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HEINRICH KRAMER e JAMES SPRENGER ® Martelo das Feiticeiras MALLEUS MALEFICARUM Introdugo histérica: Rose Marte Muraro Prefacio: CarLos BYINGTON Tradugao de PAULO FROES 208 EDICAO. & Rosa Dos TEMPOS Rio de Janeiro 2009 CIP-Brasil, Catalogagio-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ. Insitoris, Heinrich, 1430-1505 147m O martelo das feiticeiras / Heinrich Kramer e Jamies Sprenger; 20'ed. _introdugdo hist6rica, Rose Marie Muraro; prefécio, Carlos Byington; tradugio de Paulo Frées. — 20* ed. - Rio de Janeiro: Record: Rosa dos Tempos, 2009. Tradugo de: Malleus maleficarum Inclui bibliografia ISBN 978-85-85-36308-6 1. Inquisigdo — Obras anteriores a 1800, 2. Feitigaria ~ Obras anteriores a 1800. 3. Demonologia - Obras anteriores a 1800. 4. Processos (Feitigaria) - Obras anteriores a 1800. I. Sprenger, Jakob, 1436 ou 8-1495. II. Titulo. CDD - 272.2 95-0147 DU - 272 Titulo original MALLEUS MALEFICARUM Copidesque: Clara Recht Diament Revisdo: Rosani Santos Rosa Moreira, Renata Neto e Fabiano Antonio Coutinho de Lacerda Capa: Eduardo Barreto Direitos exclusivos de publicagio em lfngua portuguesa para 0 Brasil adquiridos pela EDITORA ROSA DOS TEMPOS Um selo da EDITORA RECORD LTDA. Rua Argentina 171 — Rio de Janeiro, RJ ~ 20921-380 — Tel.: 2585-2000 que se reserva a propriedade literdria desta tradugdo Impresso no Brasil pelo Sistema Digital Instant Duplex Divisio Grafica da Distribuidora Record pot oR oy ISBN 978-85-85-36308-6 - iA PEDID! ee OS PELO REEMBOLSO POSTAL, Ee Caixa Postal 23.052 © ames Rio de Janeiro, RJ - 20922-970 EDITORA AFILIADA, Breve Introdu¢do Histérica ROSE MARIE MURARO Para compreendermos a importancia do Malleus é preciso ter- mos uma visdéo ao menos minima da historia da mulher no interior da histéria humana em geral. Segundo a maioria dos antropdlogos, o ser humano habita este planeta ha mais de dois milhdes de anos. Mais de trés quartos deste tempo a nossa espécie passou nas culturas de coleta e caga aos peque- nos animais. Nessas sociedades n4o havia necessidade de forga fisica para a sobrevivéncia, e nelas as mulheres possuiam um lugar central. Em nosso tempo ainda existem remanescentes dessas culturas, tais como os grupos mahoris (Indonésia), pigmeus e bosquimanos (Africa Central). Estes sAo os grupos mais primitivos que existem e ainda so- brevivem da coleta dos frutos da terra e da pequena caca ou pesca. Nesses grupos, a mulher ainda é considerada um ser sagrado, porque pode dar a vida e, portanto, ajudar a fertilidade da terra e dos ani- mais. Nesses grupos, o principio masculino e o feminino governam o mundo juntos. Havia divisdo de trabalho entre os sexos, mas ndo ha- via desigualdade. A vida corria mansa e paradisiaca. Nas sociedades de caca aos grandes animais, que sucedem a essas mais primitivas, em que a forga fisica é essencial, é que se inicia a su- premacia masculina. Mas nem nas sociedades de coleta nem nas de ca- Ga se conhecia fungdo masculina na procriacao. Também nas sociedades de caca a mulher era considerada um ser sagrado, que possuia o privi- légio dado pelos deuses de reproduzir a espécie. Os homens se sentiam marginalizados nesse processo e invejavam as mulheres. Essa primiti- va “‘inveja do utero’’ dos homens é a antepassada da moderna ‘‘inveja do pénis”’ que sentem as mulheres nas culturas patriarcais mais recentes. A inveja do utero dava origem a dois ritos universalmente encon- trados nas sociedades de caga pelos antropdlogos e observados em partes 5 opostas do mundo, como Brasil e Oceania. O primeiro é o fenémeno da couvade, em que a mulher comega a trabalhar dois dias depois de parir e o homem fica de resguardo com o recém-nascido, recebendo visitas e presentes... O segundo é a iniciagao dos homens. Na adoles- céncia, a mulher tem sinais exteriores que marcam o limiar da sua en- trada no mundo adulto. A menstruacdo a torna apta 4 maternidade e representa um novo patamar em sua vida. Mas os adolescentes ho- mens ndo possuem esse sinal tao ébvio. Por isso, na puberdade eles sao arrancados pelos homens as suas maes, para serem iniciados na “‘casa dos homens’’. Em quase todas essas iniciag6es, o ritual é seme- lhante: é a imitac4o cerimonial do parto com objetos de madeira e ins- trumentos musicais. E nenhuma mulher ou crianca pode se aproximar da casa dos homens, sob pena de morte. Desse dia em diante o homem pode “‘parir’’ ritualmente e, portanto, tomar seu lugar na cadeia das geracdes... Ao contrario da mulher, que possuia 0 ‘‘poder biolégico”’, o ho- mem foi desenvolvendo o ‘‘poder cultural’’ 4 medida que a tecnologia foi avancando. Enquanto as sociedades eram de coleta, as mulheres mantinham uma espécie de poder, mas diferente das culturas patriar- cais. Essas culturas primitivas tinham de ser cooperativas, para poder sobreviver em condi¢Ges hostis, e portanto nao havia coergao ou cen- tralizac4o, mas rodizio de liderangas, e as relacGes entre homens e mu- lheres eram mais fluidas do que viriam a ser nas futuras sociedades patriarcais. Nos grupos matricéntricos, as formas de associac4o entre homens e mulheres nao incluiam nem a transmissao do poder nem a da heran- ¢a, por isso a liberdade em termos sexuais era maior. Por outro lado, quase n&o existia guerra, pois nao havia pressdo populacional pela con- quista de novos territérios. E s6 nas regides em que a coleta é escassa, ou onde vao se esgo- tando os recursos naturais vegetais e os pequenos animais, que se ini- cia a caga sistematica aos grandes animais. E ai comecam a se instalar a supremacia masculina e a competitividade entre os grupos na busca de novos territérios. Agora, para sobreviver, as sociedades tém de com- petir entre si por um alimento escasso. As guerras se tornam constan- tes e passam a ser mitificadas. Os homens mais valorizados sdo os herdéis guerreiros. Comega a se romper a harmonia que ligava a espécie hu- mana a natureza. Mas ainda nao se instala definitivamente a lei do mais forte. O homem ainda nao conhece com precisaéo a sua fungdo repro- dutora e cré que a mulher fica gravida dos deuses. Por isso ela ainda conserva poder de decisfo. Nas culturas que vivem da caca, ja existe 6 estratificagao social e sexual, mas nado € completa como nas sociedades que se lhes seguem. E no decorrer do neolitico que, em algum momento, o homem comeca a dominar a sua fungdo bioldgica reprodutora, e, podendo controla-la, pode também controlar a sexualidade feminina. Aparece entao 0 casamento como o conhecemos hoje, em que a mulher é pro- priedade do homem e a heranca se transmite através da descendéncia masculina. Jé acontece assim, por exemplo, nas sociedades pastoris des- critas na Biblia. Nessa época, o homem ja tinha aprendido a fundir metais. Essa descoberta acontece por volta de 10000 ou 8000 a.C. E, 4 medida que essa tecnologia se aperfeicoa, comecam a ser fabricadas nao sé armas mais sofisticadas como também instrumentos que per- mitem cultivar melhor a terra (0 arado, por ex.). Hoje ha consenso entre os antropdlogos de que os primeiros hu- manos a descobrir os ciclos da natureza foram as mulheres, porque podiam compara-los com 0 ciclo do préprio corpo. Mulheres também devem ter sido as primeiras plantadoras e as primeiras ceramistas, mas foram os homens que, a partir da invengao do arado, sistematizaram as atividades agricolas, iniciando uma nova era, a era agraria, e com ela a histéria em que vivemos hoje. Para poder arar a terra, os grupamentos humanos deixam de ser némades. Sao obrigados a se tornar sedentarios. Dividem a terra e for- mam as primeiras plantagdes. Comecam a se estabelecer as primeiras aldeias, depois as cidades, as cidades-estado, os primeiros Estados e os impérios, no sentido antigo do termo. As sociedades, entdo, se tor- nam patriarcais, isto é, os portadores dos valores e da sua transmissao sao os homens. Ja nao séo mais os principios feminino e masculino que governam juntos o mundo, mas, sim, a lei do mais forte. A comi- da era primeiro para o dono da terra, sua familia, seus escravos e seus soldados. Até ser escravo era privilégio. S6 os parias ndmades, os sem- terra, é que pereciam no primeiro inverno ou na primeira escassez. Nesse contexto, quanto mais filhos, mais soldados e mais m&o- de-obra barata para arar a terra. As mulheres tinham a sua sexualida- de rigidamente controlada pelos homens. O casamento era monogé- mico e a mulher era obrigada a sair virgem das maos do pai para as mos do marido. Qualquer ruptura desta norma podia significar a mor- te. Assim também o adultério: um filho de outro homem viria amea- ¢ar a transmissdo da heranga que se fazia através da descendéncia da mulher. A mulher fica, entéo, reduzida ao Ambito doméstico. Perde qualquer capacidade de decisaéo no dominio publico, que fica inteira- mente reservado ao homem. A dicotomia entre o privado e o publico 7 torna-se, ent&o, a origem da dependéncia econédmica da mulher, e esta dependéncia, por sua vez, gera, no decorrer das geragdes, uma sub- missao psicolégica que dura até hoje. E nesse contexto que transcorre todo o periodo histérico até os dias de hoje. De matricéntrica, a cultura humana passa a patriarcal. E o Verbo Veio Depois “No principio era a Mae, o Verbo veio depois.” E assim que Ma- rilyn French, uma das maiores pensadoras feministas americanas, co- meca 0 seu livro Beyond Power (Summit Books, Nova York, 1985). E nao é sem razdo, pois podemos retragar os caminhos da espécie atra- vés da sucessfo dos seus mitos. Um mitdlogo americano, em seu livro The Masks of God:Occidental Mythology (Nova York, 1970), citado por French, divide em quatro grupos todos os mitos conhecidos da cria- cdo. E, surpreendentemente, esses grupos correspondem as etapas cro- noldgicas da histéria humana. Na primeira etapa, o mundo é criado por uma deusa mae sem au- xilio de ninguém. Na segunda, ele é criado por um deus andrdégino ou um casal criador. Na terceira, um deus macho ou toma o poder da deusa ou cria o mundo sobre o corpo da deusa primordial. Finalmente, na quarta etapa, um deus macho cria o mundo sozinho. Essas quatro etapas que se sucedem também cronologicamente sao testemunhas eternas da transi¢ao da etapa matricéntrica da humanida- de para sua fase patriarcal, e é esta sucesso que da veracidade a frase ja citada de Marilyn French. Alguns exemplos nos fardo entender as diversas etapas e a frase de French. O primeiro e mais importante exemplo da primeira etapa em que a Grande Mae cria 0 universo sozinha é 0 préprio mito grego. Nele a criadora primaria é Géia, a Mae Terra. Dela nascem todos as protodeuses: Urano, os Titds e as protodeusas, entre as quais Réia, que vira a ser a mae do futuro dominador do Olimpo, Zeus. Hé também caso do mito Nagé, que vem dar origem ao candomblé. Neste mito africano, é Nand Buruqué que da a luz todos os orixds, sem auxilio de ninguém. Exemplos do segundo caso sao o deus andrégino que gera todos os deuses, no hinduismo, e o yin e o yang, o principio feminino e o masculino que governam juntos na mitologia chinesa. Exemplos do terceiro caso sao as mitologias nas quais reinam em primeiro lugar deusas mulheres, que s4o, depois, destronadas por deu- ses masculinos. Entre essas mitologias esté a sumeriana, em que primi- 8 tivamente a deusa Siduri reinava num jardim de delicias e cujo poder foi usurpado por um deus solar. Mais tarde, na epopéia de Gilgamesh, ela é descrita como simples serva. Ainda, os mitos primitivos dos aste- cas falam de um mundo perdido, de um jardim paradisfaco governado por Xoxiquetzl, a Mae Terra. Dela nasceram os Huitzuhuahua, que s4o os Titas e os