hagema.
15
Embora eu não faça referência direta no texto à noção de footing (―alinhamento‖) proposta por
Goffman (1974; 2002), o leitor já deve ter percebido o quanto as questões que venho desenrolando aqui
convidam a serem pensadas à luz deste conceito. Porém, resolvi omitir esse debate, porque isso pediria
um estudo cuidadoso da sociolinguística envolvida nos eventos que aqui recupero: tarefa que não tive
condições de realizar nesse trabalho.
92

Figura 23. Mapa contendo os caminhos e o nome dos lugares que ligam Caramujo às aldeias Barranco
Queimado e Paraíso e ao porto Kahindzu.

Nesse sentido, o modo como se organizou a malha de ―coordenadores‖ em torno


dos ―donos‖ do Egitsü de Kaluani concentrando pessoas e alimentos vindos de
diferentes lugares, foi também um modo de dar a ver, em âmbito regional, essa
dispersão como reunida e de afirmar, por aí, a autonomia daquele(s) coletivo(s) em
relação a aldeias maiores.16 A imagem abaixo retrata um momento específico dessa
festa, no qual essa reunião é visibilizada de modo mais explícito, no próprio centro da
aldeia Kaluani:

16
Com essas aldeias maiores, diga-se de passagem, as comunicações e relações que vinham se
estabelecendo nessa época pareciam um tanto quanto desalinhadas. Disseram-me diversas vezes que os
moradores de Ipatse, por exemplo, estavam achando que era mentira que eles estavam fazendo festa lá em
Kaluani. Muitos convidados dessas aldeias maiores não foram participar do evento. De outro lado, os
alinhamentos produzidos entre as aldeias menores nessa ocasião, tampouco devem ser vistos como
simétricos e a autonomia por ele possibilitada não deve ser vista, ela mesma, como ―pluralizada‖. Como
fala ainda Guerreiro (loc.cit), mais que simplesmente ―reunir comida‖, ―a forma pela qual os alimentos
circulam nesses contextos é uma das maneiras pelas quais se produz deliberadamente uma assimetria
entre o povo anfitrião e os donos do egitsü‖. A única diferença com relação à festa descrita pelo autor,
nesse caso, seria que as assimetrias produzidas pelo ajuntamento em Kaluani — uma aldeia que, apesar
de já se encaminhar para a construção de sua oitava casa, ainda era muito ―particular‖ —, exibia-se em
uma forma plural, quer dizer, entre coletivos: não havia um ―povo anfitrião‖; os ―anfitriões‖ eram uma
mistura entre tajope e suas famílias, os quais vinham de aldeias vizinhas,; e os ―donos do egitsü‖ era a
família-Kaluani enlutada.
93

Figura 24. Reunião do pequi em Kaluani.

Sentado de costas, em primeiro plano, em uma das madeiras da tahiti (cerca construida sobre a sepultura
do chefe morto que está sendo homenageado), Lamati Matipu olha para o pequi que estava sendo
ajuntado no centro da aldeia. As frutas são trazidas em enormes panelas e bacias pelas mulheres da
família dos tajope. Mais de oito panelas foram cheias naquela ocasião, sem contar com os pequis que
transbordaram, fazendo montes também no chão. No centro da fotografia, próximo a uma panela e com
duas joelheiras vermelhas, está Hagema. Os demais tajope estão ao seu lado. Do lado de lá das panelas,
estão os netos e filhos do falecido, que traziam o pagamento pelo pequi ajuntado. Ao fundo, a casa da
família enlutada, onde a viúva estava reclusa.

Ao circularem, então, durante essas atividades por aqueles caminhos, os


―coordenadores‖ e suas famílias percorriam e reabriam linhas deixadas por seus
antepassados — linhas que não apenas tinham permanecido no chão, na forma de
caminhos que os permitem ir até lugares antigos e novos, mas que os atavam também
com esse lugares através de laços de parentesco e/ou afinidade. Linhas, no fim das
contas, que os alinham, concomitantemente, com os lugares e com eles mesmos.
Mas, era no sentido de pensar a dispersão e o desatamento dessas linhas que
caminhava esse capítulo. Por isso, evitarei prosseguir nessas reflexões que, por aí,
falando dos caminhos e injunções através dos quais as pessoas reunem a si mesmas e às
coisas, poderiam fazer dessa curva em que entrou o texto um retorno para temas já
abordados no capítulo anterior. Antes de chegar aos pequis que foram levados para o
94

centro de Kaluani, estava em um dos caminhos de onde eles foram apanhados: o que
liga Caramujo a Kunugijahütü.
Depois de Indze Mukugu e Imühisoho, a próxima parada de Hagema foi em
Tali, nome que significa literalmente ―Copaíba‖. Embaixo de uma enorme árvore dessa,
ele contou-nos, novamente, se lembrar de quando seus avós e tios — que eram
―lutadores de verdade‖ — iam até lá para extrair óleo que usavam por todo o corpo para
lutar. Por isso, disse-nos que todas as vezes que passava por aquela árvore ele ficava
com ―muita saudade‖. Além dessa associação de um elemento específico da paisagem
com as próprias experiências e afetos do narrador continuar demonstrando que esses
lugares são extensões de seu passado (e não apenas do passado), em Tali pareceu-me
muito curioso que o lugar da paragem fosse uma árvore.
Árvore-lugar, lugar-arbóreo, aquela Copaíba realçava ainda mais a conexão
entre aquele território e as diversas relações que por ele se ramificavam, quer dizer,
relações que dele se extraiam ou nele se incrustavam, como óleo e madeira. De fato,
todos os lugares que frequentei com Hagema, se vistos a partir deste ângulo em que as
relações que fazem parte deles brotam de suas imagens/nomes, são mais do que
instâncias meramente geográficas; são locus de memórias e afetos, instâncias
biográficas (em sentido lato): expressão do ser e fazer a vida (Ingold, 2011; Ortega y
Gasset, 1941) que neles teve lugar.
Sobre essa última consideração, aliás, há ainda o exemplo de nossa derradeira
parada antes de Kunugijahütü. Quando chegamos a Nhagü Hatoho, Hagema apontou-
me mais uma vez um pé de pequi embrenhado no mato alto e contou que antigamente as
pessoas faziam raladores para mandioca ali embaixo. Sem se alongar muito, disse-nos
que esse lugar teria ficado com aquele nome por causa desse hábito: nhagü hatoho,
literalmente ―lugar de fazer ralador‖.17 Nomeou-o novamente, apontou o pequizeiro,
nomeou e, virando seu corpo no sentido oposto, passou a mão pelo ar designando já
Kunugijahütü. Dali em diante, caminharíamos mais um pouco, e logo estaríamos no
lugar específico onde ele gostaria de gravar.

17
Em outra versão, contada por Ageu Kalapalo e documentada por Antonio Guerreiro, este narrador
especifica ainda que: ―Ohinhe tsüha iho hatatühügü üleha Nhagü Hatoho; ahütüha, takü takü
apegatühügü hüng; tühatatühügü beja nhagü iho hatatühügü, kürürürürü. Igei tsüha Nhagü Iho anümi
nga bahale t hata lahale‖ (―Aqui embaixo se fazia a tábua do ralador, por isso ficou sendo chamado de
‗Lugar de Fazer Ralador‘; não é aqui que se batia os espinhos do ralador, takü takü [ideofone para bater];
o que se fazia aqui era a tábua do ralador, kürürürürü. É só aqui, por isso o nome também ficou ‗Tábua de
Ralador‘, em casa é que se terminava tudo‖).
95

Kunugijahütü: a Aldeia Velha

Quando chegamos a Kunugijahütü, o mato estava muito alto, porém não de todo
fechado, e havia indícios de que parte dele havia sido queimada há pouco tempo. Como
vim saber posteriormente, outros descendentes dos antigos moradores de Kunugijahütü
tentaram reabrir uma aldeia ali por volta de 2015, mas desistiram por, supostamente,
não darem conta do trabalho (o que, de certa forma, pode ser entendido como: não
conseguiram trazer muita gente para continuar tal empreitada). Mesmo com o mato
crescendo, porém, Hagema conseguia apontar com precisão onde ficavam cada um dos
os locais da antiga aldeia.
Então, por entre galhos verdes e troncos caídos no chão, levou-me até onde seria
o antigo ―centro‖ (hugogo). Ali, ele mesmo disse ter ouvido e aprendido a maior parte
das akinha hekugu (―histórias verdadeiras‖) que conhecia: as de heróis, as sobre Taũgi e
Aulukumã e as sobre a origem de diversas coisas (a mandioca, o fogo, o tabaco, a água
etc.). Nunca, porém, o vi contar histórias no centro de Caramujo — a qual, aliás, como
mencionado no capítulo anterior, ainda não tinha essa zona bem delimitada —, o que
não significa que tais encontros narrativos não ocorriam.
Ouvia-o contar tais histórias, por exemplo, com bastante frequência em sua
própria casa, nas conversações entre redes que ocorrem antes de dormir, ou então na
casa de sua irmã, junto com Airá. Como remarcou Basso em uma de suas primeiras
etnografias sobre os Kalapalo (1973), as praças centrais são os ―lugares públicos‖ por
excelências das aldeias. Como tais, opõem-se, em termos de visibilidade e pelo uso de
―etiquetas‖ (resumidas, segundo a autora, no conceito Kalapalo do ihütisu, ―vergonha‖)
aos demais lugares do círculo habitacional alto-xinguano.
Não diria, porém, que em uma aldeia pequena, onde o centro é ainda pouco
delimitado e ―livre‖, por assim dizer, não haja zonas ―públicas‖ de interação como essa.
Penso, por outro lado, ocorrer dessas zonas serem interiorizadas às próprias casas dessas
aldeias. Assim, todas as vezes que precisávamos fazer uma ―reunião‖ em Caramujo
(algo que sempre ocorre no centro), era na casa de Hagema (seu chefe) que nos
concentrávamos.
Segundo meus interlocutores, essa interiorização de atividades públicas não é
algo que ocorre sem causar incômodos. Eles me diziam que, sobretudo em casa de
chefes, quem também não é chefe tem receio e deve procurar evitar ficar entrando à toa
ou sem ser chamado. O que parece ocorrer, então, é que com o aumento populacional,
96

assim como as aldeias vão deixando de serem ―particulares‖, as casas — que até aí eram
um pouquinho ―públicas‖ — vão tornando-se de mais em mais reservadas.18
A casa do chefe, no entanto, mesmo nesses casos maiores parece ser uma
notável excessão a essa ―particularização‖, em especial, quando é uma talühe: casas
construídas coletivamente especialmente para essas pessoas e na qual morar é um sinal
de grande prestígio. Como afirma Guerreiro (2015a: 270), ―quando se constrói uma
talühe para alguém é porque ‗seu pessoal‘ não quer que o chefe e seus filhos se mudem
dali, é um investimento na reprodução de uma parentela de chefes‖. Em contrapartida,
ela torna-se uma instanciação doméstica do centro da aldeia, sendo marcada pelo entra e
sai de gente o tempo todo.
Sair, nesse sentido, da casa de um chefe cuja aldeia aguarda ainda para coroar
seu centro, para ir ao centro de uma aldeia onde esse chefe nasceu e ouvir dele uma
história, é quase um transpor de águas num único leito. E era para o centro de
Kunugijahütü que ele nos conduzia. Quando Hagema ali chegou, simplesmente parou,
abriu um pequeno clarão no mato com alguns golpes de facão, deixou vários dos objetos
que havia trazido consigo no chão, e — lançando um silencioso e sugestivo olhar para
mim de modo tão rápido que quase não tive tempo para ligar a câmera e me posicionar
— começou a contar: 19

18
Thomas Gregor (1977), ao descrever o formato das aldeias Mehinaku, afirma que as pessoas dessa
etnia consideravam os Kuikuro invasivos justamente porque esses últimos entravam em casas e sentavam
nas redes alheias sem darem nenhum sinal ou sem terem sido convidados.
19
A versão que apresento aqui foi bastante resumida por uma questão de espaço. Selecionei e trouxe para
cá dois fragmentos da narrativa total pensando no enredo do relato, que parece ter dois eixos principais: o
primeiro está ligado à mudança dos habitantes de Kunugijahütü para Aiha. O segundo, a aspectos
políticos e aos sentimentos atuais do narrador vis-à-vis àquele lugar. A fim de poupar espaço, suprimi
também as repetições de fala, típicas da arte oral dos povos alto-xinguanos e muito importantes para
análise de seus aspectos linguísticos, algo que, no entanto, foge aos objetivos específicos dessa
dissertação. A divisão em estrofes foi pensada seguindo a sugestão de Basso (1985: cap. 2), como uma
forma de acompanhar a separação de cenas no interior do enredo e marcadas por dispositivos linguísticos
especiais para isso. Pode-se destacar o uso de alguns termos quanto a isso, como: tsakeha (―ouça‖), ülepe
(―depois disso‖), lepene (―depois‖), aiha (―pronto‖) — os quais poderão ser facilmente encontrados no
início ou fechamento das estrofes que criei aqui. O número delas foi acrescido à margem esquerda da
página. Contei com Paiatu para a transcrição e tradução deste relato, a quem faço mais uma vez
agradecimento. As notas da tradução estão no rodapé.
97

Hagema

Ingike ipüha Veja, filho20

Kunugijahütü higei ititü higei ititüi Kunugijahütü Kunugijahütü é o nome desse lugar, é assim que se
chama, Kunugijahütü

Indeha uankgilü Kunugijahüte Foi aqui que eu nasci, em Kunugijahütü

Igei tsüha Kalapalo jetsa hale Aqui é lugar de Kalapalo mesmo

Inde inde higei Daqui, daqui mesmo

Indongopengine hegei tisetimokita Aihana Foi daqui que nós mudamos para Aiha

Kagaiha enügü ina kagaiha enügü Os brancos vieram para cá, os brancos vieram

Anetüiha anetüko hekeha Para falar com os chefes

Ek ha apitsiha Apiũ Com o... meu vovô21 Apiũ

Auajuha Pogogo Meu titio22 Pogogo

Agetsi geleha apitsi gele uã taka ititü igatüe ekü Tinha um avô que se chamava, como ele se
idongo ekü chamava mesmo? Eh...

Uhig u igat e Aquele que é meu genro, chama ele aí...

Ekü Mauri hinhano Eh... o irmão mais velho do Mauri

Lamati

Tajui Tajui

20
Conforme remarca Basso (1985: 25), uma akinha sempre possui fórmulas de abertura e de fechamento
que a destacam e separam do uso corriqueiro da palavra, isto é, das conversas que acontecem antes ou
depois do relato. São, nesse sentido, verdadeiros ―eventos‖ de fala aos quais a audiência é, literalmente,
chamada para escutar. No caso, a expressão ingike ipüha (―veja, filho‖) é um exemplo desse corte, no
caso, dirigido diretamente a mim (ipü é um vocativo para ―filho‖).
21
Apitsiha, traduzido aqui como ―vovô‖ (do vocativo apitsi, que aqui vem acrescentado do intensificador
–ha), é um tratamento para pessoas velhinhas, mas não dá para saber se é realmente o avô do narrador.
22
Aqui, sim, parece ser realmente o ―tio‖ do narrador.
98

Hagema

Üngele atani anetüi Naquela época ele era chefe

Sinügüha ina Adriano enügü kangamukei gele Quando ele veio, o Adriano,23 eu ainda era criança
uatani

Nügü ihekeniha Eles falaram:

Etimokitüe "Mudem-se"

Indongopengine egena leha Aihana leha "Daqui mesmo para Aiha"

Funai heke aketsingeiha "A Funai24 vai fazer...

