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3 Questo social e politicas publicas: revendo 0 compromisso da Psicologia* Oswaldo H. Yamamoto"® Em agosto de 2002, comemoramos os primeiros quarenta anos da Psi- cologia como profissao regulamentada no Brasil. Nao restam duividas de que muito se fez ao longo destas primeiras quatro décadas: a quantidade de profissionais e de agéncias formadoras; o desenvolvimento da pesquisa eda pés-graduacdo; a diversidade de areas e setores de atividades abrangidos pelos psicélogos; a organizagéo da profiss4o so mostras evidentes do vigor da Psicologia no Brasil. * Versio adaptada e revista de intervengao na mesa-redonda "40 anos da profissio:revendo 0 compromisso da Psicologia para projetar 0 futuro” realizacla no I Congresso Brasleto Psicologia Ciencia e Profissio,seterbro de 2002, em Sio Paulo (SP) * Psicdlogo,doutor em Educagio pela USP, professor titular da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, coordenador do Grupo de Pesquisas Marxismo & Educagio, E-mail: oswaldo. yamamotogmailcom Todavia, se 0 intento é debater 0 compromisso social da Psicologia, licito indagar: temos, realmente, o que comemorar nesses quarenta anos d regulamentacao da profissao? Profissao: o que é, para que regulamentar? Para construir wma resposta para esta questéo, convém precisar 0 signi ficadlo de profissao. Partimos da compreensao de que uma profisséo 6 um pritica institucionalizada, socialmente legitimada e legalmente sancionad (Netto, 1992). Algumas das vertentes te6ricas as quais se afiliam os estudiosos da profissbes costumam identificar, dentre os tracos distintivos de uma profissat “quténoma”, a existéncia de duas condigées: a expertise e 0 credencialisme Em poucas palavras, a expertise significaria 0 dominio, por parte dos profis sionais, de um conjunto especifico e relativamente esotérico de conhecimentor e habilidades que estariam fora do alcance da maioria das pessoas exteriore: 8 ocupagio. O credencialismo significaria a institucionalizacao da expertise que pressuporia uma organizagao da profissdo para o treinamento e para i certificagdo da competéncia profissional, restringindo o acesso aos recurso: daquela profissio somente aquele grupo selecionado de pessoas (Freidson 1998) © que esta subjacente a esta forma de organizacio profissional? Sen pretender abordar a questo em maiores detalhes, o que exorbitaria o Am bito deste capitulo, é necessério estabelecer alguns pontos para a nosse discussao, ‘Um pressuposto que esta na base do sistema de profissionalizagac baseado na relacio expertise-ctedencialismo € a questo da propriedade dc conhecimento. Marilena Chaui (1980) discutiu essa questo, tempos atras. A tse central de Chaui era de que a nossa sociedade era regulada pelo que ela chamava de “regra da competéncia”, ou seja, “ndo é qualquer um que pode dizera qualquer outro qualquer coisa em qualquer lugar e em qualquer circunstancia” (p. 27). A regra definia, assim, quem seria competente para falar sobre os diversos temas (em particular, Chaui focalizava a educacao). Dessa forma, o discurso de era silenciado e substituido pelo discurso sobre Exemplifico com um tema familiar: 0 discurso do louco era substituido pelo discurso da Psiquiatria sobre a loucura. E assim por diante. Enfim, a respon- PSIOLOGIA € 0 COUPROMSSO SOCIAL, sabilidade do especialista passa a ser intermediar as nossas experiéncias, de tal forma que somente podemos sentir ou fazer coisas que esto prescritas cientifica ou tecnicamente. A tese certamente polémica, mas muito instigante: traduzida para os rnossos termos, uma profissao (no sentido moderno do termo) teria por pres- suposto a apropriacao (privada) de conhecimentos por parte de um grupo que estabelece critérios de credenciamento e uso desses conhecimentos tem a exclusdo como sua contrapartida Mas, para além do aspecto meramente corporativo, existem justifica- tivas alegadas para a manutencao da diade expertise-credencialismo. Uma das principais razGes diz respeito & complexidade da expertise que exigiria a intermediacéo de um profissional competente e credenciado