Quatrocentos Habitantes do Sul (as estrelas). Mais tarde, seus filhos se revoltam contra ela e ela dd a luz o deus que iria governar a todos, Huitzilopochtli. A partir do segundo milénio a.C., contudo, raramente se regis- tram mitos em que a divindade priméria seja mulher. Em muitos de- les, estas sdo substituidas por um deus macho que cria o mundo a partir de si mesmo, tais como os mitos persa, meda e, principalmente e aci- ma de todos, o nosso mito cristao, que € o que sera enfocado aqui. Javé € deus unico todo-poderoso, onipresente, e controla todos os seres humanos em todos os momentos da sua vida. Cria sozinho o mundo em sete dias e, no final, cria o homem. E s6 depois cria a mulher, assim mesmo a partir do homem. E coloca ambos no Jardim das Delicias onde o alimento é abundante e colhido sem trabalho. Mas, gragas 4 seducdo da mulher, o homem cede a tentac4o da serpente e o casal é expulso do paraiso. Antes de prosseguir, procuremos analisar 0 que ja se tem até aqui em relacdo a mulher. Em primeiro lugar, ao contrario das culturas pri- mitivas, Javé é deus unico, centralizador, dita rigidas regras de com- portamento cuja transgresséo é sempre punida. Nas primitivas mitologias, ao contrario, a Grande Mae é permissiva, amorosa e nao- coercitiva. E como todos os mitos fundantes das grandes culturas ten- dem a sacralizar os seus principais valores, Javé representa bem a trans- formacao do matricentrismo em patriarcado. O Jardim das Delicias ¢ a lembranga arquetipica da antiga har- monia entre o ser humano e a natureza. Nas culturas de coleta nao se trabalhava sistematicamente, Por isso os controles eram frouxos e po- dia se viver mais prazerosamente. Quando o homem comega a domi- Nar a natureza, ele comega a se separar dessa mesma natureza em que até entdo vivia imerso. Como o trabalho é penoso, necessita agora de poder central que imponha controles mais rigidos e puni¢do para a transgressdo. E pre- ciso usar a coercdo e a violéncia para que os homens sejam obrigados a trabalhar, e essa coercao é localizada no corpo, na repressao da se- xualidade e do prazer. Por isso o pecado original, a culpa maxima, na Biblia, é colocado no ato sexual (é assim que, desde milénios, popular- mente se interpreta a transgresso dos primeiros humanos). E por isso que a arvore do conhecimento é também a arvore do bem e do mal. O progresso do conhecimento gera 0 trabalho e por isso © corpo tem de ser amaldicgoado, porque o trabalho é bom. Mas é¢ inte- ressante notar que o homem sé consegue conhecimento do bem e do mal transgredindo a lei do Pai. O sexo (o prazer) doravante é mau e, portanto, proibido. Praticd-lo é transgredir a lei. Ele é, portanto, limi- tado apenas as fungées procriativas, e mesmo assim é uma culpa. Dai a divisdo entre sexo e afeto, entre corpo e alma, apanagio das civilizagdes agrarias e fonte de todas as divisdes e fragmentacdes do homem e da mulher, da razdo e da emogdo, das classes... Tomam ai sentido as punicdes de Javé. Uma vez adquirido 0 co- nhecimento, o homem tem que sofrer. O trabalho o escraviza. E por isso o homem escraviza a mulher. A relagéo homem-mulher-natureza ndo é mais de integracdo e, sim, de dominagao. O desejo dominante agora é o do homem. O desejo da mulher seré para sempre caréncia, e € esta paixdo que sera o seu castigo. Dai em diante, ela sera definida por sua sexualidade, e o homem, pelo seu trabalho. Mas 0 interessante é que os primeiros capitulos do Génesis podem ser mais bem entendidos a luz das modernas teorias psicoldgicas, espe- cialmente a psicandlise. Em cada menino nascido no sistema patriarcal Tepete-se, em nivel simbdlico, a tragédia primordial. Nos primeiros tem- pos de sua vida, eles estéo imersos no Jardim das Delicias, em que to- dos os seus desejos sao satisfeitos. E isto hes faz buscar o prazer que lhes da 0 contato com a me, a unica mulher a que tém acesso. Mas a lei do pai proibe ao menino a posse da mae. E o menino é expulso do mundo do amor, para assumir a sua autonomia e, com ela, a sua maturidade. Principalmente, a sua nudez, a sua fraqueza, os seus limi- tes. E a medida que o homem se cinde do Jardim das Delicias propor- cionadas pela mulher-mae que ele assume a sua condic&o masculina. E para que possa se tornar homem em termos simbélicos, ele pre- cisa passar pela punic&o maior que é a ameaca de morte pelo pai. Co- mo Ad&o, o menino quer matar o pai e este o pune, deixando-o sd. Assim, aquilo que se verifica no decorrer dos séculos, isto é, a tran- sic&o das culturas de coleta para a civilizacdo agraria mais avangada, é relembrado simbolicamente na vida de cada um dos homens do mundo de hoje. Mas duas observacdes devem ser feitas. A primeira é que 0 pivé das duas tragédias, a individual e a coletiva, é a mulher; e a se- gunda, que o conhecimento condenado nao é o conhecimento disso- ciado e abstrato que dai por diante serd o conhecimento dominante, mas sim o conhecimento do bem e do mal, que vém da experiéncia con- creta do prazer e da sexualidade, o conhecimento totalizante que inte- 10 gra inteligéncia e emo¢ao, corpo e alma, enfim, aquele conhecimento que é, especificamente na cultura patriarcal, o conhecimento feminino por exceléncia. Freud dizia que a natureza tinha sido madrasta para a mulher por- que ela nao era capaz de simbolizar tao perfeitamente como o homem. De fato, para podermos entender a misoginia que dai por diante ca- racterizara a cultura patriarcal, é preciso analisar a maneira como as ciéncias psicologicas mais atuais apontam para uma estrutura psiquica feminina bem diferente da masculina. A mesma idade em que 0 menino conhece a tragédia da castracdo jmaginaria, a menina resolve de outra maneira 0 conflito que a condu- zira a maturidade. Porque ja vem castrada, isto é, porque nao tem pé- nis (o simbolo do poder e do prazer, no patriarcado), quando seu desejo a leva para o pai ela nao entra em conflito com a mae de maneira tao tragica e aguda como o menino entra com o pai por causa da mae. Porque ja vem castrada, nado tem nada a perder. E a sua identificacao com a mae se resolve sem grandes traumas. Ela nao se desliga inteira- mente das fontes arcaicas do prazet (0 corpo da mae). Por isso, tam- bém, ndo se divide de si mesma como se divide o homem, nem de suas emoc6es. Para o resto da sua vida, conhecimento e prazer, emo¢do e inteligéncia séo mais integrados na mulher do que no homem e, por isso, sdo perigosos e desestabilizadores de um sistema que repousa in- teiramente no controle, no poder e, portanto, no conhecimento disso- ciado da emocdo e, por isso mesmo, abstrato. De agora em diante, poder, competitividade, conhecimento, con- trole, manipulacdo, abstragdo e violéncia vem juntos. O amor, a in- tegracéo com o meio ambiente e com as préprias emogées so os elementos mais desestabilizadores da ordem vigente. Por isso é preciso precaver-se de todas as maneiras contra a mulher, impedi-la de inter- ferir nos processos decisérios, fazer com que ela introjete uma ideolo- gia que a convenga de sua prdépria inferioridade em relagao ao homem. E nao espanta que na propria Biblia encontremos o primeiro indi- cio desta desigualdade entre homens e mulheres. Quando Deus cria o homem, Ele o cria so e apenas depois tira a companheira da costela deste, Em outras palavras: o primeiro homem da a luz (pare) a primei- ta mulher. Esse fendmeno psicologico de deslocamento é um mecanis- mo de defesa conhecido por todos aqueles que lidam com a psique humana e serve para revelar escondendo. Tirar da costela é menos vio- lento do que tirar do proprio ventre, mas, em outras palavras, aponta para a mesma direcdo. Agora, parir ¢ ato que nao esta mais ligado ao sagrado e é, antes, uma vulnerabilidade do que uma for¢a. A mulher 11 se inferioriza pelo préprio fato de parir, que outrora lhe assegurava a grandeza. A grandeza agora pertence ao homem, que trabalha e do- mina a natureza. JA nao é mais o homem que inveja a mulher. Agora é a mulher que inveja o homem e é dependente dele. Carente, vulneravel, seu de- sejo é o centro da sua punicdo. Ela passa a se ver com os olhos do ho- mem, isto é, sua identidade nao esté mais nela mesma e sim em outro. O homem é aut6nomo e a mulher é reflexa. Daqui em diante, como © pobre se vé com os olhos do rico, a mulher se vé pelo homem. Da época em que foi escrito o Génesis até os nossos dias, isto é, de alguns milénios para cd, essa narrativa basica da nossa cultura pa- triarcal tem servido ininterruptamente para manter a mulher em seu devido lugar. E, alias, com muita eficiéncia. A partir desse texto, a mu- lher é vista como a tentadora do homem, aquela que perturba a sua relacéo com a transcendéncia e também aquela que conflitua as rela- ¢Ges entre os homens. Ela é ligada a natureza, 4 carne, ao sexo € ao prazer, dominios que tém de ser rigorosamente normatizados: a serpente, que nas eras matricéntricas era o simbolo da fertilidade e tida na mais alta estima como simbolo maximo da sabedoria, se transforma no dem6nio, no tentador, na fonte de todo pecado. E ao demOnio é alocado o pecado por exceléncia, o pecado da carne. Coloca-se no sexo o pecado supremo e, assim, o poder fica imune 4 critica. Apenas nos tempos modernos esta se tentando deslocar o pe- cado da sexualidade para o poder. Isto é, até hoje nio s6 o homem como as classes dominantes tiveram seu status sacralizado porque a mulher e a sexualidade foram penalizadas como causa maxima da de- gradacao humana. O Malleus como Continuagao do Génesis Enquanto se escrevia o Génesis no Oriente Médio, as grandes cul- turas patriarcais iam se sucedendo. Na Grécia, o status da mulher foi extremamente degradado. O homossexualismo era pratica comum en- tre os homens e as mulheres ficavam exclusivamente reduzidas as suas fung6es de mae, prostituta ou cortesa. Em Roma, embora durante certo periodo tivessem bastante liberdade sexual, jamais chegaram a ter po- der de decisdo no Império. Quando o Cristianismo se torna a religiao oficial dos romanos no século IV, tem inicio a Idade Média. Algo no- vo acontece. E aqui nos deteremos porque é 0 periodo que mais nos interessa. Do terceiro ao décimo séculos, alonga-se um periodo em que 12 o Cristianismo se sedimenta entre as tribos barbaras da Europa. Nes- se periodo de conflito de valores, ¢ muito confusa a situacao da mu- Iher. Contudo, ela tende a ocupar lugar de destaque no mundo das decis6es, porque os homens se ausentavam muito e morriam nos pe- riodos de guerra. Em poucas palavras: as mulheres eram jogadas para o dominio publico quando havia escassez de homens e voltavam para o dominio privado quando os homens reassumiam o seu lugar na cultura. Na alta Idade Média, a condicdo das mulheres floresce. Elas tam acesso as artes, as ciéncias, a literatura. Uma monja, por exemplo, Hros- vitha de Gandersheim, foi 0 tnico poeta da Europa durante cinco sé- culos. Isso acontece durante as cruzadas, periodo em que ndo sé a Igreja alcanca seu maior poder temporal como, também, o mundo se prepa- ra para as grandes transformagGes que viriam séculos mais tarde, com a Renascenga. E é logo depois dessa época, no periodo que vai do fim do século XIV até meados do século XVII que aconteceu o fenémeno generali- zado em toda a Europa: a repress4o sistematica do feminino. Estamos nos referindo aos quatro séculos de ‘‘caca as bruxas’’. Deirdre English e Barbara Ehrenreich, em seu livro Witches, Nur- ses and Midwives (The Feminist Press, 1973), nos dao estatisticas ater- radoras do que foi a queima de mulheres feiticeiras em fogueiras durante esses quatro séculos. ‘‘A extensdo da caca as bruxas é espantosa. No fim do século