Ügühe entoteha embutategokomiha enkgugila … quando as doenças chegarem, ficará mais fácil e
hakilaha eitsokomi leha perto para receber o tratamento"

Inhalüha üle uhunümi tiha tiheke A gente não sabia disso

Posto Saúde itsomiha hakila leha etuko inhügü "Para o Posto de Saúde ficar mais perto da aldeia
leha de vocês"

Opü beha inde einhalüko ta ihekeni "Vocês não podem ficar aqui tão longe", eles
falaram

Ta ihekeni Eles falaram

Ai leha sagãpo kengühügü atani leha O sarampo já tinha passado e matado muita gente

Inhal ek le atehe hale ũãke Eles não estavam entendendo o que acontecia

Titsel leha ũãke leha apajuko tel ts ha ũãke Por isso nós fomos, meus pais foram, minhas mães
leha amanhuko auajuko telü leha foram, meus tios foram

Inde eti ngüne gele ngüne ngüne ngüne tukü Aqui ficaram casas, casas, casas e as roças deles
itsuhikoha

Itsuhikoha As roças deles

Sinügüha kagaiha enügü anetü hekeha O branco chegou e falou com aquele chefe [Tajui]

23
Trata-se de um enviado do SPI (Sistema de Proteção ao Índio).
24
Note-se que, na época a que se refere o discurso, a FUNAI ainda não existia. Porém, o narrador a
menciona, o que pode ter sido feito por engano com o SPI, ou de propósito, para tornar a narrativa mais
atual. Como Hagema havia conversado comigo outras vezes sobre o SPI, pelo menos posso afirmar que
ele sabia muito bem sobre a mudança de uma para outra instituição, ocorrida em 1967.
99

Tingi kangamukei uatani Eu vi, eu era uma criança

Inginügüha iheke Ele [Adriano] trouxe

Cacique nügü iheke "Cacique", ele falou

Andeha engikombatoho uheke nügü iheke "Toma aqui esse presente", ele falou

Tüngatahonga leha tüilü leha iheke leha Ele colocou em frente da sua casa

Ige tüilü Colocou isso daqui [abrindo a bandeira do Brasil e


a colocando aberta na frente da câmera]

Cacique ―Cacique‖

Andeha ige engikogu ―Aqui uma coisa para você‖

Ige tüilü [lata tüilü] Colocou isso daqui [o narrador está mostrando,
nesse momento, a lata de leite em pó]

Cacique, andeha "Cacique, toma aqui"

Engikogu [fósforo] "Uma coisa para você‖ [mostrando a caixa de


fósforos]

Cacique, andeha "Cacique, toma aqui"

Engikogu [sabão] "Uma coisa para você‖ [mostrando o pacote de


sabão em barra]

Cacique, andeha "Cacique, toma aqui"

Igeha [panela] Isso daqui [uma panela de metal]

Indongopengineha eteke "Deixe este lugar"

Tüngatahonga leha hügeha ahütüha Colocou isso em frente da sua casa [mostrando
novamente a bandeira do Brasil]

Ige hungu 38 hale andeha ―Toma aqui uma arma‖, não era igual essa
[mostrando uma espingarda cartucheira], era um
38
100

Tsuẽ Muitas coisas

Anetü inha hale ige hale [bandeira do Brasil] Para o chefe ele deu uma dessa daqui [mostrando
nhüngatahonga egena leha tüilü leha ihekeni leha a bandeira do Brasil], eles colocaram na frente da
casa dele

Ige bandeira do Brasil tüilü leha egena leha Eles colocaram a bandeira do Brasil lá
ihekeni leha

Üle heke leha akuãkilü leha akuãkilü leha Isso deixou o chefe vibrando de alegria, vibrando
de alegria

Ingitako uheke kangamukeiha uatani Eu estava olhando eles, eu era uma criança

Ülepe leha Depois

Anet kil ũãma kangamuke O chefe falou: "E aí, crianças?" 25

ãma ukunh nkgoha "O que nós vamos fazer?"

Kangamuke n gu iheke ngeleha apitsi kil ha "Crianças", ele falou, vov Apiũ, Pogogo e meus
Apiũ Pogogo auaju la tios falaram

Ngele igatüe hõhõ Aquele mesmo, chama ele aí

Lamati

Tajui Tajui

Hagema

Üngele kilüha Ele falou

Kigekeapa "Vamos lá"

Ingigake hõhõ "Podem ir lá ver"

Ketukoingo hõhõ ingigake ingigake hõhõ "Onde nós vamos morar, podem ir lá ver um
pouquinho"

25
Kangamuke significa ―crianças‖, é um jeito típico dos chefes chamar o pessoal da sua aldeia
101

Atangiha auaju Pogogo tel Apiũ tel Eles foram, meu tio Pogogo foi, Apiũ foi

Auaju tsüha Olahu ikeni meu tio Olahu foi com eles

Etelüko leha ingilüinha ehuta leha etelüko leha Eles foram olhar, eles foram de canoa

Aihana leha Para Aiha

Ülepei ngapa tseta Kamajula heke igelüko ina Depois, eles encontraram o pessoal Kamaiurá, os
eitsüe nügü ihekeni Kamajula kilü Kamaiurá levaram eles e falaram: "Fiquem aqui"

Tseta ngapa ingita ihekeni tseta ipa Aihateha Lá eles viram a lagoa, lá em Aiha

Tseta tsüha kanga helü ihekeni sahundu helü Lá eles flecharam peixe, eles flecharam tucunaré
ihekeni

Ülepe sinünkgo! Depois, eles vieram

Ketinhabalükoingo maki inke hõhõ ketuko "Lá nós vamos comer, imaginem, nossa aldeia
ihakindu [Kunugijahütü] fica muito longe"

Hakiha kutengalüko kangakiha "É longe onde a gente vai pescar"26

Ta ihekeni osi osi inhalü kotote osi nümi ihekeni Eles responderam: "Está bem, está bem", mas nem
tutuhiko hünita jetsa ihekeniha tutuhiko hünita todo mundo concordou porque eles tinham roça,
ihekeniha não queriam abandonar a roça

H nita ẽ nika kutel ko ẽhẽ kigeke apa agetsi "Pois é, vamos embora, vamos..."; eles ficaram
hõhõ sisoãnünkgo ehu hanügü hõhõ ihekeni ehu mais um tempo, continuaram um ano ainda na
akilü Kahindzuna tsihetuhutelü tuhuti tiha uheke aldeia, aí foram para fazer a canoa em Kahindzu e
ingita kangamuke igele uatani gele a gente foi; eu lembro disso, eu ainda e era uma
criança

Kangamukei gele 8 ano gele uatani 8 ano Quando eu era criança ainda, tinha oito anos, oito
anos

Ingita uheke Eu mesmo vi

Ojoha Não pode...27

26
O principal porto de pesca dos habitantes de Kunugijahütü nessa época, segundo Hagema, era
Kahindzu, à beira do Kuluene (aprox. 16 quilômetros de distância)
27
Ojoha é uma forma hortativa/imperativa de negação, que poderia ser traduzida por ―não faça‖, ―não
pode‖, ―não se deve (fazer algo)‖. No contexto em que é empregada aqui, indica discordância do narrador
com relação ao que ele estava relatando antes, bem como ao que continuará relatando em seguida (cf.
trecho seguinte). Em particular, nesta frase, esta palavra aparece como um ―não pode‖ coloquial,
marcando também uma mudança de cena na narrativa.
102

Já mencionei que os moradores de Caramujo costumavam se referir a Kunugijahütü


como ―Aldeia Velha‖. Nas línguas karib do Alto Xingu eles expressavam isso através
do termo etepe, onde ete significa ―aldeia‖ e –pe é um sufixo de tempo nominal cujo
efeito, dentre outras coisas, é indicar que o nome ao qual ele veio acoplado está
preterido, deixou de ser de alguém ou já não existe mais.28
Assim, por exemplo, em uma conversa que tive certo dia com Paiatu sobre o fato
de ele estar de luto, ele utilizou o termo apape para se referir ao seu pai, que tinha
falecido recentemente. Quando perguntei a ele o que aquela palavra significava, ele me
disse: ―Pai, em kalapalo, é apa; mas como meu pai morreu tem pouco tempo, eu não
posso falar o nome dele, não posso chamar ele... por isso fala apa-pe‖.
Há, portanto, algo mais na palavra etepe do que exprimem os qualificativos
―antigo‖ ou ―velho‖ e — ainda que eu não seja capaz de encontrar o equivalente justo
para essa partícula — acredito que o sentido desse algo mais está nas entrelinhas da
história que Hagema contou sobre Kunugijahütü: um lugar com o qual ele mantém uma
íntima conexão de vida (indeha uankgilü, ―foi aqui que eu nasci‖), mas com o qual suas
relações tiveram que assumir uma configuração diferente da que tinham antes.
Curiosamente, a história dessa mudança intrínseca das ligações de Hagema com
esse lugar, no caso, é também a história sobre uma mudança de lugar. Por isso, ao
saírem dali para irem morar em Aiha, seus antepassados estavam deslocando muito
mais coisas do que seus próprios corpos e pertences: deslocavam relações, e o relato de
Hagema parece ser justamente sobre as consequências disso.
Seguindo características já comentadas das artes narrativas dos povos karib do
Alto Xingu, essas consequências são descritas a partir de pontos de vista biográficos. Da
estrofe um a cinco, ao dizer que Kunugijahütü é (1°) o lugar onde ele nasceu, (2°) um
território Kalapalo e (3°) onde viveram uma série de chefes antigos desse mesmo povo,
Hagema coloca a si mesmo e a seus antepassados como atores dessa história. Isso fica
ainda mais evidente nas estrofes seguintes, onde todos os eventos são descritos e

28
Uma extensa discussão desse sufixo foi feita em FRANCHETTO, SANTOS & LIMA (2007) e em
SANTOS & MEHINAKU (2008, 2017).
103

estruturados no discurso através da menção às ações e da citação de falas 29 das pessoas


que os vivenciaram.
Essa associação entre um lugar (Kunugijahütü higei ititüi), uma pessoa (indeha
uankgilü) e um povo (igei tsüha Kalapalo jetsa hale) chama atenção para o fato de que
não apenas o senso histórico dos povos karib alto-xinguanos é biográfico (BASSO,
1985), mas também que as próprias identidades coletivas são expressas em termos de
relações entre pessoas — na verdade, mais especificamente, entre chefes. Assim, a
menção a Apiũ, Pogogo, Olahu e Tajui (estrofes 3-4) serve de base para uma amarração
entre chefes antigos e chefes presentes, expressa em termos de parentesco e em termos
territoriais, de modo que seus nomes sustentam a identificação de diversas pessoas e
aldeias contemporâneas.
Assim, por exemplo, ainda que não seja capaz de dar um resumo das biografias
de Pogogo, Apiũ e Olahu, sei que são considerados chefes importantes tanto pelos
moradores de Caramujo (aqui, inclusive, incluídos entre seus parentes pelo narrador)
quanto pelos Kalapalo de Aiha. No que concerne a Tajui, especificamente, ele era
considerado o principal chefe de Kunugijah t quando chegaram os ―brancos‖ (é a ele
que Hagema cita diretamente quando descreve as conversas com o ―Adriano‖ da ―Funai
[SPI]‖). Além disso, um dos filhos de Tajui foi chefe da aldeia Tanguro (também
identificada como Kalapalo) logo no início daquela aldeia (Guerreiro, comunicação
pessoal).
Do mais, como já fiz alusão no capítulo anterior, foram essas mesmas memórias
de nomes e de relações o que motivou Hagema, que chama a esses chefes de ―tios‖ e
―avós‖, a abrir sua própria aldeia ali perto. Mas, o auge dessa narrativa parece estar no
fato de que Kunugijahütü é descrita não apenas como um território de referência para o
mapeamento de relações ―internas‖ entre diferentes chefes e lugares da memória
Kalapalo. Ao dizer (na estrofe 3) que foi por ali que ―vieram os brancos‖ (kagaiha
enügü ina), essa aldeia é apresentada também como um polo de referência das relações
criadas entre os alto-xinguanos e os não-indígenas.
A imagética do discurso de Hagema é muito forte ao descrever o
estabelecimento deste contato. Isto porque, segundo ele, foram essas novas relações as
verdadeiras responsáveis pela mudança dos moradores dali e pelo deslocamento das

29
Segundo Ellen Basso (1985), as narrativas Kalapalo são ―discurso-centradas‖ (speech-centered). Nas
análises realizadas pela autora, tal recurso narrativo seria utilizado pelos narradores para explicitarem
mudanças de tipo ideológico ocorridas no passado e para pensarem seus desdobramentos no presente.
104

relações mais antigas. Retomando cenas das primeiras interações entre ―Adriano‖
(enviado da ―Funai‖) e o(s) chefe(s) de Kunugijahütü (estrofes 6 e ss.), o narrador faz
uso de uma série de citações e de objetos-símbolos que intensifica e dá vivacidade ao
significado daqueles acontecimentos. Diz que a mudança para Aiha foi sugerida (e
acatada), pois muita gente estava morrendo por causa do sarampo: então, como uma
contrapartida pelas coisas que ali ficariam abandonadas (mencionadas na estrofe 7), o
relato descreve (na 8) um conjunto de presentes inusitados que lhes foram oferecidos.
Neste ponto, é interessante que o ―primeiro‖ presente mencionado tenha sido a
bandeira do Brasil. O oferecimento de um objeto cujo significado poderia ser lido, do
ponto de vista de seus doadores, na chave de um simbolismo diplomático-militar —
uma espécie de marco de ―conquista‖ de um território —, sinaliza, ao mesmo tempo, a
paradoxal imagem de evacuamento e abandono de um território habitado, do ponto de
vista de seus receptores. Do mais, no contexto geral da performance de Hagema, esta
bandeira aparece como um elemento redundatemente marcante, afinal, ele diz que ela
foi oferecida a um ―cacique‖ e colocada bem na frente da casa deste. De onde, então,
Hagema (que também é um chefe) trouxe aquela bandeira para mostrar senão de sua
própria casa, em Caramujo?30
Essa redundância não é fortuíta. Mais do que uma ―coisa‖ como as outras, a
bandeira do Brasil é um símbolo do modo como chefes foram escolhidos pelos
―brancos‖ para ―representarem‖ seus povos: algo iniciado nessa época, mas que se
desdobra até hoje. As consequências que isso teve (e tem) para o regionalismo alto-
xinguano, porém, nem sempre foram neutras e, tampouco, positivas. Eis o que diz
Antonio Guerreiro sobre o assunto:

