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JOAO BERNARJO TEORIA DO MODO DE PRODUCAO COMUNISTA PO xy Luta de Classes, Afrontamento © JOAO BERNARDO e EDIGOES AFRONTAMENTO Capa de JOAO B. EDIGOES AFRONTAMENTO Apartado 532 PORTO INTRODUGAO Militante hé mais de dez anos em partidos — vérios — todos eles reclamando-se de Lenin, e prosseguindo de orga- nizagdo em organizacao a busca de um leninismo puro que fosse simultaneamente a condigdo e a realizagdo da revolugéo social, fui levado nos iiltimos tempos ao abandono de teses que eram para mim, nelas nado e criado, o proprio natural do revolucionério € a desenvolver as minkas ideias num rumo que muitos apelidaréo de anarquista ou anarquizante. Anarquistas, néo creio que as minhas teses actuais o sejam, Embora também nao deiem de o ser. Em linhas muito gerais, parece-me que a oposic¢éo fundamental a nivet ideolégico entre o marzismo (de Marz-Engels) e o anar- quismo (de Bakunin) consiste no facto de Marz centrar toda @ dialética social no pré-conceito de exploracio, desenvolvido teoricamente no conceito de mais-valia, enquanto que a dia- lética social de Bakunin tem por eizo o pré-conceito de opress&o. Neste sentido, ndo hé nas paginas que se seguem qualquer vestigio de onarquismo. A exploragéo ndo & 86 0 campo das minhas concepcdes centrais, mas—e muito mais do que em Marz—é o campo tinico de toda a concepgéo do antagonismo social, e a opressdo aparece assim como wm falso conceito, como um errado modo de pensar a exploragdo. Pode pois dizer-se que tentei eliminar 0 campo ideolégico bésico do anarquismo tradicional. Mas, para proceder a essa eliminagéo, tive que repensar completamente o Estado e 08 problemas do politico, ¢ ¢ at que a assimilagéo das teses anarquistas se desenvolve. Quer dizer, do trabalho com as teses anarquistas sobre o campo do marzismo resultou, para além da verificaggo daquelas teses, a negagao do seu fundamento. Relativamente silencioso quanto ao pro- blema do Estado (sobre esse siléncio, as suas condigées @ 08 escassos momentos em que foi interrompido, pronun- ciar-me-ei ao longo dos capttulos que se seguem), 0 mar- ismo inicial permaneceu assim aberto és concepgbes jacobinas do politico. Lenin foi quem mais longe levou, dentro do marzismo, esse jacobinismo politico e Stalin o que mate perfeitamente expandin 0 jacobinismo para além do campo marsista inicial. A diviséo entre o politico e o econémico como duas categorias absolutas, metafisicamente fundadas e de eterna vigéncia, e a concepcao do controle polttico sobre © econédmico séo a heranga jacobina que fundamenta a con- cepedo leninista de partido, de Estado e da actividade politica em geral. Ora, o jacobinismo é eficaz para se destrutr um Estado, mas mais eficaz ainda para se reproduzir o Estado. O partido leninista péde fazer uma revolugéo, mas néo desenvolver as condigées das novas relagées de produgao. Desde a degenerescéncia da revolugéo russa, mais acentua- damente desde a degradagao final do capitalismo de Estado staliniano, que assistimos a tentativas repetidas de desenvol- vimento da alternativa revolucionéria do proletariado com base em organizagées de tipo leninista. Tentativas sucessi- vamente condenadas ao fracasso. Nao se trata sequer de néo terem podido triunfar no acto insurreccional. B que nunca puderam assumir existéncia reat, condenando-se @ meros grupos isolados sem qualquer audiéncia operdria, & noutro sentido € para outras formas de organizagao que 0 movimento operdrio tem caminhado. O mesmo se pode verificar hoje em Portugal. Dos trinta, ou trezentos, ou trés mil partidos leninistas pretendidos revo- lucionérios, a nenhum a classe operdria permite a direcgéo de uma luta, E iseo nao quer dizer que o proletariado, no Portugal de hoje, negue a epolitica», no sentido de: luta comunista. contra 0 Estado ¢ todas as instituigdes centrais do poder. Pelo contrario, 6 em nome dessa luta que o opera- riado tem negado as formas leninistas pretendidas revolucio- nérias. Sobre o espectéculo da Iuta de classes, pairam abutres € cada um tem ao pescogo o letreiro do seu partido. Néo participam na luta, mas disputam-se as presas, as vitimas, para clamarem «esta é minha, esta € minha>, reivindicando-se todos de cada uma. Mas sé abutres famélicos. O movimento operdrio segue caminhos claramente diferentes. Essas miilti- plas organizagées, que desistiram jd de dirigir 0 que quer que seja, ndo podem sequer, nem por demagogia, reivindi- car-se de nada. Sao estétuas perfiladas de tempos jé pas- sados. Oucam-nos falar—ndo falam: recitam. Sabem o que em outras épocas foi dito. Sé as dizarrias do Tempo sdo responsdveis desta simultaneidade cronolégica entre organi- sagbea defuntas ¢ a nova vida do movimento operdrio. Num momento revoluciondrio da sua existéncia, Alezan- dra Kollontai teve consciéncia de meia contradigéo do leni- nismo: (*). Meia contradigéo 86, porque cabe perguntar que revolugéo é que pode ser conseguida pelo tipo leninista de partido. Mas essa é uma pergunta que, dentro do campo da teoria proletdria do modo de produgéo capitalista—dentro do campo marzista —s6 ha ndo muito tempo comeca a ser feita. # uma das perguntas a que 0 livro que se segue tenta responder. Trés factores me levaram a abandonar o natural politico em que sempre havia vivido e a perguntar se seria to «natural» como se diz. A derrota da «revolugéo cultural», de que me apercebi tardiamente em fins de 1971, foi, crono- logicamente, o primeiro deles. A universidade € uma boa escola de obediéncia, dat que os nossos estudantes maoistas € us jovens tecnocratas pré-Pequim consigam néo perguntar @ si préprios como € que uma revolugéo que se fez contra Liu Shao-ch'i € T’eng Hsiao-p’ing termina «triunfante> com Tieng Hsiao-p'ing no poder, Educados para servicais pela velha burguesia, estes novos servicais das novas burguesias * ndo tém olhos para o esmagamento das comunas chinesas, Para 0 apoio do governo de Pequim aos massacres no Ceiléo, para toda a politica contra-revolucionéria do partido comu- nista da China. Porém, para os revoluciondrios, a derrota da crevolugéo cultural» foi, como a NEP ou os processos de Moscovo o foram para a geragéo anterior, um rebate na consciéncia tedrica. Os dois outros factores, @ luz da expe- riéncia dominante da «revolugdo cultural», foram toda a minha actividade em organizacées leninistas e a contradigdo que verifiquei entre a pratica ai posstvel ¢ @ prética revolu- ciondria que era meu fito, e 0 estudo a nova luz de expe- riéncias histéricas cuja verséo oficial tinka hé muito arqui- vada como certa, ou tinica. E que ndo o era. (*) A. KOLLONTAJ, «La oposicién de trabajadores> (Moscovo, 1921) in Frits KOOL, Erwin OBERLANDER, Documentos de la revolucién mundial 1— Democracia de tra- bajadores o dictadura de partido, Edita Zero, Madrid, 1971, P. 205, (Edigéo portuguesa de Ed. Afrontamento, Porto, 1973). 7 Nao se tratou, para mim, de uma mudanga nos objectivos bésicos da minha prética revoluciondria. Nao se muda volun- tariamente de praticas. Estamos condenados a actuar de uma forma ou outra consoante as posigdes sociais para que vamos sendo conduzidos. Trata-se de uma tentativa de defi- nigdo de um sistema tedrico que melhor conceba as aspiragdes fundamentais dessa pratica. Sem divida que a continuagéo do estudo me fard modi- ficar algumas, muitas, ou talvez até a maior parte das teses € das andlises adiante expressas. Um ponto, no entanto, néio decorre nem do estudo erudito nem da andlise da prética & cego ao que se chama a experiéncia: 6 0 ponto de vista geral sob que todo o texto é encarado—e esse provém directamente, sem mediacées, da posigéo de classe que se assume. A teoria néo € mais do que a sistematicidade do conhecimento de uma pratica. # um cone invertido, que a partir de wm ponto tinico—o da prética iniciat—que cons- titui o seu vértice, se expande num infinito contido nos limites por essa pratica determinados. 0 comunismo como dominancia dos produtores socialmente organieadoa sobre a producdo; a realizagéo do, comunismo como fuaéo do politico no econémico pelo poder cada vez mais directo do produtor tanto no politico como no econémico; os consethos de fébrica como condigéo da realizagéo do comunismo ¢ institulgéo dessa realizagéo — estes, que sao 08 princtpios base de todos os desenvolvimentos tedricos do livro, néo resultam nem da minha leitura dos cléssicos ou sequer dos marginale irreve- rentes, nem do matutar solitério. Sao a propria consequéncia imediata, inelutével, que por si mesma se impte—e, por isso, evidente e, por si 86, l6gica—da prdtica que proseigo, ou seja, daquela em que inevitavelmente me ineiro pelas condigdes concretas que determinaram o meu desenvolui- mento. Neste texto, cedo tudo 4 critica provissria ou definitiva. Todas as teses, todas ag andlises, todas as construgdes, argicias, dedugdes e desenvolvimentos tedricos, tudo 1#80 cedo de bom grado. A um sé ponto me atenho. E esse 6 0 que resulta imediatamente da minha prdtica, indiscuttvel Porque ndo vem do nivel do discurso, mas the 6 imposto pela prdtica sempre-jé-dada, como base € fundamento légico desse discurso. Aqui néo hé nem poderia haver a minima concessdo. © comunismo, a sua realizagéo € as condigdes € instituigdes desea realizagdo ndo dependem do debate teérico mas, ime- diatamente, da posigéo jé-dada ocupada por cada qual na prética social. B al que as vias se unem ou separam, inelu- tavelmente. Das vérias pessoas a quem dei a ler a primeira verséo deste livro, algumas — poucas —ajudaram-me com criticas, sugestdes e hipdteses de trabalho, Em certos casos refiro no texto essa colaboracéo. Noutros casos, as criticas e as hips- teses de trabalho foram aceites sem que mencione a quem as devo. Noutros casos ainda, tenho consciéncia de que certas criticas feitas sao vélidas, pelo menos em parte, Mas é-me imposstvel assimilé-las no actual estddio de desenvolvimento do meu estudo, Elas constituem, pois, alguns dos objectivos que, no prosseguimento do estudo, me proponho atingir. 18 de Agosto de 1974 «(...) € evidente que o jovem julgava, de boa-/é, que se tinha exprimido, ndo através de lugares- -comuns da propaganda, mas sim em termos absolutamente concretos e reais. Para ele, aquelas formulas, tao indecifréveis quanto gastas, cona- tituem @ verdade.> ALBERTO MORAVIA, A revolugéo cultural chinesa PARTE I LEl DO VALOR E LE! DO INSTITUCIONAL SECGAO A A LEI DO VALOR A estrutura do modo de produg&o capitalista produzida pelo Pensamento revolucionério desenvolve-se em torno de um ponto teérico central—a lei do valor. Trata-se de uma lel de ten- déncia, quero dizer, que rege tanto o modo de produgéo como © desenvolvimento desse modo de produgéo, determinando-lhe na estrutura a propria mecdnica do seu desenvolvimento. E a lei do modo de produg&o capitalista no processo da sua exis- téncia, por isso a sua vigéncia como lei dominante basta para caracterizar a existéncia do capitalismo. Igualmente 0 termo da vigéncia da lei do valor representa, a nivel teérico, a extingdo real do capitalismo. 13 CAPITULO 1 O CAMPO DA CONSTITUICAO E DA VIGENCIA DA LEI DO VALOR No capitalismo, o proletariado néo é uma parte indiferente, nem testemunha nem juiz, mas ocupa um lugar muito preciso € pela sua éptica estrutura o modo de produgéo numa hierar- quia pecullar sobre a base de questées que a essa luz so consi- deradas essenciais e em toro da lel assim produzida como eentral. Para o proletariado, agente vivo e sofredor do modo de produgio capitalista, este constitui-se como uma forma dada de incorporagéo de trabalho vivo (forca de trabalho) no trabalho morto (capital), caracterizada pela apropriacéo, sob forma de assalariamento, do trabalho vivo incorporado pelo trabalho morto em que se incorpora. Neste crescimento do capital sob o poder, a impulsdo e o ritmo do proprio capital reside para o proletario todo o segredo do capitalismo, Como produz a riqueza uma riqueza maior? A lei do valor a resposta estrutural objectiva desse mistério, mas o mistério 86 existe para aqueles que aumentam a riqueza, porque para os outros funciona como uma questo a silenciar, no fonte de per- guntas a resolver mas campo de diividas a calar. Ou melhor: para © capitalista o acréscimo do capital nao levanta qualquer questao porque é, em si, a propria resposta, 0 axioma capitalista do modo de produgao. Se toda a teoria proletaria do modo de producéo tem por finalidade dar aquelas perguntas uma resposta que 2 nossa pratica determina imperiosa, a organizacdo teérica bur- guesa do modo de produgio tem como ponto central—sob o Ponto de vista proletario—a nao colocagdo dessas questées, ou & sua colocagdo como no-questées. Nem voluntarista, explicando o crescimento do capital pelo desejo rapinante do capitalista; nem moralizante, explicando-o pela aplicagSo usurdria da moeda indevidamente entesourada; nem aleatéria, explicando-o pelo lucro na venda por um preco superior ao prego médio—a lel do valor explica o crescimento do capital pelo préprio modo da constitulgdo deste, Inelutavel crescimento, enquanto o processo econémico assim se constituir. 