e seria a tinica forma de garantir uma prestacdo qualificada desse servigo. Dessa forma, na raiz dessa justificativa, estaria a necessidade de protegio do puiblico com rela- ‘cao a uma possivel incompeténcia na utilizacao de tais recursos, ao mesmo tempo que o credencialismo estimularia os profissionais a um desempenho comprometido (Freidson, 1998). Isto posto, a indagagao que se impSe é se, com efeito, ao longo desses quarenta anos, a regulamentacao tem protegido 0 puiblico, ao mesmo tempo em que tem estimulado um desempenho comprometido por parte do ps célogo? Profissdio de psicdlogo no Brasil: tradicdo e mudanca Nos primeiros anos da década de 60 do século passado, o Brasil atra- vessava um momento de intensa mobilizagéo popular e crise politica, cujo desenlace é bastante conhecido: dentre as possibilidades postas, 0 pais inicia um periodo de vinte anos de regime autocratico-burgués, com desenho se- melhante ao dos demais nagdes do cone sul.! pais contava com um sistema universitério jé bem estruturado: con- quanto recente? j& padecia dos problemas de anacronia do sistema e alvo de 1. Para andlises sobre a questi, ver, dentre outros, Aves (1989) ¢ Nett (199) 2. primeira insttuigéo universitiria no Brasil, a Universidade de Sto Paulo, € criada no ano) «de 1934, No ano seguinte¢ fundada no Ri de janeiro, Universidade do Brasil atual Universidade cy ANAM.B BOCK ccontestacdo estudantil. Quanto a Psicologia, havia jé uma tradigao de producéo de conhecimento e mesmo de aplicagio em alguns de seus campos.’ E nesse cenario que a profissao é regulamentada, pela Lei Federal n. 4.119/62. Desde os primeiros estudos sobre a profiss4o, um determinado perfil se desenha: trés grandes éreas sendo consagradas, Clinica, Escolar e Industrial/ Organizacional, com amplo predominio da primeira. De fato, de acordo com dados do tinico levantamento exaustive conduzido nacionalmente, 55,3% dos psicélogos tinham na érea Clinica sua atividade principal, contra 19,2% na rea Organizacional e 11,7% na érea Escolar (CFP, 1988), Mais do que a marcada preferéncia pela atividade clinica, porém, 0 modelo de profissional liberal moldado a luz das profissies médicas se faz amplamente hegemdnico—o que leva Mello (1975), & no inicio da década de 1970, a clamar pelo compromisso social do psicélogo— que deveria ser, pela propria natureza do conhecimento com o qual trabalha, mais do que “uma atividade de luxo” (p. 109). Como uma auténtica ciéncia, endo “uma técnica para solucionar problemas intimos dos privilegiados” (p. 113), a Psicologi deveria buscar uma insercao social mais significativa para um contingente maior da populacao. Numa direcao proxima, Silvio Botomé (1979), cruzando dados dos honorérios de psic6logos que atuavam na érea predominante, a clinica, com a distribuigao de renda no Brasil, conclufa que apenas 15% da populagio brasileira tinha acesso aos servicos profissionais do psicdlogo. E indagava: os demais 85% nao necessitam desse servico? ‘A busca por uma resposta, naguele momento, & questao que formulamos —a quema regulamentacao protege e com quem a Psicologia se compromete —mostraria um quadro bastante melanedlico,ajulgar pelas intimeras andlises, ‘edentincias sobre os rumos da profissao nao faltaram: (assim como tentativas, de proposigao de construcdo de alternativas, é importante assinalat). Aquestio é que, a despeito das dentincias e avaliagdes acerca dos rumos da Psicologia, somente na confluéncia de determinadas condigdes histéricas —nomeadamente, 0 perfodo final do regime autocratico-burgués, no qual ha Federal do Rio de Janeleo. Para andlises acerca da constituicio e caracteristcas da universidade no Brasil, ve, em especial, Cunha (1980; 1983; 1988) e Fernandes (1977), 3. Para andlises histricas sobre a Psicologia no Brasil, com angulagées diversas de anslse, ver Antunes (1999), Massim (1990), Pesstt (1988) e Mello (1975) 4. Para alguns outros exemplos, ver Bock (1999), Figueiredo (1989), Lane (1981) ¢ Yamamoto 986). 