XV e no comego do século XVI, houve milhares e milha- Tes de execucdes — usualmente eram queimadas vivas na fogueira — na Alemanha, na Italia e em outros paises. A partir de meados do sé- culo XVI, o terror se espalhou por toda a Europa, comecando pela Fran¢a e pela Inglaterra. Um escritor estimou o nimero de execugées em seiscentas por ano para certas cidades, uma média de duas por dia, ‘exceto aos domingos’. Novecentas bruxas foram executadas num uni- co ano na area de Wertzberg, e cerca de mil na diocese de Como. Em Toulouse, quatrocentas foram assassinadas num unico dia; no arce- bispado de Trier, em 1585, duas aldeias foram deixadas apenas com duas mulheres moradoras cada uma. Muitos escritores estimaram que o numero total de mulheres executadas subia 4 casa dos milhdes, ¢ as mulheres constituiam 85% de todos os bruxos e bruxas que foram exe- cutados.”” Outros calculos levantados por Marilyn French, em seu ja citado livro, mostram que o numero minimo de mulheres queimadas vivas é de cem mil. 13 E Por Que Tudo Isso? Desde a mais remota antiguidade, as mulheres eram as curadoras populares, as parteiras, enfim, detinham saber proprio, que thes era transmitido de geracao em geracdéo. Em muitas tribos primitivas eram elas as xamas. Na Idade Média, seu saber se intensifica e aprofunda. As mulheres camponesas pobres nao tinham como cuidar da satide, a nao ser com outras mulheres tao camponesas e tao pobres quanto elas. Elas (as curadoras) eram as cultivadoras ancestrais das ervas que devolviam a satide, e eram também as melhores anatomistas do seu tempo. Eram as parteiras que viajavam de casa em casa, de aldeia em aldeia, e as médicas populares para todas as doengas. Mais tarde elas vieram a representar uma ameaca. Em primeiro lugar, ao poder médico, que vinha tomando corpo através das univer- sidades no interior do sistema feudal. Em segundo, porque formavam organizacdes pontuais (comunidades) que, ao se juntarem, formavam vastas confrarias, as quais trocavam entre si os segredos da cura do corpo e muitas vezes da alma. Mais tarde, ainda, essas mulheres vie- ram a participar das revoltas camponesas que precederam a centraliza- go dos feudos, os quais, posteriormente, dariam origem as futuras nagées. O poder disperso e frouxo do sistema feudal para sobreviver é obri- gado, a partir do fim do século XIII, a centralizar, a hierarquizar e ase organizar com métodos politicos e ideoldgicos mais modernos. A nog4o de patria aparece, mesmo nessa época (Klausevitz). A religido catélica e, mais tarde, a protestante contribuem de ma- neira decisiva para essa centralizacéo do poder. E o fizeram através dos tribunais da Inquisigaéo que varreram a Europa de norte a sul, leste € oeste, torturando e assassinando em massa aqueles que eram julga- dos heréticos ou bruxos. Este ‘‘expurgo”’ visava recolocar dentro de regras de comporta- mento dominante as massas camponesas submetidas muitas vezes aos mais ferozes excessos dos seus senhores, expostas 4 fome, a peste e a guerra e que se rebelavam. E principalmente as mulheres. Era essencial para o sistema capitalista que estava sendo forjado no seio mesmo do feudalismo um controle estrito sobre 0 corpo e a sexualidade, conforme constata a obra de Michel Foucault, Histdria da Sexualidade. Comega a se construir ali o corpo décil do futuro tra- balhador que vai ser alienado do seu trabalho e nao se rebelard. A par- tir do século XVII, os controles atingem profundidade e obsessividade tais que os menores, os minimos detalhes e gestos sao normatizados. 14 Todos, homens e mulheres, passam a ser, ent4o, os préprios controla- dores de si mesmos a partir do mais intimo de suas mentes. E assim que se instala o puritanismo, do qual se origina, segundo Tawnwy e Max Weber, o capitalismo avancado anglo-saxao. Mas até chegar a esse ponto foi preciso usar de muita violéncia. Até meados da Idade Média, as regras morais do Cristianismo ainda nao tinham penetrado a fundo nas massas populares. Ainda existiam muitos nticleos de ‘‘pa- ganismo”’ e, mesmo entre os cristdos, os controles eram frouxos. As regras convencionais sé eram vadlidas para as mulheres e ho- mens das classes dominantes através dos quais se transmitiam o poder eaheranca. Assim, os quatro séculos de persegui¢do as bruxas e aos heréticos nada tinham de histeria coletiva, mas, ao contrario, foram uma persegui¢déo muito bem calculada e planejada pelas classes domi- nantes, para chegar a maior centralizacdo e poder. Num mundo teocratico, a transgressao da fé era também trans- gressao politica. Mais ainda, a transgressdo sexual que grassava solta entre as massas populares. Assim, os inquisidores tiveram a sabedoria de ligar a transgressdo sexual a transgressdo da fé. E punir as mulheres por tudo isso. As grandes teses que permitiram esse expurgo do femi- nino e que sAo as teses centrais do Malleus Maleficarum sao as seguintes: 1) O demGnio, com a permisséo de Deus, procura fazer 0 maximo de mal aos homens a fim de apropriar-se do maior numero possivel de almas. 2) Eeste mal é feito prioritariamente através do corpo, tinico ‘‘lugar’’ onde o deménio pode entrar, pois ‘‘o espirito [do homem] é governa- do por Deus, a vontade por um anjo e o corpo pelas estrelas’”’ (Parte I, Questo I). E porque as estrelas sio inferiores aos espiritos e 0 de- ménio é um espirito superior, s6 lhe resta o corpo para dominar. 3) E este dominio lhe vem através do controle e da manipulacdo dos atos sexuais. Pela sexualidade o dem6nio pode apropriar-se do corpo e da alma dos homens. Foi pela sexualidade que o primeiro homem pecou e, portanto, a sexualidade € o ponto mais vulneravel de todos os homens. 4) Ecomo as mulheres estdo essencialmente ligadas a sexualidade, elas se tornam as agentes por exceléncia do demGnio (as feiticeiras). E as mulheres tém mais conivéncia com o deménio ‘‘porque Eva nasceu de uma costela torta de Addo, portanto nenhuma mulher pode ser reta’’ (6). 5) A primeira e maior caracteristica, aquela que dé todo o poder as feiticeiras, € copular com o deménio. Sata é, portanto, o senhor do prazer. 15 6) Uma vez obtida a intimidade com o deménio, as feiticeiras sfio ca- pazes de desencadear todos os males, especialmente a impoténcia mas- culina, a impossibilidade de livrar-se de paixdes desordenadas, abortos, oferendas de criancas a Satands, estrago das colheitas, doencas nos ani- mais etc. 7) E esses pecados eram mais hediondos do que os préprios pecados de Liicifer quando da rebeliao dos anjos e dos primeiros pais por oca- sido da queda, porque agora as bruxas pecam contra Deus e o Reden- tor (Cristo), ¢ portanto este crime é imperdodvel e por isso s6 pode ser resgatado com a tortura e a morte. Vemos assim que na mesma época em que o mundo esta entrando na Renascenga, que vir a dar na Idade das Luzes, processa-se a mais delirante perseguicdo as mulheres e ao prazer. Tudo aquilo que ja es- tava em embrido no Segundo Capitulo do Génesis torna-se agora si- nistramente concreto. Se nas culturas de coleta as mulheres eram quase sagradas por poderem ser férteis e, portanto, eram as grandes estimu- ladoras da fecundidade da natureza, agora elas sao, por sua capacida- de orgastica, as causadoras de todos os flagelos a essa mesma natureza. Sim, porque as feiticeiras se encontram apenas entre as mulheres or- gasticas e ambiciosas (I, 6), isto é, aquelas que n4o tinham a sexualida- de ainda normatizada e procuravam impor-se no dominio piblico, exclusivo dos homens. Assim, 0 Malleus Maleficarum, por ser a continuagdo popular do Segundo Capitulo do Génesis, torna-se a testemunha mais importante da estrutura do patriarcado e de como esta estrutura funciona concre- tamente sobre a repressaéo da mulher e do prazer. De doadora da vida, simbolo da fertilidade para as colheitas e os animais, agora a situagdo se inverte: a mulher é a primeira e a maior pecadora, a origem de todas as agdes nocivas ao homem, a natureza € aos animais. Durante trés séculos o Malleus foi a biblia dos Inquisidores e este- ve na banca de todos os julgamentos. Quando cessou a caca as bruxas, no século XVIII, houve grande transformaco na condigao feminina. A sexualidade se normatiza e as mulheres se tornam frigidas, pois or- gasmo era coisa do diabo e, portanto, passivel de punicao. Reduzem- se exclusivamente ao 4mbito doméstico, pois sua ambicéo também era passivel de castigo. O saber feminino popular cai na clandestinidade, quando nao é assimilado como prdéprio pelo poder médico masculino ja solidificado. As mulheres nao tém mais acesso ao estudo como na Idade Média e passam a transmitir voluntariamente a seus filhos valo- res patriarcais j4 entao totalmente introjetados por elas. 16 E com acaga as bruxas que se normatiza o comportamento de ho- mens e mulheres europeus, tanto na area publica como no dominio do privado. E assim se passam os séculos. A sociedade de classes que ja esta construida nos fins do século XVIII € composta de trabalhadores doceis que nfo questionam o sistema. As Bruxas do Século XX Agora, mais de dois séculos apds 0 término da caga as bruxas, é que podemos ter uma nocdo das suas dimensGes. Neste final de século ede milénio, 0 que se nos apresenta como avaliagao da sociedade in- dustrial? Dois tergos da humanidade passam fome para 0 terco restan- te superalimentar-se; além disto ha a possibilidade concreta da destruicéo instantanea do planeta pelo arsenal nuclear ja colocado e, principalmente, a destruicdo lenta mas continua do meio ambiente, ja chegando ao ponto do ndo-retorno. A aceleragao tecnoldgica mostra- se, portanto, muito mais louca do que o mais louco dos inquisidores. Ainda neste fim de século outro fenémeno esta acontecendo: na mesma jovem rompem-se dois tabus que causaram a morte das feiti- ceiras: a insercéo no mundo publico e a procura do prazer sem repres- sao. A mulher jovem hoje liberta-se porque o controle da sexualidade ea reclusdo ao dominio privado formam também os dois pilares da opressdéo feminina. Assim, hoje as bruxas sdo legiado no século XX. E sao bruxas que nao podem ser queimadas vivas, pois so elas que est4o trazendo pela primeira vez na historia do patriarcado, para o mundo masculino, os valores femininos. Esta reinserco do feminino na histéria, resgatan- do o prazer, a solidariedade, a néo-competic¢4o, a unido com a nature- za, talvez seja a unica chance que a nossa espécie tenha de continuar viva. Creio que com isso as nossas bruxinhas da Idade Média podem se considerar vingadas! Prefacio O MARTELO DAS FEITICEIRAS — MALLEUS MALEFICARUM A LUZ DE UMA TEORIA SIMBOLICA DA HISTORIA CARLOS AMADEU B. BYINGTON* O século vinte entra em sua ultima década perplexo diante do desmoronamento da ideologia materialista que 0 empolgou, guiou e revolucionou. A civilizacdo industrial se da conta, por seus préprios descaminhos, de uma grande falta de valores para orientar seu desen- volvimento. Das profundezas geladas desta desidealizacdo, reativam- se os arquétipos expressos nos mitos portadores dos simbolos histéri- cos que orientaram o desenvolvimento das culturas. A civilizacao in- dustrial e as ciéncias modernas surgidas no Renascimento europeu, ao retornarem as suas raizes miticas, reencontram o mito cristéo que lhes moldou os caminhos. Em sua bagagem, elas incluem dois séculos de psicologia para vivencid-lo de forma diferente. Com menos fervor e fanatismo talvez, mas certamente com maior capacidade de separar a mensagem fecunda dos simbolos do mito das suas deformacées his- toricas. A importancia do papel civilizatério do mito cristéo no terceiro milénio deverd incluir a continuacdo da elaboragdo dos seus