1s A lei do valor estabelece o valor como o tempo de trabalho incorporado num produto e, nesse acto, delimita-se o campo histérico da existéncia de valores, bem como o campo de actuagao pratica de que resulta a lei do valor enquanto formu- laco tedrica. A existéncia dos valores é histérica néo, claro esté, no sentido de que s6 no modo de produgéo capitalista os produtos incorporam tempo de trabalho, mas no sentido de que © tempo de trabalho incorporado é um critério especifico a0 modo de producdo capitalista e sé nele assume significado econémico. © tempo de trabalho incorporado como critérlo econémico e 0s produtos como realizagées materiais do tempo de trabalho s6 tém sentido nesta estrutura de producéo, mas, ai, assumem o significado central. Os valores, porém, nao sé so histéricos, como a lei do valor é uma das alternativas tedricas possiveis no interlor desse perfodo histérico e resulta dos campos sociais praticos em que nos integramos. & preci samente o facto de um dado tipo de valor (a forca de trabalho), medido portanto pelo tempo de trabalho nele incorporado, incorporar nos outros tipos de valor um tempo de trabalho superior ao incorporado em si, que nos explica a multiplicagéo do capital. A lei do valor gecorre, portanto, de relacées socials muito precisas, que estabelecem certos individuos como multi- Plicadores assalariados do capital e outros, os detentores do capital, como assalariadores dos detentores do valor que o multiplica. Relagdes sociais que conjugam portanto, sob o con- trole dos primeiros, o capital e os multiplicadores do capital. Se toda a existéncia dos multiplicadores do capital 6 uma fun- do dessa multiplicagso, se dai decorre o seu ser de proletrios e @ razéo que possuem desse ser, é em torno desse ponto essencial constituido pela sua posigéo pratica na produgSo que © proletariado vai organizar a explicagio do modo de produgSo. Quando todo o proceso econémico assenta em relacées socials que se constituem na incorporagéo num produto de um tempo de trabalho superior ao incorporado no produtor, ou, mais pre- cisamente, quando esse desfasamento € 0 centro da dinAmica econémica, entéo o problema do tempo de trabalho aparece pare o produtor como o problema central e a lel que rege 8 fungéo desse tempo de trabalho na producSo constitul-se como @ lel central do modo de produgdo. Sé nessas relagées sociais, 86 por elas e s6 pelas perspectivas particulares de um dos campos dessas relagdes € que o tempo de trabalho como expli- cagho do funcionamento da economia desempenha um papel, A lel desse papel especifico, a lei do valor, tem a sua vigéncia condicionada pela validade e pela perspectiva do seu objecto. Marx, na Contribuicdo 4 critica da economia politica e em © Capital, pretendeu deduzir a lel do valor no nivel do discurso teérico e, depois, definir a mais-valia a partir da lel do valor, como seu corolario, Mas néo fol este o processo real de produgio da teoria revolucionéria do capitalismo, e téo somente uma forma da sua exposi¢ao. Nao interessa por agora que esse modelo expositivo revele ainda a dominéncia de formas idealistas em certos campos do pensamento de Marx, fazendo-o apresentar a sua aniilise do sistema capitalista como «verda- detrap, isto é, independente da pratica social de um dos corpos de agentes das relagées de produgo e pretendendo impér-se como nica mesmo & pratica dos outros agentes antagénicos. Na continuagéo do estudo poderé o leitor ver que este é um dos sintomas de outra ambiguidade de Marx, muito mais impor- tante. Fundamental, de momento, é sublinhar que a mais-valla € 8 base da teorla revoluciondria do capitalismo e que essa base € @ representagéo ideolégica imediata de uma pritica social imperiosa, nfo uma dedugdo nem um coroldrio. A lei do valor € a formalizagdo légica generalizada da mais-valia. A mais-valia, que a posi¢io pratica dos produtores determina como central, assimila a si toda a restante realidade do sistema, de modo que é verdadeira base da lel do valor e das restantes forma- lizagdes légicas da teoria. Posso, pois, estabelecer como tese da maior importancia que @ existéncia de valores, isto é, produtos medidos em fun¢So do tempo de trabalho que incorporam, néo é uma caracteristica inerente & natureza desses produtos. £ a natureza assumida pelos produtos em dadas relagdes de producfo e segundo a éptica de um dos campos dessas relagdes. Tais relagSes de pro- dugéo produzem, para os proletarios, como elemento central o tempo de trabalho incorporado nos produtos porque é em torno esse tempo de trabalho que gira a multiplicagio dos pies do capitalismo, 0 acréscimo do capital, a mola real deste modo de Produg&io: o fundamento estrutural da exploragéo. Em sums, quando © tempo de trabalho incorporado num produto se torna um elemento importante —ou melhor, o elemento importante— € porque ele é produto do modo de produgdo capitalista. O capl- talismo néo produz s6 produtos. Produ-los em condicdes que véo determinar como realidade econémica desses produtos o tempo de trabalho que incorporam. E essa a sua realidade capitalista, para uma razéo que tem por base a pritica social 2 7 dos produtores. E o fulcro da constituicéo de dadas relagdes de Produgéo que determina a Optica por que se afirma e se afere a realidade dos seus produtos. A lei do valor, como fundamento légico geral da teoria do capitalismo, é, pois, produzida como lel no préprio capitalismo. EF isto, até, que caracteriza uma estrutura global: @ producéo em si propria da sua propria lel. 18 CAPITULO 2 A SEGUNDA DETERMINACAO DA LEI DO VALOR A lei do valor determina o valor do produto como o tempo de trabalho nele incorporado. Mas esta determinagéo é insu- ficiente. A existéncia de miultiplas unidades de produgdo parti- culares € contraditéria com o cardcter genérico dos produtos no capitalismo, destinados a um consumo indeterminado. A lei do valor néo é somente a lel de um produto numa unidade de Produgdo, é ainda a lei do produto genérico abstracto de unl- dades de producéo particulares concretas. A lei do valor resolve a contradicéo entre a particularidade do produtor e a genera- lidade do produzido, convertendo cada produtor particular num produtor de generalidade e, por isso mesmo, eleva-o ao nivel dessa generalidade. Daqui, a subordinacio do produtor ao pro- duzido, que caracteriza o modo de producio capitalista. O meca- nismo dessa elevagéo do particular ao geral constitui na lel do valor uma nove determinacio, fazendo-a ser ndo sé a lel do tempo de trabalho incorporado num produto, mas a lel do tempo de trabalho minimo possivel de incorporar num produto Para que este seja produzido. E determinada deste modo que @ produgéo se eleva do particular ao geral e, para além do produto sempre concreto que é o resultado palpivel do seu labor, hd a sua finalidade economicamente determinada, que & de incorporar no produto o minimo possivel de tempo de tra- balho e, assim, dar 4 sua produgéo um cardcter de generalidade, Porque Ihe deu um fim comum ao de todas as outras. Cada unidade de produgdo produz, est& claro, produtos concretos e bem particularizados. Mas nao é essa a sua finalidade econémica, e somente o melo de a realizar, que a finalidade é geral e gene- ralizada —a diminuicéio constante do tempo de trabalho incor- porado. Deserevi atrés como a lei do valor era a lei de uma forma particular de revitalizagéo do trabalho morto pelo trabalho vivo e constituia assim a lei daquele modo de exploracdo que é 0 modo de produgdo capitalista. Podemos ver agora que a deter- minagao do tempo de trabalho incorporado como o tempo de 19 trabalho socialmente estabelecido como minimo numa dada época da producéo é ainda uma determinacéo do modo de exploragao. No centro da exploragio, reside o facto de uma dada forca de trabalho incorporar num produto um mator tempo de trabalho do que aquele que em si tem incorporado, ou seja, pro- duzir um mais-valor. Mas, se este é 0 aspecto central da explo- rag&o, a nova determinag&o descrita valnos permitir compre- ender a realizagéo da exploracéo como a necessidade de incor- Porar no produto nao sé um tempo de trabalho superior ao incorporado no forca de trabalho, mas ainda inferior ao incor- porado pelas outras unidades de produgdo nos produtos do mesmo tipo. Na sua primeira defini¢éo, a lei do valor era a lef da exploracéo da forca de trabalho numa unidade de pro- dugiio particular. Na sua nova determinacio, a lei do valor 6 a lel da realizacao geral da exploracéo na produgo generalizada das unidades de produc. Deste modo, a exploracéo do trabalho vivo pelo trabalho morto vai realizer-se na procura de condigées éptimas para a realizacio da mais-valia, resultantes da incor- Poragéo num produto de um tempo de trabalho inferior aquele que em geral é incorporado num produto do mesmo tipo. Tanto Para os vendedores da forca de trabalho como para os seus compradores, a explorag&o reside nessa compra ou, mals preci- samente, na sua utilizacdéo, na incorporagéo por essa forca de trabalho de tempo de trabalho no produto; mas, para os com- pradores dessa forca de trabalho, para os capitalistas, essa exploraco realiza-se na venda do produto, na garantla da sua aceitagio pelo mercado, o que exige a incorporagéo no produto de um tempo de trabalho menor do que o geralmente incor- porado, Ou seja, a exploracio reside no facto de o tempo de trabalho incorporado na forca de trabalho ser menor do que o tempo de trabalho que a forca de trabalho incorpora no produto; exploracéo realiza-se na incorporacéo no produto de um tempo de trabalho menor do que aquele que é geralmente incorporado naquele estédio das forcas produtivas. £ a lel do valor, nesta dupla determinacéo, que rege a exploracéo e a sua realizacSo, 0 modo de produgSo capitalista e o seu desenvolvimento. A primeira determinago da lei do valor constitul-se na generalizacao légica da producdo e da apropriagéo da mais-valia, Na sua segunda determinagio, a lei do valor nao se refere imediatamente a produgSo de mais-valia nem a sua circulagéo e distribuicSo, mas sim as condigdes da sua realizagéo ou, mais exactamente, @ parte dessas condices (as outras resultam da capacidade de compra dos assalariados e, portanto, do grau de exploracéo). A mais-valia apropriada nao é, por si, mais-valia 20 realizada e o capitalista néo vive da apropriacéo da mais-valta, mas da sua realizacio. Para tal, tem que garantir mercados e conquisté-los ou, numa fase monopolista, realizar na venda lueros supertores A média. A incorporagéo de um tempo de trabalho cada vez menor faz com que o capitalista possa jogar na antecipagso desse tempo minimo eo tempo de trabalho ainda considerado socialmente como o minimo necessério e, portanto, possa baixar os precos conquistando novos mercados, ou possa manter os preos realizando um sobre-lucro na venda, ou ambos 08 objectivos simultaneamente. Mas este diminutcao do tempo de trabalho nao resulta somente de transformagdes tecnolégicas operadas ao nivel de cada empresa particular, Cada unidade de produgdo esté dependente das condicdes gerais de produgso em que estreitamente se insere. Por isso, a segunda determinacio da lei do valor desencadeia um duplo proceso em que a dimt- nuigfio do tempo de trabalho incorporado nos produtos em vir- tude da remodelagao operada nas condicSes gerais da produgéo (com © consequente desenvolvimento do papel econémico do Estado e uma maior composicéio organica no capital apropriado directamente pelo Estado do que no capital privado) se articula com as remodelagSes tecnoldgicas nas unidades particulares de producéo. Esta segunda determinagao da lei do valor s6 pode, pols, ser estudada se desde o inicio nos colocarmos ao nivel das relages entre todas as unidades particulares de produgéo € destas com as condigées gerais da producéo. Na sua segunda determinacao, a lei do valor nao sé encontra a sua generalidade como sé a esse nivel pode ser estudada. Quando, na continuagéo, abordar o problema da relacionagéo dos varios centros capita- Ustas particulares, as questdes decorrentes da segunda determi- nag&o da lei do valor sero mais claramente entendidas. Podemos desde j4 considerar que é esta segunda determi- nagio da lel do valor que constitul a dindmica do desenvolvi- mento do modo de produgéo capitalista. Por um lado, é ela que leva ao desenvolvimento da produtividade e as crises de sobre-produg&io (de sub-consumo) e, por fim, a crise perma- nente; € ela também que, para desenvolver a produtividade, leva ao acréscimo da relacéo trabalho morto/trabalho vivo e & consequente baixa tendencial da taxa de lucro, & ela, por- tanto, que desenvolve o capitalismo na sucessio das suas for- mas. Por outro lado, é a segunda determinagéo da le! do valor que, pelo aumento geral da produtividade, leva a prépria dimi- nulgdio do tempo de trabalho incorporado na forga de trabalho e, assim, ao reforco da exploracéo, contrariando secundariamente os efeitos da baixa da taxa de lucro. (Secundariamente, porque a 2 unica forma de contrariar tais efeitos ¢ desenvolver as condigées que acarretam uma diminuicéo maior ainda da taxa de lucro. # precisamente este circulo vicioso que caracteriza a irresolucsio estrutural de uma contradicéio.) Portanto, a segunda determina- 60 da lei do valor néo s6 realiza a exploracao para o capitalista, como reforca a exploracdo para o operario. Lei do tempo de trabalho socialmente estabelecido como minimo num dado estédio das forcas produtivas incorporado num produto, a lei do valor constitui-se na esfera da produc&o. ‘Na sua primeira determinagiio, é constituida pela prépria orga- nizag&io social dos individuos no processo de producéo, é a lel das relagdes sociais na produgdo; na sua segunda determinagéo, é constituida na relacionacéo, na produgao, das miltiplas unt- dades de producio, é a lei da generalizagéo dessas unidades de produgio particulares, Deste modo, ¢ a lel da organizagio miitua dos dois grandes factores da produgso imediata (o tra- balho morto e o trabalho vivo) e € também a prépria lel do desenvolvimento dos aspectos materiais da produgo, quero dizer, a lei do desenvolvimento tecnolégico. Na sus primeira determinagio, a lei do valor rege a superagdo da particulari- dade dos individuos, organizados numa dada forma de produ- go; na sua segunda determinagao, rege a superagéo da parti- cularidade das unidades produtivas, movidas num dado objectivo da produgéo e tecnologicamente articuladas com as condigées gerais da producdo. Na primeira determinagao, é estabelecida pela concorréncia antagénica dos grupos sociais no processo de producio, que constitui a base determinante da luta de classes; na sua segunda determinagéo, é constituida na concor- réncia complementar das varias unidades de produgéo no pré- prio processo de produgio, que estabelece as bases da diver- géncla de interesses no selo da classe dominante no modo de produgio capitalista, Na articulagéo de ambas as suas determinagées, a lel do valor rege a globalidade da produgo e 0 processo do seu desen- volvimento, rege o nivel determinante da esfera econémica. Ela € a lei do, e constitufda no, processo de