80 SOCIAL uma rearticulagao macica do movimento popular, € 0 inicio de um perfodo de crise (planetaria) da acumulacéo capitalista — 6 que esse quadro comeca a se redesenhat: Tal mudanga do perfil da profissao associa-se, a0 menos, a trés vetores: (a) contingéncias especificas clo mercado de trabalho —a faléncia do mode- lo de profissional auténomo associada ao estreitamento da demanda dessa modaliclacle de servicos psicolégicos como consequéncia da crise econdmica que o pais atravessava; (b) a abertura (extemporainea) do campo de atuacéo profissional pela redefinicao do setor bem-estar no primeiro momento da transigao democratica — proceso para o qual concorrem a fragilizagio dos segmentos conservadores nos estertores do periodo autocratico-burgués ¢ a organizacio dos setores oposicionistas, ai inchuicos os intelectuais/profissio- nis de natureza varia, que conciuz.a importantes conquistas no plano social que tém seu momento emblemético na (progressista) Constituicao de 1988;5e (o)evicentemente, nao se podem menosprezar os embates no plane tebrico- -ideolégico que nutrem uma redefinigéo dos rumos da Psicologia.* Os diversos estudos conduzidos, tanto no plano nacional como nos re- gionais, envolvendo avaliagées da situacao profissional (e. g,, CFP, 1992; 1994; 2002; CRP/6* Regio, 1995; Yamamoto, Siqueira é Oliveira, 1997; Yamamoto etal, 2001), tém mostrado uma mudanga que comeca a se processar, gradual ¢ tendencialmente, na configuragao da Psicologia no Brasil Tomemos, para ilustrar, 0s dados de um levantamento conduzido em 2001 pelo Conselho Federal de Psicologia. O quadro resultante evidencia duas tendéncias: de uma parte, a manu tencio da hegemonia da atividadte clinica com relagio 8s demais, confirmando © perfil anteriormente mencionado; de outa, uma ampliacéo das oportuni- dades profissionais, propiciada pela abertura de novos espagos de insercéo profissional. E nesse particular que se observa a presenga do psicélogo nos campos do bem-estar social de cunho preventivo ¢ compensatério. Nao nossa intengio discutir em detalhes os dados sobre a configuracao profissional da Psicologia; os elementos até aqui levantados sao suficientes para estabelecer os pontos para a discussio. 5 Para anilises sobre esse momento, ver, novamente, Alves (1989), Para tima discussfo do papel dos intelectunis na transio demactatic, ver Pécaut (1980) 6, Nesse particular, tem grande peso a aco do Conselho Federal de Psicologia, responsive! pela condugdo de diversos estudos sobre a profssio (CFP, 988; 1982; 1998), e ANA 8.800K ‘Tabela 1 — Quadro comparativo da situagdo dos psicslogos Drasileiros em 1988 ¢ 2001 com relacio & dread atagio ‘Area em que ata como psicélogo 1988 2001 linea 553 519 = 113 92 (Organizacional/Tabatho 92 A Dosincia 66 22 Pesquisa 13 06 Socil/Comunitria 28 17 Snide" = 126 Transitor = 39 Juridica = 25 Export = on Outros 30 = Os daios de 1988 dizem respeito ao “emprego principal”. ‘A pesquisa de 1988 no trabalhou com essas areas, porndo aparecerem ou por estarem agrupadas ra categoria “Outros”. Portanto, se de uma parte a insercio do psicélogo no campo das politicas sociais se desenha de forma nitida, garantindo a Psicologia uma considervel extensio da cobertura da atengao psicolégica a camadas amplas da popula- io, de outra, uma questéo permanece: essa extensio do campo de atuacao, para além do elastecimento do mercado de trabalho, representa um maior comprometimento com camadas mais amplas da populacao? Questao social e politicas pilblicas Antes de discutir a articulacao dos temas centrais desta minha inter- vencdo — 0 compromisso do psicdlogo remetido a insergio do psicdlogo no campo das politicas sociais —, necesito qualificar o debate partindo da consideracdo de um elemento pouco usual no tratamento das politicas sociais, PSICOLOGIA EO COMPROMISSO SOCK ou seja, a sua remissio a chamada questio social, como parametro e limite para a.acao e 0 compromisso do psicélogo. De uma maneira muito ampla, questo social significaria o conjunto de problemas politicos, sociais e econdmicos postos pela emergéncia da classe operdria no processo de constituico da sociedacte capitalista (Cerqueira Filho, 1982). E, pois, a expresso do “processo de formagio e desenvolvimento