Antes mesmo de figurar como uma questão importante nas etnografias, os


chefes alto-xinguanos [...] já faziam parte da realidade do contato. Ramiro
31
Noronha (1952), em 1920, falava em ―caciques‖ e ―capitães‖, e os Bakairi
já traduziam a diferença entre chefes e não chefes sob a forma da oposição
capitão/camarada (certamente desde muito antes). Dos anos 1940 em diante
a figura dos chefes ficou ainda mais marcada, pois eles é que se tornaram na
maioria das vezes, os intermediários oficiais do contato – ou, como os

30
Na verdade, desse ponto de vista, todos os outros objetos também fazem parte dessa estrutura de
atualização do passado que chamei de ―redundante‖: o sabão, a caixa de fósforos, a panelinha, a
cartucheira, o facão etc.
31
Trata-se de um grupo étnico também ligado à família linguística karib e muito mencionado nos
primeiros relatos produzidos sobre a região, mas que, hoje não pertencem mais ao sistema regional alto-
xinguano.
105

Kalapalo gostam de dizer, foram eles que se tornaram amigos dos irmãos
Villas Boas. Uma forma recorrente de se descrever as relações entre chefes,
sejam de uma mesma aldeia ou de aldeias diferentes, é como amigos, pois
são ―aqueles que conversam‖ (itaginhokongo, referências às conversas rituais
32
no registro da fala dos chefes, anetü itaginhu ) e se comportam como
parceiros de troca — duas das relações marcantes da amizade xinguana. [...]
Esse modelo da relação entre amigos como forma de lidar com o contato se
reproduz até hoje, e não sem criar problemas ou catalisar conflitos já
existentes. (2011: 95-96)

De fato, em outro trecho da narrativa de Hagema (citado abaixo), é mencionado


que outros chefes ficaram com ―inveja‖ daquele presente de Adriano:

[Bandeira do Brasil] Igelü bele iheke leha egena leha Ele [o Adriano] levou [a bandeira do Brasil]
para lá, para lá

Anetü üngü kaenga pokü ige telü leha Para a casa do chefe e colocou — pokü —
essa daqui [mostrando a bandeira]
33
Kürükü... itsa bele egete leha kü Kürükü — ficou lá — kü

Andeha sanetohongo heke leha igitaheta leha iheke leha Aí aqui, tinha outro chefe que ficou com
34
inveja

Igitaheta leha Ficou com inveja

Ige hekeha Disso daqui [mostrando a bandeira]

Sentir inveja, no Alto Xingu, é algo extremamente ruim, pois desperta, na


micropolítica de afetos e desejos que regem as relações entre as pessoas, tensões que
podem resultar em conflitos ou, pior ainda, em feitiços (cf. VANZOLINI, 2010: cap. 6).
Este pequeno trecho fisga o momento exato em que esse sentimento é coagulado no
interior da chefia de Kunugijahütü, podendo-se concluir que as novas relações
estabelecidas com os ―brancos‖ tiveram impactos políticos internos para a vida das
pessoas na aldeia, mais especificamente, criando mediações e destravando conflitos
entre elas. Nesse sentido, considero interessante destacar ainda que foi o próprio modo
como as coisas (e também ideias) trazidas pelos ―brancos‖ circularam entre os
moradores dessa aldeia o que levou à erupção de afetos e dilemas disjuntivos.

32
Um gênero de fala exclusivo dos chefes, realizado especialmente em situações rituais (FRANCHETTO,
2000).
33
Kürükü é ideofone para enfiar uma estaca, colocar algo que vai ficar fincado.
34
A melhor tradução para igitaheta seria ―estar invejando‖, mas, aqui, optou-se por ―inveja‖,
simplesmente,
106

No que segue, tentarei destrinchar melhor a dinâmica desse ―mau encontro‖,35


observando que, se por uma lado a mudança dos moradores de Kunugijahütü teve como
estopim os casos de adoecimento decorrentes do contato e a intervenção de agentes não-
indígenas (no sentido de levarem-nos para mais perto dos Postos de Saúde), tais fatores
parecem também terem sido flexionados, incorporados na forma de afetos e se
desdobrado na socialidade regional, de modo a produzirem também, ou antes, a
alimentarem, diferenças que já existiam internamente. A análise dos movimentos de
dispersão (e de outros) envolvendo coletivos do subsistema karib, então, deve
considerar com cuidado todo esse caminho que vai de fora para dentro e de dentro para
fora das malhas locais, principalmente, nos entroncamentos que repercurtem os eventos
em associações e dissoaciações imprevistas.
Quando mencionei, na introdução, a reunião de Hagema com a Funai, esta tinha
sido encarregada (por parte do ―pessoal do Congresso‖) de levar uma proposta de
arrendamento da Terra Indígena do Xingu para as ―lideranças‖ indígenas. Sem dúvida,
isso foi feito pensando-se que os chefes, ao chegarem a suas aldeias, dariam
continuidade a esse repasse de informações, consultando então os moradores de suas
aldeias sobre o assunto — pois esta é a forma como as instituições estatais concebem,
normalmente, o sentido da ação política ―no geral‖. De certa forma, esse modo de ver as
decisões políticas sendo operadas através de uma espécie de ―cascata‖ de centros de
deliberação pode ser encontrado, novamente, na estrofe 15. Nela, Hagema diz:

Ülepe leha Depois

Anetü kilü ũãma kangamuke O chefe falou: "E aí, crianças?"

ãma ukunh nkgoha "O que nós vamos fazer?"

angamuke n gu iheke ngeleha apitsi kil ha Apiũ "Crianças", ele falou, vovô Apiũ, Pogogo e meus
Pogogo auaju la tios falaram

No entanto, entre os modos de ação política envolvidos nos esquemas de


circulação de decisiões e de palavras estabelecidos entre a Funai e o Congresso (e entre

35
Pierre Clastres, recuperando essa expressão de La Boétie e analisando-a conceitualmente do ponto de
vista das teses desse último autor sobre a ―servidão voluntária‖, define o ―mau encontro‖ da seguinte
maneira (CLASTRES, 1976: 3): ―Acidente trágico, má sorte inaugural cujos efeitos não cessam de se
amplificar, ao ponto de se abolir a memória do que veio antes, ao ponto do amor pela servitude se
substituir ao desejo de liberdade‖; ou ainda, ―mau encontro, quer dizer, evento fortuíto que não tinha
nenhuma razão de se produzir e que, não obstante, se produziu‖.
107

este a comunidade nacional), de um lado, e aqueles decorrentes da relação entre chefes e


suas ―crianças‖, de outro, podem existir uma série de diferenças e de interferências.
Após descrever pormenorizadamente e à miúde (estrofes 18-20) o movimentos que
começaram a se produzir depois dessa conversa entre o pessoal da aldeia e o(s) seu(s)
chefe(s), o narrador mais uma vez dá a entender que isso gerou conflitos.
Assim, na estrofe 21, afirma que ―nem todo mundo concordou‖ com a proposta
da mudança de lugar.36 Conforme dito no capítulo anterior, isso confirma que os
movimentos de entrada e de saída de pessoas entre lugares não devem ser vistos como
processos de total evacuamento ou de completo povoamento dos territórios, como se
fossem movimentos coletivos realizados de maneira homogênea. Deve-se, outrossim,
procurar observar como coletivos não homogêneos ou ―misturados‖ (para retomar mais
uma vez a imagem usada por Mutua Mehinaku para descrever o complexo alto-
xinguano e seus elementos) circulam, num sentido mais abrangente, reunindo
separações ou esfagulhando uniões.
Se ―nem todos concordaram‖ é porque havia ou foram criados pontos de vista
contrastantes entre as pessoas — e isso à mercê da boa vontade dos chefes indígenas
que, se referindo aos moradores de suas aldeias como ―crianças‖ (kagamuke), não
parecem tomar seus rumos impondo as suas decisões, mas sim, de fato, consultando
suas comunidades: Anetü kilü uãma kangamuke, uãma kunhünkgoho (―o chefe falou
para suas crianças: ‗E aí, crianças, o que nós vamos fazer?‘‖), diz a estrofe 15.
Desse modo, a narrativa de Hagema indica que as relações criadas com
elementos externos ao contexto indígena alto-xinguano tocam e se misturam com as
relações internas. Enquanto vão entrando umas nas outras, criando malhas móveis e
difíceis mesmo de serem definidas em toda a sua extensão (como, às vezes, se esforça
por fazer esse trabalho), essas relações tornam-se intensas — isto é, afetam as pessoas e
as levam a assumir posições. Acerca, no entanto, dessa intensidade, mais coisas podem
ser ditas à luz do que há na continuidade do relato.

36
A frase em karib é: inhalü kotote osi nümi ihekeni, lit. ―não foram todos os que disseram ‗está bem‘‖.
108

Hagema:

Ipü Filho

Agetsi ehu hanügü ihekeni ülepeni leha Eles fizeram uma canoa, depois desceram
apitsilüko tühonaleni leha tengikogukope ngüne chorando de saudade das coisas que deixaram para
geleha inde ngüne gele ngüne trás e das casas que tinham aqui,

Ahukugupe gele nhengikogukope Deixaram panelas de barro aqui e as coisas deles

Itsuhikope geleha inde gele As roças que eles tinham aqui

Akabeha igengalü ehu unkguha indzonhoi Não tinha como levar, a canoa que tinham era
pequena

Ketsangeha Era assim

Ina uentoteha Quando eu venho para cá

Uotonunal uotonunal tsu Fico com saudade, fico com muita saudade

Inde leha ande uhonühügü leha Aqui mesmo, aqui eu já chorei

Unde tsüki ige otomope anügü auajuko anügü "Onde estão os donos daqui, os meus tios?"

Inde tsüki okojoko anügü ige otope anügü etsiko "Onde estão minhas avós que eram donas daqui,
anügü ige otope anügü onde, as minhas tias que eram donas daqui, onde,
onde?"

Ipü, uhonu leha Filho, eu chorei

Hakiha etetako ipü Para longe eles foram, filho

Tüma igekiha Com isso [mostrando a arranhadeira]

Hingikiha Com uma arranhadeira

Ihihitsakoha tsiu tsiu tsiu tsiu tsiu tsiu... Eles se arranhavam — tsiu tsiu tsiu tsiu tsiu... 37

Igeki ikungukokae tsiu tsiu katote igei ihingi Com isso, no braço — tsiu tsiu — tudo, com essa
higei ihingi higei arranhadeira

ingikeapa ige ihakidu tühülukoki gele etetako E então longe daqui eles iam pescar
kangaki

37
―Tsiu tsiu tsiu tsiu tsiu...‖ é um ideofone para o ato de se escarificar.
109

Ingikeapa ige ihakindu Veja só a lonjura daqui

Tühülukoki gele etetako kangaki Eles iam pescar a pé

Inhalü itsapügüko ingüi Sem calçado

Inhalü ingükoi Sem roupa

Ihehutsakoha ihehutsako Eles ficavam cansados, ficavam cansados

Akutunditako igeki leha ihihitsako tsiu tsiu tsiu Eles ficavam cansados e com isso eles arranhavam
tsiu... tsuko tsuko tsuko tsuko... — tsiu tsiu tsiu tsiu… tsuko tsuko tsuko tsuko

Üle ihilutukoi Por isso eles eram fortes

Ihakitakoha ingilaha Eles acordavam de madrugada

Mitote ingila bela 3 hora da madruga ihakitako De madrugada, cedo, às 3 horas da madrugada
eles levantavam

Tuãkaha etetako leha E já iam tomar banho

Inhalü leha ande leha kangamuke nakangupei Hoje as crianças já não vão mais tomar banho [de
leha madrugada]

Inhalü leha kangamuke nakangui koko As crianças já não vão mais tomar banho à noite

Indebe giti atani Com o sol nascendo

Inde kangamukepe leha aketsinge Hoje as crianças estão deixando a nossa cultura 38
tisamakigatinhi tisügühütupe gamakigatiga enfraquecer

Üle atehe ukingalü egea amago takige Por isso eu falo: "Vocês estão enfraquecendo", eu
tisamakigatega ukingalü ulimo heke katote falo para os meus filhos e para todos os meus
uhamo heke sobrinhos

39
Egeha ege uhig u hegei uhig u hegei Eles é, eles, o pai do meu neto, esse é o pai do
meu neto [apontando para Lamati]

38
O tradutor foi quem optou por traduzir tisügühütupe como ―cultura‖. Intrigado, conversamos sobre essa
tradução e ele disse que a palavra se referia para expressar uma coisa que é ―costume de fazer desde
muito antigamente‖. Falarei mais sobre essa palavra adiante.
39
Ege é um deítico de presença para pessoas um pouco distantes, utilizado normalmente para cunhados e
genros/sogros se chamarem entre si, como sinal de respeito. Aqui, vem acrescido do intensificado –há.
110

Sagagi higümbügü hegei anetü higümbügü hegei Ele é neto do finado Sagagi, ele é um neto de
chefe

Ila geleha ande Lá tem mais um

Ihinhano geleha Sagagi hale ititüha Sagagiha O irmão mais velho dele, se chama Sagagi
também, Sagagi

Üngeleha anetüha hegei ige otoha egei ige otoha Ele é chefe, dono daqui, dono daqui, dono, por que
egei ige otoha tütomi imütonkgihalü alguém brigaria com ele?

Tütomi imütonkgihalü Por que se falaria mal dele?

Üle atehe ukingalü kagaiha heke hegei Por isso eu falo para os brancos

Gaúcha do Nortetongoko heke Gaúcha kingalü Quem mora em Gaúcha do Norte fala:
egei

Kungongogu leha egei katote nalü ihekeni "Essa terra agora é nossa", todos eles falam

Amago bale tisingitatiga kagaiha Vocês estão nos roubando, kagaiha

Amago bale tisingitatiga, kagaiha kagaiha Vocês estão nos roubando, os brancos... os
tüingundatiga tingongogupe inügü heke brancos estão roubando, tomando a nossa terra

Aka beha egea tisüingalü ehekeni Vocês não podem fazer isso conosco

Fazenda leha ande fazenda... inhalü gele A fazenda já está aqui, fazenda... ainda não
idongope tisetimokilü mudamos daqui

1962 inhalü gele Gaúcha do Norte atani inhalü Em 1962 ainda não tinha Gaúcha do Norte, ainda
gele Querência atani inhalü gele Canarana não tinha Querência, ainda não tinha Canarana
atani

Tentibekobe ina ungongogu leha igei ungongogu Chegaram aqui e já falaram: "Essa é minha terra,
essa é minha terra"

Uengü higei leha titi leha "Esta é minha terra agora", falaram

Inhalü atsange kagaiha inha tunümi uheke ige Eu não quero deixar essa terra para os brancos, eu
tunümiha não vou dar, eu não vou

Tütomi tumbolü uheke Por que eu daria?

Inhalü tunümi uheke tütomi tumbolü uheke Eu não vou dar, por que eu daria?, os brancos
kagaiha bale tüingundatiga estão roubando
111

Tüama kagaiha heke tihangüminalü O que é que o branco está pensando que nós
somos?

Ngene Animais?

Kugeta tisugei umbege agingokoha tisugei tiha Nós somos gente como vocês, nós somos

Tisünkgülü koko tuã ilijü tiheke tisetinhabalü, A gente dorme à noite, toma água, comemos, nós
lango mbegeha tisugei somos assim

Kagaiha kilü tükatibüngü tütomi ngongo Os brancos falam: "Eles não trabalham, por que a
atühügü nhipini tütomi ngongo atühügü terra está com eles, por que eles estão com a
terra?"