producdo capita- Usta. A let do valor, para retomar o enunciado com que abri esta seccdo, ocupa o centro da estrutura tedrica do modo de produgéo capitalista, CAPITULO 3 A DISTRIBUICAO E A APROPRIACAO DA MAIS- -VALIA E O PROCESSO DE RELACIONACAO ENTRE AS VARIAS UNIDADES PARTICULARES DE PRODUCAO Se a segunda determinagiio da lei do valor se constitui na relacionaco generalizante das varias unidades de producio Particulares, o estudo do processo material dessa relactonagio e do que sobre ela se veicula € condig&o indispensfvel para uma compreenséo mais exacta da regéncia do capitalismo pela lel do valor. a) As contradigées do modelo marzista da apropria- (a0 € distribuigao da mais-valia ‘Ao nivel do proceso de produciio, nao ha qualquer relagéio entre um operério ou um grupo definido de operfrios e um patréo particular (ndo me refiro, evidentemente, as relacdes de caracter ideolégico-social que se possam estabelecer). A unica relacéo econémica parcelar, no capitalismo, é a que se esta- belece entre um certo numero de produtores, cuja individuali- dade é indeterminaével e, logo, inimportante, e um certo local de produgao. E, pois, uma relac&o meramente tecnoldgica. Ao nivel da produgao, a relacéio existe entre os produtores como classe e 0s capitalistas como classe, embora se mascare por um formalismo furidico que faz com que um certo aspecto da rela- io econémica, o pagamento do preco da forga de trabalho, se efectue segundo as unidades de propriedade. Indicarei no segui- mento do estudo uma dissimetria daqui resultante. Por agora, vou aprofundar a analise dessa relag&o estabelecida no pro- cesso de producéo ao nivel exclusivo das classes. As ideias de Marx sobre a apropriacéo da mais-valia tém como pressuposto que a mais-valia de que um capitalista se apodera € fundamentalmente produzida pelos operérios da empresa de que é proprietario. Admitem-se, é certo, miiltiplas variagées, mas decorrendo todas da accdo Incidente de factores externos sobre a lel-base que indiquel. Esta tese foi mantida e 23 conservada sem excepgdes por todos os tedricos marxistas poste- riores, qualquer que seja a corrente a que pertencam. Numa primeira aproximagio, vemos que tal tese entra em contradicSo estrutural com a concepcSo de Marx sobre as relagdes sociais na producio, em que se relacionam unicamente ‘0s operdrios como classe e os capitalistas como classe. A impor- tAncia central da concepeao das relagses de produgao no sistema tedrico de Marx, face A contradic&éo entre essa concepcfio e a que decorre da sua tese sobre a apropriacio da meis-valla, obrigaria ou a remodelar completamente aquela concepcao geral ou 8 adequar-Ihe esta concepeao particular. Mas esta tese de Marx n&o surge como problematica sé @ luz do sistema geral da sua obra. Efectivamente, € impossivel analisar o movimento da real!- dade & luz do modelo contido nessa tese. Se a mais-valia apro- priada por cada capitalista fosse aquela produzida pelos operé- rios de cada empresa em particular, nao existia, ao nivel da organizacéo social e politica, qualquer elasticidade, de forma que uma remodelaco politica, uma reestruturacio do aparelho de Estado, do exército, etc, terlam sempre que ser precedidas Por uma contabilizacdo adequada da mais-valia que sustenta essas instituigdes, para que se calculasse da possibilidade ou impossibilidade em que se encontraria cada capitalista parti- cular de contribuir para tals remodelacées, Na realidade, em sistema capitalista, as alteragdes institucionais—e todas eles so financladas pela mais-valia—tém lugar independentemente de qualquer contabilizacio da mais-valia dos capitalistas par- ticulares, como se o problema ndo se pusesse. Por outro lado, a tese de Marx sobre a apropriacio da mais-valia ¢ mantida como tal unicamente na sua exposicio abstracta. Logo que se passa a aniilise concreta, introduzem-se tantos factores particulares que @ pretensa lel-base e os seus efeitos desaparecem sob o amontoado das correc¢des. Cai-se, assim, numa forma de empirismo pragmético que impede o estabelecimento de leis clentificas sobre a apropriagéo da mais- -valla. A pretensa lel-base de que cada capitalista se apropria da, mais-valia produzida pelos operdrios da sua empresa cola-se uma outra concepcéo, contraditéria com a primeira, e que nfo se exprime como lel mas se afirma caso a caso, da qual se depreende que certos capitalistas particulares tém a possibili- dade de inflectir em seu beneficio a distribuicéo da mais-valia, indo-lhes parar ao bolso parte da mais-valia anteriormente apropriada por outros. Isto, que se apresenta como uma excep- fo & regra econémica, aparece afinal na anélise concreta como cy @ regra geral e, pior ainda, regra geral da qual ndo é dada nenhuma lei e que resulta sé da adicaéo sem fim de casos pre- tendidos particulares. Na obra de Marx, a tese da apropriacio da mais-valla ao nivel de cada capitalista particular ndo encon- tra qualquer estatuto tedrico, nao encontrando também nenhum apolo na andlise empirica dos fenémenos reais. b) Enunciado da teoria da distribuigéo e apropriagdo da mais-valia A mais-valia apropriada pelos proprietérios de dados melos de produgio nao é a mais-valia produzida pelos operdrios tecnologicamente ligados a essa unidade de produgéo ou juridi- camente relacionados, através da percepedo do saldrio, com uma dada unidade de propriedade. Os operfrios néo produzem mais-valia para capitalistas particulares, mas para a classe capitalista em geral. A apropriaggo da mais-valia por um dado capitalista, ou por um grupo de capitalistas, tem como base a circulagéo do produto (mercadoria) e como condi¢éo as rela- g6es de forca entre esses capitalistas (*). Assim, os capitalistas particulares néo se apropriam da mais-valia previamente & sua distribuigéo (redistribuicéo), como pretende o empirismo que acima referi, o qual concebe a distribuicéo da mais-valia como @ excepcao, caso a caso, da pretensa lei geral da apropriagio particularizada da mais-valia. A distribulcio da mats-valia é © primeiro movimento e é em virtude dele que se processa, depots, a apropriagéo da mais-valia pelos capitalistas parti- culares. ‘Temos deste modo uma profunda dissimetria, de que atras me limitel a nomear a existéncia, entre a relagdo Juridica do assalarlamento e @ relagio econémica da produgio da mais- -valia. Na produgéo da mais-valia, os operarios relacionam-se com toda a classe capitalista; na percepcio do salério, rela- clonam-se com um proprietario capitalista particular. Em qual- quer dos casos, 0 Indo operério da relag&o nao abarca a totali- dade dos produtores, e sim uma fraccéo. Isso deve-se as condi- (*) Nesta formulacao elementar, esta tese deve-se a José Mariano Gago, baseado na leitura da primeira versio do pre- sente livro. Dos seus desenvolvimentos, que se seguem, sou eu © unico responsdvel. A colaboraco tedrica e pratica que durante algum tempo mantive com J. M. Gago esté hoje—e felizmente —encerrads. ges tecnologicas da produgéo, que impedem a existéncia de uma s6 unidade de producdo, tecnologicamente integrada, Mas @ possibilidade de completa circulagéo da méo-deobra e a indeterminabilidade, enquanto elementos particulares, dos ope- rarios que laboram numa dada unidade de produg&o ou de pro- priedade, retira a esse fenémeno qualquer significado econé- mico quanto ao assunto que esté aqui em Jogo. O resultado desta dissimetria € que, enquanto a taxa de lucro (mv/c+v) de uma dada empresa resulta de uma relacio estabelecida entre © capital global dessa empresa e @ mats-valia que Ihe é distri- bufda, sem qualquer relacio imediata com a mais-valia nela Produzida pelos operdrios da empresa, a taxa de mais-velia (mv/¥), ou seja, o nivel da exploragdo operéria, resulta de uma relagéo entre a mais-valia produzida pelos operdrios numa empresa e o capital varidvel dessa empresa. (Na realidade, nem sequer esta relacio é exacta, Os operirlos de uma empresa relacionam-se so com parte do capital variével dessa empresa e relaclonam-se com uma parte do capital variivel de todas as outras empresas, na medida em que entram em relacfio com as condicdes gerais da producéo. Inversamente, em cada empresa ha uma parte de capital varidvel que se relaciona com a globalidade da forca de trabalho. Neste estAdio da andlise, no entanto, tomo a formulacéo acima, para maior simplicidade.) Mas, ainda aqui, o aspecto juridico constitui uma aparéncia ideolégica da realidade econémica: A taxa de mais-valia tam- bém nao constitul uma relacéo entre operérios particulares e capitalistas particulares, porque a relacio de exploracio néo se estabelece com a empresa (c+v), mas sé com um aspecto desta (v). Ou sefa, o capital variével é, sob este ponto de vista, © ponto de articulacéo dos operarios com @ empresa, e nfio a empresa, A nads—a néo ser & tautologia—se pode chegar tirando ilagdes do facto de os operérios se relacionarem com a empresa através de um ponto (v) definido precisa- mente como o ponto dessa relacdo. Desta dissimetria resultam ainda diferencas essenciais entre a luta da burguesia e a lute operaria, mas nio as abordarel aqui. Regressemos, pois, aos problemas levantados pela distribuigio da mais-valia. A articulagéo da distribuicéo da mais-valia com a produgio da mais-valia assume uma forma idéntica a de outras articula- g0es pensadas na légica marxista, a que chamarel relagSes de sobreposicéo. A relacio de sobreposig&o nfo constitul uma articulagio de um fenémeno tido como particular com outros fenémenos particulares (produgo da mats-valia pelos operdrios de uma empresa particular —distribuicio dessa mais-valla aos Proprietérlos do capital dessa empresa particular), néo sendo Portanto uma mera relacéo de expresso cuja identidade expres- siva, neste caso, seria precisamente a mercadoria. Numa relagSo de sobreposicéio, a ums estrutura geral como que se cola uma outra estrutura geral, tendo ambas leis internas distintas e movimentos internos, ou seja, a dinamica das suas relagées internas, distintos também. Mas uma, chamemos-Ihe Estru- tura 1, € dominante da outra, a que poderei chamar Estru- tura 2, entendendose essa dominancla da maneira seguinte: E a El que marca o perimetro e os limites da E2, e fé-lo ime dlatamente, isto 6, o perimetro e os limites da E2 séo, por defi- nig6o, os da El. Neste caso, sendo a distribuigéo da mals-valia @ E2 da El producio da mats-valia, ndo é dificil compreender que néo pode ser distribuida mais mats-valla do que aquela produzida, nem menos. Como coroldrlo, é a E1 que define todas ‘a variagSes nos limites da E2: qualquer aumento ou diml- nuicio da mais-valia produzida € um aumento ou diminuigéo da mats-valia distribufda. Esta relagSo de sobreposicgo é uma figura légica produzida no merxismo e somente nele. Penso que é deste modo que pode- mos definir rigorosamente, e nao intuitivamente, os nivets da estruture global. Serdo niveis equeles que entre si se relactonam por relagSes de sobreposi¢éo. Mas regressemos ao nosso assunto. Se a apropriagéo de mais-valia nio decorre da relacho de capitalistas particulares com operdrios particulares, mas € um resultado da distribulgdo prévia da mais-valia global, entéo a compreensio dos problemas dessa apropriacdo resulta de uma andlise da distribuigéo, na sua base e nas suas condicbes. Chegou a altura de desenvolver teoricamente aquilo que atrds enunciel sob forma de defini¢éo: que @ apropriagSo da mais- -valia por cada capitalista tem a circulagéo da mercadoria como base e as relagées de forca entre os capitalistas como condigao. ¢) A base da distribuigdo e apropriagdo da mais-valia Imaginemos que A, empresério industrial, vende uma mercadoria K a B intermediério, o qual a vende a C reta- Inista que, finalmente, a vende a D consumidor, Sobre este exemplo simplificado, reformulo aquilo que em Marx se apre- senta como o modelo explicito da distribuicéo e apropriagio da mais-valia: considerar-se-ia que a mais-valia particular 27 daquela mercadoria particular X se realizara, nfo s6 no que A ganha da sua venda a B acima dos salérios pagos, como na soma @ esse quantitativo dos sobre-precos por que B a vende a C e Ca D. De forma que @ mais-valia incorporada naquela mercadoria X se realizaria na diferenca entre o prego de venda de A a De o preco da forca de trabalho incorporada nos pro- dutores de X (ineluindo a incorporada através do desgaste dos instrumentos de producdo, do uso de matérias-primas, etc.). Disse Jé que esse modelo de antilise, a ser aceite, exigiris a reformulagéo da teoria marxista sobre as relagées de classe entre operarios e capitalistas e, porque esta teorla aparece como 0 fulero légico de todo o sistema, exigiria a reformulacSo de toda a teorla marxista. Néo quero extrair daqui um finca-pé dogmatico, mas parece-me que & possivel criticar esse modele segundo os préprios conceitos marxistas. E isso que procuro fazer. Mostrei também que a rigidez deste modelo néo permitia compreender as remodelagées politicas e sociais determinades a nivel econémico. Finalmente, disse que o préprio Marx e os marxistas em geral eram obrigados a apor a tal modelo uma grande quantidade de excepgdes, quando queriam analisar casos coneretos. Parece-me que tanto @ anélise concreta do processo econé- mico nos seus aspectos, como o desenvolvimento abstracto da estrutura econémica do capitalismo, levam & teorla da distri- buigéo da mais-valia acima definida. Comecemos por ver o lugar ocupado nessa concepgdo pela circulagéo do produto. Mesmo abstraindo do processo de distribuiggo e, portanto, da forma de aquisicaéo da mais-valia, nfo € dificil compreender que ndo hé realizagio de mals-valia sem venda do produto. Se a mais-valia incorporada num produto nfo se realiza na venda, ela é, para o capitalista, um zero econémico. Para o capi- talista, a mais-valia comeca a existir quando, para o proleta- riado, deixou de existir. © operdrio realiza imediatamente a mais-valla do capitalista no processo material de trabalho por- que, para ele, a mais-valia é uma categoria negativa, uma altenagdo. Para o capitalista, a mais-valia comeca a existir quando o operério a aliena mas, porque ela