simbolos que ainda nao puderam ser devidamente integrados pela cultura. Nes- se sentido, o estudo dos pontos histdricos estratégicos de estrangula- mento da mensagem do mito formarao um capitulo importante da sua continuidade. *Médico psiquiatra e analista, membro da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 19 Na medida em que a midia do processo civilizatério integrar os idiomas hispano-ibéricos no mundo moderno, a lingua portuguesa ad- quiriré outra importancia da que tem hoje. Dentro dessa perspectiva, a Editora Rosa dos Tempos justifica seu nome € 0 pioneirismo da per- sonalidade das suas quatro fundadoras, ao traduzir para 0 portugués e inaugurar suas atividades com esta obra. O Martelo das Feiticeiras — Malleus Maleficarum é uma das pa- ginas mais terriveis do Cristianismo. E dificil imaginar que, durante trés séculos, ele foi a Biblia do inquisidor. Tentarei demonstrar que nao foi por acaso que ele foi escrito no esplendor do Renascimento e se transformou no apogeu ideoldgico e pragmatico da Inquisigao con- tra a bruxaria, atingindo intensamente as mulheres. Como o leitor po- dera verificar sobejamente por conta propria, ele é um manual de ddio, de tortura e de morte, no qual o maior crime € 0 cometido pelo pr6- prio legislador ao redigir a lei. Suas vitimas nao nos deixaram testemu- nho. E a propria sanha dos legisladores, cuja loucura os levou a expor orgulhosamente seus crimes para a posteridade, que nos faz imaginar 0 terrivel sofrimento passado pelos milhares de pessoas, em sua maio- ria mulheres, muitas das quais histéricas, que foram por eles tortura- das e condenadas a prisdo perpétua ou a4 morte. O livro é diabdlico na sua concepgao e redacao. Dividido em trés partes, a primeira cuida de enaltecer o Deménio com poderes divinos extremos e ligar suas acdes com a bruxaria. Isto é ardilosamente arti- culado com a ideologia repressiva da Inquisicéo, declarando-se heréti- ca qualquer descrenga nesses postulados. Na segunda parte, ensina-se a reconhecer e a neutralizar a bruxaria nas vivéncias do dia-a-dia da populagao. Uma pessoa de conduta diferente, uma briga entre vizinhos, uma vaca que da mais ou menos leite, uma crianga que adoece, uma tempestade ou a diminuic&o da poténcia sexual, qualquer ocorréncia pode ser atribuida 4 bruxaria. Trata-se de uma verdadeira religiao do Diabo para explicar todos os males da vida individual e comunitaria. E dificil imaginar que qualquer bruxo ou bruxa, por maior formacao em ciéncia juridica que tivesse, conseguisse legislar sobre os poderes do Dem6nio com tanta prodigalidade. Na terceira parte, descrevem-se © julgamento e as sentencas. Ai compreende-se como 0 livro é ardilo- so. Em realidade, as duas primeiras partes sdo escolasticamente racio- nalizadas para justificar toda sorte de aberragGes e crueldades mandadas executar na terceira parte, um verdadeiro escoadouro da patologia cul- tural acumulada no milénio da Idade Média. Ainda que delirante, sadico e puritano, nao esta ai a esséncia da patologia do Malleus. Ela advém fundamentalmente de 0 texto ter 0 20 objetivo de defender e de enaltecer Cristo, o que o transforma, louca- mente, num cédigo penal redigido por criminosos eruditos, doutamente referenciados no que havia de melhor na teologia cristfé. Abengoados e protegidos por bula papal, os inquisidores Sprenger e Kramer, que escreveram 0 Malleus, sio um sintoma da Inquisi¢ao, o grande can- cer, a deformacao psicdtica do mito cristaéo. Durante sua instituciona- lizagéo, o mito se subdividiu. Uma parte preservou a esséncia da mensagem crista e transformou a relacéo Eu/Outro do padrao patriarcal para um padrdo de igualdade e interagdo criativa. Outra deformou o mito através da Inquisicao e criou uma enorme dissociacdo cultural ex- pressa nas polaridades Cristo/Dem6nio e Santa Madre Igreja/Bruxa. Uma histéria simbolica do Cristianismo nos mostra como a Demono- logia e o édio as mulheres cresceram as expensas da despotencializa- gao do papel cultural revolucionario dos simbolos de Cristo e da Igreja. Este poderosissimo mito de salvaco pelo amor foi a principal ma- triz estruturante da chamada civilizacgdo ocidental, dentro da qual se desenvolveu a ciéncia moderna ¢ se forjou a identidade das nacdes eu- ropéias € americanas. A esséncia do mito esta em dois mandamentos: “Amards pois o Senhor teu Deus de todo o teu coragdo, de toda atua alma, de todo o teu entendimento e de toda a tua forga... Ama- ras o préximo como a ti mesmo.”” (Mt 22:37-39) ‘Eu nao vos deixarei desamparados; Eu virei a vés. Dentro de pouco tempo, o mundo nao me verd mais. Mas vés me vedes e porque eu vivo, vés vivereis. Nesse dia, sabereis que eu sou no meu Pai, vos em mim e eu em vos. Aquele que tem meus mandamentos e os guarda, esse me ama; e aquele que me ama serd amado por meu Pai, e eu o amarei e me mostrarei a ele.’’ (Jodo 14:18-21) A tarefa deste prefacio é explicar como este mito de solidariedade humana péde ser tao deformado a ponto de produzir a Inquisicao e o Malleus. Buscarei esta compreensdo em uma teoria simbélica da his- téria e da cultura.’ Parece-me que somente uma perspectiva simbdli- ca do desenvolvimento normal e patolégico da cultura pode tornar compreensivel tamanha aberracao. Do ponto de vista da psicopatologia simbdlica coletiva, o parale- lo comumente feito entre a Inquisicao e o nazismo é importante para ilustrar o que é a psicose parandide cultural. Afora a duracdo de uma ser medida em algumas décadas e da outra em muitos séculos, esta com- paragao necessita delimitar uma grande diferenca, que é a patologia do carater coletivo que acompanhou a Inquisigao. Os nazistas assassi- navam suas vitimas porque se julgavam puros e elas impuras. Ao 21 aniquild-las, buscavam formar uma nova humanidade racialmente aprimorada. Sua psicose expressava a projecao de sua Sombra (seus complexos inconscientes), mas nao inclufa, num mesmo grau de com- prometimento, a patologia coletiva do cardter. Assim, nao necessita- ram distorcer o humanismo ocidental para justificar seus crimes. Ao endeusar sua megalomania parandide, repudiaram toda a fundamen- taco humanista da cultura ocidental. Dai sua identificacdo ideoldgica maciga com a psicose anticristé e anti-semita de Nietzsche. A Inquisigaéo também se julgava megalomaniacamente purifica- dora e projetava de forma parandide sua prépria sombra (os comple- xos culturais inconscientes) nos hereges que torturava e matava. No entanto, ndo sé nao repudiava o humanismo crist&éo como se funda- mentava teologicamente nele para perpetrar seus crimes. Ao torturar e matar, os Inquisidores diziam lutar contra o Deménio para salvar a alma de volta para Cristo. Tudo isto faziam como especialistas no estudo dos Evangelhos e no seu contetido humanista. Dessa maneira, junto com a projecao psicética, a Inquisic&o apresentava uma patolo- gia coletiva do cardter (psicopatica) através da qual distorcia o pensa- mento dos maiores santos e doutores da Igreja, como, por exemplo, Santo Agostinho e Santo Tomas de Aquino, para racionalizar sua pr6- pria conduta patoldégica, motivada inconscientemente pelas deforma- ¢6es psicoldgicas oriundas de séculos de repress4o. E através do estudo da distor¢4o progressiva dos simbolos do mito cristéo que podemos compreender essas deformagées e avaliar devidamente o grau de com- prometimento patolégico cultural que expressaram. Entendo por histéria simbdlica aquela que percebe os aconteci- mentos histéricos como simbolos da transformagao do self cultural. Jung concebeu o se/f como a interagdo das forgas conscientes e incons- cientes na psique. Vejo também o self ou ser cultural como a interacéo das forgas conscientes e inconscientes nas instituigdes, nos costumes, nas leis, na imprensa, em tudo enfim. Cada parte, por menor que seja, é sempre a expressdo desse todo. Podemos perceber os eventos histdri- cos, expressando a vida e a transformacdo desse todo, e, assim, conce- ber uma teoria simbélica da histéria.? Como no self individual, a sombra do se/f cultural é formada por simbolos e complexos (conjun- to de simbolos) que nao foram devidamente elaborados e permanece- ram inconscientes durante a histéria de cada individuo e de cada cultura. Os arquétipos so as matrizes do funcionamento dos simbolos que expressam a normalidade e a patologia. Da mesma forma que cada mi- neral tem seu Angulo de cristalizago, que o caracteriza, e os vegetais tém formas especiais de crescimento e reprodug¢ao, os animais tém pa- 22 drées tipicos de comportamento para cada espécie. A psique humana tem arquétipos que séo matrizes que coordenam a maneira como ela forma suas imagens e organiza seu funcionamento. Os principais ar- quétipos organizam até mesmo a maneira como o Eu se relaciona com o Outro na consciéncia, ou seja, como a consciéncia lida com os sim- bolos.’ O arquétipo do Herdi, por exemplo, coordena uma série de simbolos de forma caracteristica para expressar a realizag&o de gran- des feitos. A vida dos profetas, e dentre eles Jesus, expressou muitos feitos que sdo simbolos desse arquétipo. Isto é valido tanto para a psi- que individual quanto para a psique grupal, como sao em grau cres- cente a instituicdo, a cultura e, num nivel mais abrangente ainda, a psique planetdria. Na histéria da personalidade e da cultura, certos pa- dr6es de funcionamento da consciéncia que sao arquetipicos se tornam dominantes e depois cedem sua dominancia a outros. E 0 que veremos acontecer na histéria simbdlica do Cristianismo. Apesar de somente oficializada pelas bulas papais do século doze em diante, a Inquisigao tem suas origens remotas na época em que se fez a redacdo final do Novo Testamento, marcada pela censura e redu- cionismo patriarcais. Os Evangelhos de Tomé, de Filipe e de Maria, desenterrados junto com outros escritos gndsticos no Egito em 1945, e que ficaram conhecidos como a Biblioteca de Nag Hamadi,‘ atribuem um papel muito relevante as mulheres na mensagem de Cristo, especial- mente Maria Madalena. Segundo os Evangelhos de Filipe e de Maria, ela seria uma apostola iniciada por Jesus, sendo mesmo a sua preferida. “Pedro respondeu [a Maria]... Ele realmente falou particularmente assim a uma mulher e nao abertamente a nds? Ele preferiu ela a nés?”’ “Maria chorou e disse a Pedro: — Pedro, meu irmdo, 0 que pen- sas? Acreditas por acaso que inventei estas historias em meu coracdo e minto sobre o Salvador? — Levi respondeu a Pedro: — Pedro, vocé sempre foi impetuoso. Agora vejo vocé atacando a mulher como aum adversario. Mas se o Salvador a valorizou, quem é vocé para rejeita- la? Certamente, o Salvador a conhece muito bem. Por isso é que ele a amou mais do que a nés.’” Estes escritos descrevem, também, uma série de rituais dionisia- cos, ligados 4 mulher, a natureza e ao corpo, inclusive a danga, que seriam praticados pelos apéstolos. Esta seria uma das tendéncias dos seguidores de Cristo. Uma outra tendéncia, rival a esta e liderada por Pedro, reprimia a mulher no apostolado e tornou-se, com o tempo, a doutrina oficial da Igreja. ‘‘Simao Pedro disse a eles: “Que Maria nos deixe porque as mulheres nao so dignas do es- pirito.’6 23 O desenvolvimento do Cristianismo se deu através do Império Ro- mano, eminentemente patriarcal. A conversdo do Império nao se fez de baixo para cima, mas de cima para baixo, e, por isso, a estrutura patriarcal do Império pouco mudou com a sua conversdo. Ela conti- nuou com uma grande base patriarcal, apesar de, daf por diante, se denominar cristaé. Sua conversdo real com a integracHo dos simbolos Propostos no mito cristao continuou através dos séculos e, até hoje, esta longe de se concluir. Isto nao é surpreendente porque na raiz deste mito esta o arquétipo da Alteridade, e, como sabemos, um arquétipo, por mais que transforme a consciéncia, nunca a domina totalmente, pois sempre compete com muitos outros arquétipos, principalmente com dois grandes arquétipos basicos da psique.’ Os arquétipos da Grande Mie e do Pai so os dois arquétipos ba- sicos da psique. Eles tém um poder psicolégico tao grande que a domi- nancia de um tende a desequilibrar o self individual ou cultural as expensas das caracteristicas do outro. O dinamismo matriarcal (arqué- tipo da Grande Mae) é regido pelo principio do prazer, da sensualida- dee da fertilidade. Por isso, nas culturas, ele é geralmente representado pelas deusas e deuses das forgas da natureza. Por outro lado, o dina- mismo patriarcal (arquétipo do Pai) é regido pelo principio da ordem, do dever e do desafio das tarefas. O poder, com o qual se impée, divi- dea vida em polaridades altamente desiguais e exclusivamente opostas como bom e mau, certo e errado, justo e injusto, forte e fraco, bonito e feio, sucesso e fracasso. Estas polaridades est&o reunidas em siste- mas ldgicos e racionais. Seus deuses, deusas ¢ ideais sfo conquistado- res e legisladores. Foi esse dinamismo que codificou os papéis sociais rigidos do homem e da mulher, atribuindo a ela uma condicdo inferior junto com a maioria das funcdes matriarcais. Esse dinamismo € carac- teristico das guerras de conquista, das sociedades de classe com acen- tuada hierarquia social e rigida codificagao ideolégica da conduta. Os arquétipos da Alteridade que coordenam os simbolos do mito crist&o sao os arquétipos da Anima na personalidade do homem e do Animus na personalidade da mulher. Os arquétipos da Alteridade pro- piciam a diferenciacdo e o encontro igualitdrio do Eu com o Outro den- tro do todo, respeitando suas diferencas. Estes sao os arquétipos do amor conjugal, da democracia e da ciéncia, pois neles a relagéo Eu/Ou- tro necessita de liberdade de expresso e de igualdade de direitos den- tro da qual se vivenciam as diferencas. O padrao de alteridade é 0 padrao arquetipico central do mito cris- téo no qual é expresso por uma mensagem de amor. Pelo fato de ser arquetipico, este padrdo existe nas culturas expresso de forma variavel 24 € mais ou menos intensa, dependendo da época histérica que atraves- sam. Por que teria sido ele tao intensificado na época de Jesus a ponto de ter dominado de forma messianica a sua pregacdo herdica? Ou se- ja, por que naquele momento da histéria da humanidade foi ele corre- lacionado com a salvacao da espécie? A corrente messianica no misticismo judaico foi sempre muito im- portante, geralmente orientada pelo nacionalismo cultural histdrico patriarcal, exuberantemente expresso por Davi e Salomdo. Outras cor- rentes misticas como aquelas centralizadas nos mistérios da Cabala cul- tivavam o feminino mistico, interagindo igualitariamente com o masculino, e eram, assim, regidas pelo padrdo de alteridade. No mito cristao, este padraéo surge como mensagem de salvacdo da alma a ser buscada individual e socialmente através do amor. Reprimidos pelos exércitos romanos, os judeus se preparavam para uma grande sublevacdo da qual tinham pouca chance de sobrevivén- cia. A vivéncia cultural de genocidio era, por isso, muito intensa. Tanto a cultura judaica quanto a romana, apesar de possuirem, como as demais culturas, acentuados componentes matriarcais, de al- teridade e cdsmicos, estavam, naquela situacao histérica, intensamen- te dominadas pelo dinamismo patriarcal, no qual a relagaéo do Eu com o Outro é fortemente assimétrica. A nivel de poder social, este é um dinamismo guerreiro e centralizador que leva forcosamente a uma re- lagao de opressdo, submissao e revolta que, neste caso, equivaleria a genocidio, uma vez que lutar contra Roma equivaleria ao massacre dos judeus, 0 que aconteceu efetivamente no ano 70. Acredito ter sido este componente tao importante que uma corrente da tradigdo messianica judaica encarnou naquele momento histérico uma proposta heréica de mudanga de dominancia de padrao arquetipico. Assim, paralelamente ao messianismo patriarcal guerreiro, surgiu, nessa crise cultural, o mes- sianismo de alteridade encarnado historicamente na vida e no corpo de Jesus. Esta mudanca de padrao arquetipico no confronto entre na- ¢6es, que aconteceu no Oriente Médio ha quase dois milénios, possi- velmente devido 4 importancia das civilizagdes judaica e romana, foi um marco para todo o futuro da humanidade. De fato, o que compro- vamos de forma crescente atualmente é que cada vez se torna mais di- ficil o confronto das nagées através do embate dominador/dominado caracteristico do dinamismo patriarcal. Com o aumento do poderio tec- noldgico bélico, brevemente ele se tornara impossivel, sem que 0 con- flito inclua o genocidio e comprometa a vida no planeta. O caminho da alteridade é cada dia mais 0 caminho da sobrevivéncia da espécie e dai, a meu ver, a fortissima conotagéo messianica e de transforma- 25 ¢4o social do mito cristéo. E importante perceber esse alto conteiido revolucionario da alteridade na vigéncia da domin4ncia patriarcal pa- ra compreendermos as defesas reaciondrias, patriarcais que se forma- ram junto com a implantag4o cultural do mito, a principal das quais foi a obra terrivel da Inquisicao. Ela exemplifica uma caracteristica ba- sica da psique. Seja na dimens&o individual ou coletiva, suas maiores deformag6es patoldgicas se originam no ferimento da propria forca cria- tiva e transformadora de seus grandes arquétipos. Os arquétipos da alteridade se diferenciam dos arquétipos Paren- tais pela maneira como vivenciam os simbolos. Tornam-se libertado- res por dois motivos. O primeiro é por necessitarem da liberdade para vivenciarem a plenitude do encontro do Eu com o Outro. O segundo € por resgatarem os simbolos da dominancia matriarcal ou patriarcal que, em qualquer época ou circunstancia, estejam reduzindo a vivén- cia simbdlica. Sao nessas duas instancias que os arquétipos da Alteri- dade colidem com os padrées ou dinamismos parentais. Devido a dominancia do arquétipo do Pai na cultura, foi com ele que Os arquétipos de Alteridade mais colidiram durante a instituciona- lizagdo do mito cristao. O trabalho excepcional no Sabath, a protesado da prostituta apedrejada, a defesa dos fracos e oprimidos, o desapego a propriedade privada, o virar a outra face, a substituigdéo do poder pelo amor na interag4o Eu/Outro, e principalmente o relacionamento da alteridade com a vida eterna, ilustrado pela ressurreigdéo de Lazaro e do préprio Messias, foram caracteristicas introduzidas pela mensa- gem crista que colidiram frontalmente com o dinamismo patriarcal. Os milagres da multiplicagdo dos paes e dos peixes podem ser relacio- nados com o resgate do dinamismo matriarcal oprimido. Os milagres da transformacao da agua em vinho nas bodas de Canaa e da ressur- reigdo e o amor a Deus, ou seja, a totalidade, acima de tudo relaciona- das com o amor ao prdéximo como a si mesmo sao os simbolos que mais situam o padrao de relagéo Eu/Outro no dinamismo de alterida- de propriamente. E que este padrdo nao pode ser limitado a relacado igualitaria Eu/Outro simplesmente, mas necessita que esta relacdo se faca em fungao do todo. A histéria simbolica do Cristianismo é, assim, demarcada pelo con- flito entre a implantagao do padrao de alteridade no se/f cultural e sua repatriarcalizacdo reaciondria oriunda das tradigées culturais judaicas e romanas e da obra uniformizadora e repressiva da Inquisic4o. Abordarei pela perspectiva simbolica alguns aspectos importan- tes para ilustrar a deformacdo historica que sofreu 0 mito durante a sua institucionalizagao, delimitada, por um lado, pela abrangéncia ins- 26 titucional na Inquisi¢ao e, por outro, pelo crescimento do simbolo do DemGnio e da bruxaria como sua conseqiiéncia mais direta e nefasta. Manifestamente, a Inquisigdo perseguia o Deménio e as bruxas. Na dindmica simbdlica do mito, porém, ela os fortalecia, progressivamente, as expensas da mutilacdo crescente do herdi messianico de alteridade e da criatividade institucional da Igreja. Aparentemente, a Inquisicao protegia Cristo e sua Igreja. Realmente, no entanto, ela os despoten- cializava como simbolos transformadores, pela patriarcalizagao rea- cionaria. E este caminho simbolico que nos permitira compreender as origens e as conseqiiéncias das monstruosidades do Malleus, concebi- das, aperfeigoadas e praticadas em nome de Cristo e da Santa Madre Igreja. As extraordinaria dominancia patriarcal do Império Romano con- tribuiu desde sua conversdo para a patriarcalizacao reaciondaria do mi- to. Nunca € pouco lembrarmos gue os mesmos centurides que conduziram os cristaos para a arena passaram a perseguir os hereges. A prépria viséo lendaria de Constantino, que teria se convertido ao Cristianismo ao ver a cruz de fogo no céu, ilustra a submissao da cruz a espada patriarcal dos exércitos romanos, deformando radicalmente a mensagem crista desde o primeiro momento da sua institucionaliza- cdo. E importante, também, percebermos a repatriarcalizacaéo meto- doldgica por Constantino no primeiro concilio da Igreja, o Concilio de Nicéa em 325.* Discutiam-se as idéias de Arius, sobre a diferenca de natureza do Filho e do Pai na Trindade. A intervencao de Constan- tino nao foi a favor nem contra, mas no sentido de que, qualquer con- clusdo a que chegassem os bispos, ele exigia que fosse uma sé. A centralizacéo e unificacdo ideoldgica, tao caracteristicas do dinamis- mo patriarcal, fundamentaram a doutrina da Igreja e se tornaram 0 principal referencial no combate as heresias. Mas qual a fungao sim- bolica das heresias no self cultural? Contrariamente a centralizacaéo dogmatica patriarcal, o padrao de alteridade se caracteriza pela interagaéo democratica de correntes diversas para transformar os simbolos e construir a cultura. Haeresis, do la- tim, significa escola de pensamento, religiosa ou filosdfica. Para ser profundamente elaborado como requer um mito de tal envergadura, seriam necessdrias muitas heresias, ou seja, muitas escalas de pensa- mento operando durante muitos séculos dentro das suas institui¢des. No entanto, a unificacdo ideoldgica patriarcal do Santo Oficio até ho- je considera merecedora de repressao qualquer formulagao herética so- bre Cristo. E significativo que j4 no século IV (375) o herege espanhol Prisciliano foi condenado a morte pelo Imperador Maximus, Sao Mar- 27 tinho, Santo Ambrésio e So Leo condenaram radicalmente 0 proce- dimento. So Jo&o Criséstomo escreveu que ‘‘condenar um herege a morte era introduzir na terra um crime inexpidvel’’. Contudo, o pro- cesso repressor estava em andamento junto com a repatriarcalizagao do mito e foi se aperfeigoando com os séculos. O Malleus é um dos seus frutos mais amadurecidos. Ao nos darmos conta de que a repres- sao de inicio é contra atos e declaragdes e no decorrer dos séculos vai se dirigindo mais e mais contra estados de consciéncia, podemos per- ceber que a repatriarcalizacao ia se fazendo no mito, junto com as suas conquistas de alteridade mais valorosas, como uma serpente que fa- brica seu veneno com o sangue de sua presa. Assim, a descoberta da importancia da imaginagao na elaboragao dos simbolos do mito servia como motivo para codificd-la e cerced-la. Salta aos olhos do bom senso que o Malleus é um compéndio que 86 pode ter sido produzido por mentes gravemente enfermas. Trata- se, porém, de uma patologia cultural que seria mutilante reduzir 4 pro- blematica individual. O contetido