Inhalüha tisagingoi atani kagaiha ataniha Como nós estávamos os brancos não podiam estar

Inhalüha itsatsumbolükoi tükima itsatsunalüko Eles não trabalhariam, eles só trabalham com
maquinakibe tagatoki tok tok tok laha máquinas, com trator — tok tok tok — só

Igei igei ihijü hungu atani tsiu tsiu tsiu... angi Isso aqui, isso aqui, quando só se usava facão —
itsatsumbolükoi inhalü tsiu tsiu tsiu —, será que eles trabalhariam como
nós?

Inhalü Não

Inhalü ige tundohoi tiheke tinhengü taligei Não vamos dar isso daqui porque isso é nosso

Apitsiko engü tsaligei ngongogu Essa é a terra dos meus avós

Inde tsüha apitsiko tegatühügü Era por aqui que meus avós passavam

Tütomi tisimütonkgiholü kagaiha heke inhalü... Por que os brancos falam mal de nós?, não... o
kagaiha tüinginhü branco é ladrão

Igeha Taũgi igia naha nal iheke kagaiha Este é Taũgi [Sol], é assim que se fala, o branco
kingalü sempre fala:

"Você acredita Deuso?" "Você acredita em Deus?"

Alabe! É claro!

Taũgi muguha kukugekoi Nós somos filhos de Taũgi [Sol]

Kagaiha Os brancos

Ngikogo Os indígenas
112

Aiha Pronto

Tütomima ige atunguha Por que está quente?

Uhangankginügü aketsa egei lanterna inginügü Eu esqueci de trazer a lanterna40


heke

Ege heke higei ukindzota ige indzota ekuguha Ele está nos iluminando, está iluminando bem aqui

Indzota giti heke ege heke O sol está iluminando bem aqui [apontando para o
chão, onde estamos]

Indzota ekuguha ina ekuguha sita dzüi la Iluminando bem aqui, bem aqui, o seu raio está
ekuguha vindo bem aqui41

Ige atunguiha Por isso está quente

Ila lahale egei etepügü egei kotohola egei E para lá foi só um pouco

Inene Estados Unidoste hegei keünti anümiha Lá para o outro lado, nos Estados Unidos, ficou
frio

Inhalü üle uhunümi ehekeni Vocês não sabem disso

Tisinha hegei tund h g egei Taũgi hekeha Taũgi [Sol] deu isso para nós

Tisingü hüngü ateheha Nós não temos roupa

Inhalü aketsange igetala uhijaõ ititsüingo taligei Eu não vou dar esse lugar, ele será dos meus netos
futuramente

Uhig ku g itits ingo taligei Ele será dos meus bisnetos futuramente

Inhalü tundohoi kagaiha inha uheke kagaiha Eu não darei para os brancos, os brancos estão
bale tisingitatiga roubando

Kagaiha ekugu tüinginhü ekuguha O branco é mesmo um verdadeiro ladrão

Inhalü ukuhunami kagaiha heke O branco não sabe de nada

Nügü kagaiha kilü O branco fala:

Ngikogo tsale ukuhutinhi ngikogo tsale "Indígena não sabe de nada, índio não sabe de
ukuhutinhi nada"

40
Dias antes Hagema havia feito a mesma demonstração que está fazendo aqui, para mim, na aldeia
Caramujo, valendo-se de uma lanterna para me explicar.
41
Dzüi é ideofone para o chegar de um raio, da luz de uma lanterna, da luz do sol.
113

Kagaiha tsale ukuhutinhi Mas o branco é que não sabe nada

Tüma ande ekugu kotühüngüi uinhalü angi leha Por que será que hoje em dia estou tão triste?, na
uüngü televisão minha casa tem televisão

Jornal ingingalü uheke Eu assisto jornal

T hisu g pe tsiuk ... Eles matam o próprio irmão — tsiukü42

Tahoki tsogokü Com o facão, assim — tsogokü43 —, eles furam

44
tumukugupe agilü iheke Eles jogam o próprio filho

Ngiko imbiale etetako Eles roubam coisas dos outros

Ekü sugukasüko tinhegu inhügü ülepe ngelepe É... o dinheiro45 vale muito para eles, depois eles
elü leha ihekeni leha kagaiha hekeha matam, o branco é assim mesmo

No início desse segundo fragmento, Hagema diz sentir muita saudade (otonu), a
descrevendo como um afeto provocado pela falta das pessoas que habitaram
Kunugijahütü (estrofe 2). Dessa vez, pode-se observar aí uma intersecção entre
biografia e territorialidade: um lugar abandonado suscita seus antigos donos (otomope),
aqueles que o criaram e que cuidavam dele, o que também gera muita tristeza (―aqui eu
já chorei‖). Daí, talvez, a saudade e o luto serem afetos que se encobrem, ou às vezes
desabrigam, um ao outro.
A saudade não é um sentimento qualquer, nem para os brasileiros (que se
orgulham melancolicamente de falarem supostamente uma das poucas línguas do
mundo onde existe uma palavra específica para se referir a esse complexo afeto), nem
para os alto-xinguanos (que procuram evita-la a qualquer custo). Conforme ouvi muitas
vezes em campo, por exemplo, sentir saudade torna as pessoas mais suscetíveis de

42
Tsiukü é ideofone para cortar.
43
Tsogokü é ideofone para furar.
44
Alguns dias antes de gravarmos essa narrativa, em uma daquelas conversas corriqueiras que sempre
aconteciam a noite entre-redes, antes das pessoas dormirem, Hagema estava contanto para suas filhas
sobre um caso que havia assistido na televisão de uma mulher que havia atirado sua filha pela janela. Ele
tinha visto isso no jornal, durante uma viagem feita a Canarana. Contava isso em kalapalo para elas, mas,
sendo algo que os impressionou muito, comentava também sobre o assunto em português comigo: ―ein,
ipü, você viu? pessoal joga assim o filho pela janela, rapaz, nossa...‖.
45
Sugukasüko é a palavra utilizada, em contextos locais para se referir a coisas que valem muito, como os
colares de caramujo; foi traduzido como ―dinheiro‖, mas também parece ter sido utilizado com essa
intenção pelo narrador.
114

serem afetadas por itseke (seres que, dentre outras coisas, causam doenças; comumente
trad. por ―espíritos‖).
Já mencionei esse tipo de gestação da vulnerabilidade com relação aos itseke por
ocasião de algum mau afeto, ao fazer referência aos possíveis perigos envolvidos na
tristeza e no ato de brigar. Quanto a isso, ressaltei como determinados atos enunciativos
podiam ser vistos como modos de colocar a ―alegria‖ no lugar desses sentimentos
(Austin, 1990). Agora, com a presença desse segundo fragmento, ficará mais claro de se
entender o que eu queria dizer. Se a saudade, tanto quanto a tristeza e a briga, é para um
alto-xinguano um ativador de possíveis fraquezas, no que segue Hagema promove uma
dobra nos efeitos desse afeto (estrofes 3-5). A lembrança daqueles de quem ele sente
falta se torna inspiração pela força que tinham: cita o modo como eles arranhavam todo
o corpo e depois iam pescar longe de suas casas, como acordavam de madrugada para
irem se banhar etc.
Na estrofe seguinte (6), a inspiração causada pelos parentes falecidos é
transformada, então, em sentenças que têm um tom de reprovação pelo comportamento
atual das crianças e dos mais jovens: segundo ele, esses seguem modos de vida que não
repetem (ou continuam) o dos antigos (―não tomam banho de madrugada‖, ―não se
arranham‖ mais). Faz, com isso, uma crítica às vidas novas que não se deixam contagiar
por aquilo que, no passado, é interpretado como ―força‖ (ihilutukoi, ―eles eram fortes‖).
Ellen Basso, em uma de suas últimas obras sobre as artes verbais dos Kalapalo
(1995), analisa como as narrativas sobre personagens ou comunidades antigas trazem
não apenas lembranças sobre elas, mas também informações sobre como as pessoas
lidaram com mudanças e dificuldades em seu tempo. Nesse sentido, ao circularem hoje,
tais histórias não apenas manteriam viva a memória de determinados eventos, lugares
ou pessoas, mas forneceriam também modelos de interpretação ideológica para ―crises
de reorientação‖ que podem fazer parte da vida das pessoas no presente.
De igual modo, mas em um contexto etnográfico distinto, Suzanne Oakdale
(2005) demonstrou que esse tipo de comparação entre os modos de vida dos ancestrais e
o dos jovens é típico das autobiografias dos chefes mais velhos Kawaiwete (povo tupi-
guarani do Médio Xingu). No contexto oral Kawaiwete, isso seria um recurso utilizado
pelos anciãos para induzir (re)orientações políticas na vida individual e coletiva de sua
audiência, a qual, do ponto de vista daqueles, passaria por experências de
―enfraquecimento‖ com relação a costumes passados. Algo evocado também pelas
115

diversas colocações de reprovação que aparecem no relato de Hagema, as quais,


portanto, podem ser vistas como uma maneira de agir politicamente na atualidade.
Interessante, nesse ponto, é tentar também esmiuçar melhor o que são essas
―reprovações‖. Do ponto de vista da saudade que, neste trecho, inaugura a enunciação
dos fatos, as comparações feitas pelo narrador entre o presente e o passado podem ser
lidas ainda como uma forma de complementar a descrição de sua tristeza: não é apenas
por já não poder encontrar-se com os ―donos‖ daquele lugar que ele chora, mas também
por não ver os mais jovens dando prosseguimento aos seus costumes. Aliás, desse ponto
de vista, mais do que simples queixas sobre o ―enfraquecimento‖ deles, essas sentenças
poderiam ser encaradas como atos que visam fortificar (e que, já na memória,
fortificam) os costumes antigos.
Uma tentativa de explorar pormenorizadamente o significado de tisügühütupe,
que aparece ainda estrofe 6, ajuda a endossar tal interpretação. Traduzida de modo
simplificado como ―cultura‖, se glosada, essa palavra poderia ser entendida literalmente
como ―nosso ex-conjunto de costumes‖ (tis-ügühütü-pe), onde se vê novamente o
emprego do sufixo de tempo nominal –pe. Mesmo que essa formulação soe um pouco
estranha, ela dá destaque a uma ambiguidade de significados inerente a esse termo: de
um lado, pode indicar que os costumes (ügühütü) não existem mais; de outro, apenas
que seus praticantes não estão mais fazendo o que deveriam fazer. As dua relações são
possíveis de serem expressas com o –pe. Quando alguém diz, por exemplo, ingüpe
(ingü, ―roupa‖, –pe), pode fazer referência a uma roupa que não existe mais ou a uma
roupa que ainda existe, mas que mudou de dono.
A meu ver, mais do que indicar a ideia de uma ―perda‖ desses costumes, ao falar
de um ―enfraquecimento‖ de seus tisügühüpe, Hagema está realçando a segunda
possibilidade de significado dessa palavra: afinal, enfraquecer, ainda que para um alto-
xinguano possa ser uma forma de ―morrer um poquinho‖, não é o mesmo que já estar
compleamente morto. Na verdade, o narrador fala sobre um ―deixar enfraquecer‖, o que
dá ainda a ideia de que algo (no caso, os costumes) não está sendo cuidado ou está
perdendo o seu ―dono‖. Daí tais sentenças não serem tanto formas de lamento, mas sim
exortações para que as pessoas pratiquem e cuidem mais daquilo que as faz, produzindo
a si mesmas em conexão com seus ancestrais e as tornando menos sujeitas a conexões
de ordem sobrenatural ou com os costumes dos ―brancos‖.
Exortações desse tipo podem ser encontradas também em outras práticas
discursivas ligadas à chefia alto-xinguana, em específico, a duas formas especializadas
116

de discurso praticadas — de modo cada vez menos frequente, é preciso dizer — pelos
chefes para sua comunidade: os ―discursos do gavião‖ e os ―discursos da onça‖
(respectivamente ugonhi akitsu e ekege akitsu, em kalapalo). Aqui, não irei adentrar na
discussão desses dois gêneros; apenas faço referência a elas para indicar que essa
narrativa de Hagema, dada no centro da aldeia Kunugijütü, pode ser deles aproximada
— senão do ponto de vista estético-formal, ao menos no que concerne aos seus efeitos e
à organização das ideias.
Para realizar os ―discursos da onça‖ e ―do gavião‖, os chefes também precisam
se dirigir ao centro de suas aldeias. No caso do primeiro, devem fazê-lo depois que o sol
se põe e, no segundo, antes do alvorecer, sendo que sua prática deveria, idealmente, ser
diária (embora hoje quase mais nenhum chefe o faça). Como ressalta Guerreiro — que
trabalhou sobre o assunto junto de um dos poucos chefes de Aiha que ainda guarda
discursos desses gêneros (Guerreiro, 2015b: 67) —, eles são dirigidos aos pais dos
jovens ou aos demais chefes da aldeia com o próposito de ―guiar seu pessoal‖ em suas
atividades cotidianas, os comparando com seus antepassados e os relembrando dos
costumes e das ―palavras verdadeiras‖ ou ―boas‖ (akihekugene) de chefes que já
morreram.
Assim como a narrativa de Hagema, nesses discursos, os chefes não pedem que
seu pessoal ―mantenha‖ o passado; eles estimulam que determinadas coisas que se fazia
no passado (trabalhar, tomar banho cedo, se escarificar etc.) sejam colocadas em prática
no presente. É claro que uma das consequências desse colocar em prática é permitir que
haja continuidade entre os costumes antigos e os atuais; por outro lado, essas
continuidades não significam que o presente congelou o passado, pelo contrário, se há
continuidade é porque algo se moveu e prossegue (mais do que ―permanece‖) em
movimento.
Em uma palavra: tais exemplos de uso da palavra pelos chefes demonstram que,
ao fazerem referência a algo que não existe mais ou a algo que está deixando de ser
deles, os narradores estão problematizando, não diretamente a sustentação do passado,
mas antes de tudo a sustentação do presente. Na seção seguinte, retomarei essas ideias a
partir de outras imagens verbais utilizadas pelos narradores, as quais permitem
aprofundar ainda mais essa conexão entre palavra, ―sustentação‖ e chefia.
Nessa segunda seção, no entanto, já falei que uma outra forma dos chefes
colocarem a si mesmos como continuadores de suas história é mencionando chefes
antigos com os quais estão ligados, mais ou menos diretamente, por laços de parentesco.
117

Referências a linhas que cruzam chefes atuais a chefes antigos são novamente feitas na
narrativa de Hagema, dessa vez, mencionando os vínculos de parentesco entre Sagagi
(um dos ―donos‖ e chefes de Kunugijahütü) e Lamati. Hagema menciona também que
outro filho de Sagagi está na aldeia Matipu (Ngahünga), algo que desperta interesse,
pois, ao que indicam outras narrativas utilizadas em comparação pela minha pesquisa
(mas não reproduzidas aqui), a linha de chefes atuais Matipu estaria, então, obliterando
possíveis linhas de chefes vinculados ao passado Kalapalo.
De todo modo, Sagagi não parece ser mencionado nesse trecho com a intenção
direta de dar embasamento à estabilidade (ou desestabilidade) para chefias atuais. Sendo
um chefe muito conhecido e importante para a história dos Kalapalo, seu nome parece
ser evocado ali principalmente para afirmar que esse lugar já tem seus ―donos‖. Isso fica
claro nas estrofes 7-9, onde é reiterado que nenhum kagaiha pode falar que aquela terra
é dos ―brancos‖. Para o narrador, quando as pessoas ―de Gaúcha do Norte‖ falam que
aquela terra é delas, ou quando constroem ―fazendas‖ (inexistentes ali até 1962, como
diz a estrofe 8), isso significa, na verdade, que estão ―roubando‖.
Abro um parêntese, nesse ponto, para reforçar que o território indígena não é
percebido (e nem é, de fato) uma ―área protegida‖, no sentido de ―isolada‖ de
intervenções nocivas aos direitos dos povos que nela habitam. Hoje em dia, é preciso
lembrar, os territórios indígenas do Brasil fazem divisa (uma divisa muito fina e porosa)
com outras formas muito específicas de territorialização. Em especial, com a forma-
fazenda. Coloco abaixo algumas fotografias que falam por si mesmas e são capazes de
ilustrar o que estou querendo dizer. Elas foram tiradas por mim em uma ocasião em que
fui de moto para Gaúcha do Norte na garupa de Paiatu, acompanhando ele e dois de
seus irmãos em uma viagem para aquela cidade com volta no mesmo dia. Atravessamos
os limites do território indígena dividindo as estradas de terra com imensos caminhões
carregados de soja e milho, algo que durou em média três horas para ir e três para
voltar:
118

Figura 25. Estrada que liga o Território Indígena do Xingu à cidade de Gaúcha do Norte. As placas do
lado esquerdo da fotografia indicam o sentido e o nome das fazendas dos arredores. A foto foi tirada de
costas para o território indígena. De ambos os lados da estrada, vê-se extensas plantações de soja.