é agora, sob este novo ponto de vista, uma categoria positiva, exige uma realt- zagéio independente da sua realidade material no processo de trabalho. Exige o seu reconhecimento social e, porque reconhecer significa equiparar, selar algo como igual a outro, a realizagéo ds, mals-valia no reconhecimento social significa a sua troca por algo que Ihe é equiparado. E este um dos aspectos da contradigao social que fundamenta 0 modo de produgio capitalista. O pro- cesso de produgdo capitalista ¢ um processo de incorporagéo de mais-valia, um processo de producao de valores de troca. Mas os valores de troca sé o sio se @ troca se puder efectuar, se eles forem para isso reconhecidos como valores de uso. O con- sumo ¢ o reconhecimento do produto enquanto tal, o seu reco- nhecimento como néo-zero econémico. £ esta a aleatoriedade do modo de producio capitalista: os produtos s&o produzidos como valores de troca para serem realizados como valores de uso. Trata-se de um duplo critério, que mede o objectivo da Producéo por uma bitola (os valores de troca) e o éxito desse objectivo por outra (os valores de uso). Esta ciséo entre o objectivo e 0 éxito do objectivo, esta verdadeira duplicidade estrutural, é caracteristica do capitalismo como modo de pro- dugio. Se néo hé realizacio sem uma equiparagéo social através de um reconhecimento por troca, a venda do produto € o local formal de realizagéo da mais-valia. E a formalidade desse local desenvolve-se cada vez mais relativamente & sua realidade. © importante para o proceso econdémico nio é 0 momento em que os produtos trocam efectivamente de maos, mas aquele em que essa troca é declarada como efectuada e socialmente con- sentlda. Marx analisou esta separagdo crescente entre a circula- do monetaria e a circulacéo dos produtos. O crédito veio elevar tal separacao e, por conseguinte, a formalidade do local de reali- zagao da mais-valia a um nivel superior, de modo que, com a sua extensio, a circulacio do produto passou @ ser substituida pela eireulagéo da sua ficcio. Como na «Dama de Changai», para um homem sé hé centos de milhares de imagens reflectides—porque nao sé elrcula a ficgo de um produto, como para cada produto se multiplicam as ficgdes, A inflacdo € 0 nome monetério deste fenémeno e a desvalorizagéo € 0 reconhecimento dos direitos do real todo-poderoso. A venda de uma mercadoria é, pois, o local necessério para se realizar em dinheiro (e, por af, em novos produtos) uma dada mais-valia. Sob este ponto de vista, o prego de uma mer- cadoria é, nfo a realizagéo do seu valor, mas a realizacio desse valor acrescido ou diminufdo da mais-valia distribufda ao seu vendedor. E este o verdadeiro campo de explicagao do celebrado mistério da discrepancia entre valor e prego. Disse que o valor € © prego constituiam duas estruturas distintas, lmitada a estrutura preco pela amplitude da estrutura-base valor e regen- do-se cada uma por mecanismos especificos. S6 a partir daqui se poderiam analisar de modo clentifico as leis do mecanismo dos pregos. 29 a) As condigdes da distribuigéo e apropriagéo da mais- ~valia. A venda como realizacio da mais-valia nao resolve o pro- blema da distribuicdo dessa mais-valia e das leis que presidem a tal distribuico. Vimos ja um primeiro nivel, 0 da producao da mais-valia, no campo do processo material de trabalho e articulando as classes operaria e capitalista globalmente consl- deradas. Acabel agora de analisar um segundo nivel, o da cir- culagéo e venda dos produtos como base da apropriacio da mais-valia distribuida, quer dizer, enquanto local formal do reconhecimento social dessa mais-valia como ndo-zero econd- mico, como garantia do objectivo da producio pelo critério distinto do seu éxito. Passo agora a considerar um terceiro nivel, o das relacdes internas entre os capitalistas, que explica @ reparticéio da mais-valin que cada um terd para reallzar. Ou seja, para empregar os termos de hi pouco, depois de ter analisado a base da distribui¢do e apropriagio da mais-valia, vou estudar as suas condigées. Relembro uma vez .mais 0 modelo marxista tradicional. Partindo do pressuposto de que a mais-valia de que um dado capitalista se aproprin ¢ aquela mesma que é produzida na sua fébrica, a ortodoxia marxista € obrigada, na andlise dos casos concretos, a apelar para intimeros factores externos que, fazendo variar as consequéncias daquele pressuposto teérico, expliquem como um capitalista pode conseguir apropriar-se de mais (e, reclprocamente, outros apropriarem-se de menos) mals- -valia do que aquela que é produzida nas unidades de pro- priedade em seu poder, Em geral, nessa anélise concreta, ¢ consoante os factores de variacio que se fazem Intervir, os marxistas vulgares distinguem duas fases histéricas: na primeira fase, os factores de variacdo existentes sfio a lei da oferta e da procura; na segunda fase, a importéncia desse factor dimi- nul e o factor preponderante residiria agora na intervengio do Estado a favor de um ou outro capitaliste particular, sendo essa intervencéo entendida ou de forma moralista, como cor- Tup¢de de politicos, ou, no melhor dos casos, como uma accho para-econémica do Estado, mas exterior a estrutura econémica de producao propriamente dita. Quando as leis da oferta e da procura aparecem como o factor de variagéo na regulagéo das relagées inter-capitalistas, essa variagéo e as relagées dela decorrentes entendem-se inteiramente determindvels pela relacéo 30 consumidor-produto. Segundo esse modelo, a incapacidade em que cada empresa esti de proceder a um cilculo de distribui¢fio anterfor ao célculo na producdo fi-las depender de uma adapto- go @ posteriori da producéo & distribuiciio, através do fenémeno violento das crises. As relagdes inter-capitalistas seriam, pois, dominadas por este factor de ocasionalidade—no sentido de: exterior ao campo sobre que incide— e a lei da oferts e da Procura escolheria cegamente as suas vitimas e oS seus eleitos. ‘A Roda da Fortuna no tempo dos chapéus altos. Ora, factualmente, esta andlise € sé parcialmente exacta, © que significa que, enquanto teorla, é inexacta. Para que a Jel da oferta e da procura fosse o nico regulador das relacdes inter-capitalistas nesta fase livre-concorrencial, necessério seria tomar por hipétese a equivaléncia econémica completa de cada empresa. Essa igualdade nfo sé é concretamente inexistente, como estruturalmente impossivel. Se a dinamica do capitalismo 6 regida pela segunda determinagdo da lei do valor, ou seja, Pela incorporacso nos produtos de um tempo de trabalho cada vez menor, o desenvolvimento desigual é a unica forma que pode assumir o capitalismo na sua evolucdo. Efectivamente, dizer que se incorpora num produto um tempo de trabalho cada vez menor exige um termo de comparagiio e vimos j& que essa bitola geral era o tempo de trabalho socialmente reco- nhecido como necessério, Isto significa que a evolugdo do capt- talismo se processa pela forma seguinte: em cada momento, hh& empresas que incorporam num produto um tempo de tra- balho menor do que o incorporado pela generalidade das restan- tes, Hé, pois, uma permanente desigualdade relativa. As empre- sas que Incorporam um tempo de trabalho inferior ao social- mente reconhecido realizam melhores precos. Mas no se lim!- tam a realizar em melhores precos a mais-valia produzids. Realizam também uma parte da mais-valia produzida nas outras empresas. A situagdo tecnolégica vantajosa em que estfio colo- cadas vai repercutir-se nas sues relacbes de forca com as res- tantes, ou seja, 8 forca de cada capitalista no campo em que conjuntamente se relacionam decorre também das caracteris- ticas tecnolégicas do processo de produgSo nas empresas res- pectivas, consoante a din&mica imposta pela segunda determi- nag&o da lei do valor. H& dois campos de relagdes inter-caj talistas, No primeiro, essas relagdes so indirectas e néo aparecem explicitamente como tais; é o mercado, em que 08 capitalistas se relacionam entre si porque, e na medida em que, a producfio de cada um se relaciona com o consumo parti- cular, na medida em que um valor de troca é também valor at de uso. Neste caso, os capitalistas relacionam-se menos do que ‘Sho relacionados. No segundo campo, os capitalistas entram em Telagéo explicita e directa, e essas relagSes directas constituem até a definicéo formal vulgar de tal campo; refiro-me ao nivel do Estado. Quando Engels se referia a0 Estado como o érgao de gestéo dos interesses comuns dos capitalistas, produzia preci- samente esta defini¢éo, embora sé tenha retirado dela ilacdes Politicas e sociais. Veremos, agora, que esse campo de relagdes directas inter-capitalistas tem um papel econémico fundamental, © qual consiste precisamente na distribuigéo da mais-valia entre os capitalistas. © modo de producdo capitalista exige condigdes de produ- ho mais vastas do que cada unidade de producdo ou cada unidade de propriedade. Exige nao s6 ume dada forma de rela- gdes soclais, como a realizagéo material dos efeitos de tals Telagdes. O capitalismo sé pode desenvolver-se alargadamente sobre relagdes de troca dominantes em toda a sociedade. Essas relagées sociais de troca exigem condigées materinis, que séo as vias de comunicagéo (estradas, canais e, depois, caminhos de ferro, além das infra-estruturas para os meios de transporte fluviais, maritimos e aéreos). Nao ha mercado interno sem desenvolvimento das vias de comunicagao e dos meios de trans- porte. E, quanto mais se desenvolve o capitalism, mais as condigses materiais da sua existéncia ultrapassam o ambito Particular de cada unidade tecnolégica ou empresarial. Condi- ges gerais de produgio existentes sobre um capital parcelari- zado em miltiplas apropriagdes privadas, elas decorrem da ‘acgdo conjugada de todos esses capitais. Siio condigées mate- Tiais de produgéo no mesmo sentido que o so os instrumentos de produgéo ou as paredes de uma fabrica e contribuem do mesmo modo para incorporar no produto um tempo de trabalho sempre menor, durante o processo tecnolégico do fabrico. Simplesmente séo condigdes que dependem de todos os capl- talistas e nfo sé de cada um. Em © Capital, Marx € inteiramente cego ao problema, essencial para o entendimento do capitalismo, das condigdes gerais da produgdo. Formalmente, isso deve-se a0 facto de ter construido 0 seu modelo do capitalismo sobre a abstracgéo de uma sé empresa, quando a abstraccéo minima possivel para a compreenséo do modo de producdo capitalista reside num modelo de duas empresas, ou de duas unidades de produgao. 86 assim pode ser colocado o problema da sua relacionagéo material ao nivel da produgio. Mas esté claro que a abstraccio wsada por Marx néo resultou de uma escolha livre e deve Tevelar-se como expresso ideolégica necessiiria a uma dada Pratica. Porém, ndo é meu fito neste momento prosseguir a anilise das razées profundas do modelo usado em O Capital. Como ¢ que capitalistas particulares conseguem utilizar-se das condigées gerais de produgdo mantidas pela generalidade dos capitalistas para incorporarem, nos seus produtos partie culares, um tempo de trabalho menor? Colocando-se, relativa- Mente a essas condigées, numa situagdo favorével — favordvel pela proximidade, se se trata de vias de comunicacéo; pelas tarifas, se se trata de melos de transporte e outros servicos, e assim por dante. Por outro lado, aqueles capitalistas que contributrem menos, em relacio ao total do seu capital, para a manutengéo dessas condigées gerais da producdo realizam uma menor inverséo de capital constante, o que os beneficia duplamente, quer quanto @ diminuicdéo da taxa de lucro (visto que é menor, para eles, a parte de c na relacio mv/c+v), quer quanto As despesas de capital em geral, e podem assim proce der a remodelagées tecnolégicas nas suas unidades de fabrico particulares, Assim, as condigdes de produgdo gerais a todos os capitalistas tém uma dupla determinacao: por um lado, sendo condigées gerais sem as quals 0 processo de produgio néo pode existir, decorrem do capital global de todos os capitalistas; mas, por outro, porque séo condigées de produco, contribuem para a incorporacéo de um menor tempo de trabalho naquelas unidades de produgo particulares que esto colocadas em con- dig6es dptimas de aproveltamento e financlamento e, portanto, beneficlam capitalistas particulares. & este processo de trans- feréncla de parte do capital social para capitalistas particulares, ou melhor, de repartig&o desigual dos efeltos das condigées materiais gerais da produc&o, com a consequente incidéncia no campo da realizacio da mais-valia, que assume uma grande importancia para a compreenséo do problema da distribuicéo de mats-valla, A uma visio empirica, ou num célculo contabilistico ime diato, tudo aparece como se certas empresas particulares se apropriassem de mais mais-valia do que aquela que é nelas produzida e outras se apropriassem de menos. Basta, no entanto, esta formulacdo para verificar que desaparece o lugar atribuido a0 postulado de que as empresas se apropriam essencialmente da mais-valia nelas produzida. Esse ponto de referéncia perde todo o significado, Numa viséo teérica da estrutura econémica, tem de se elaborar o modelo seguinte: num primeiro movimento, @ mais-valia produzida em cada empresa é centralizada pela classe capitalista globalmente considerada e, num segundo 3 33 movimento, é distribuida aos capitalistas particulares. No entanto, como pare o célculo da desigualdade relativa existente na distribuicio € necessério comparar a mais-valia distribufda a cada empresa com a mais-valia nela produzida, resulta daqui um modelo contabilistico formal que apresenta 0 processo como se se tratasse de uma soma ou diminuigéo sobre uma base imutével que seria a da mais-valia produzida em cada empresa. E necessério que o leitor tenha sempre presente a facilidade ea simultane falsidade deste modelo contabilistico para que © compreenda no seu fundamento quando ele for usado. Comecei a anélise a partir de um aspecto relativamente superficial (por assim dizer), 0 da concorréncia tecnoldgica consequente & segunda determinagio da