légico do seu texto, cuja psicopato- logia oscila entre o dinamismo psicotico-parandide-delirante e o dinamismo psicopatico-perverso, apresenta uma forma de pensar, um verdadeiro fio de Ariadne guiado pelo raciocinio psicoldgico no labi- rinto da sua loucura. Para se compreender o enraizamento desta pato- logia no self cultural do Ocidente, é preciso compreender a relagao do mito cristao e a histéria do Cristianismo com o desenvolvimento psi- colégico da personalidade e da cultura. O Cristianismo é uma religiao baseada na salvacao pelo amor. Mas na salvac4o de qué? Na salvacdo da alma afastada de Deus pelo peca- do. Mas 0 que é 0 pecado? E se estar afastado do amor de Deus em pensamento ou acdo. Esse estar com Deus precisa, entao, ser construf- do permanentemente. A prdpria inconsciéncia tem afinidade com o pe- cado, como ilustra 0 pecado original portado pelos recém-nascidos. A diferenciacéo permanente da consciéncia individual e coletiva é, pois, inseparavel da busca cristé de salvacdo. Essa proposta de busca de salvacdo lancou os cristaos num ques- tionamento psicoldgico intenso para compreender, por um lado, o pré- prio mito e inserir nele a vida e a paixdo de Cristo e, por outro, 0 estado da alma de cada fiel, ou seja, sua avaliacdo psicolégica em fungdo do pecado, o que, em termos junguianos, chamamos a relacio do Ego com a Sombra. Oexame de consciéncia se tornou, assim, a pratica central do Cris- tianismo. Seu auxilio e orientagao por fiéis mais experimentados insti- tuiram a pratica da confiss4o. A alma preparada pela elaboracdo dos 28 seus pecados € encaminhada para a comunhao com Cristo no ritual da missa, no qual se opera o milagre da transformagao do pao no cor- po e do vinho no sangue do Salvador, como ele préprio instruira. A criatividade desse processo exige uma dedicagdo enorme a re- flexdo psicoldgica, e foi por isso que o fendmeno do monacato acom- panhou a institucionalizacao do mito. E na reflexdo introvertida dos monastérios que se formou e se avolumou durante séculos um enorme conhecimento psicolégico como ja nos ilustra a grandiosa figura de San- to Agostinho no século quinto. O Eu individual e a consciéncia coleti- va adquiriram profunda experiéncia na elabora¢do de simbolos oriundos das vivéncias humanas as mais diversas. Durante 0 milénio que foi a Idade Média (400-1400), o mito exerceu seu processo civilizatério com um enorme crescimento e diferenciagdo da dimensdo subjetiva. Sé faz sentido denominar a Idade Média de ‘‘idade das trevas’’ se quisermos dizer que € na escuridao que se fabrica a luz. De fato, essa introversdo monAstica foi a raiz da exuberante explosao extrovertida do Renasci- mento que frutificou no humanismo moderno. Quando abrimos ple- namente nossa viséo para a dimensdo simbolica do mito e sua influéncia na histéria, podemos relacionar tanto a Idade Média com o milénio na elaboracdo da morte sacrificial do Messias quanto o Renascimento com a gloria da sua Ressurreicao. Como explicar, porém, que é no ano de 1484, portanto no apogeu do Renascimento, que o Papa Inocéncio VIII da plenos poderes, chamando-lhes meus queridos filhos, aos Inquisidores dominicanos e professores de Teologia Kramer e Sprenger, que escreveram 0 Malleus? E na luta entre as forcas criativas do arquétipo da Alteridade e as for- as patriarcais reaciondrias da Inquisi¢ao que encontramos a resposta, pois quanto mais crescia uma, mais a outra se intensificava, num con- fronto terrivelmente estressante e patologizador do se/f cultural. O século treze é muito ilustrativo desse conflito de arquétipos, ver- dadeira luta de gigantes na alma coletiva européia e dentro da propria Igreja. Ele é marcado pela erudicdo de Santo Tomas de Aquino e a sintese aristotélico-tomista que, ao reunir o imenso acervo de co- nhecimento psicolégico acumulado pelo Cristianismo a filosofia es- sencialmente extrovertida de Aristdteles, preparava a Europa para 0 Renascimento, 0 berco fecundo das artes e ciéncias modernas. E no inicio desse século, em 1209, que se deu o famoso encontro, na Basili- ca de Sao Pedro, entre o Papa Inocéncio III e Sao Francisco de Assis. O crescimento da repressdo as heresias acompanhou a ambigao do poder temporal e a centralizacao e unificagdo dogmatica do Cris- tianismo. Essas trés caracteristicas, que comp6em a repatriarcalizacéo 29 progressiva do mito, atingem um apice no papado de Inocéncio III. O sermf4o que escolheu para sua sagracao, “‘Eu vos estabeleci acima das nagGes e dos reinos”’ (Jer. 1:10), expressou sua ambicdo de domi- nar nao s6 os céus mas também as ‘‘nacGes e os reinos’’. E conseguiu. Nada mais patriarcal do que esta ideologia. Foi durante o seu papado (1198-1216) que se estabeleceu definitivamente a pena de morte contra os hereges. Sua dedicac&o militar 4s cruzadas determinou a cruzada que massacrou os albigenses no sul da Franca em 1209. As execucGes em massa desta cruzada superaram todas as medidas repressivas ante- riores e estabeleceram a Inquisicdo oficialmente como a instituigdo cul- tural do terror em nome da fé. A tensdo interna crescente na Igreja e, por conseguinte, no self cultural europeu é ilustrada pelo fato de, no mesmo ano de 1209 em que foram massacrados os albigenses, Inocéncio III ter reconhecido oficialmente, na Basilica de Sdo Pedro, a Sao Francisco de Assis e a seus onze companheiros andrajosos como seguidores de Cristo. De um lado, a unificacdo ideolégica, a ambi¢ao do poder politico, a intole- rancia da contestagdo, baseadas na coaco moral ¢ fisica, apoiadas na excomunhao, no confisco de bens, na guerra de conquista, na tortura, na priséo perpétua e na pena de morte em nome de Cristo. Do outro, © despojamento total e a entrega social, fisica e espiritual pelo amor a Cristo. Que simbolo, com esta importancia histdérica, agtientaria so- frer tensGes tao opostas durante a sua elaboragao sem produzir graves dissociagdes psiquicas individuais e coletivas? A elaboragao dos simbolos no se/f individual e cultural €é coorde- nada por arquétipos e vai aos poucos formando a identidade do Eu e do Outro na consciéncia. A elaborac4o simbdlica € a atividade cen- tral da psique. Em qualquer momento, as psiques individual e coletiva apresentam um incontavel numero de simbolos em graus varidveis de elaboragao. Esse processo tem duracdo varidvel, dependendo da sua carga arquetipica. Os arquétipos como padrées de funcionamento nunca se esgotam, mas sua ativa¢do para a elaboracdo de determinados sim- bolos tem uma duracdo proporcional a importancia do simbolo e as dificuldades de sua elaboracéo. Assim, a elaboracao de um simbolo pode durar momentos, dias, anos ou milénios, como € 0 caso do sim- bolo de Cristo e do seu processo de institucionalizacao. Quando a elaboragdo de um determinado simbolo nao recebe da consciéncia todo o engajamento de que necessita, estes simbolos so atuados parcialmente inconscientes. Esta atuagao inconsciente de par- tes simbélicas foi denominada de sombra, por Jung. A sombra nor- malmente expressa simbolos ou partes simbdlicas de dificil aceitacéo 30 moral ou que dao muito trabalho ou que ainda ndo tivemos tempo de atender. Por isso, a atuagado dos simbolos da sombra é inadequada e sempre nos cria problemas. Ao mesmo tempo, seu confronto é neces- sario porque seu conteudo é imprescindivel para a continuacdo do de- senvolvimento psicoldgico individual e coletivo. Ha partes da sombra, no entanto, que sao de acesso muito dificil para a consciéncia, pelo fato de conterem defesas 4 sua volta. Como descreveu Freud, as defesas impedem 0 acesso dos simbolos a cons- ciéncia e geram resisténcias 4 sua aproximagao. As defesas dissociam a psique e so a condi¢do basica para a formacao da doenga mental. Assim, denominei a parte da sombra cercada por defesas de sombra patologica. A sombra patoldgica dos simbolos de Cristo e da Igreja formaram progressivamente os simbolos do Dem6nio e de suas bru- xas. A principal tese deste prefacio é que a formagdo progressiva da sombra patoldgica dos simbolos de Cristo ¢ da Igreja alimentou o cres- cimento cada vez maior dos simbolos do Deménio e da bruxas, pato- logizando progressivamente a implantacéo do mito cristao e o funcionamento do self cultural. As dificuldades para a integragao dos arquétipos da Alteridade sao muito grandes, sobretudo na vigéncia de uma dominancia patriarcal t4o extensa como foi aquela encontrada pelo Cristianismo nas tradi- ¢6es judaicas e nas instituigdes do Império Romano. Independentemente disso, porém, o padrdo de alteridade é muito mais dificil de ser opera- do pelo Eu do que os padrées patriarcal e matriarcal devido a necessi- dade de despojamento. O apego a sensualidade matriarcal do prazer imediato e 0 apego ao poder patriarcal tolhem o desprendimento do Eu necessdrio para a sua interacdo igualitaria com 0 Outro a cada no- va situacdo existencial. A criatividade necessdria ao Eu para o desem- penho da alteridade exige liberdade e abertura para 0 novo, para se confrontar o mistério do mundo e da vida, incompativeis com os ape- gos matriarcal e patriarcal, que tendem a generalizar e a estereotipar aconduta. O padrao de alteridade elabora os simbolos com uma pro- fundidade muito maior que os padrées matriarcal e patriarcal e, por isso, seu dispéndio de energia é muito mais intenso e sua formacao de sombra muito menor. A abertura para o relacionamento democratico no padrao de alteridade estabelece um padrdo quaterndrio de relacio- namento do Eu com o Outro. Neste, o Eu se torna capaz de ‘‘virar a outra face’, isto é, de confrontar sua propria Sombra tanto quanto o Outro. Assim, na ciéncia se confronta o erro, na democracia a som- bra social, e no amor conjugal, a sombra individual. 31 Enquanto a repatriarcalizacdo progressiva do mito reprimia a al- teridade, grande quantidade de energia psiquica passava da conscién- cia para a sombra coletiva, junto com inumeras caracteristicas do simbolo de Cristo e da Igreja. O padrao patriarcal, por ser muito me- nos diferenciado do que 0 padrao de alteridade, nao confronta direta- mente sua sombra e a projeta a sua volta, como vemos no fendmeno do bode expiatorio. Este animal nao foi escolhido a toa para a proje- ¢4o, mas devido as suas caracteristicas simbélicas de grande fecundi- dade, ideal para representar o principio de prazer e fertilidade matriarcal, alvo predileto da codificag&o patriarcal. Nao era por acaso que o grande deus Pd e seus satiros, simbolos da fertilidade da grande mae natureza, eram na Grécia freqiientemente representados em for- ma de bode, como também em inimeras culturas pagds européias. A polarizagao em que opera o dinamismo patriarcal exigiu um contrapé- lo para elaborar o simbolo de Cristo. Surgiu assim o fendmeno do De- ménio como Anticristo. Parece-me um grave erro confundir Sata do Velho Testamento com o Deminio do Cristianismo. Seja como anjo rebelde, seja como emis- sario de Deus para tentar Jé, Sata é uma figura bem delimitada face a divindade. Se o Cristianismo houvesse se repatriarcalizado aberta- mente e Cristo fosse adorado como um deus guerreiro, como quis Cons- tantino, os arquétipos da Alteridade teriam sido substituidos pelo arquétipo do Pai e nao teria se formado a patologia que se formou. A imagem do Diabo e das bruxas foi se transformando na Idade Média e crescendo em poder, como em vasos comunicantes, paralela- mente ao fato de caracteristicas pujantes do simbolo de Cristo e da Igre- ja serem mal elaboradas e passarem a fazer parte da sombra cultural. O Deménio nao é meramente Sata porque nao é apenas um opositor de Cristo, um simples Anticristo. O Dem6nio e as bruxas sao a