Figura 26. Placa do Governo Federal (―Área de proteção ambiental e indígena‖) descascada e com
tiros. Paiatu e seus irmãos pararam a moto de propósito para me mostrar essa placa.
119

Em resposta a essas transformações e aos seus aspectos negativos para a vida


indígena, Hagema deixa claro (estrofe 11) que há muito trabalho envolvido na história
de habitação daqueles lugares. Ironicamente, diz que, se os brancos fossem colocados
na posição dos indígenas em tempos passados, não dariam conta de tocar a vida para
frente: acostumados a trabalhar só com máquinas (vide menção ao ―trator‖, ressaltando
de modo direto a relação/questão com a terra, em específico) — as quais, como as
fazendas, não faziam parte do cotidiano de seus ancestrais —, não seriam ―fortes‖ o
suficiente para seguirem a jornada nas matas.
Depois, para justificar que aquela terra é deles, Hagema afirma: ―é por aqui que
meus avós passavam‖ (ĩde tsüha apitsiko tegatühügü). Algo que pode ser lido na chave
de uma inscrição coletiva da história no território, de um lado, e do território na
memória, de outro. Conforme a expressão utilizada por Hagema, essa inscrição teria se
efetuado porque seus ―avós‖ passaram ou, nos termos empregados por esse trabalho,
circularam por aqueles lugares. Tal como discutido na primeira sessão desse capítulo,
essa circulação é justamente o que cria linhas entre os vivos ou entre esses e seus
ancestrais — linhas que não são traçadas apenas mental ou verbalmente pelos
narradores para alinharem-se politicamente a posições sociais no presente, mas que são,
antes de tudo, percebidas e lidas,46 por assim dizer, ao se experimentar aqueles
territórios por seus caminhos.
Tim Ingold chama atenção para isso em seu livro Lines, ao falar sobre a
diferença entre deslocar-se a pé por um território e a ilusão do ―puro transporte‖ gerada,
dentre outras coisas, pela inserção de tecnologias de mediação entre os seres vivos e o
ambiente onde vivem. Essas tecnlogias estariam na base das representações ―objetivas‖
do espaço postuladas pelo pensamento moderno e contrastariam com formas subjetivas
de experimentação da vida:

We cannot get from location to location by leap-frogging the world, nor can
the traveler ever be quite the same on arrival at a place as when he set out. It
is precisely because perfect transport is impossible – because all travel is
movement in real time – that places do not just have locations but histories.
Since, moreover, no one can be everywhere at once, it is not possible wholly
to detach the dynamics of movement from the formation of knowledge, as
though they lay on orthogonal axes running respectively laterally and
vertically, across and upwards. (…) Pure objectivity is as illusory as pure

46
Derrida, em Gramatologia (2017: 133), diz: ―(...) é difícil imaginar que o acesso a possibilidade dos
traçados vários não seja ao mesmo tempo acesso à escritura‖.
120

transport, and for much the same reasons. (…) For all of us, in reality,
knowledge is not built up as we go across, but rather grows as we go along.
(INGOLD, 2007: 102)

Quando Hagema fala que seus avós passavam por ali, ele está se referindo a esse
processo através do qual pessoas circulam e produzem e deixam, ao mesmo tempo, seus
conhecimentos por onde estão circulando. Isso era evidente nas caminhadas que eu fazia
com ele durante as gravações, pois, diversas vezes, rastros dessa circulação se
exprimiam materialmente em marcas deixadas em árvores, nos próprios caminhos que
tomávamos — abertos, ao que ele disse, pelo próprio passar repetitivo das pessoas por
eles —, ou ainda pelos próprios nomes dos lugares, os quais permitem que eles sejam
referenciados a partir do que neles já foi realizado ou vivido.
As estrofes 12 – 17 têm como objetivo assentar ainda mais a ideia de que o Alto
Xingu é, por uma questão de origem, indígena. Dessa vez, a interdiscursividade47 entre
a historia de um local (Kunugijahütü) e uma explicação mitológica do calor traz as
figuras dos gêmeos fundadores da humanidade, Taũgi e Aulukumã, para corroborar com
as ideias do narrador acerta de sua vinculação (pessoal e coletiva) com aquele território.
Nessa seção de seu discurso, diversas aproximações conceituais são feitas entre linhas
indígenas e extra-indígenas de pensamento e compreensão do mundo.
Assim, ainda nessa parte da explicação do calor, Taũgi e Aulukumã são
mencionados para afirmar que, sim, Hagema acredita em ―deus‖. Mais adiante, a
palavra sugukasüko — usada se pensar objetos com alto valor pessoal para alguém ou
para um grupo de pessoas e que, como tais, não podem ser separados da vida delas — é
traduzida na última linha da estrofe 16 como ―dinheiro‖. Aí, não se trata, a bem dizer,
de uma mera opção do tradutor: contextualmente o sugukasüko só faz sentido nessa
frase no sentido de ―dinheiro‖ ou ―bens‖ mesmo, afinal, na interpretação do narrador, é
nisso que pensam tanto os ―brancos‖ para tirarem a vida uns dos outros, como se
pessoas não valessem nada.
Relatando os eventos envolvidos na mudança dos moradores de Kunugijahütü
para Aiha, portanto, este relato de Hagema passa por diversos outros assuntos: é um
testemunho dos primeiros contatos entre os alto-xinguanos e os ―brancos‖; é um
chamado aos mais jovens para não deixem sua ―cultura‖ (tisügühütupe) enfraquecer; é

47
Conforme Hill, 2005; Silverstain, 2005; Bauman, 2005; entre outros, a interdiscursividade pode ser
definida como a característica de um único discurso passar por diferentes gênero ou ordens discursivas,
indo, por exemplo, da biografia para a mitologia e desta para a história (strictu sensu).
121

uma explicação sobre a distribuição territorial de diferentes nações do mundo; é um


manifesto político contra as ameaças de invasão do território indígena etc.
Meu intuito em trazê-lo para cá, porém, era bem mais pontual. Gostaria de
pensar em que medida esta narrativa auxilia na compreensão dos processos de dispersão
envolvidos na plural história de fragmentações e mudanças pelas quais algumas aldeias
do subsistema karib do Alto Xingu passaram. Quanto a isso, a interpretação apontou a
necessidade de considerar injunções políticas ocorrendo em diferentes escalas ao
mesmo tempo, as quais são geradas tanto a partir de relações estabelecidas com
elementos externos ao contexto regional quanto a partir das dinâmicas de
relacionamentos firmadas internamente a esse contexto.
Do mais, ele permitiu elucidar um pouco como esses processos de dispersão são
construídos e colocados em discurso pelos próprios sujeitos que os vivenciaram. Na
próxima seção, dou continuidade a essas reflexões valendo-me de algumas imagens que
aparecem, dessa vez, na narrativa de um descendente de chefes do povo Nahukwá.

Chefia, feitiçaria e palavra

A narrativa que trago abaixo já foi parcialmente interpretada por mim em minha
graduação (CARDOSO, 2015). Para os propósitos específicos desse trabalho, foram
selecionados três fragmentos, escolhidos em vista de criar um diálogo mais direto com a
discussão aberta na seção anterior. No primeiro deles, Kuaku descreve como era a
chefia de seu pai em Jagamü (uma das aldeias dos Nahukwá mais antiga), fornecendo
alguns elementos para se pensar a relação entre chefes e seus coletivos.
No segundo, o narrador relata alguns eventos relacionados à separação dos
Matipu e Nahukwá (ocorrida por volta de 1980), os quais, após também terem perdido
boa parte de sua população por conta dos surtos de sarampo, estavam vivendo juntos em
uma única aldeia, chamada Magijape, desde que foram mudados pelos ―brancos‖ em
condições semelhantes às que se acabou de ver sobre os moradores de Kunugijahütü.
Esta separação resultou na fundação da aldeia Ngahünga: lugar que ficou conhecido
como sendo dos Uagihütü otomo, modo pelo qual os Matipu ―antigos‖ são chamados
localmente, embora, como já mencionei, para muitas pessoas até hoje a associação
étnica desses lugares seja dúbia. Essa dúvida é justamente o que aparece no terceiro
122

trecho aqui reproduzido, o qual, por isso mesmo, foi selecionado a fim de problematizar
o modo como essas identificações são construídas e como podem ser transformadas.
Segundo o narrador, a separação foi gerada por conflitos envolvendo crises na
chefia e pelo aparecimento de feitiços entre parentes. Adentrando, então, pouco a pouco
no modo como as lembranças dessa separação são colocadas em discurso por Kuaku,
reflito sobre esses acontecimentos, de modo a tirar algunas conclusões mais gerais
acerca de alguns fatores capazes de dispersar pessoas e de fragmentar os coletivos do
subsistema karib alto-xinguano. Dessa vez, reproduzirei primeiro os fragmentos todos,
para depois falar sobre eles de um ponto de vista mais geral, aproveitando para
embarcar na conclusão do capítulo.48

1° fragmento

49
Orlandinho:

agam anet g iha ũãke t ma ũãke Quem mais era chefe em Jagamü?

Kuaku:

Jagamü anetügüi ekuguha apa higei O chefe de Jagamü era meu pai

Orlandinho:

Igake igake Chame o nome dele

Kuaku:

Ekü Küake É... Küake

Õ ekü E também o...

Jalui Jalui

Õ ekü Kamagihe E também Kamagihe

Õ ekü E também o....

48
Por esse motivo, os parágrafos serão contados de maneira contínua para todos os fragmentos.
49
Este relato foi gravado em Aiha, no ano de 2009, pelo prof. Dr. Antonio Guerreiro, onde Kuaku vive
atualmente. Participa dele também Orlandinho Kalapalo, morador desta mesma aldeia, o qual auxiliava o
prof. Antonio na tradução de suas perguntas para Kuaku.
123

Tü taka... quem mais....

Igia eku ũãke inke Tinha mais um, veja


50
Uende geleha ihisu g ngiko mugu ngapa Ainda havia seu irmão, não sei quem, mas meu pai
agetsüküngopeha apai era o mais importante

Inhüngü etstutsita talühei Quando a casa dele estragava, faziam uma talühe [casa
de chefes]

Igia beja inke hõhõ ege kuakutu hangagü Era assim, veja só, com orelhas como as da casa dos
homens

Isagage onhogonkgeta itüpati gele talühei Do mesmo jeito, quando a casa dele estava caindo,
51
onhogonkgeta talühei onhogonkgeta talühei substituíam com uma talühe, quando estava caindo,
faziam talühe ...

Ilaha ũãke apaju ũãke agets k ngope Meu pai era assim, a chefia dele era a mais importante
sanetui deles

Kuge uenda pokü ina leha akadonho pokü As pessoas entravam na casa dele, "aqui está seu
kanga ingita iheke assento", e ele trazia peixe

Kuge uenda pokü ina akandoho As pessoas entravam e ele lhes dava um assento

Pokü kanga ingita iheke Ele trazia peixe

kauĩ ingita iheke pok ina Ele também trazia mingau, "aqui está"

Ilangope helei É assim que ele era

Inhalü apa üngü engü kütsü ihanümi inhalü Na casa do meu pai não se podia fazer fofoca

Talühe ata inhalü ihitsaõha ande ihumitako Dentro da talühe, ele mandava suas esposas, se as
leha kuge uenda sitaõtokongo jetsa pessoas entravam

Egetüetsüniha ege kuhugu ohinhatitsüniha "Vão contar histórias em baixo da macaúba"


akinhatundake

"Igeha katahigitso ige katagugitso" "Isso [a fofoca] circula a partir de nós, e isso vai
rachar"
52
"Uagahagulü katagugitso egena tsüha "Os esteios da casa vão rachar, então, vão pra lá tirar
ataünkilükoinha etelüko" piolho"

50
Segundo Ageu, um importante filho de chefes de Aiha, o nome desse outro chefe era Agitsata.
51
Talühe são as casas construídas coletivamente especialmente para chefes e morar em uma é um sinal de
grande prestígio, pois, como afirma Guerreiro (2015: 270): ―isso significa não apenas que ele [o chefe] é
‗reconhecido‘ como tal, mas é um investimento do grupo voltado para a sua permanência e a de sua
família na aldeia. Quando se constrói uma talühe para alguém é porque ‗seu pessoal‘ não quer que o chefe
e seus filhos se mudem dali, é um investimento na reprodução de uma parentela de chefes‖.
124

Ilaha ũãke apaju akis Essa era o jeito do meu pai falar

Inhalü kütsü tüilü inde "Não façam fofoca aqui"

Ilangopeha apajui Assim que era meu pai

Tsakeha Ouça

2° fragmento

Kuaku:

Tsake hõhõ ukilü Ouça só o que eu digo

Uenügü ipatsegongopengine lahatua tongopengine Eu vim de Ipatse, de Lahatua, de Ipatse, porque


ipatsegongopengine kagaiha heke naha simokilü os brancos nos mudaram de lá

Orlando heke Orlando nos mudou

Katote leha ina tinhenügü ago enügü tsüha Todos nós viemos pra cá, eles também, os
tinhenügü tiha matsipu gele agetsingoi tinhenügü Matipu, viemos todos juntos

Depois disso nós ficamos aqui, e aquele, o


Ülepei hale egei sitsa inaha ngeleingoha hutsüha
Tükitse, veio para cá [para a aldeia Kalapalo]
Tükitse enügü ago hujati
junto com eles

Ago hujati Junto com eles

Inde hale egei Aqui

Orlandinho:

Tü hujatima inhügü? Com quem ele ficou?