lei do valor. Posso, agora, reestruturar esse aspecto nos seus elementos internos, precisando-Ihe melhor a fisionomia. As remodelagSes tecnolégicas @ que as empresas procedem no processo de concorréncia na producto decorrem da distribuicio da mais-valia, em qualquer dos dois aspectos base sob que as podemos considerar, Em pri- metro lugar, quanto a melhor utilizagio das condigses da pro- dugSo em geral, isto é, quanto A remodelacdo da tecnologia dessa utilizagio, trata-se da apropriagio por parte do capita- lista privado de uma fraccéo relativamente maior da mais-valia produzida nessas condicées gerais da produgéo e nelas incor- porada, Em segundo lugar, no que diz respeito a remodelagio tecnolégica da unidade de producdo particular, ela deve-se tanto utilizagio de uma mais-valia precedentemente distribuida segundo as leis dessa distribuigéo desigual, como a aplicagéo de uma parte relativamente maior de mais-valia na remode- lagfo tecnolégica dessa unidade particular, enquanto outras empresas, pelo contrérlo, sio obrigadas a aplicar uma parte relativamente maior da mais-valia que Ihes foi distribufda no financlamento das condicées gerais da produgéo, de que néo serfo elas alias os principais utentes. Tanto a melhor utilizagio das condigées da produgéo em geral, como a remodelagdo tecnolégica das unidades particulares de fabrico, impdem a remodelagiio tecnoldgica dessas condigdes gerais de producio e © desenvolvimento sempre crescente da sua importancia. Mos- trei que a segunda determinacio da lei do valor eleva a produ- io da particularidade de um fabrico a generalidade de um Proceso, gerindo a relagéo capitalista/capitalistas. Podemos ver agora que é nessa concorréncia tecnolégica que se determinam no 86 0 estabelecimento das condiées gerais da produgéo — na origem do processo—como o desenvolvimento relativamente maior dessas condigées, se for comparado com o desenvolvi- mento tecnolégico das unidades produtivas particulares, e, deste modo, a relacionacéo desigual entre cada capitalista e as condicées gerais da producdo, a quel constitui o campo funda- mental da desigual distribuigéo da mais-valia. A distribuicio desigual da mais-valia, como forma de relacionagéo entre os capitalistas, decorre da segunda determinacdo da lel do valor. e) 0 «politicos como nivel das condigées da distribuicdo € apropriagéo da mais-valia i) Primeira fase: generalizacio a todos os capitalistas do acesso ao controle directo do Estado No estAdio pré-monopolista articulam-se dois tipos de rela- des inter-capitalistas, as relagbes dos capitalistas no mercado livre-concorrencial com us suas relagdes na sustentacio das condigées materiais gerais da producéo. Tal como na histéria do ovo e da galinha, ndo ha lugar para perguntar quem pre- cede o outro. Sio ambos fenémenos de uma mesma estrutura, ¢ é a estrutura, ou seja, a articulagao dos dois fenémenos, que € determinada, e néo um a gerar o outro, Se até aqui os vi isoladamente, vou consideré-los agora na sua articulacao, A lei da oferta e da procura néo vigora imparcialmente para todas as empresas porque ha desigualdades entre elas resultantes das posicdes relativas quanto as condigdes materiais Gerais da producao. Dessa desigualdade resulta um diferente tipo de reacgdo aos fenémenos da oferta e da procura, Inversa- mente, as reacgdes determinadas pela lel da oferta e da procura vao condiclonar a forga com que cada capitalista se epresenta nas relagdes directas, isto ¢, na manutencio das condigées gerais da produgdo. Esta dupla acco nao constitul um factor exterior a vida econémica, que sobre ela incida caso particular a caso particular, mas é um dos elementos fundamentals cons- tituintes do processo econémico, Da compreensio da accio dupla desta articulacio resulta a compreensio das condigbes de distribuigses da mais-valia, O marxismo clissico, isolando @ accdo da oferta e da procura, quer da desigualdade existente entre as empresas, quer da relacionagao inter-capitalista ao nivel da manutenggo das condigdes materiais da producdo geral, nao consegulu—quanto a este aspecto—ultrapassar o modelo especulativo que representa um capilalista apropriando-se da mais-valia produzida na sua unidade de propriedade e, consi- derando as verdadeiras leis da distribulgéo da mals-valia como fectores que s6 tinham relevancia em casos concretos parti- culares, impedia-se de produzir a teoria dessa distribulcdo. A partir da dupla articulagdo que estabeleci, podemos entender a distribuicéo da mais-valia como dominada essencialmente pelo lugar ocupado por cada capitalista relativamente & manu- tengdo das condigées gerais de produgio. A distribuic&o dos custos dessas condigdes, ao nivel das relagSes directas inter- ~capitalistas, bem como, so nivel das relagées produto-consu- midor, 0 efeito tido pela posigo relativamente a tais condigbes gerals, tornam essa posigéo o condicionante fundamental da distribuigso da mais-valla. As lels da distribuicéo da mais- -valia decorrem do nivel geral das reiacées inter-capitalistas, € no do nivel de cada processo de produgao particularmente considerado em que a mais-valla € produzida. Se as condigSes de produg&o nao sfo sé as determinadas ao nivel de cada pro- cesso de produgdo em particular: se, bem pelo contrario, a prépria eficécia das condigées de produgéo de um proceso tecnolégico particular depende da sua relagéo com as condi. cOes materiais gerais da producdo, entdo ¢ a0 nivel destas condi- Ges gerais que se determina a parte de mais-valia que vai caber @ cada capitalista. A realizacéo no prego pelo jogo da oferta e da procura é sobre-determinada pela relacionagéo inter- ~capitalista no nivel da manutengéo das condicées gerais da Produgio. Posso, agora, avangar um pouco na anilise e mostrar que as condigées de produgéo néo sdo unicamente tecnolégicas- -materiais. A repressio e os variados aparelhos ideolégicos, bem como a preparacao técnica da forca de trabalho, sfio tam- bém condigSes da produgio. Nao sé ¢ imposs{vel separar umes das outras tais condigdes de produgiio, como ¢ impossivel tam- bém separar essas condigées das relagdes inter-capitalistas sem as quais néo tém qualquer significado. No entanto, é pre- cisamente a uma dupla separacéo deste tipo que procedem os marxistas vulgares. Formalmente, os nossos ortodoxos tendem a definir o polttico por critérios empiricos semelhantes aos usados pela burguesia, Deste modo, «politicor € assimilado a parlamentar ou @ ministerial, quer dizer, a governativo no sen- tido restrito, deixando de fora intimeros sectores que, por nfo caberem na anélise, néo sio vistes, servindo a prépria cegueira de justificaco a posteriori ao facto de nfo serem considerados na anfilise. Assim, por exemplo, e para néo sairmos de Portugal, © Grémio Literdrio é politico? Cultural é que nao é!(*) Ea Sociedade de Geografia? E os organismos corporativos sala- zaristas? Politicos ou econémicos? Ou ambas as colsas? E, se ambas, até que ponto uma e até que ponto outra? Nenhuma destas perguntas tem resposta na viséo vulgar, nem sequer ha cabimento teérico para ai as formular. Mas, se tivermos em conta o estatuto basico comum das condigées gerais da pro- dug&o, tanto materiais como ideolégicas, e o facto de elas decorrerem das relagdes directas inter-capitalistas, poderemos definir como politico o nivel em que se estabelecem as relacées directas inter-capitalistas e em que se desenvolvem, nessas relagdes, as condigdes gereis da producao capitalista. O nivel politico é, assim, aquele que condiciona a distribuigdio da mais- -valla. Por isso defino como politicas as condigées de distri- buig&éo da mais-valia. Esta concepeso permitiré dar um passo mais na andlise. Se as relagdes directas inter-capitalistas decorrem da neces- sidade de manter as condigées gerais do processo de producto globalmente considerado, essas relagées, no seu proceso, desen- volvem certos automatismos particulares ou, talvez melhor, organizam-se com certa especificidade, de modo que as suas leis préprias siio as do mecanismo de distribuicfio da mais-valla. A lealdade e a simpatla, as familias e as afinidades ideolégicas, As antipatias ou oposigées de idelas, enfim, tudo o que agrega secundariamente os homens ou os divide tem na distribuicio da, mais-valia um efelto directo e constitui parte integrante do seu mecanismo. E o préprio processo interno deste nivel que faz com que a distribuicéo da mais-valia dependa de relagdes de forga entendidas cada vez mais no seu aspecto puro e, até, formal. Sob este aspecto, 0 facto de dados capitalistas serem pro- prietérios dos mesmos meios de produ¢éo, facto aparentemente importante, é meramente formal e sem qualquer efelto, por si sé, na distribuigio da mais-valia. E a pura relagio de forca entre os capitalistas que condictona essa distribuicéo. © papel do aparelho de Estado e a sua evolucio sé podem ser entendidos se os inserirmos no campo das relacées inter- (*) Estas linhas foram escritas em Janeiro. O golpe mili- tar de Abril desvendaria um pouco o papel do Grémio Literario. Mas logo este voltou a sombra. Verdadeira clandestinidade ¢ a dos contactos inter-burgueses! 7 ~capitalistas. O Estado € 0 local de resolugdo dos conflitos inter-capitalistas na medida em que puderem ser resolvidos pelo puro jogo das forcas politicas (como atrds definidas). A irresolugdo dos jogos de forcas chama-se, em politica, equi- librio, e 0 Estado € também 0 local desse equilibrio. O Estado € 0 reconhecimento institucional da fisionomia prevalecente nos Jogos de forcas inter-capitalistas, é a instituicio que garante praticamente que o mecanismo da distribuicéo da mals-valia resultaré do modo que esse jogo de forcas em si indicar. © Estado €, pols, 0 ponto formalmente central deste campo Politico, € a charneira das instituigdes desse campo. Recordemos ainda o modelo marxista tradicional de distri- buicéio da mais-valia: No estidio livre-concorrencial, a apro- Priaco por cada capitalista da mais-valla produzida na empresa de que é proprietirio aparece inflectida, na enélise concreta, por um factor de variagdo constituido pela lei da oferta e da Procure. Do que disse atris pode ver-se que: primelro, as condi- g6es de producdo em cada processo particular dependem da sua insercio relativa nas condigSes gerais (materiais, repressivas, ideolégicas e de preparacio técnica) de produgio. E esta inser- go relativa que vai condicionar fundamentalmente a capaci- dade de incorporar, ou no, um tempo de trabalho menor do que o socialmente estabelecido no momento. Segundo, as relacdes de forca dos capitalistas determinam a participacio nos custos dessas condicées gerais de producdo, de modo que os que contri- buem relativamente menos tém uma maior taxa de lucro e despesas de capital relativamente menores, pelo que podem Proceder a maiores inovacdes tecnolégicas nas suas unidades Particulares e, por af também, diminuir o minimo social de tempo de trabalho necessério para produzir um produto. Por Ultimo, do processo destas relagdes inter-capitalistas cada vez se desenvolvem mais as leis préprias de tais relagdes. Assim, a Jel da oferta e da procura limita-se a sobredeterminar o meca- nismo da distribuigéo da mais-valia, e dentro de limites bastante estreitos, porque ela propria é sobredeterminada pela distri- buigso da mais-valia, totalmente do lado da oferta e, do lado da procura, parclalmente (no que diz respeito a procura de meios de produg&o e matérias-primas e de bens de consumo de luxo, que dependem do mercado dos capitalistas). Em suma, o modelo marxista classico no permite a compreensio nem da distribulcso da mais-valia nem, como veremos, da realizag&o do valor e da mais-valia em prego. ii) Segunda fase: restrigio a alguns capitalistas do acesso a0 controle directo do Estado © modelo marxista classico varin numa segunda fase da evolugéo do capitalismo, em que se fazem intervir como facto- res de variacéo diversas manobras do Estado interferindo na economia em favor de capitalistas particulares, sem que, no entanto, a particularidade desses capitalistas e o papel-base do Estado mudem fundamentalmente. De imediato, é¢ possivel cons- tatar que esse papel do Estado, assim apresentado, nfo é de modo nenhum inovador, limitando-se os nossos ortodoxos a verem agora um fenémeno que antes ignoravam. Além disso, é evidente que o facto de relegar para segundo plano a lel da oferta e da procura ndo estabelece por si s6, ao modelo classico, um estatuto tedrico e, bem pelo contrarlo, deixa-o completa- mente indeterminado. Mas esta criti Porque nao ultrapassa © campo do criticado, levanta varios problemas. Porque é que © marxismo vulgar viu, neste segundo modelo, um fenémeno que ignorou no primeiro? Que alteragdes objectivas explicam essa mudanca de consciéncia? E como é que este novo modelo se insere na mesma estrutura do anterior? Por outro lado, qual o estatuto teérico assumido, nas novas circunstancias, pelo mecanismo da oferta e da procura? Resolver estes problemas — e ultrapassar assim completamente o modelo marxista vulgar — é analisar o capitalismo na sua evolucio e analisar como, nessa evolugéo, variou a fungiio do Estado no capitalismo, Avancemos um pouco neste caminho. A lei do valor na sua segunda determinacdo significa o desenvolvimento do capitalismo através da concentragiio do capital. E sabido que, devido & forma tecnolégica de cresci- mento capitalista, essa concentragéo do capital é um dos faspectos do aumento da composic¢ao organica do capital. Esse processo de concentracfio significa o aumento cade vez mais acentuado das disparidades nas relacdes inter-capitalistas. A concentracio de cada vez mais capital em cada vez menos polos tem, como reverso, a proliferagéo de polos (descontados os que, deixando de ser capitalistas, ingressam na tecnocracia ou, raramente, no proletariado) com cada vez menos capital, em numeros relativos e, por vezes até, em numeros absolutes. Este acréscimo da desigualdade nas relagSes inter-capitalistas vai ter consequénclas de monta na expresso institucional de tals relages. Os polos de grande concentracio de capital, por- que se encontram