som- bra patoldgica oriunda das distor¢ées da mensagem de Cristo, na me- dida em que suas caracteristicas mal elaboradas e dissociadas foram sendo reprimidas, distorcidas e cercadas por defesas. Os simbolos do Diabo e da bruxa, como qualquer simbolo, apesar de arquetipicos, sao Unicos em cada cultura e, no Cristianismo, néo podem ser compreen- didos independentemente das caracteristicas deformadas dos simbolos de Cristo e da Igreja. E isso 0 que nos explica como a Inquisigao foi aos poucos atribuindo ao DemGnio poderes cada vez maiores, a ponto de denomina-lo Lucifer, aquele que faz a luz. Nao era esta a principal fungdo do Messias como portador de um novo padrdo de consciéncia? Mas, na medida em que o Renascimento dava a luz o padrdo de alteri- dade como raiz das ciéncias e das transformacées sdécio-politicas mo- 32 dernas, ndo eram seus expoentes perseguidos e sua criatividade cercea- da pela Inquisicao? Se a luz do novo humanismo era excluida de Cris- to por sua propria Igreja, a quem seria ela atribuida? O Malleus engrandece tanto o Dem6nio e as bruxas que declara textualmente ter sido ele criado especialmente por Deus para exercer 0 pecado através delas. Desta maneira, compreendemos que a caracteristica central atri- buida ao Dem6nio era inicialmente a desobediéncia ao poder centrali- zador, na razd4o direta em que a pluralidade democratica da alteridade era patriarcalmente negada. Esta caracteristica foi aos poucos mudan- do e passando para a sexualidade e para o conhecimento, na medida em que o poder revolucionario cultural do herdi messianico foi sendo castrado, cerceando, em conseqiiéncia, o seu poder criativo de elabo- rag&o simbélica da realidade. Acastracao simbélica do Messias e a repressao da Igreja vao ocor- rer de varias maneiras: na sua adoracdo exclusivamente como menino no colo de sua mde ou como morto no além a espera do Juizo Final, na negacao da importancia e do significado da figura de Maria Mada- lena, inclusive na subavaliagdo da sua iniciagéo como apéstola, a Unica com capacidade espiritual para reconhecer imediatamente a Res- surreigao; na redug&o incestuosa do feminino no mito a funcdo mater- nal; na negacdo da importancia central do corpo no qual se expressa a Paixdo; na codificac&o progressiva da confissdo e do pecado como peniténcias patriarcais estereotipadas, o que contribuiu muito para as- fixiar o conhecimento da psique e da vida pela introspeccao e pela me- ditag4o; na hierarquizagao patriarcal da Igreja, nos votos patriarcais de pobreza, obediéncia e castidade para seus sacerdotes, na inferiori- zacao patriarcal da mulher na vida institucional da Igreja, principal- mente na sua impossibilidade de ministrar os sacramentos e ocupar cargos em igualdade de condigGes com os homens, na paralisia da trans- formacdo sécio-politica por concessées elitistas para assegurar a ob- tengdio e manutengao do poder exercido dentro do dinamismo patriarcal endo no dinamismo de alteridade como propunha 0 mito. Nao se tra- ta de criticar ou invalidar caracteristicas centrais no mito como a mae virgem, a infancia milagrosa, a morte sacrificial e a ressurreigéo que sdo inerentes ao mito do Herdi. Trata-se de demonstrar que 0 poder transformador do heréi foi cerceado pela exaltacdo idealizada, defen- siva, de certas partes do mito em detrimento de outras, como freqiien- temente acontece na formacao da sombra dos quadros neurdéticos e psicoticos na psique tanto individual quanto coletiva. Toda essa energia criativa retirada do simbolo de Cristo e da Igre- 33 ja foi transferida para o simbolo do Deménio e das bruxas, cada vez mais atacadas em nome do proprio Cristo e da Igreja. Configurou-se, assim, um quadro dissociativo grave e crescente em funcgdo da propria pujanca do mito. Deformado e cerceado, por um lado, o mito formou a Inquisico e sua Demonologia. Por outro, foi conseguindo criativa- mente integrar o padrdo de alteridade na consciéncia individual e cole- tiva, caminhando para o Renascimento e através deste para o humanismo cientifico e sécio-democratico moderno. A mulher como simbolo do mal Ainda que a bula papal, que investiu Sprenger e Kramer como in- quisidores contra a bruxaria, mencione bruxos e bruxas, 0 Malleus é dirigido principalmente as bruxas. Seu texto é alimentado pelo ddio a mulher, pela misoginia, em funcdo da qual sao atribuidas a ela ca- racteristicas desabonadoras, amealhadas enciclopedicamente e interpre- tadas com conotacées machistas, as mais pejorativas, na primeira parte do livro, para justificar as praticas terriveis prescritas na terceira parte: “*A razao natural para isto é que ela é mais carnal que o homem, como fica claro pelas inimeras abominacées carnais que pratica. Deve- se notar que houve um defeito na fabricagao da primeira mulher, pois ela foi formada por uma costela de peito de homem, que é torta. Devi- do a esse defeito, ela é um animal imperfeito que engana sempre.”’ (Mal- leus, Parte I Questdo 6) Este édio 4 mulher misturou-se na Inquisi¢&o e no Malleus a atra- ¢4o moérbida por ela devido 4 sexualidade culturalmente reprimida e a sua desvalorizacao na Igreja. Isso fez com que a tortura para se ob- ter confissGes de bruxarias incluisse procedimentos tarados, ou seja, sexualmente perversos, que incluiam o voyeurismo e 0 sadismo. As mu- Iheres eram despidas e seus cabelos e pélos raspados a procura de obje- tos enfeiticados escondidos em suas partes intimas ‘“‘que nao devem ser mencionadas’’. (Malleus, II], 15) As torturas praticadas sdo difi- ceis de imaginar, mas 0 texto da idéia de terem sido terriveis, sobretu- do porque o processo recomendado peld Malleus 6 um delirio francamente parandide orientado para se obter confiss6es, e ndo para se verificar a culpabilidade. “Se, ao ser devidamente torturada, ela se recusa a confessar a ver- dade, o proximo passo do Juiz deve ser o de mandar trazer outros ins- trumentos de tortura diante dela e dizer-Ihe que ela sera submetida a eles caso nao confesse. Se entdo ela ndo for induzida a confessar pelo terror, a tortura deve ser continuada no segundo e no terceiro dia. Ela 34 nao deve ser realizada, a menos que haja indicagdes novas do seu pro- vavel sucesso.”? (Malleus, Ill, 14) A dissociacdo patolégica da mente dos redatores do Malleus fica evidente na mistura de um sentido humanitario de justiga e protegao das vitimas com outro de extraordindria falsidade, covardia e cruelda- de, da mesma forma com que as aberragGes sexuais eram cometidas em meio a uma acentuada hipocrisia puritana: 0 texto recomenda ex- pressamente a depilacdo e a busca de objetos nas partes intimas do corpo e faz questao de demonstrar grande pureza e inocéncia ao afirmar que o nome dos orgaos sexuais nao deve ser mencionado. (Malleus, III, 15) Da mesma forma que a psicose parandide reforca 0 poder das for- cas perseguidoras na propor¢do em que a doen¢a mental progride, a Inquisi¢ao foi incrementando e codificando os poderes do Diabo e das bruxas, a ponto de eles poderem ser responsabilizados por uma capa- cidade de exercer qualquer maleficio humano e sobre-humano, inclu- sive com a producdo de tempestades. Esse poder crescente atribuido ao Deménio era acompanhado do reconhecimento cada vez maior de casos de bruxaria, configurando um ataque crescente a mulher como sua consorte. E significativo, para com- preendermos nossa tese, associarmos esses fatos ao culto crescente da Mariologia, o culto da Virgem Maria na Idade Média, que acompa- nhou a representagao crescente do Messias como menino ou como mor- to, expresso nas Pietas. O culto da func&o materna idealizada foi acompanhado da repressdo do papel da feminilidade adulta no mito, assinalada pela supressdo do significado do simbolo de Maria Madale- na na Paixao. A idealizagao de Maria como supermae que nao deixa seu filho crescer foi projetada no poder filicida crescente das bruxas. Esta repressdo da poténcia do Messias e de sua anima foi canalizada no édio a mulher, transformada em bruxa e companheira do Diabo, que o Malleus frisa repetidamente ser impotente sem ela. Paralelamente, as freiras, como esposas de Cristo, eram excluidas do poder institucio- nal e sacramental. O aumento da importancia do Dem6nio e de suas amantes bruxas fabricado pela Inquisicéo acompanha, entao, a dimi- nuigdo do poder transformador do Messias e de suas sacerdotisas frei- ras. Essa dissociacdo tem como denominador comum a represséo do dinamismo matriarcal e de alteridade, cujo aspecto feminino era de- positado na mulher e que fundamentava, ao mesmo tempo, a idealiza- cao defensiva da fungao materna e a repressdo institucional das freiras, a repressdo cultural da mulher e o ddio as bruxas. Ou seja, a mulher me era supervalorizada na Igreja as expensas do valor da mulher pes- soa. A bruxa passava entdo a carregar a projecdo da sombra da mae 35 terrivel filicida e da mulher adulta reprimida, cuja sexualidade adqui- tia, por isso, poderes de seducdo fantasticos. A repressao da pujanca do Messias acompanhada do crescente po- der sexual atribuido ao DemG6nio ocorre junto com a repressao do di- namismo matriarcal na cultura. E isso que explica como o poder de seducao foi unido intimamente as praticas extra-sensoriais divinatérias e magicas atribuidas & bruxaria. E preciso lembrar que o Incubo, for- ma masculina do Sticubo, € 0 equivalente em latim do deus Pa, a maior expresso masculina matriarcal da mitologia grega. A importancia da- da pela Inquisicao aos Incubos e Sucubos, que, controlados pelas bru- xXas, exerciam a sexualidade do Dem6nio, foi acompanhada do poder de fazer desaparecer o pénis, acusacdo freqiiente nos processos. Para- lelamente ao crescimento da sexualidade do Deménio e de suas bru- xas, vernos diminuir o poder de Cristo, de suas esposas freiras e, agora também, dos seus seguidores homens. Para se ter uma idéia do grotesco parandide a que chegou 0 Mal- leus, é ilustrativo 0 fato de o poder atribuido as acusadas e a culpa persecutoria dos juizes serem de tal ordem que elas deveriam ser apa- nhadas em redes a fim de que seus pés nao tocassem o chao para pro- vocar relampagos; deveriam também entrar na sala de acusacdo de costas, pois seu mero olhar seria capaz de controlar o raciocinio dos juizes e determinar sua liberdade. (Malleus, III, 15) Caso elas pedis- sem a prova de caminhar sobre brasas ou entrar em dgua fervendo, seu pedido deveria ser terminantemente negado, pois, em func4o da sua ligagdo com o DemGénio, tal faganha lhes seria facil e iludiria os acusa- dores. (Malleus, III, 17) O poder do dinamismo matriarcal reprimi- do projetado psicoticamente nas bruxas tornava-as deusas com poderes equivalentes 4 mae terra com todas as suas forgas naturais. A desones- tidade do processo legal esta ilustrada de forma contundente no fato de os acusados nao poderem escolher seus préprios advogados e de seus detratores nao precisarem ser pessoas de bem e de serem aconselhados a nao revelarem seus nomes, figurando como informantes, e ndo co- mo testemunhas. Tudo isso novamente racionalizado e justificado pe- lo poder do DemGnio. A falsidade dos inquisidores como juizes atingia graus extremos, quando eles enganavam os acusados em meio as tor- turas, prometendo-lhes a liberdade caso confessassem, sabendo que sua confissao os levaria 4 prisfo perpétua ou 4 morte. (Malleus, III, 16) A tese segundo a qual a Inquisigao e a Demonologia expressaram asombra patoldgica do Cristianismo pela elaboracao insuficiente e de- formada dos simbolos de Cristo e da Igreja no se/f cultural é intensa- mente reforgada pela Missa Negra no Saba. 36 A Missa Negra, celebrada na noite de