Kuaku:

Ago hujati kalapalo hujati Com eles, com os Kalapalo

Kalapalo huja leha Tükitse teta inde uge gele tiha Enquanto Tükitse já estava vivendo entre os
egete Kalapalo, eu ainda estava lá

52
Agahagu é o nome que se dá aos esteios (iho) de uma casa.
125

Orlandinho:

Agetsingoi geleha etelüko? Vocês ainda viviam juntos?

Kuaku:

Agetsingoi gele tisuge gele hõhõ egete Sim, nós ainda estávamos juntos lá

Ah Matipu aketsü Nahukua ake geleha Os Matipu junto com os Nahukua, lá

Tseta hõhõ suge Nós estávamos lá

Tihitsa hõhõ tseta tseta tseta Nós ficamos lá um bom tempo, até que...

Aiha Pronto

Kongoho oinjü Até que Kongoho foi enfeitiçado

Kongoho oinjü itsaeni Kongoho foi enfeitiçado com...

Ekü kae tsüha ekü ngiso hujetsa ihisü gehale


Com o esposo da... Da irmã mais nova dele...
ilango huja

Igake hõhõ Kadinhoko ngiso jetsa Chame aí o marido da Kadinhoko

Orlandinho:

Nguke Nguke

Kuaku:

h Isso

Ngele akeha Kongoho ointsaha ngele hekeha Kongoho foi enfeitiçado com ele

E com seu irmão mais velho, Tükitse, foram


Tühinhano ake Tükitse ake sointsa ihekeni
enfeitiçados

Ainda estavam aqui, e pronto: ―Por causa disso,


Inde leha itsako aiha üle hinhe ukatahainiha
vamos nos afastar daqui, vamos nos afastar",
ukatahainiha nügü hutsüha Tükitse kilü
Tükitse disse

Engü hale egei angakahukiholü etikokiholü püu É assim, alguém pegaria seu cabelo, um pedaço
püu püu ekü maki uoinsatiga eheke leha polü de seu cinto, um fulano te enfeitiçaria e você
inhalüha etuhupolüi nem saberia

Engü hegei einkondohogupe gele hegei tütegatiga Assim, amarrariam seus enfeites junto com o
126

toinjühokongo inha sagagetsüha itsako feitiço para você [sua alma] ir até o enfeitiçado,
53
é assim que eles ficaram

Ekü jeta hegei uüigatiga Tükitse jeta hegei "Ele é que está fazendo isso comigo, Tükitse é
uüigatiga Kongoho kita leha que está fazendo isso comigo", Kongoho dizia

Por isso, "cadê, onde que eu tenho [feitiço]?!


Üle unde tina inhalü inke hõhõ inke hõhõ
Não, veja só, veja só"

O marido da Kadinhoko [Nguke] dizia: "Onde


Kadinhoko ngiso tsüha unde tina Kongoho tikainjü
que eu tenho?!"; então Kongoho se levantou e
bum 54
houve muita falação

Engü leha Nessa hora

Oinhe ingati ihekeni pokü Jogaram feitiço na rede dele

Inke beha nügü iheke inke beha agilü iheke "Olha só, olha só", disseram, "ele que jogou"

Nagoha agini leha Aqueles [falando de Nguke] é que jogou

Ahütü tsüha nago hüngü soinjükohokongo huja Mas não tinha sido ele quem o enfeitiçou

Nago leha agigatiga üle hale egei etetohokoi tsüha Eles [outros] é que jogaram [feitiço], por isso
~uanke egena igia ~uanke itsohokoi eles foram para lá, e ficaram assim

Agaketohokoi Se dividiram

La ekugu aketsange anügü Foi assim que aconteceu de verdade55

3° fragmento

Kuaku:

Magijape inhügü Magijape ficou

Kugepila Sem gente

53
Os Kalapalo dizem que se um objeto de alguma pessoa é amarrado junto a um feitiço feito para outrem,
a ―alma‖ do dono desse objeto vai até o doente que, ao vê-lo, pensará que é ele o feiticeiro. Trata-se,
portanto, de uma artimanha em que o feiticeiro mesmo fica obliterado.
54
A ―falação‖ é expressa pelo ideofone bum, que indica muitas pessoas falando ao mesmo tempo.
55
Deve-se notar que ´é neste momento que ocorre a fundação de Ngahünga, para onde Tükitse teria ido.
127

Sitsa aiha inke aiha sitsa bejaha tamitsi Nós ficamos, pronto, veja, pronto, nós ficamos muito
beha tihesinhütilü tempo e nós ficamos mal

Hesinhüi leha sinhügü tihetimütonkgijü Nós ficamos mal porque brigamos entre nós
56
Ati beha dziukü tihetimünokenügü leha Até que então — dziukü — nós nos cortamos pela
dziukü metade — dziukü

Inene leha tisogopijü gehale Nós voltamos pra cá [Ngahünga] outra vez

Nago gele hale inhünkgo gele hale Mas eles ainda ficaram

Orlandinho:

Ete otomo gele? Os donos da aldeia [isto é, em Magijape]?

Kuaku:

gele hale Sim, ainda

Langopeha tisugei Nós éramos assim

Orlandinho:

Tüma tseta gele tatakeinh i uege lahale Quem ainda ficou lá dos que permaneceram, você
tseta ila lahale atakeĩl inene leha ficou lá, e os que permaneceram ficaram pra ca?

Kuaku:

Uitsa hõhõ inene Eu fiquei do lado de cá [Ngahünga]

atohola ekugu igia uinh g tamitsi ekugu Fiquei algum tempo, fiquei muito tempo de verdade, e
uitsa uen g leha d ĩ então eu vim

Ina lahale kalapaluna lahale uenügü Pra ca, para Kalapalo, eu vim

Igei leha igei inde tiha utegatohoi leha É assim que é, aqui é onde eu vivo

Tsetalüpengineha ugopijü nago lahale


De lá eu voltei, mas eles vivem pra cá [em Ngahünga]
etelüko lahale ilanha

Akago tsüha Aqueles

Engü hale igei talokila uentühügü engü


"Eu não vim pra ca à toa, foi porque eu fui acusado"
uinkganügü hinhe

56
Dziukü é um ideofone que indica ―cortar‖.
128

Nügü lahale iheke sapesikügü üle hinhe Ele disse, "por isso fomos mandados embora, por isso
dziu tinhenügü leha — dziu — eu vim"

Üle atehe tsüha egete atühügüko andeha Por isso eles ficaram lá [em Ngahünga], e do lado de
nago gehale ineneko cá [Magijape] ainda estavam os outros

Eles são Jagamü [se referindo aos moradores de


Jagamükoi jetsa hale Jagamükoi hale ago
Ngahünga, que são conhecidos como Matipu]

O pai deles era Uagihütü [nome pelo qual os Matipu


u koiha uagih t i
―antigos‖ são chamados regionalmente]

u ko O pai deles

Suas esposas, veja, suas esposas eram mulheres


Ihitsüiha ihitsaõiha inke Jagamü itaõg
Jagamü

Üle atehe Jagamüiha ago anügü Por isso eles ficam sendo Jagamü

u ko inheha inke Uagih t iha an nkgo Por causa de seu pai eles ficaram sendo Uagihütü, e se
57
Matipuiha natohoi tsüha ihekeni diz "Matipu" para eles

Tsakeha Ouça

A descrição que Kuaku faz da chefia de seu pai (frag. 1) contrasta fortemente com a
feita sobre si mesmo e sobre sua própria trajetória no interior do complexo alto-
xinguano em trechos que, infelizmente, não foram transcritos aqui. Antes de ser
indagado sobre os chefes de Jagamü (aldeia dos Nahukwá antigos), Kuaku relata uma
série de eventos que foram, pouco a pouco, desmantelando sua família: ataques dos
Ikpeng (que raptaram seu irmão mais velho antes mesmo dele nascer), a morte de sua
mãe e depois de seu pai quando ainda era muito pequeno, entre outros acontecimentos
disjuntivos que acabaram por separá-lo de seu núcleo familiar e aldeia de origem.
Arremessado nessa condição, o narrador diz ter passado sua vida na condição de um
―jatsi‖ (um ―pobre‖ ou ―coitado‖), deslocando-se entre diferentes aldeias do subsistema
karib e dos Mehinaku (arawak).
Tal trajetória com enraizamentos multidirecionados de vida faz com que Kuaku
tenha uma identificação coletiva ela mesma dispersa. Assim, quando lhe perguntam se
ele chegou a substituir a chefia de seu pai alguma vez, ele responde que o fez por certo

57
Na definição da identidade do grupo, portanto, pesou a ascendência paterna do dono da aldeia.
129

tempo, em Magijape, na época em que os Matipu e Nahukwá ainda moravam juntos.


Depois, porém, diz ter se recusado a seguir nessa posição, pois nas palavras dele:

Uingeta embege ihekeni eteteha ina angolo Eles [os moradores de Magijape] tentavam me chamar,
ekuhale uege anetüi "venha pra cá, você é um chefe de verdade"

Ago kingalü tisugekugi kingalü Eles sempre diziam, nosso povo dizia

Eteteha ina inhal ẽhẽ hekite tiha uitomi "Vem pra cá", eu não aceitei, "eu não quero mais
ehekeni ukil a ẽ naha apepol ko tiha uheke morar com vocês, se eu orientar vocês...

Ahütüha ila sini bekuja aki talü ehekeni ukigote ― Vocês não podem se ressentir quando ouvirem o que
gitse ihekeni gitse disser pra vocês"

Kutsü beha agingoko hungu ihondengalü leha "De jeito nenhum, eu quero que seu semelhante seja seu
58
uheke chefe/esteio"

No interior de um padrão de chefias transmitidas de pais para filhos(as),


portanto, seria possível dizer que as figuras de Kuaku e de Küake (seu pai) espelham-se
como se fora de um ―suporte‖: como se a linha de chefes da qual Kuaku assume a ponta,
por ter sido desprendida de seu locus originário e das linhas (territoriais e sociais) às
quais ela estava atada, tivesse se afrouxado e enfraquecido. De certa forma, a ideia de
um ―suporte‖ enfraquecido ou ausente está implícita também na própria imagem
utilizada pelo narrador no trecho acima para falar sobre o fato de não ter aceitado ser
colocado como ―chefe-esteio‖ do pessoal de Magijape.
Segundo a interpretação feita por Antonio Guerreiro da palavra iho (2011:117-
118; 2015a: 167 e ss.), a ideia de que chefes são ―esteios‖ está relacionda às práticas de
cuidado e nutrição que (espera-se) eles devem manter vis-à-vis seus coletivos e que, na
linguagem conceitual dos povos do subsistema karib do Alto Xingu, se expressa por
essa imagem. Diz o autor:

[...] o dono de uma casa é iho das pessoas que moram nela, pois espera-se
que cuide de seus co-residentes, que os oriente, organize as atividades
coletivas da casa, os apoie em seus problemas; um marido também é iho de
sua esposa e de seus filhos, pois deve provê-los com comida e protege-los;
pelo mesmo motivo, alguém que seja o único homem de uma casa também é
iho das mulheres que moram nela. Pode-se dizer que iho, então, refere-se a
qualquer pessoa que se encontre na posição de protetor e provedor de outros.

58
Ihondelü: literalmente colocar arrimo/esteio (iho). Aqui tem o sentido de colocar alguém na posição de
chefe, como explicarei a seguir.
130

Talvez pudéssemos dizer que iho é alguém que tem o dever de ―dar suporte‖,
pois esta seria a descrição mais literal da função de um esteio. Um chefe
também é chamado de iho. (2011: 118)

É o que se pode ver na estrofe 6 do primeiro fragmento, onde Kuaku afirma que
a chefia de seu pai era ―a mais importante‖ pois, quando as pessoas entravam em sua
casa, ele oferecia assento para elas (um mais do que literal ―suporte‖, mas cujo gesto
indica cuidado) e lhes alimentava. Por outro lado, Guerreiro argumenta ainda que
―quando uma aldeia começa a passar por diversas cisões, diz-se que isso se deve à falta
de chefes que mantenham seu pessoal unido‖ (2015a: 168). De fato, como deixa
explícito o emprego da expressão os ―esteios [da casa] vão rachar‖, na estrofe 7, essas
cisões são expressas diretamente como um rachar da própria casa do chefe, a talühe
(casa construída, como falado na seção anterior, pela união das pessoas que ele mantém
em torno de si).
Mas, este fragmento é ainda mais rico em sua imagética por permitir uma análise
de como essas ―trincaduras‖ ou ―cisões‖ são interpretadas, muitas vezes, como
decorrentes de uma ―má‖ (hesinhü) circulação da palavra. Dele, pode-se depreender que
chefes de verdade devem conter esse tipo de circulação. No caso, a ―fofoca‖ (expressa
ainda na estrofe 7 pela palavra kütsü, ―porcaria‖, ―lixo‖) é apontada como a principal
forma de uso da palavra capaz de potencialmente trincar a união das pessoas: algo que
relembra muito aquela conversa que tive com o genro de Hagema, morador de
Curumim, mencionada no início do capítulo um. Nela, ele me dizia que nas aldeias
grandes havia muita fofoca, por isso as pessoas brigavam demais. Agora, os chefes
aparecem aqui como aqueles que devem corrigir e evitar essa má utilização da palavra,
preservando pela integridade ―dos esteios‖, quer dizer, de si mesmo e da aldeia da qual
são considerados ―donos‖ (ete oto).
Daí, apesar de bem receber as pessoas, o pai do narrador mandar as pessoas irem
fofocar fora de sua casa/esteio, embaixo da macaúba (árvore que, diga-se de passagem,
normalmente fica fora do círculo das aldeias). A questão é que, ainda assim, a fofoca
circula e os esteios se racham. Como isso acontece?
Como já exemplifiquei na seção anterior, a partir do material narrativo que tomo
como base, analisar a irrupção desses movimentos implica, quase sempre, levar em
conta as relações criadas entre as pessoas e seus territórios em uma dimensão, ao
mesmo tempo, ampla e menor. Ampla, porque inseparável de condições extra-locais:
131

assim, torna-se imprescindível observar como movimentos iniciados em um lugar


específico se relacionam com fatores externos e como eles provocam reações alhures.
Menor, porque o modo como esses movimentos são produzidos, entendidos e colocados
em discurso dá especificidade a uma socialidade que se evidencia a partir da
construção/descrição de associações ou arranjos micropolíticos estabelecidos entre as
pessoas e os lugares.
Os dois outros fragmentos dessa seção permitem aprofundar ainda mais essas
reflexões. Na estrofe 8, depois de ter sido indagado sobre os motivos da fragmentação
de Magijape, Kuaku narra brevemente como os Matipu e os Nahukwá foram primeiro
reunidos naquele lugar. Afirma que Orlando (um dos irmãos Villas Boas e talvez o
membro mais famoso da Expedição Roncador-Xingu entre os alto-xinguanos hoje) os
mudara ―todos juntos‖, isto é, não apenas os Matipu e os Nahukwá, mas também
pessoas de outros povos e aldeias. É o que se pode deduzir quando, na segunda linha,
ele mesmo diz que teria vindo de Ipatse/Lahatua, uma aldeia regionalmente identificada
aos Kuikuro.
Isso dá indícios de que a mudanças ocorridas nesta época produziram uma
espécie de desenraizamento múltiplo dos coletivos alto-xinguanos. Por aí, as malhas
relacionais que estavam relativamente cristalizadas em associações e coletivos mais
antigos, foram suspensas e reentrelaçadas de modo ―misturado‖ nas novas aldeias,
aquelas criadas depois que foram mudados para mais perto dos Postos de Saúde. Em
outras palavras: observar como essas mudanças se produziram através dos próprios
discursos indígenas obriga o pesquisador a considerá-las como tendo se iniciando por
uma multiplicidade de pontos de partida, a qual, por esse processo, é flexionada a torna-
se unidade nos pontos de chegada. Porém, como se pode ver, isso não aconteceu sem
gerar uma série de tensões, das quais tão logo resultariam subsequentes fragmentações
sociais — pontos de chegada tornando-se, por este caminho, novamente pontos de
partida, como pessoas saindo de onde chegaram ou chegando de onde sairam.
À luz das ideias levantadas na seção anterior ao interpretar o discurso de
Hagema, pode-se dizer que nesse processo de mudança as pessoas foram desprendidas
dos caminhos e lugares pelos quais se alinhavam umas com as outras e com seus
ancestrais, tendo que recriar esses alinhamentos novamente. Todo o segundo fragmento
analisado nessa seção pode ser visto, desse ponto de vista, como retratando algumas das
causas e das dificuldades implicadas nesse processo de suspensão e reestabelecimento
de linhas e laços.
132