cada vez mais privilegiados nessas relacées, acabam por dominar com exclusividade o seu centro insti- tuctonal. Enquanto que, antes, o aparelho de Estado era contro- Jado vez @ vez por capitalistas relativamente grandes (forma, especifica de manter o equilibrio entre eles) e com participagio minoritéria constante dos capitalistas pequenos (forma de equilibrio entre grandes e pequencs e dos pequenos entre sl), através do jogo de grupos politicos denominados partidos num tabuletro convencional chamado parlamento, a concen- tragéo crescente do capital alterou asta forma de equilibrio e fez com que o aparelho de Estado fosse controlado simulta- neamente por todos os capitalistas muito grandes sem que os Pequenos capitalistas participem directamente nesse controle, Cabe aqui fazer duas observacées, ambas muito importantes mas que nao é agora momento de desenvolver mais. Primeiro, se os malores capitalistas deixam de dominar o Estado por Totatividade para o dominarem por associac&io isso deve-se ao facto de a concentragéo do capital, no seu prosseguimento, tecer entre os grandes grupos monopolistas relagSes cada vez mais estreltas, de manelra que e sua divisio em unidades de Propriedade acaba por ser quase puramente formal. A segunda observagéo é essencial para a compreenséo dos fenémenos Politicos contemporfneos. Na fase em que o Estado era contro- lado directamente, embora com gradagées hierdrquicas, por todos os escaldes de capitalistas, estes agrupavam-se em partidos consoante, tanto a grandeza do seu capital, como os problemas econémicos comuns a certos sectores e ramos de produgao. Estes partidos tinham, assim, uma dupla caracteristica: parti cipavam no controle directo do aparelho de Estado e tinham uma base de classe relativamente homogénea, demarcando-se dos outros quer pela sua composicao social quer pela expressio ideolégica que produziam, e tendo além disso uma coesio ideolé- gica interna. Mas, a partir do momento em que a concentracdo do capital afasta para todo o sempre os capitalistas menores da Participacéo no controle directo do aparelho estadual, eles vio assoclar-se indirectamente ao controle através da expressiio e da pressdo que se lhes torna possivel no interior dos partidos que controlam o aparelho de Estado (ou no interior de um partido unico, quando este é uma associagdo mais estreita de tendéncias). Os partidos vo, assim, alterar profundamente a sua fisionomia. Reunem sectores que participam directamente no controle do Estado com sectores que sé participam indirecta- mente, adquirindo no sé uma base social extremamente diver- sificada, como deixando de ter uma expressio ideolégica coesa. © sistema ideolégico é substituido por uma imagem ideolégica, o-que produz como necessaria a encarnagéio humana das ima- ao gens ideolégicas, por si so inconsistentes e difusas. Enquanto que, nos antigos partidos, o grande dirigente nunca era mais do que um técnico do poder de Estado, nesta nova forma o diri- gente ¢ ® propria mitologia de um partido que, para além dela, nenhuns outros aspectos ideolégicos produz. O «culto das perso- nalidadess é 8 consequéncia inelutével da impossibilidade de coesio ideolégica destes novos partidos. Por Isso, eles nunca duram para além da morte do chefe ou, quando parecem durar, s6 uma sigla que se perpetua sobre o contetido de uma nova imagem. Por outro lado, a composico social heterogénea desses partidos decorre das circunsténclas concretas, sé nelas podendo ser explicada e compreendida, e varia consoante a alteracio do conereto. A ignorancia, por parte dos marxistas vulgares de hoje, destes aspectos—entre tantos outros— impede-os de qualquer compreensio cientifica das formas politicas contem- pordneas. f) A possibilidade de realizagdo da mais-valia distri- buida: 0 prego © marxismo classico pretende, frequentemente, fazer decor- rer 0 seU modelo da apropriagdo por cada empresa da mals- -valla produzida nas unidades de produgio dela dependentes do facto de que toda a diminuigio do tempo de trabalho incor- porado num produto abaixo do minimo socialmente estabelecido Teverte em proveito dessa empresa. Ou seja, a segunda deter- minagao da lei do valor determinaria a mais-valla apropriada Por uma empresa como aquela produzida nessa mesma empresa. Penso, no entanto, que este é um problema de realizacio da mats-valia, e néo da sua apropriacéo nem da sua distribut¢do. Na produgio, um operério dispende e incorpora num produto, sempre, um tempo de trabalho superior ao incorporado na sua forga de trabalho. No entanto, o valor de um produto é deter- minado socialmente, e nao particularmente, 0 que quer dizer que o valor de um produto, qualquer que seja o tempo de tra- balho nele incorporado, é determinado pelo tempo de trabalho minimo soclalmente necessirlo para o produzir. Um produto em que foi incorporado um tempo de trabalho superior ao soclalmente estabelecido como necessfrio é vendido nfo a esse valor particular, mas ao seu valor social e, portanto, uma parte da mais-valia incorporada nao é realizada. Pelo contrério, quando num produto é incorporado um tempo de trabalho infe- rior ao que a sociedade considera, de momento, o minimo a necessirio, o seu valor particular sendo mais baixo do que o seu valor social determina, como primeira fase do seu processo de transformacao em novo valor social, uma baixa do prego com a correspondente conquista de mercado. © prego é constitufdo pelo valor do produto ao qual se acrescenta, ou se diminul, a mais-valia que cabe, ou no cabe, ao capitalista na distribuicéo. No prego articulam-se, portant, dois factores: preco=valor do Produto+mais-valia distribuida, Se, durante 1 die, 1 operério Produz 10 produtos e, consequentemente a dadas remodelacées tecnolégicas, passa a produzir 12 produtos, o tempo de trabalho incorporado em cada produto diminul correspandentemente e faz-se variar, assim, um dos componentes do prego, o valor do Produto. Toda a importéncia desta variaciio, sob este ponto de vista, reside no facto de que o valor daquele produto parti- cular corresponde plenamente ao valor social—ao novo valor social—e que, portanto, a mais-valia nele integrada e, numa forma mais geral, a mais-valia de cuja realizacdo a mercadoria, 6 base, pode ser inteiramente realizada. O prego 6 o esquema geral da realizacio, ou melhor, da possibilidade de realizagéo, da mais-valia. A segunda determinac&o da le! do valor marca as condigées da sua realizacéio, e nio a realizagéo propriamente dita, 8 qual, excepto no que diz respeito ao consumo da bur- guesia, depende do outro campo das relagSes socials, a capaci- dade de consumo do operariado, bem como da distribuigéo de rendimentos entre todos aqueles que tém como fung&o j& nao ‘a produgfio de mais-valia, mas a melhoria das condicées da sua realizagéo, ou seja, a classe tecnocrética. O facto de a lei do valor, na sua segunda determinacio, marcar as condigses da sua realizacéo, mostra o valor como dominante do prego. Pretender analisar esta questéo segundo o modelo clissico da ortodoxia marxista é laborar numa forma particular da con- fusio tao frequentemente estabelecida entre valor e prego, entre mals-valia produzida e distribuida e mats-valia realizeda. E através do processo da concorréncia tecnolégica que cada empresa cria as condicées para realizar toda a mais-valia que The € distribuida e, portanto, para dar a essa distribuicéo um caracter economicamente real, positive. © marxismo classico confunde aqui nfo sé a mais-valia incorporada no produto com a mais-valia distribuida ao capitalista, como confunde ainda a distribulg&o com a realizagéo, acabando por reduzir o processo econémico a uma forma de contabilidade. Em suma: a concorréncia tecnolégica é uma forma parti- cular por que as empresas, na sequéncia do processo de distri- bulgSo da mais-valia, criam as possibilidades de realizagsio a2 desta. Aquela empresa que incorporer nos seus produtes um tempo de trabalho inferior ao socialmente estabelecido até entéo pode vendélos a um prego correspondente a essa dimi- nuigo do valor incorporado e, portanto, conquistando mercado as outras empresas, realiza um maior numero de produtos como mercadorias, realizando mais amplamente a mais-valla que adquiriu. Se o pode fazer, se péde criar as condigdes tecnoldg!- cas pare realizar uma maior porcéo de mals-valia, isso deveu-se ao facto de ter aproveitado em seu favor a desigualdade na distribulc&o da mais-valia. A desigualdade na distribuico visa, em iltima anflise, realizar-se, senfo € economicamente inexis- tente; é na concorréncia tecnologica que a desigualdade na alstribuicéo cria as condicdes para a sua realizagéo como desi- gualdade, ou adquirindo mercado as outras empresas, ou bene- ficlando mais do que elas das margens de lucro contides nos Pregos fixados pelo Estado &s suas encomendas. “a CAPITULO 4 O PRIMEIRO MOVIMENTO DA LEI DO VALOR: A CONSTITUICAO DO MODO DE PRODUCAO CAPITALISTA © desenvolvimento da produgéo mercantil simples em modo de producio capitalista processa-se no duplo nivel das relagées sociais de produgio e do processo tecnolégico de trabalho, e na articulacio miitua destes niveis. Esse desenvolvimento cons- titul a assimilacéo de toda a produgao a lei do valor. Ao nivel das relacdes sociais de produgdo desenvolvese a expropriagSo dos meios de producio do produtor artesanal e a sua apropriacéo concentrada pelas indistrias de Estado do perlodo da acumulacao primitiva e pelos incipientes capitalistas industrials isolados. Esta expansio da proletarizagio ¢ o alar- gamento a todas as relacdes sociais do mecanismo bisico da lei do valor, a constituigio como corpos antagénicos dos incor- poradores de tempo de trabalho e dos aproprindores do tempo de trabalho e dos produtos em que este se incorporou, A mutacdo das relagGes sociais vai desenvolver-se ao nivel da tecnologia do proceso de trabalho. A oposigéo social entre © produtor do tempo de trabalho e o produto em que esse tempo de trabalho se incorpora, a alienacdo dos produtos do trabalho relativamente ao produtor, resultam numa mutacéo tecnolégica que exprime essa oposicéo pelo afastamento pro- gressivo do homem produtor relativamente aos instrumentos da produgao. © desenvolvimento da lei do valor a nivel tecnolé- Bico consiste na invengio e no emprego de mAquinas a cujo processo de laboracio o produtor é cada vez mais alheio. © capitalismo, enquanto modo de produco, é a miitua articula- Go do desenvolvimento da lei do valor a estes dois nivels, e trata-se de uma articula¢éo muito complexa, pois que néo s6 © nivel das relacdes sociais se desenvolve em mutacées tecnolé- gicas globais, como disse, mas ainda o nivel do processo tecno- légico de trabalho desenvolveré uma nova classe social que preencheré a cisio entre o produtor e o processo de trabalho, como adiante mostrarei. Produzida como lei central do modo de producao, a lei do valor vai dominar todo o modo de produc&o. O desenvolvimento 45 da producdo puramente mercantil em produgéo capitalista ¢ 0 perlodo histérico em que a lel do valor se expande, de lel do modo de producio, em lei da fisionomia do modo de produgéo, isto €, em que a lei do valor assimila a sl todos os aspectos do capitalismo. Constituida pelo capitalismo como sua le!, a lel do valor vai agora constituir o capitalismo como seu efeito. Ao contrério do que pensa a escolastica tradicional, diga~se maraisante ou outra, 0 periodo de constitulgéo de um sistema nao 6 uma lute contra um corpo organizado de forgas exte- riores a esse sistema—o que néo passaria de uma figuracio légica do dualismo do bem e do mal—mas um proceso de assimilagao dos aspectos da realidade por uma lei que se desen- volve como sua lei central. A passagem da lel como efeito da realidade para a realidade como efelto da lel 6 o periodo de constituicio de um sistema. £ este o primeiro movimento da lei do valor enquanto lei de tendéncla, Ela comega por ser a prépria lei da constituicio do modo de produgio que a determinou. 46 CAPITULO 5 O SEGUNDO MOVIMENTO DA LEI DO VALOR: AS FORMAS DE REALIZACAO DO MODO DE PRODUCAO CAPITALISTA © segundo movimento da lel do valor enquanto lei de tendéncia processa-se na regéncia da realizagéo do modo de pro- dugo capitalista J constituido em sucessivas formas. Trata-se, agora, néo Ja da assimilagéo da produgéo A sua lei central, mas do seu desenvolvimento segundo esse lei, ou seja, porque a estru- tura dessa lei reside num antagonismo, no desenvolvimento dessa let enquanto antagonismo, no desenvolvimento do antagonismo dessa lei. Portanto—na autodestruicio da lei, na morte do modo de produgio que ela rege. Tinhamos, no primeiro movi- mento, a realizacéo primitiva da lei na estrutura dos seus efeitos. Agora, no segundo movimento, o desenvolvimento des- ses efeitos vai representar, para a lei do valor, a sua realizagso negativa, Neste segundo movimento, a lei do valor entra no processo de constituigéo da propria base pritica da sua negag&o. Sobre esta base se iri desenvolver uma outra lel, que é 90 mesmo tempo a lei da destrulcdo da lei do valor e da edificagao de um novo modo de produgéo. Mas terei ainda que abordar diversos assuntos antes de tentar a definig&o dessa nova lel. Historicamente, a sucesséo das formas do modo de produ- io capitalista no seu desenvolvimento segundo a lei do valor desenrola-se com a livre concorréncia e as primeiras concen- trades monopolistas e chega, hoje, As formas finais do cepita- lismo monopolista de Estado. £ 0 mecanismo de vivificagio do trabalho morto pelo trabalho vivo que leva a transformagio capitalista das formas do capitalismo. Essa relagéo, que se objectiva na produgdo da mais-valia, leva as crises de sub- -consumo com a consequente restricSo do mercado, as faléncias, ao aumento da produtividade necessirio para a arrancada econémica em melhores posigées e, portanto, ao progresso tecnolégico, que exige uma maior concentragéo de capitais, Eo desenvolvimento deste processo de concentracéo que leva constituigéo dos monopélios e A fuséio das diversas ordens de capitais e, por ai, a inversio do mecanismo de recuperacéo das crises, com a diminuic¢éo da importancia do mercado de con- a7 sumo particular, 0 que vei exigir a passagem a um lugar dom!