sexta-feira, era uma réplica sombria da Santa Missa. Nela, o Diabo seria explicitamente adorado como Cristo. Por um lado, podemos ver aqui uma forma de agressdo marginal desrespeitosa aos poderes constituidos, uma reacao delingiien- cial a uma sociedade repressora. Por outro, vemos a necessidade reli- giosa de cultivar de forma sombria, até mesmo psicética, mas nem por isso destituida de significado simbdlico, uma divindade cujos poderes extraordinarios incluiam exuberantemente o dinamismo matriarcal do prazer, da musica, da danca e da sexualidade, todos estes atributos dos deuses da natureza. Durante o Saba, o Dem6nio, de acordo com a ima- ginagdo do Inquisidor, reunia suas bruxas vindas voando de locais dis- tantes. Ele era cultuado sob a forma de um bode, sendo beijado no traseiro em meio a cantos e dangas frenéticas com grande permissivi- dade sexual, inclusive de homossexualidade acompanhada de antropo- fagia de criancas mortas (7), enquanto bruxas ministrariam a comunhao com héstias roubadas. E importante assinalar que todas essas fanta- sias foram, em formas adequadas, incorporadas as reivindicacées das minorias e dos costumes sociais e conquistas cientificas no século vin- te, dentre as quais assinalam-se a legalizacio da homossexualidade e do aborto e a era da aviacdo. O Malleus, @ alquimia e a histeria A Demonologia era um fenémeno da sombra patoldgica do self cultural patrocinado pela Inquisicéo, mas que de forma alguma a ela se restringia. Vivenciando a energia fecunda que emanava da dissocia- ¢40 do simbolo de Cristo e da Igreja, os simbolos do DemSnio e de suas bruxas a todos preocupavam, fascinavam e atraiam de forma cres- cente. E importante perceber que as heresias, ou variantes culturais re- primidas pelo Santo Oficio para a elaborac4o do simbolo de Cristo, eram permitidas na elaboracao do simbolo do Diabo e das bruxas. Desta forma, desde os inquisidores mais ferrenhos até suas vitimas e 0 fol- clore do povo em geral, todos participavam no grande caldeirao heré- tico do DemGnio e suas bruxas, no vaso dos alquimistas onde, sob pressdo crescente, cozinhou a sombra patoldgica do humanismo cris- tao, dando nascimento as grandes conquistas sociais e cientificas. Neste caldeirao, ferveram dentro dos simbolos do Dem6nio e das bruxas, além de todas as heresias, passagens do Velho Testamento re- ferentes a Sata, lendas de outras culturas e principalmente das culturas proprias de cada regiao antecedentes ao Cristianismo e por ele repri- midas, superstigdes, conhecimentos novos trazidos pelos alquimistas 37 e pensadores, crencas esotéricas as mais variadas fabricadas pelo dia- a-dia da fértil imaginac&o popular, espicagada pela ameaga de perse- guicdo dos inquisidores e pela curiosidade do material reprimido. Tu- do isto exaltava grandes areas reprimidas da psique coletiva, como a agressividade, a sexualidade, a magia e a criatividade em geral. A po- pularizacdo e atuago crescente dos simbolos do Deménio e das bru- xas, devido a esta criatividade proibida, justificavam e incrementavam a atividade repressora da Inquisigéo num sistema de retroalimentagao (feedback) multiplo que agravava cada vez mais a patologia do self cul- tural, passando seu dinamismo de neurético (principalmente repressi- vo) a psicopatico (corrup¢ao moral da pratica religiosa) e a psicético (paranoide e delirante) até culminar numa primeira etapa na dissocia- cdo da Igreja na Reforma no século dezesseis, e, dois séculos depois, na grande dissocia¢ao subjetivo-objetivo, no final do século dezoito, que deu origem ao materialismo cientifico do século dezenove e reti- rou da Igreja sua lideranga civilizatéria. O mito, contudo, nao perdeu sua pujanga; pelo contrario. Mesmo dentro de uma ideologia socialis- ta patriarcalizada pela teoria da luta de classes que se acreditava ateis- ta, ele continuou a funcdo civilizatéria de implantagdo de alteridade através dos seus simbolos profundos de liberdade, igualdade e frater- nidade. A repressdo da mulher e 0 ataque a ela como bruxa, devido a pro- jeco nela dos arquétipos reprimidos da Grande Mae e da anima, ne- cessitam ser compreendidos junto com a histeria, que é um quadro patoldégico formado basicamente pela disfungao dos arquétipos matriar- cal e de alteridade. As caracteristicas desses arquétipos de intimidade, fertilidade, sensualidade e exuberancia do desejo, da imaginacao, da clarividéncia esotérica e da expressividade emocional, quando feridas, dao margem ao entrincheiramento desses arquétipos numa luta de po- der expressa pela magia destrutiva, pela dramatizacao e sugestibilida- de descontroladas, pela fantasia mentirosa, pela agressividade vingativa desproporcional, pelo congelamento das reagGes afetivas, pelas reages emocionais através dos sintomas fisicos e pela falsidade involuntaria. Na dominAncia patriarcal, as fungdes matriarcais sio pejorativamente projetadas nas mulheres na triade cozinha-casa-igreja. O ferimento cul- tural desses arquétipos pela Inquisi¢do e sua projecéo macica no Pa- Deménio propiciou, pela sugestionabilidade histérica, a atuagdo de int- meras mulheres como suas consortes. A atmosfera persecutéria, dra- matica e animista medieval favoreceu a eclosdo de quadros histéricos que eram identificados como bruxaria pelos vizinhos ou até mesmo fa- miliares, como relata o Malleus em inumeros exemplos. O dinamismo 38 patriarcal patoldgico expresso pelo sadismo dos inquisidores tortura- dores, sexualmente reprimidos, que depilavam e vasculhavam seus cor- pos, enfiando-lhes agulhas para procurar zonas anestesiadas que jndicariam o pacto com o DemGnio, certamente exacerbou muitos qua- dros histéricos, pervertendo-os em relacdes sado-masoquistas psi- céticas.” No entanto, o simbolo maximo da sombra patoldgica como ex- pressdio da dissociacado psicética do self cultural do Ocidente durante sua cristianizagdo foi a matanga dos hereges na fogueira e na forca. O delirio psicético-parandide, apesar de gravemente enfermo, ainda protege o Ego porque projeta no Outro as tendéncias ameacadoras do self. Quando, porém, o proprio delirio projetado € também exercido francamente pelo Ego, a gravidade da patologia se torna extrema, pois € 0 sinal de que a defesa parandide esta fracassando e os contetidos projetados estao dominando o Ego. Foi 0 que aconteceu com a Inqui- sigdo. . A histéria simbolica da Inquisigao torna inegavel sua propria ex- pressao inconsciente do Anticristo e da bruxaria. A concupiscéncia do poder unificador, a intolerancia, a repressao dos arquétipos matriar- cal e da alteridade, a corrupg¢ao psicopatica moral e ideoldgica dos ar- quétipos do pai e da alteridade, que deformou em tantos aspectos a mensagem crista, representam a atuagdo da sombra patoldgica. A pa- tologia cultural foi se agravando século a século, manifestada na pro- jecao dos aspectos negados e reprimidos de Cristo sobre o DemGnio e suas bruxas e racionalizada pela devocdo a Cristo e 4 Igreja. Tudo era feito em nome de Cristo e de sua Igreja, cujos simbolos, apesar de enfraquecidos, eram inicialmente mantidos na luz. Todos os males eram projetados no Deménio e nas bruxas, cujos simbolos, embora cada vez mais fortalecidos, eram inicialmente mantidos nas trevas, co- mo habitantes infernais. A partir do século treze, porém, Inocéncio III, o mesmo papa que abencoa Sao Francisco, autoriza a pena de morte para as heresias. O Deménio passa a se chamar Lucifer, aquele que traz a luz, e Cristo (0 carneiro que se sacrificara pelos pecados do mun- do, a serem confessados e absolvidos em sua Igreja) passa a ser invo- cado para empunhar a espada do genocidio dos albigenses e instituir a prevencdo e a limpeza cultural da peste da heresia. Os que confessa- vam e abjuravam a heresia eram acolhidos de volta a Igreja e condena- dos a priséo perpétua. Os que nado confessavam eram entregues ao braco secular para a pena de morte. Devido as condigdes subumanas das pri- sdes, a prisdo perpétua em pouco tempo levava a morte, se é que nao fosse antes interrompida pela pena capital: ‘‘Nos casos de heresia sim- 39 ples, aqueles que sao penitentes (confessaram) e abjuraram, como ja foi dito, sao admitidos a peniténcia e a prisdio perpétua; todavia, nesta heresia, ainda que o juiz eclesidstico possa receber 0 prisioneiro em pe- niténcia, o poder civil pode, devido aos maleficios causados a pessoas, ao gado, e outros bens, puni-la com a morte...’? (Malleus, III, 19). Ao aproximarem psicoticamente Cristo e sua Igreja do Deménio e das bruxas, os inquisidores, freqiientemente, tornaram insepardveis uns € outros nas suas personalidades e na historia da Igreja. A loucura se exacerbava ainda mais, se € que isso era possivel, em situacdes nas quais os hereges demoravam a morrer e a ceriménia era interrompida para procurar objetos deixados pelo Dem6nio em suas vestes para torna- los resistentes ao fogo. A superposicao dos simbolos do Cristo e do Dem6nio era tal que, mesmo dentro das chamas, eles continuavam lu- tando como expresso da psicose coletiva. *“O que poderia ser dito sobre um caso que ocorreu na Diocese de Ratisbon? Alguns hereges foram condenados por sua prépria con- fissdo, nao somente como impenitentes, mas, também, como advoga- dos desta perfidia; e quando foram condenados a morte, aconteceu que eles resistiram ao fogo. Sua sentenga foi entao alterada para morte por afogamento, que também nAo surtiu efeito. Todos ficaram surpresos e alguns comecaram até a dizer que a sua heresia era verdadeira; eo bispo, em grande ansiedade por seu rebanho, ordenou um jejum de trés dias. Quando isto foi devotamente cumprido, alguém foi infor- mado de que estes hereges tinham um encanto magico costurado sob a pele embaixo do braco; quando este foi encontrado e removido eles foram entregues as chamas e imediatamente queimaram.” (Malleus, Ill, 15) : A importancia da tradugdo e publicacéo completa deste texto em portugués nao esta sé no conhecimento da histéria do Cristianismo, mas também na continuagao da elaboracao do mito cristao, cujo pa- pel civilizat6rio esta se reintensificando outra vez neste final de milénio. Se muitos leitores concordarao que este livro e a Inquisic&o sao uma aberracdo da mensagem crista, é preciso saberem que nem todos pensam assim. O prdprio tradutor do livro do latim para o inglés, o Reverendo Montague Sommers, assim se expressa sobre ele no final do prefacio que escreveu em 1946: “O certo é que 0 Malleus Maleficarum é 0 mais sélido e o mais importante trabalho em toda a vasta biblioteca escrita sobre bruxaria. Voltamos a ele sempre com edificacao e interesse. Do ponto de vista da psicologia, da jurisprudéncia e da histéria, ele é supremo. Podemos mesmo dizer sem exagerar que 0s escritores que o sucederam, grandes 40 como possam ser, fizeram pouco mais do que retirar destes pocos de sabedoria, aparentemente inexauriveis, que os dois dominicanos Hen- rique Kramer e James Sprenger nos deram no Malleus Maleficarum.” “© que mais surpreende é a modernidade do livro. Praticamente nao existe um problema, um complexo, uma dificuldade que eles nao previram, discutiram e resolveram.”” “Aqui est4o casos que ocorrem nas cortes de hoje, apresentados com a maior clareza, argiiidos com légica exemplar e julgados com im- parcialidade escrupulosa. O Malleus Maleficarum é um livro escrito sob a influéncia da eternidade.”’ Com esta ilustracdo final, vemos que a elaboracdo deste livro e da Inquisi¢&o e do que representam na alma humana individual e cole- tiva adentrard o préximo milénio junto com a continuacdo da elabora- ¢4o do mito cristao. 41

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