Nele, o narrador fala como a reunião de pessoas diferentes em uma única aldeia
ou em aldeias vizinhas — aldeias, portanto, que desde seu início não eram
―particulares‖, para retomar mais uma vez aquela conversa com o genro de Hagema de
Curumim — fez nascer suspeitas de feitiçaria que tiveram como consequência a cisão
desses novos coletivos. Daí, aliás, o receio de Kuaku em assumir a chefia em Magijape
(―De jeito nenhum, eu quero que seu semelhante seja seu chefe/esteio‖, diz o narrador
no trecho citado mais acima, o que dá a entender que essa semelhança precisa ser
encontrada ou produzida sobre uma malha colorida, não sendo dada de antemão).59 O
modo como essas suspeitas e essas cisões são descritas (estrofes 9-15) revela dimensões
ainda inexploradas nesse trabalho de como pessoas podem dispersar umas às outras e,
por isso, merece ser analisado com cuidado.
Segundo o narrador, três pessoas teriam sido enfeitiçadas ao mesmo tempo,
gerando um complexo circuito de acusações através do qual o verdadeiro feiticeiro
dificilmente pode ser apreendido (seja pelo antropólogo, seja pelos sujeitos da
pesquisa). Estas pessoas estariam unidas entre si por laços de parentesco e afinidade
(estrofes 13-15), mais especificamente, fariam parte de duas famílias aproximadas por
um matrimônio: o estabelecido entre Kadinhoko e Nguke. Tomando esse casamento
como nó de partida, a primeira acusação mencionada pelo narrador teria sido feita no
seguinte sentido: Kongoho, irmão (B) de Kadinhoko, apontaria como causador do
feitiço Tükitse, que era irmão de Nguke, o marido daquela. Depois, novas acusações são
feitas, dessa vez, diretamente entre cunhados (Kongoho aponta Nguke como feiticeiro).
O fato de a feitiçaria brotar e se propagar através de relações de afinidade não é
fortuito. Além de ser congruente com a sobreposição entre afinidade e inimizade que
perpassa diversos modos de produção do parentesco na Amazônia, esse caso chama
atenção para a possibilidade de afins efetivos também poderem ser fontes possíveis de
expressão da inimizade. Como detalhadamente discutido por Vanzolini (2010) ao
analisar os efeitos da feitiçaria sobre as formas do parentesco Aweti (tupi), a relação
entre os moradores de uma determinada aldeia e seus feiticeiros é da ordem de uma
vizinhança internalizada (ou, no mínimo, regionalizada60): somente um outro igual (um
outro aproximado e tornado ―semelhante‖) pode jogar feitiço em alguém. Afinal, como
―apontar‖ um feiticeiro senão o localizando a partir das próprias relações que ligam

59
Os estudos de Rafael de Menezes Bastos (1992, 1995), Coelho de Souza (2001), Mutua Mehinaku
(2010) mais uma vez, são importantes bases para essa considerações.
60
Afinal, essa vizinhança define uma territorialidade que é a do ―Alto Xingu‖, e não a de um vizinho em
sentido restrito, quer dizer, um vizinho no interior de uma aldeia.
133

alguém a ele? Nesse sentido, argumenta a autora, mais do que ser uma forma de ação
oposta à socialidade alto-xinguana e aos imperativos éticos de pacificidade que a
direcionam, a feitiçaria operaria no interior mesmo dessa socialidade como um
―comentário sobre o que pode haver de indesejável‖ (op. cit.: 14) nas relações entre
semelhantes.
Como podem estar (isto é, ser apontados) muito próximos de suas vítimas e
acusadores, feiticeiros normalmente são especialistas em se anuviarem, a fim de evitar
os perigos de uma retaliação que, nesse cenário em que um vizinho pode ser um
potencial inimigo, poderia chegar facilmente. Como fala Kuaku (estrofe 16), uma das
tecnologias da qual um feiticeiro faz uso para se escamotear é amarrando os objetos de
alguém junto a um feitiço feito para outrem. Com isso, o feiticeiro faz com que a ―alma‖
do dono desses objetos vá até o doente, de modo que a vítima pensará que este seria o
dono/causador também do feitiço. Por esse tipo de artimanha, pessoas às vezes muito
próximas começam a duvidar umas das outras, fofocas começam a circular e, nesse
ínterim, o ―verdadeiro‖ feiticeiro escapa do campo de visibilidade.
Assim, após fazer uma série de citações cruzadas do modo como as pessoas
estavam se acusando (estrofes 16-18), Kuaku afirma — através do ideofone bum (o qual
soa também como uma espécie de estouro) —, que ouve ―muita falação‖. Essa
―falação‖ faz com que as pessoas ―se levantem‖, isto é, se mostrem umas para as outras,
momento no qual as acusações deixam de circular apenas como fofoca para serem
propagadas aberta e diretamente (como ―briga‖), dispersando as pessoas de suas aldeias
para outros lugares.
Nesse sentido ainda, seguindo as pistas de Coelho de Souza (1992), a feitiçaria
seria uma forma realocar e reposicionar as pessoas no interior das malhas relacionais
que as conectam ou separam entre si em termos de consaguinidade e afinidade,
produzindo semelhança sob um fundo diferenciado ou ―misturado‖ que, como fala
Mutua Mehinaku, perpassaria os coletivos desse complexo regional em diversas escalas.
Assim, o simples fato de fofocas sobre feitiços começarem a circular em uma aldeia
pode levar os suspeitos a buscarem exílio em outros coletivos, processo através do qual
as diferenças são realocadas e internalizadas em outras aldeias, alinhadas a outros
caminhos, sem, no entanto, serem suprimidas ou colocadas para ―fora‖ (em sentido
estrito) do complexo regional.
Ainda que não seja clara a relação que os enfeitiçados mencionados por Kuaku
estabeleciam com cada um dos coletivos formados naquela época, o narrador diz que
134

Tükitse (HB de Kadinhoko) estaria habitando com os Kalapalo (em Aiha, portanto)
junto de seu acusador, Kongoho. Kadinhoko e seu marido Nguke, por sua vez, estariam
morando, junto com o narrador, em Magijape.61 Na época em que as acusações
começaram a circular em Aiha, portanto, as malhas relacionais entre afins e parentes
residentes nessas duas aldeias permitiram que os conflitos de uma se reverberassem na
outra.
O resultado disso é que, a partir das informações narradas por Kuaku, a cisão
ocorrida em Magijape não teria tido como estopim problemas internos àquela
comunidade de modo direito, mas sim, feitiços/acusações que começaram alhures e que
passaram por ela, dentre outras formas, através desse mau uso incontido da palavra.
Nesse sentido, Kuaku afirma que após ter sido acusado, Tükitse saiu de Aiha e de lá é
que se dirigiu para Ngahünga, a qual foi nesse momento fundada (estrofe 15). Isso,
então, teria gerado um movimento de atração dos parentes de Tükitse para essa nova
aldeia — parentes que estavam em Magijape, mas também por outros lugares não
mencionadas no seu discurso, mas que ficam implicitos nele por tudo que já foi dito.
Todo esse processo recupera os movimentos de povoamento de um coletivo já
descritos no capítulo um, nos quais pessoas de diferentes lugares são atraídas pelas
linhas/caminhos que as conectam com seus fundadores, bem como aquilo que se
encontra no terceiro fragmento. Kuaku diz que Magijape ―ficou sem gente‖ (estrofe 19),
porém, ao ser indagado por Orlandinho sobre isso, parece matizar melhor essa
afirmação: apenas uma parte das pessoas teria saído dali para ir acompanhar Tükitse
(que tinha ido de Kalapalo para a nova aldeia Ngahünga). O próprio Kuaku teria feito
isso (estrofe 24), mas, por motivos que talvez tenha preferido não manifestar, diz depois
ter se mudado para Aiha (onde mora até hoje).
O fato de aquela cisão ter sido operada sobre malhas de relações que estavam
antes ―misturadas‖ é explicitado na problematização feita pelo narrador sobre a
identidade dos moradores da nova aldeia Ngahünga. Trata-se de algo, portanto, que
coloca um problema para o modo como as identidades de novas aldeias são
visibilizadas, quer dizer, a partir de que direções. Esse é um assunto que permite,
inclusive, complementar as reflexões elaboradas no capítulo anterior sobre Caramujo e
que fará esse embarcar na conclusão.

61
Sabe-se também que uma das filhas do narrador está casada com outro irmão do marido de Kadinhoko;
porém, não sei dizer se esse casamento ocorreu antes ou depois dos eventos aqui narrados.
135

Regionalmente, Ngahünga é identificada como sendo um lugar do povo Matipu


— em correspondência com o que costumam falar os próprios moradores de lá. Por
outro lado, para Kuaku, o pessoal de Ngagünga seria Nahukwá. Essa ambiguidade na
definição da identidade desse coletivo se deve ao fato de que o fundador dessa aldeia
possui, por ascedência materna, vinculação com os antigos Nahukwá (chamados
Jagamü), ao mesmo tempo em que, por ascendência paterna, vinculos com os antigos
Matipu (chamados Uagihütü). Assim, do ponto de vista dos moradores de Ngahünga, a
ascendência paterna do fundador do lugar é o que pesou (seguindo uma tendência
regional, como já falei); mas, do ponto de vista do narrador, foi a ascendência materna
deste que contou (em correspondência, diga-se de passagem, com o modo como o
próprio Kuaku se identifica).
Há ainda mais coisas a se dizer sobre isso: cruzando dados genealógicos obtidos
a partir da comparação desse relato com outros concedidos por pesquisadores do projeto
SiRAT (mas, não reproduzidos aqui),62 pude saber que os chefes do lado paterno do
fundador dessa aldeia (seus avós) também estiveram envolvidos em casos de feitiçaria
antigamente, inclusive, casos que também tocavam aos Kalapalo. Já do seu lado
materno, embora suas avós tivessem sofrido o impacto da perda de seus maridos, não
foram, elas mesmas, mortas ou acusadas de feitiçaria. Na verdade, apesar de mulheres
serem frequentemente chamadas de ―fofoqueiras‖ (Franchetto, 1986) poderem ter ―rezas
feias‖, ―perigosas‖, apenas homens têm a tecnologia de praticarem a feitiçaria de fato e,
por isso, elas nunca são acusadas (cf. Vanzolini, 2010).
Tendo em vista essa variabilidade possível de pontos de vista sobre diferentes
linhas de ascendência/identificação, e sabendo que essa variabilidade só é possível pois
a mistura entre as diferentes categorias coletivas de identidade explicitadas no presente
nada mais são do que a continuidade de misturas passadas, é possível olhar para as
narrativas interpretadas nesse capítulo não apenas ―como sendo sobre a política, para
vê-las como sendo também, na verdade, a prática da política em sua performance‖
(como me sugeriu certa vez Suzanne Oakdale, comunicação pessoal).
Tentei, aqui, descrever minimamente o modo como essa performance política
pode ser produzida e alguns elementos e sentidos aos quais ela dá visibilidade. Com
base no material trazido na primeira e segunda seção, ao partir da experiência de

62
Agradeço, aqui, especialmente a Gabriela Aguillar Leite, que realizou pesquisa junto dos Matipu e
produziu com eles uma história coletiva sobre a origem de sua aldeia, a qual, posteriormente, Gabriela
compartilhou comigo. Ela se encontra reproduzida na dissertação da pesquisadora (AGUILLAR LEITE,
2018).
136

caminhar para gravar, aproximei essa realização discursiva da política das imagens dos
caminhos, das linhas e das retas que perpassam a paisagem alto-xinguana, conectando
alguns coletivos (atuais e passados) do subsistema karib. Imagens que moram no
território indígena do Alto Xingu, mas também na memória dos narradores, sendo daí
convidadas pela política de suas palavras a (re)aparecer.
Assim, frente a um passado onde as malhas criadas pelos antigos foram des-
talhadas de seus locais de origem e estes dispersos pelo território, a narrativa de
Hagema trazia, em sua forma e conteúdo, uma direção reta e uma forma de
fortalecimento para seus parentes e para o Alto Xingu, afinal, seu posicionamento
político não é somente frente aos demais coletivos da região, mas também — e talvez
principalmente — frente aos ―brancos‖. Nessa direção, podia-se ir dos vivos aos mortos
sem tropeços.
Agora, nesta terceira seção, ao olhar para a narrativa de Kuaku (mergulhada na
memória deste mesmo cenário dispersivo), mostrei como as palavras podem também
circundar ―trincos‖, os quais, eles também, mostram ser gerados não apenas nos
―esteios‖ e nas aldeias, mas também na memória das pessoas, bifurcando seus pontos de
vista sobre o passado. Com efeito, na história de Kuaku não há uma direção ―reta‖ — ou
melhor, até haveria (a que o une a seu pai), mas, desconfigurada por aquele mesmo
cenário dispersivo que aparece no relato de Hagema, essa direção encontra-se
enfraquecida, e perceber e ir pelos caminhos que ligam vivos e mortos nessa narrativa é,
ou escorregar e cair no vão de esquecimento dessas ―trincaduras‖, ou colocar sobre elas
peso, as aumentando ou propagando. Algo que, pelo que ficou dito acima, é evitado
pelo próprio narrador.
Assim, diferentemente da narrativa de Hagema, não se encontra na história de
Kuaku uma busca por um direcionamento ―direto‖ de sua audiência ou por uma
exortação dela. O que, por outro lado, não impede que tanto em uma quanto na outra os
narradores possam ser vistos como ―guiando‖ o assunto, muito mais do que
metaforicamente. Ao colocarem suas memórias em discurso, eles dão direção a
informações, ideias e afetos que, através de suas palavras, são passados para quem lhes
vê/escuta: sujeitos que, por esse motivo, não estão apenas na posição de audiência, mas
também na de ―moradores‖ ou ―abrigadores‖, por assim dizer, do que nelas é dito.
Dar continuidade ao caminho iniciado por uma história, ao menos em seu foro
íntimo, é uma consequência praticamente imediata de qualquer um que se dispõe a
escutá-la e levá-la a sério. Ciente não apenas da importância política que isso pode ter
137

para a continuidade e transformação do presente, mas também da criatividade envolvida


nesse processo, foi o que este próprio texto procurou fazer com os discursos com os
quais não apenas dialogou, mas tentou colocar em diálogo, de modo a realçar o colorido
que eles trazem para a compreensão da vida social no Alto Xingu.
138