- nante do mercado especifico do Estado e a militarizac&o da economia; paralelamente, o desenvolvimento da tecnologia aumenta a proporcio do trabalho morto relativamente ao tra- balho vivo e vai diminuir, por conseguinte, a capaeidade de vivificagio do capital, » taxa de lucro. E esta forma de senili- dade do modo de produgdo que leva o Estado a encarregar-se de parte crescente do trabalho morto da globalidade dos capi- talistas, para aumentar a parte relativa de trabalho vivo nos matores de entre eles. O resultado da articulacéo destas duas tendéncias, ou seja, o desenvolvimento da intervencéo activa do Estado na economia dos monopélios, a que se chama comum- mente Capitalismo Monopolista de Estado, constitul-se no desenvolvimento da relagéo especifica entre o trabalho morto € 0 trabalho vivo, daquela relaggo social de produgéo que deter- mina a lel do valor como lei dessa relagio e, pelo lugar central dessa relagéo na estrutura do modo de producéo, como le! do modo de produgdo. ainda o desenvolvimento dos efeitos da lei do valor que levard o cnpitalismo a constituir-se na forma especifica da sua senilidade, pela concentragao total dos capi- tais mediante o aparelho de Estado e pela subordinagéo estru- tural da produgao @ crise permanente de sub-consumo, ou seja, pela instituigdo como forma juridica da producio do tipo de insergéo do Estado na economia motivado pela inverséo do mecanismo de recuperacéo das crises. Quando o capitalismo, nessa fase Ultima do capitalismo monopolista de Estado, institut uma forma juridica inteiramente correspondente & sua senili- dade econémica, ¢ porque o moribundo pintou ja 0 rosto com as cores da prépria morte. A produgio, na senilidade, das formas juridicas que Ine sdo especificas permite um prolonga- mento dessa senilidade, mas constitu! simultaneamente 0 certl- ficado da inelutével condenagio. Mostrarel, na continuagéo deste texto, aspectos concretos do desenvolvimento dos efeitos da lei do valor e elucidarel a outra luz alguns desses efeitos. Queria limitar-me, aqui, a tra- car em linhas gerais como a lel do valor —que, enquanto lel de tendéncia, é lei do seu proprio desenvolvimento — regula tanto a constituigio do modo de produgio que a si subordina (pri- meiro movimento), como (segundo movimento) a constituigo das bases praticas sobre que se iré desenvolver a sua negac&o. “a SECQAO B A INDETERMINACAO DA LEI DO VALOR © fundamento da anilise prolelaria sislematica do modo de produgSo capitalista ¢ 0 estabelecimento teérico da lel do valor, das formas do seu desenvolvimento, dos modos da sua realizagio e da edificago estrutural que tem lugar sobre a base da lei do valor, ou talvez melhor, em tomo dels. A critica da Economia Politica néo foi, para Marx-Engels, senéo a apai- xonada definicio e redefinigéo da lei do valor. A nossa compre- ensfo do capitalismo, ou seja, a inauguragio do processo cons- ciente da sua destruicdo, é a compreenséo da lei do valor. Assim, ao nivel da expresséo ideolégica dos processos reals, 0 adiamento pelo capitalismo do seu proprio fim resulta na indeterminacdo da lei do valor. Hoje—mas um hoje histérico, porque trés geragdes ja nele nasceram —assistimos ao especticulo dramatico do modo de produgdo capitalista encontrando novas forcas na degene- rescéneia das revolugdes operdrias. Sé pela morte das revolugdes operdrias perpetua o abutre capitalista os seus alentos derra- deiros. Espectador passivo, limitar-me-ia a descrigéo empirica dos acontecimentos. (A descrigéo € a forma de Histéria dos intelectusis assalariados pela burguesia para, do seu observa- tério— Instituto, Academia ou Universidade—contemplarem os sucessos e narrarem as suas formas aparentes.) Agente activo, derrotado nas derrotas do movimento operdrio e vito- rioso nas suas vitérlas, nfo ¢ a narragéo que eu viso, mas a explicacio. Explicar a conversio pelo capitalismo das suas derrotas em vitérias exige, entre outras coisas, acompanhar 8 nivel ideolégico a desnaturacdo da le! do valor e estudar, junto com o processo da sua determinacio, o processo da sua inde- terminacéo. Sob este aspecto, a descoberta mais importante reside no facto de a indeterminagio ideolégica da lel do valor ser muito anterlor a primeira desnaturacao real pela burguesta, do movimento operario consciente, quero dizer, marxista. Mais ainda: a indeterminacéo da lei do valor é contemporanea do seu estabelecimento. O que quer dizer que esse estabelecimento ‘ “a teérico foi ambiguo e que tal ambiguidade ideologica decorre de elementos materiais que se desenvolveram em condigSes das derrotas reais do movimento operario. Seguir, pols, a ambi- guidade ideolégica desde a sua propria origem, determinar as circunstancias reais de que tal ambiguidade é reflexo e expres- so, acompanhar por fim o desenvolvimento ideolégico da ambiguidade sobre 0 terreno movente do processo real, sao estas as condigdes que permitirao decidir do destino do movi- mento operario. Em sintese, a questo é simples: o processo real determi- nari ou niio o fim desta ambiguidade fulcral? O movimento operério atingiré ou ndo a maturidade, base de desenvolvi- mento da vitéria? © objectivo deste texto é o de tentar fornecer uma res- posta a estas perguntas. Comeco, por isso, por analisar na sua origem a indeterminagao da lei do valor. CAPITULO 6 A FORMA GERAL DA INDETERMINACAO DA LEI DO VALOR A indeterminagao da lei do valor consiste em apresenté-la, n&o como a lei que ccupa o centro da estrutura teérica do modo de produgdo capitalista, constituindose no nivel da pro- dugiio, mas como a lei particular de uma das formas transfor- madas do capitalismo. O capitalismo torna-se assim, na verda- deira acepcio da palavra, incompreensivel, 0 que é 0 modo ideolégico de assegurar a sua indestrutibilidade real. a) Formalizagdo da indeterminagdo da lei do valor Numa formalizagdo, posso descrever a indeterminagSo da lei do valor como processando-se em trés passos: —primeiro passo: confunde-se a lel do valor com uma realizagdo particular da lel do valor; —segundo passo: apresenta-se como lei central do modo de produgdo capitalista uma qualquer descricho empfrica geral; —tereeiro passo: escamoteada assim a lei central do capi- talismo, procedese a um duplo artificio: por um lado, consl- dera-se a pura mudanca da forma do capitalismo a que se atributu a let do valor para uma outra forma como uma verds- deira transformacio do capitalismo em outro modo de produ- ¢éo; por outro lado, toma-se a descrigéo empirica que se con- siderou lel geral do capitalismo como abarcando todos os modos de produg&o e, assim, pretende-se apresentar a passagem do capitalismo para o modo de producéo comunista como decor- rendo no interior de uma mesma lei, ou seja, pretendese a existéneia de uma lel «naturals superior a todos os modos de produg&o e que a todos eles em si inclua. Todos estes passos so essenciais para a coeréncla légles exigida pela ideologia. Engels mostrou que @ ideologia se cons- titul num proceso de autonomia relativa que, como tal, exige uma coeréncia especifica ao nivel de existéncia de tal auto- nomia, Alongar-me-ei suficientemente sobre este aspecto em 51 obras a publicar futuramente, pelo que posso agora passar adiante, Sio necessidades internas da ideologia que exigem a sua constituicéo num, ou noutro, sistema. Por isso, quando se trata de analisar o ponto em que reside a fungéo Ideolégica da Sdeologia, néo 0 podemos confundir com outros pontos a ele formalmente ligados e cuje tinica funcao consiste em oferecer & ideologia uma dada coeréncia expositive, uma sistematici- dade. Na formalizagéo acime, ¢ no primeiro dos pontos indi- cados que se constitui a fun¢éo ideolégica da ideologia. Con- fundir a lei do valor com uma sua realizacéo particular é lmitar 0 seu campo de vigéncia a forma particular do capita- lismo em que tal realizagéo tem lugar. E ¢, automaticamente, estabelecer uma grave ambiguidade, porque aparecem entao identificadas # luta pela destruigéo do modo de produgéo cap!- talista e a edificagdo do modo de producéo comunista, com a luta pela passagem de ume forma do modo de producio capl- talista a uma outra forma desse modo de produgéo. Ou seja, confundem-se dois objectivos antagénicos, um de destrulgio de um modo de produgiio, 0 outro de desenvolvimento e reprodu- 0 desse modo de producao. Que ambiguidade mais grave pode hhaver do que a assimilagao dos dois termos de um antagonismo? b) © campo de realizagdo da indeterminagdo da lei do valor. Vejamos como se realizou no concreto esta ambiguidade até agora descrita formalmente. O mercado constitui a forma de realizacio do capitalismo numa das etapas do seu desen- volvimento. Se referirmos essa etapa ao processo de desenvol- ‘vimento da lei do valor —e ¢ essa a unica forma de a compre- endermos teoricamente, isto é, estabelecendo-lhe as relagdes estruturais— vemos que o mercado é a forma de realizacio da Jet do valor inaugurada com o encerramento do primeiro dos seus movimentos tendenciais e que constitui o campo inicial de desenvolvimento do segundo movimento tendencial, a primeira das suas formas. Durante o primeiro movimento, enquanto @ lei do valor procede & assimilagao a si de toda a forma do modo de produco, o desfasamento entre a fisionomia do modo de produgdo e a lel tendencial que o rege impede que essa lei seja teoricamente estabelecida como a lei central do modo de produgo. Néo estava ainda produzido o campo objectivo que permitiria a anélise da lei do valor. Esse campo objectivo forma-se a partir do momento em que se tenha encerrado o primeiro movimento do proceso da lei do valor, quer dizer, @ partir do momento em que a lei do valor tenha assimilado toda a forma da estrutura do modo de producdo. Ele inaugura, entéo, 0 segundo movimento do seu proceso. A realizacso esse processo é @ realizacio das formas transformadas do capitalismo, cuja descrigéo Ja esbocei. Cada uma dessas formas, em vigéncia ou em desenvolvimento, cria camadas socials que delas dependem, de tal modo que os seus interesses proprios as fazem, umas, defender essas formas e erguer-se contra a transformagéo do modo de produgio numa nova forma, as outras, defender essa transformacéo em que se consubstanclam os seus interesses. Lute v6 para as primeiras, porque a forca € a fraqueza das camadas sociais vém da realidade ou da conde- nagéo das formas econémicas que Ihes dio a vida. Luta v6, mas luta. O que significa que a passagem de uma para outra forma econdémica implica a derrota de uma por outra camada social, implica a batalha tanto a nivel politico e ideolégico como nivel econédmico. As tendéncias de desenvolvimento das cama- das interessadas na passagem a uma nova forma capitalista exprimem-se ideologicamente através da apresentacéo da nove forma como néo-capitalista e da restrigéo do cepltalismo & sua forma especifica vigente e em exting&o. F este o modo ideolé- Bico, que se conjugari com o modo institucional que adiante analisarel, como as novas camadas exploradoras movem, na luta contra as antigas, massas exploradas que combatem, assim, numa forma politicamente desviada dos seus interesses de classe estruturalmente definidos. De facto, é uma regra da luta de classes sob o capitalismo, que me limito aqui a enunclar sem tentar analisar a sua razfio profunda, a de que a luta entre os sectores da classe dominante reveste sempre a forma de um choque fisico entre porcdes da classe explorada, ideolégica e politicamente controladas por esses sectores da classe explora- dora. & precisamente esta a fungéo ideoldgica da transformacéio da lei do valor em lel de uma dada forma particular do capi- talismo. Sobre 0 campo Ideolégico desta ambiguidade, porcies da classe operdria véo desviar # sua luta contra o capitalismo e pelo comunismo, convertendo-a numa luta contra uma e por outra das formas de realizacéo do modo de produ¢fo capita- Msta. Para compreendermos melhor esta questéo precisamos, no entanto, de analisar a relagéo entre um modo de producio ea forma de realizagao desse modo de produgiio, ou seja, temos de analisar o processo de realizagfio de um modo de produciio. Um modo de producéo constitui ums estrutura global de relagées sociais reciprocas e de relagSes dos homens com a natu- teza. Vimos ja como a forma por que os homens se relacionam num dado modo de produgéo determina a prépria lel dessa rela- co, @ qual vem a assimilar a si todas as formas da estrutura global, Mostrarei noutro lado (*) como a relacéo entre a natureza e a sociedade, exercendo-se através da estruturagéo do modo de produ¢fio, € uma ou outra consoante esse modo de producio. E neste sentido que emprego o termo estrutura global—na verds- deira acepcdo da palavra «global», Uma estrutura constitui-se e Tealiza-se no processo de desenvolvimento da sua lel tendencial, Jei que cria formas concretas novas no processo da sua evoluchio, mas sendo todas elas, porque determinadas por essa lel, formas desse modo de producdo. Isto quer dizer que a lel central de uma estrutura global néo vigora directamente e em si, mas vigora sempre nas suas realizagdes. Numa segunda abordagem, Pode dizer-se que uma estrutura global é 0 conjunto articulado da lei tendencial da estrutura com dadas formas especificas da sua realizagéo. E por isto que a estrutura global sé pode ser estudada concretamente, considerando a realizacSo da lei central da estrutura, numa fase do seu desenvolvimento, em dadas formas. © estudo da lei central de ume estrutura 6, sempre, um estudo abstracto, necessério para a anélise da estrutura global, de que constitui o centro, mas que nfo é estudo dessa estrutura global, porque isola ainda a lel, das suas formas de realizacéo. A relagéo entre a lei central de um modo de produgSo e uma forma desse modo de produgdo ¢, pols, uma relacio de reallzacéo. Quando descrevi o primeiro movimento do proceso da lel do valor como assimilacéo a si de todas as formas do modo de produgo, nio fiz mais, no fundo, do que invocar a constituigao da etapa em que pela primeira