da classe operaria e de seu ingresso no cendrio politico da sociedade (...). Ba manifestagdo no cotidiano da vica social, da contradligao entre o proletariado ea burguesia” (lamamoto & Carvalho, 1983, p. 77) Na passagem para 0 monopolismo, que conduz ao épice a contradicéo entre a socializagao da producio e a apropriacio privada através do controle dos mercados, 0 Estado ¢ refuncionalizado e redimensionado, assumindo a responsabilidade por um conjunto de mecanismos extraeconémicos que se articulam com 0 processo produtivo. Dentre tais fungdes, uma que adquire primordial importancia diz respeito a “preservacao ¢ ao controle da forca de trabalho, ocupada e excedente” (Netto, 1992, p. 22). Aaiticulagdo das fungbes econdmicas e extraecondmicas (ou especifica- ‘mente politices) assumidas pelo Estado demanda, por um lado, a legitimagao politica pelo alargamento da sua base de sustentacao, através da institucio- nalizagio de direitos e garantias sociais. Tal legitimagao, pela utilizacao dos instrumentos da democracia politica, mobiliza uma dinamica contraditéria, tomando 0 Estado permeavel a demandas das classes subalternas Nessas condigées, as consequéncias da questao social tomam-se objeto deintervencio sistemética e continua por parte do Estado, mas através cle um processo peculiar: sem a possibilidade da remissio a totalidade processual especifica (conforme nossa definicdo), ela é tratada de forma fragmentaria e parcializada. Politica social transmuta-se em politicas sociais (no plural): as expresses da questio social sfo tratadas de forma particular —e assim, enfrentadas. E, portanto, na forma de politicas setorizadias que as prioridades no cam- po social so definidas. E politica, € sempre convenient lembrar, 6 conllito, quenas formagies sociais capitalistas traduz-se na oposigao entre os interesses da acumulagao e as necessicades dos cidadaos. As politicas sociais, como parte do processo estatal da aloca¢ao ¢ distribuigdo de valores, encontram-se zo centro desse confronto de interesses de classes (Abranches, 1985). O suposto de que as politicas sociais nos remetem sempre e 0 limite ao antagonismo irreconcilidvel de classes nao nos impede, todavia, de pensar em diferentes pontos de equilforio entre a acumulagao e a privacéo social (Abran ches, 1985). Tais pontos sio dependentes de particulares correlacdes de forga presentes no cenério politico em cada conjuntura histérica especifica. esse ponto de equilibrio, nas nagdes afluentes, dependera o grau d protesio social e de garantia dos padres minimos de vida, na forma de pe Iiticas universalistas, basicamente, de natureza preventiva. Nos demais pafse em que, com grau ¢ amplitude diferenciados, a destituigio decorrente d ‘prdprio processo de acumulacao capitalista é a regra, do ponto de equilfbri conseguido resultarao nao apenas as ages de cardter universalista, ma aquelas de combate as situacdes de extrema pobreza, através de politicas d cardter compensat6rio e redistributivo. Intervir como profissa0 no terreno do bem-estar social, portanto, remete Psicologia para a acao nas sequelas da questdo social, transformadas em politica estatais e tratadas de forma fragmentéria e parcializada, com prioridade definidas ao sabor das conjunturas histéricas particulares. [sto conferiré tant a relevancia quanto os limites possiveis da intervengao do psic6logo. Dessa forma, na andlise de tais limites, entram em jogo ao menos tré ‘vetoes: as formas peculiares de organizacao politico-econémica que rebater ‘no tratamento das questdes sociais; a organizacao ea capacidade de resisténci das classes subalternas; e a situagao especifica das profissdes do setor ben estar, no nosso caso, do psic6logo: organizacio profissional e compromiss social, hegemonia de tal ou qual modelo (teérico-técnico) de intervengao condicées/caracteristicas da formagao académica. © primeiro desses pontos, as formas de organizacao politico-econi mica que definem as chamadas politicas sociais, merece uma consideraga especial. ‘Ajuste neoliberal e desajuste social A ctise do modelo econdmico, experimentada no segundo quartel ¢ década de 1970, traduzida por uma profunda recessao, baixas taxas de cre cimento econémico ¢ explosio das taxas de inflagao, dé inicio a um procest que culminaria com a hegemonia, no Ambito planetaiio, do ideério e agenc neoliberais. ‘Tomada em suas linhas mais gerais, a agenda consistiria na contr ‘cdo da emissio monetéria, na elevacao das taxas de juros, na diminuig: PSICOLOGiA E 0 COMPROWISSO SODIN, da taxagao sobre os altos rendimentos, na aboligéo de controles sobre os Aluxos financeiros, na criacdo de niveis macigos de desemprego, no con- trole e repressao do movimento sindical, no corte dos gastos sociais pela desmontagem dos servicos piiblicos, além de um amplo programa de privatizagdes. As suas premissas fundamentais sio 0 estabelecimento do mercado como instancia mediadora fmdamental e a ideia de um Estado minimo (nos moldes assinalados anteriormente) como a tinica alternativa para a democracia (Netto, 1993). O aspecto que nos toca de perto, evidentemente, diz respeito ao tra- tamento dispensado para a questdo social. Mesmo nesse aspecto, pode-se dizer que o neoliberalismo nao logrou alcancat, de forma generalizada, a desmontagem do sistema de protecao social — 0 que é verdade, sobretudo, em algumas nagdes escandinavas, com forte tradigao social-democrata, Se a desmontagem do sistema de protegio social néo pode ser con- siderada um sucesso em diversas nagdes afluentes’ em nagdes como as latino-americanas, que se notabilizam pela debilidade na cobertura e pelos reduzidos graus de eficécia, sob a égide de politicas de cunho meritocratico- -particularista, tende a acentuar as desigualdades e aprofundar o quadro de miséria social. ‘Tomemos como exemplo o caso brasileiro. Apesar da melhora em indices especificos (aumento da expectativa de vida, dos niveis de escolarizacio, di- minuigo da mortalidade infantil entre outros), tratamento dado a questo social foi absolutamente insuficiente para tirar o Brasil da posigo que ocupa nos indicadores do Programa das Nagdes Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), de “médio desenvolvimento humano’. Pelo contrario, a situagio de desigualdade social, com um quadro de degradacio geral das condigoes de vida, é alarmante: em 1990, aproximadamente 40 milhdes de brasileiros (de uma populagio estimada em 147 milhdes) estavam na ou abaixo da linha 7. Para andlises sobre a questi, ver, dentre outs, a andlise de Anderson (1995). 8. Addenominagao é de Titmuss/ Ascoli também chamado de modelo “conservator-corporat- vista" por Esping-Andetsen. Para a discuss da stuacio de Brasil, ver Cabral Neto (1993), Drabe (1983) e Soares (200), 9. Para dados sobre a situaga social na Bras nos anos que se seguem & transigéo democrtica, ver, dentee outros, Abzanches (1985) e Soares (2001). 10.0 indice de Desenvolviniento Hsmana (IDH) do Brasil, em 2000, era de 0,757—o que coloca ‘ pals em 73” higar dentre 173 nagDes avaliadas (UNDP, 200). (0 faz passarda incdmadia situagio de pals de “baixo deserwelvimnento humano” em 1970 IDE. de0494) para ode “médio". da pobreza; 32 milhdes em situacao de indigéncia. Internamente, regides mais pobres como o Nordeste brasileiro contavam com mais de 40% da populagio em situacdo de indigéncia (Soares, 2001)."" Nesse quadro é que se faz sentir 0 impacto dos cortes dos gastos puiblicos no setor social (Tabela 2) “Tabela 2 ~ Quadro comparativo do gasto publico socal totale setrial de tres pases latiro-americanos Total | Edueacio | Saide “Argentina Total % PIB (1980/1) 162 33 49 Total % PIB (1990/3) 155 3 44 USS per capita (1980/1) 560.9 138 1540 USS per capita (1990/3) 5165 1041 138 Brasit [Total PIB (1980/1) 93 09 18 Total % Pre (1990/3) ng 19 24 | USS per capita (1980/1) 1596 167 29 | US per capita (1990/3) 173. 