Depois de passar por tantos lugares ao lado de Hagema, ouvindo-o contar histórias que
recuperavam e firmavam seus vínculos pessoais e familiares com eles — fiquei por
vários dias pensando e querendo lhe perguntar uma coisa: o que ele tinha a dizer, afinal,
sobre ―terra‖?
Uma tarde, então, em que estávamos em sua casa e uma forte chuva caia lá fora,
simplesmente lhe falei: ―Apa [―pai‖], e sobre terra, você tem alguma história, assim, de
como começou?‖. Ele, então, levantou-se de sua rede, apanhou uma cadeira que estava
no centro da casa e se dirigiu até a minha, sentando-se ao meu lado: ―— Terra, né... Foi
Taũgi que conseguiu pra gente. Assim, terra, água, o fogo, o dia, tudo isso aqui que tem
[num gesto, circundando a atmosfera de tudo que nos arrodeava], foi Taũgi que
conseguiu. Ele que conseguiu... O pai dele é onça,1 mas, ele nunca apareceu pra gente,
ninguém nunca viu. Terra, foi Taũgi. Ele que conseguiu pra gente... Conseguiu para
vocês também‖.
Esta conversa que tive com Hagema sintetiza, de certa forma, boa parte do que
as reflexões elaboradas nesse trabalho quiseram trazer à superfície. Ainda que ele não
tenha me contado em pormenores, como havia feito em praticamente todas as outras
ocasiões, a akinha verdadeira de como foi que a terra tinha sido conseguida, aquela
curta resposta bastava. Depois de ter ouvido outras histórias sobre a origem das coisas e
observado um pouco da vida dos moradores da sua aldeia, era como se já estivesse claro
o que significava conseguir a terra (assim como era claro o que significava quererem
tomá-la, para ele). Fiquei, de todo modo, com aquela resposta em minha cabeça durante
muito tempo.
Em diversas outras histórias que ouvi sobre os gêmeos fundadores Taũgi e
Aulukumã, eles sempre eram vistos como aqueles que conseguiam as coisas para os
humanos. Isso, porém, lembrava-me muito o modo como um chefe e os donos ficam, o

1
Referência à onça mítica Enitsuẽgü, pai dos gêmeos Taũgi e Aulukumã, que se casou com uma das
mulheres de madeira feita pelo demiurgo Kuatüngü. Enitsuẽgü é considerado também chefe de todos os
animais terrestres.
139

tempo todo, tentando conseguir coisas para suas aldeias/casas, seja em suas relações
intrarregionais (com outras aldeias e casas do TIX), seja nas extrarregionais.2
Entre agenciar parentes para uma recolta de alimento a ser consumida numa
festa, por exemplo, até conseguir anzóis, bolas de futebol e miçangas (sem contar com
as cada vez mais imperiosas necessidades de representar seus povos frente à instituições
governamentais), chefes são ―suportes‖ sobre os quais não apenas pessoas e histórias se
apoiam, mas dos quais se espera receber apoio, se espera que consigam algo. Isso,
inclusive, é o que permite aos chefes serem associados, como falei no capítulo dois, aos
―esteios‖ de uma casa/aldeia — mastro estático que finca e sustenta os movimentos de
uma família em um lugar determinado. A única coisa a ser lembrada, nesse caso, é que
para oferecer esse suporte, os próprios ―esteios‖ precisam se colocar em constante
movimento.
Aqui, mais uma vez, as histórias de Taũgi e Aulukumã são interessantes e quase
arquetípicas. Não me lembro de escutar nenhuma história sobre eles que não tivesse
qualquer forma de deslocamento implícito ou explícito. Normalmente, para
conseguirem algo, sempre viajam para as aldeias de seus ―donos‖, participam de festas
com eles ou, às vezes, os visitam sorrateiramente — sendo que o ―conseguir‖, com
frequência, se realiza através de um movimento de retorno. Como se a mitologia
afirmasse que a ―origem‖ das coisas não é seu aparecimento ex nihilo, mas sim o chegar
delas: na verdade, o terem sido trazidas, puxadas de outros planos por Taũgi e Alukumã,
para serem deixadas em lugares específicos do mundo.3
De forma parecida ao movimento dos gêmeos inauguradores, quando perguntei
certa vez para Hagema qual era o trabalho de um chefe, ele me respondeu, dentre outras
coisas, que ―chefe é quem abre caminho‖. Circulando pelo território, embrenhando-se
mundo afora, chefes instauram linhas, puxam pontas, empurram o presente (no sentido
temporal, mas também no de dádiva) para frente e, por aí, conseguem coisas e lugares
para as pessoas. Como visto no capítulo 1, nos processos de fundação de uma aldeia,
chefes são aqueles que ―vão primeiro‖: para olhar o terreno, depois voltam, vão de
novo, voltam, vão... Sempre sendo esperados por trazerem algo no retorno, seja nas
mãos, seja fazendo ver através de suas palavras.

2
Esse lembrar, na verdade, é estimulado pela própria associação mitológica existente entre os chefes
humanos e os gêmeos Taũgi e Alukuma, os quais são considerados seus primeiros produtores. cf.
Barcelos Neto, 2008; Guerreiro, 2015a para uma discussão detalhada dessa associação para os casos
Wauja e Kalapalo, respectivamente.
3
Característica recorrente das mitologias indígenas sul-americanas, como se pode ver, dentre inúmeros
outros, nos trabalhos de Hill, 1988 e Overing, 1995.
140

Contagiada por esse aspecto móvel da mitologia e da chefia alto-xinguana, ao


acompanhar as histórias que Hagema me contou (e também as contadas por outras
pessoas, para as quais decidi olhar da mesma maneira), essa pesquisa procurou se
manter em movimentos de constante entrada e saida por lugares e temas, indo e vindo
por vias que, por mais estreitas que fossem, eram sempre de mão dupla. Espero, com
isso, ter conseguido pelo menos chegar a reflexões interessantes para a compreensão de
alguns aspectos da vida de meus interlocutores, em especial, deixando transparecer a
potencialidade de seus próprios modos de enunciação e compreensão da realidade.
Assim, a partir da consideração de que o Alto Xingu pode ser descrito como
―misturado‖ ou ―colorido‖ (Mehinaku, 2010), essa dissertação procurou acompanhar,
através da história e de alguns discursos colhidos junto de pessoas ligadas a coletivos do
subsistema karib (formado com base no reconhecimento de diferenças linguísticas e de
origem entre os povos Kalapalo, Kuikuro, Matipu e Nahukwá), algumas das formas de
produção e territorialização dessa mistura. Nesse sentido, os fluxos de concentração de
pessoas que levaram à fundação da aldeia Apangakigi (analisados no cap. 1) chamaram
atenção para o modo como, antes, seus moradores estavam distribuídos por aldeias
diferentes, tendo delas saído como que pela ranhura de relações que foram trincadas por
algum acontecimento disjuntivo.
Ao focar, pois, em alguns exemplos desses eventos dispersivos (como fiz no cap.
2), foi possível perceber como fragmentações geradas em determinados lugares levam à
fundação de novos coletivos, ou melhor, estimulam ou alimentam reuniões alhures. À
imagem dos pequis colhidos em diferentes lugares para serem apresentados no centro de
uma única aldeia onde se realiza uma festa (forma alegre por execelência de reunião), os
frutos da vida social que estiveram plantados em um determinado lugar tornam-se
sementes de novas ramificações ao se quedarem ajuntados noutro chão.
De um ponto de vista teórico-metodológico, igualmente, uma via de mão dupla
teve também que ser atravessada-e-desatravessada com frequência: aquela que perpassa
uma socialidade local e a conecta, do passado ao presente, com elementos e vetores
supralocais e/ou extrarregionais. Quanto a isso, as mudanças sociais pelas quais
diversos coletivos do subsistema karib passaram após a chegada dos ―brancos‖ foram
pensadas em conjunto com a micropolítica inerente às formas de relacionamento
regionais.
De outro lado, as formas de relacionamento ―locais‖ — naquilo que elas exibem
de ―particular‖ ao irem se desenvolvendo e se inscrevendo, passo-a-passo, em uma
141

paisagem específica — não deixaram de ser problematizadas à luz dos dilemas, afetos e
questões colocadas por um cenário ao qual se poderia chamar (seguindo ainda na linha
conceitual em que se ancora esse trabalho desde seu início) ―maior‖.
Dado que, através de conversas e perguntas, meus interlocutores me colocaram
diversas vezes frente a frente com tais dilemas — esperando, inclusive, que meu
trabalho conseguisse explicita-los (o que se resume na ideia de que ele pudesse servir
também para ―fazer documento‖), tentei, então, construir uma etnografia que levasse a
sério o que as perspectivas ―menores‖ tinham (e têm) a dizer sobre esses cenários
―maiores‖.4 Ao final dessa jornada, creio ser possível demonstrar como, sem fechar
caminhos anteriores, essas perspectivas abriram outras direções para a análise.
Assim, no capítulo um, a partir da pequena Apangakigi/Caramujo (um coletivo
menor não apenas por seu tamanho, mas por sua posição no interior do próprio
regionalismo alto-xinguano), o trabalho demonstrou como uma aldeia é uma reunião de
diferenças que não se anulam: pelo contrário, se somam, colocando-se em fila, puxando
umas às outras com tamanha atração, que fazem um complexo atamento de linhas se
transformar, pouco a pouco, num círculo de donos em torno de um lugar. Descrevendo
brevemente esse processo, tentei colocar sob perspectiva as formas ―maiores‖ através
das quais o Alto Xingu é comumente descrito em termos de ―sociedade regional‖.
Frente às preocupações políticas do fundador dessa aldeia (não só com relação
ao que se passa regionalmente, mas também ao que ele enfrenta nos encontros fora do
TIX), esmiuçar essa multiplicidade biográfica (em sentido lato) da qual é feita seu
coletivo é dar suporte à ideia de que o lugar onde ele mora é muito mais do que uma
―terra indígena‖ — designação deveras descolorida, dado o que tem sido (des)feito em
suas fronteiras. É uma terra onde ―tem muito caramujo‖; onde esses caramujos têm uma
história (e, talvez ele dissesse ainda, que eles são como ―dólar‖); onde uma diversidade
de pessoas se reuniu para viverem felizes; onde, em suma, cotidianamente, seus
moradores continuam ―conseguindo‖, à custa de muito trabalho, a terra onde seus filhos
plantarão suas roças e colherão suas vidas — quer dizer, onde eles continuarão
prosseguindo o que Taũgi fez no começo, e seus ancestrais no passado.
Já no que concerne às reflexões desenvolvidas no capítulo dois, as narrativas
transcritas e interpretadas permitiram matizar o modo como as mudanças ocorridas após

4
O que os pontos de vista ―maiores‖ têm a dizer sobre os cenários ―menores‖, parece-me, já está mais do
que evidente; afinal, segundo Deleuze (1992), o que diferencia uma ―maioria‖ de uma ―minoria‖ não são
critérios numéricos, mas sim o fato de certos arranjos e perspectivas conseguirem se posicionar dentro de
uma ―forma‖, justamente, como posição de enunciação por excelência.
142

a chegada dos irmãos Villas Boas, na década de 1940, foram (e continua sendo)
vivenciadas localmente. No que se refere a isso, o capítulo destacou como a chegada
dos ―brancos‖ destravou uma série de conflitos que estavam relativamente cristalizados
internamente, intensificando diferenças intrínsecas a algumas aldeias do subsistema
karib de modo a produzir nelas ―rachaduras‖. Essas, é preciso ressaltar, puderam ser
vistas como aparecendo e sendo experienciadas no interior de circuitos que interligam
parentes, sendo que, por aí, os próprios casos de fragmentação social puderam ser
descritos de uma perspetiva menor, na qual a ligação entre diferentes corpos e casas
apareçam em primeiro plano — antes da relação entre aparentes unidades étnicas dadas
de antemão.
Falei também, nesse ponto, sobre os efeitos da feitiçaria como fator de
realocação de algumas ―tonalidades‖ no interior da malha de relações que perpassa os
coletivos do susbistema karib. Criando no seio de uma família um nó de desconfiança,
tristeza e enfermidade (afetos intensamente disjuntivos para um alto-xinguano), a
feitiçaria parece induzir à diferenciação do ―semelhante‖, ao mesmo tempo em que,
ainda pelas conexões de parentesco, extrapola as fronteiras da localidade, despertando o
movimento de diferenças em outros lugares que, por aí, podem ser realinhadas alhures.
Mas, talvez um dos aspectos mais importantes e almejados desse trabalho, foi
tentar ir ao encontro desses temas guiando-se pelos próprios discursos alto-xinguanos, e
isso tanto de um ponto de vista teórico quanto etnográfico. Teórico, porque as imagens
e representações contidas nas narrativas foram convidadas a auxiliar na descrição dos
modos através dos quais as pessoas entendem e transmitem suas experiências.
Etnográfico, porque ao olhar para esses discursos enquanto atos produzidos em
contexto, percebe-se que seus efeitos vão muito além da simples representação do
passado: eles chamam a atenção para o potencial de direcionamento que as próprias
trocas verbais possuem nesses movimentos de concentração e dispersão vividos não só
no passado, mas também cotidianamente pelas pessoas ao circularem, junto com suas
memórias, pelo território.
Daí, muitas vezes, esse texto ter ele mesmo se misturado com o ―texto‖ dos
materiais orais que conectou e aproximou. Abrindo novos terrenos em sua própria
linguagem, espero que esse trabalho possa ter deixado uma via suplementar para a
própria circulação desses mateirais, e que, por aí, eles possam ainda auxiliar pesquisas e
formas de ação política futuras, levando as reflexões iniciadas aqui para muitos outros
lugares.
143

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Tabela com o número de alguns projetos de lei que colocam ou colocaram em risco
os indígenas e/ou quilombolas do Brasil desde o ano 2000:

Fonte:
https://deolhonosruralistas.com.br/2017/09/11/bancada-ruralista-ja-propos-25-projetos-de-lei-que-
ameacam-demarcacao-de-terras-indigenas-e-quilombolas/ (último acesso em 09/10/2018)

Conferir também uma tabela mais atualizada divulgada pelo Conselho Indigenista
Missionário em outubro de 2017, com outros números e nomes de projetos:
https://www.cimi.org.br/2017/10/41044/ (último acesso em 09/10/2018).

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