vez a le! do valor se realiza no modo de produgio que a determinou. A unica dife- renga entre o primero e o segundo movimento 6, sob este aspecto, a distingdo entre aquela etapa em que a lel do valor ainda nao se realizou e aqueloutra em que inaugura a cadela das formas da sua realizacio. Por razées que o leitor certa- mente compreende e cujo estudo especifico, de qualquer modo, tenciono passar aqui em siléncio, tal diferenca € suficiente- mente grande, ou melhor, constitui um salto qualitative, para se poder, por isso, tomé-la como uma viragem essenclal no processo da lel do valor. Em resumo, a primeira forma reall- (*) Metodologia geografica e critica da geografia ideo- Ysgica, a publicar um dia zada da lei do valor é aquela em que realiza efectivamente a assimilagéo a si do processo de trabalho e do proceso de pro- dugGo em geral e 2 assimilaco a si da generalizaco da produ- $80 das unidades de producgo particulares. Assimilagéo a si do processo de producéo: estabelecendo como eritério do econémico o tempo de trabalho incorporado num produto, a lel do valor é determinada nas relagées sociais de vivificagdo assalariada do trabalho morto pelo trabalho vivo. Ela é a let tendencial da polarizagéo completa dos dois tipos de trabalho, da completa separacio entre o trabalho morto e © trabalho vivo, Produzida como lel num momento em que 86 se realizavam os gérmens socials desta polarizagéo, ela vai determinar primeiro a separacso formal dos dois tipos de trabalho, e é a constituicéo dos aspectos Juridicos genéricos do modo de producao capitalista, a dissolucio das corporagdes, em que a distincéo Juridica entre os dois trabalhos néo era reall- zada ainda, etc.; € este o primeiro movimento do processo da lel do valor. Ela vai determinar depols, na inauguragéo do seu segundo movimento, a separagdo entre o trabalho morto e o trabalho vivo no proprio processo de trabalho, E fol o grande periodo inicial das invengSes do capitalismo, a primeira revo- lugiio industrial, em que o capital produzia uma tecnologia ne qual se realizava concreta e efectivamente a separaciio mate- rial entre o trabslhador e o melo de trabalho, a separacio no trabalho entre o trabalho vivo e o trabalho morto. Foi esta, quanto ao que atris chamei a primeira determinagdo da lel do valor, a primeira forma de realizacéo da lel do valor. ‘A segunda dessas formas de realizacéo, e que ¢ a da nossa existéncia, consiste na automatizacéo, que inaugura a completa cis6o entre o trabalhador e o trabalho, nfo j4 somente ao nivel do meio de trabalho, mas ao nivel da integralldade do process de trabalho. A assimilagéo a si da generalizagSo da produgfo das unida- des de producio particulares processa-se naquele nivel a que chamei a segunda determinacao da lei do valor. © tempo de trabalho minimo necessério para que um produto seja merca- doria tem a sua expresséo material numa relagSo tecnolégica. E deste modo que a lei do valor é @ lei da dinamica da tecno- login capltalista. O estabelecimento do tempo de trabalho m{inimo fez-se ao nivel da producéo, na comparacéo, pelos gestores de cada uma das unidades particulares de produgho, da tecnologia nessa unidade com a tecnologia nas outras unt- dades. Rapidamente, como o notou jé Marx, a comparaclo Processa-se no entre progressos tecnoldgicos efectivos, mas entre progressos tecnoldgicos possivels, ou seja, entre previs6es. Esta comparaco na produgéo, a que chamarei Ciilculo Teenolé- gico, constitui a passagem A generalidade da produgdo de unt- dades particulares, Como se realiza esta segunda determinacio da lei do valor? A sua primeira realizacSo consiste no estabele- cimento de uma estrutura de comparac&o que reflecte @ compa- ragéo na productio e se sobrepde 8 ela. A essa estrutura sobre- posta tem-se chamado Mercado. E sem dtivida uma denominacao por demais extensiva, j4 que mercadorias so produtos que incorporam velor, ou seja, produtos do modo de produg&o capl- talista, e que o mercado, no sentido em que usualmente se toma, é uma pura forma particular de realizacdo das mercadorias. Este desvio terminolégico ndo é inocente como a seguir se Poderé ver, mas est4 por demais radicado para que eu empregue agora um termo mais adequado. Podia chamar-lhe mercado Uvre-concorrencial, 0 que dava uma nogéo descritiva mals exacta. Por comodidade de expresséo usarei somente o termo mercado, que deve ser lido, portanto, com estas ressalvas. © mercado realiza a lei da incorporagio do tempo de trabalho minimo, no sentido de que a comparacio que estabelece entre 0s produtes reflecte a incorporacéo do tempo minimo como tempo socialmente imposto, isto é, imposto a todas as unidades Particulares de producSo. Mas realiza essa lei de uma forma ainds primitive, na medida em que a particularizagéo des uni- dades de produgdo vat reflectir-se no mercado como sua caracte- ristica formal essenciol —a particularizagao dos produtos. © pro- cesso da lel do velor id determiner novas formas da sua realizagio, em que @ generalizacdo da producio se acentuard sempre, dominando a prépria fisionomia ds sua realizacdo. J& atras esbocel 0 modo como o processo de desenvolvimento da Jet do valor acarreta crises de sub-consumo, impropriamente chamadas de sobre-produgo, que vo ter como resultado @ con- centragao do capital, a formagio de monopélios, e o consequente desaparecimento, tanto da estrutura de mercado—ou melhor, a sua restrigio—como das crises ciclicas, inaugurando-se 8 época em que as formas de realizacao da lel do valor se subor- dinam @ crise de sub-consumo permanente. Para compreender estas novas formas de realizagSo é necessirio, pois, compreender a estrutura especifica do mercado. A forma de comparacso entre os produtos constituida pelo mercado caracteriza-se por ser efectuada a posteriort relativa- mente A comparacdo dos produtos na produg&o. Para me inserir na terminologia de ha pouco, quando o Calculo de Distribui¢fo 6 posterior ao Célculo Tecnolégico, temos uma estrutura de mercado. Essa estrutura caracteriza-se, pols, pelo desenvolvi- mento de certas lets do célculo de distribuicéo, relativamente distintas das lels do célculo no processo de produc&o, ou calculo tecnolégico—e essa distingéo ¢ a forma estrutural da sua Postertoridade. Séo as Leis da Oferta e da Procura. O cardcter sobreposto destas lels relativamente & comparago na producéo exprime-se no facto de, a nivel global, a oferta e a procura se equillbrarem perfeitamente. Elas constituem, pois, uma estrutura estética. Marx sublinhou este facto para provar @ partir dele que a estrutura da oferta e da procura néo podia constituir uma explicagéo do desenvolvimento do modo de produgéio. Mas, quanto & posicio de Marx e as suas Mmitacdes, falarei mais adiante. O que importa agora estabe- iecer claramente € que a lel do valor, como lel central, se realiza sempre através de dadas formas; que a estrutura do mercado ¢ uma forma de reslizaéo da lei do valor; que a let do valor se realiza portanto através de estruturas que tém leis préprias. Quando esta forma de realizacdo, exigindo a adaptaco violenta—porque a posteriori—do célculo na produgéo ao céleulo de distribui¢io, simultaneamente desenvolveu a tecnolo- gla e a produtividade e concentrou nas unidades de produgao que puderam proceder a esse desenvolvimento os capitais daque- Jas que néo o conseguiram fazer, nessa altura a estrutura do mercado deu lugar a uma nova estrutura. A nova estrutura produzida, que assenta por outro lado na exploracao relativa sempre crescente da forca de trabalho e, logo, na generalizagéo do sub-consumo relativamente & capa- eldade técnica sempre aumentada da produciio, vai caracteri- zar-se por formas particulares de adaptacio a priori do céleulo tecnolégico ao céleulo de distribuicéio. © que néo é mais do que @ Institucionalizacdo estrutural da senilidade do cepitalismo, da quebra da sua mola interna, A partir de entéo, a lel do valor Teallza-se nas formas da sua prépria senilidade. A sucessfio de tals formes obedece sempre a linha central: sujeicdio do célculo na produgéo ao ciileulo de distribuigéo, o que é o mesmo que dizer, sujelcio da expanséo futura do sistema as suas (in)capa- cldades actuals de expansio. Dai que o sistema entre em circulo vicloso, com o desenvolvimento da intervengSo do Estado na economia e a criagéo de mercados nao-distributivos, a que Poderla chamar mercados inter-produtivos, que o fazem rodar em falso. ‘Mas é caracteristico de qualquer modo de exploragéo que o desenvolvimento das contradigées do sistema se faca mediante ST © desenvolvimento dos interesses lucrativos de um certo numero de detentores dos meios de producfio. Se a passagem do mer- eado como forma de realizag&o da lei do valor & forma mono- Polista com os seus embriées planificatérios representou a entrada do modo de produgiio capitalista na fase da senilidade, constituiu também uma forma progressiva no desenvolvimento do capitalismo, entendendo-se por tal uma forma de realizagéo desse desenvolvimento, O mercado havia organizado socialmente 0s detentores do trabalho morto numa rede de interesses. A evo- lugdio do mercado va! produzir outros interesses e ambos entram em conflito. Realizar 0 mercado era realizar o seu desenvolvi- mento na forma seguinte, por isso estavam condenados os detentores dos meios de produc&o que a ele se ligavam. Mas como a realizagséo destes sistemas era uma realizacéo de inte resses sociais particulares, é através de uma luta social que 6 Passagem de um a outro se val operar. Para compreendermos as lutas internas da classe capitalista dominante, precisamos primeiro de nao esquecer a regra empirica que mostra que em todas essas lutes cada uma das faccdes contendoras conduz classes, ou camadas de classes, exploradas. Neste formulacéo limito-me, como disse strés, 90 aspecto descritivo da lei, sem aprofundar a definigio. Essa con- dugfo exprime-se, a nivel ideolégico, por uma integrag&o subor- dinada dos explorados no campo ideolégico dos exploradores. Na passagem de uma a outra das formas do capitalismo, essa integrag&o consiste na indeterminagéo da lei do valor. A forma, capitalista de vivificacdio do trabalho morto pelo trabalho vivo Produz e generaliza a luta social dos detentores do trabalho vivo contra o modo de produgéo. Assimilar a lel do valor as leis do preco de mercado e fazer crer que o desaparecimento do mercado era o desaparecimento do modo de producio capita- lista era produzir um campo em que convergiram ideologica- mente os interesses daqueles que lutavam por reproduzir o capitalismo nas novas formas da sua realizagSo e os interesses desviados dos que combatiam pela destruig&o do capital. E a essa forma de integracdo ideolégica que comummente se chama arevisionismos, termo que decorre ainda do campo dessa subordinagéo. Efectivamente, a camada capitalista de interesses monopolistas nfo procede a qualquer revisio ou modi- ficag&o da teoria proletéria do comunismo, mas incorpora as suas préprias concepg6es do capitalismo dos monopélios na. forma exterior da ambiguidade de uma ideologia que se subor- dina ao campo do capital. Em todo este texto, a nocdo de «revisionismon receberé a terminologia adequada de ambiguldade. ‘Tal ambiguidade, se era o ponto ideolégico em que o movi- mento operdrio se subordinava aos interesses da reprodugfo da exploracdo, era também a expressiio da prépria situacio objectiva do movimento operario e revelava a forma concreta ainda limi- tada do desenvolvimento da lei do valor em base da sua negago. N&o podemos confundir a funcdo Ideolégica desta ambiguidade com a sua determinacio pela situagdo objectiva de que constitu! uma expressiio desviada — logo, ideolégica. Sendo, eai-se no campo da concepcao voluntarista da criagéo ideolégica ex nihil, com todo o idealismo esquerdizante que a acompanhn. # necessirio, portanto, analisar essa ambiguidade nfo sé na sua fungéo de reproducéo do modo de produgio, mas como expresso da fase concreta dessa reprodugéo. Sio os dois polos entre que vai decorrer todo este texto. © problema tornar-se-4, no entanto, mais compreensivel se, apés ter procedido & formalizacio da indeterminacdo da lei do valor e ter descrito a realizacio concreta dessa indetermi- nacio, analisar alguns casos particulares. CAPITULO 7 REALIZACOES PARTICULARES DA INDETER- MINACAO DA LEI DO VALOR a) Em Marz Que o primeiro caso particular seja o de Marx—é de imediato bastante sugestivo, Marx representou a inauguracéo da consciéncia tedrica do proletariado, o acesso do proletariado a0 campo ideolégico proprio da sua libertacéo—o que significa @ producdo pelo proletariado desse campo—, a autonomla ideo- légica da classe proletéria. Se, no proprio movimento em que essa autonomia foi estabelecida, a ambiguidade reinou, é porque se tratava de uma ambiguidade estrutural, e nfo acesséria ou adicionada, A indeterminag&o da le! do valor na obra daquele que primeiro a estabeleceu na sua forma cientifica é, pois, sintoma da maior importéncia. Essa indeterminagéo, sob a forma da assimilacéo da lel do valor & sue realizagéo nos precos de mercado, ¢ téo fre- quente em toda a obra da maturidade de Marx que a enume Tagiio exaustiva dos seus locais néo pode constituir um objecto do presente estudo e somente um ponto no plano do seu desenvol- vimento. Simultaneamente com inumeras passagens em que a lei do valor é afirmada com rigor tedrico, Marx assimila-a a uma dada estrutura particular de pregos. Talvez se possa aventar a hipétese de que, na obra de Marx, a lei do valor seja definida com rigor sé quando ¢ abstractamente considerada e seja sistematicamente indeterminada quando é analisada na sua realizagSo. Pura hipétese, claro esté, enquanto a enumeracéo exaustiva dos locais de referéncia néo for feita. A falta dela, vou tomar de entre os varios exemplos que conhego o que me parece mais sugestivo. Nos apéndices teéricos intercalados nos capitulos da Contribuigéo a critica da economia politica, Marx refere a certa altura as teses de John Grey (*) e analisa-as como forma (*) Karl MARX, Oeuvres, Economie, Gallimard,

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