204 380. séxico Total % PIB (1980/1) 80 31 35 Total %6 PIB (1990/3) 65 27 32 SS per cpita (1980/1) 248 876 oo USS por cit (1990/3) 1674 ona eo. (Adaptado de Draibe, 1997, p. 235). ‘Os dados mostram que o financiamento do gasto social no conjunto das ‘nag6es latino-americanas no se altera de forma significativa, mas. tendéncia 6 regressiva. O Brasil, que dos paises apresentados é 0 tinico que apresenta 11. Osdacos originals provém ce fonts ofciais: da Pesquisa Nacional por Amostra de Domiciios (PNDA), da Fundacio Instituto Brasileiro de Geografae Estatistica (BCE). "Pobreza” equivala,em 1980, a‘uma renda familiar per capita de USS 34.4 mensais; "Indigéncia” aqui étomada como acon- dighe de uma pessoa cua renda familiar correspond, no maximo, a0 valor que permite a aquisicio cde uma cesta bisa, conforme os paddies nutricionais da FAO/OMS/ONU. PsicaLoaia € 0 contPROWISSO SOCIAL o uma elevacao nos gastos do setor, é também aquele que tem os piores indi- ces, tanto em termos absolutos (medidos em US$ per capita), quanto relativos {percentual do PIB). Analisando os gastos setoriais, o Brasil investe cinco vezes menos que a Argentina e trés vezes menos que o México no setor educacional. Quanto a0 setor satide, considerando-se o Brasil como uma das poucas nacdes que logrou impor, mesmo com todas as dificuldades jé amplamente analisadas, um sistema tinico e descentralizado nos moldes preconizados pela Organizacao Mundial de Satide/Organizacao Pan-americana de Satide (OMS/OPAS), i veste quatro vezes menos que a Argentina e metade do que gasta o México. Para além do aspecto regressivo do gasto piiblico no setor social, a desestruturacio neoliberal dos servicos sociais se processa através de trés mecanismos: a descentralizagio dos servicos (que implica transferéncia de responsabilidade aos niveis Iocais do governo a oferta de servigos dete- siorados e sem financiamento); a privntizagto total ou parcial dos servicos (promovendo uma dualidade, com oferta de servigos de qualidade dife- renciada conforme a capacicade de pagamento do usuétio) e a focalizagio (introduzindo um corte de natureza discriminatéria para 0 acesso aos servigos sociais bésicos pela necessidade de comprovasao da “condigao de pobreza”) (Soares, 2001). Portanto, a andlise da condigao social no Brasil —~de resto, equivalente aos demais pafses latino-americanos — requer a consideracao de dois vetores: deuma parte, a situagéio de miséria social que tipifica uma imensa parcela da populacao; de outra, o progressive descompromisso do Estado com o finan- ciamento da protecao social, associada a refuncionalizacao dos mecanismos de atendimento no setor. Considerado esse quacro — e tendo por suposto que politica sociais s80 expresses da questao social cujo equacionamento nos remeteria A contradicéo principal do modo de producéo capitalista, ow seja, que “a maximizagao da equidade é incompativel com a maximizagio do processo acumulativo” (San- tos, 1989, p. 40) —é que se pode aquilatar o significado preciso da afirmacao de que as definigdes desse setor seriam metapoliticas, entendendo politicas sociais como ordenamento de escolhas trégicas.”” 12, Segundo o autor, tomando como base 0 pensamento de Douglas Ree, “qualquer principio de justica, simples ou complexo, prod resultados contrrios ao que se dese quando aplicedo da ‘mesma forma em qualquer ctcunstancia” (Santos, 198, p39) * 4.8. 800K A Psicologia, politicas sociais e compromisso social Retornemos, agora, aos nossos temas de origem: a regulamentagao da profissdo (com a protecio a0 ptblico como premissa); 0 compromisso da Psicologia e o campo das politicas sociais (as consequéncias da questao social transformadas em alvo das politicas particularizadas por parte do Estado), no contexto da reforma neoliberal do Estado em uma nagdo como o Brasil, como espaco de atuacao comprometida do psicélogo. As transformacdes em processo na Psicologia brasileira, decorrentes do conjunto de vetores especfficos em jogo assinalados, empurrando o psicélogo para as classes subalternas (conforme antecipava Campos, 1983), permitem-nos mudar, ao menos provisoriamente, a resposta & questo do compromisso do psicélogo com relacao ao quadro dos primeiros vinte anos. De fato, o elitismo da prética denunciada pelos estudiosos naqueles anos ainda é a tendéncia hegeménica da Psicologia, mas é possivel afirmar que existe um movimento bastante consistente do psicdlogo para a atencao a parcelas mais amplas da populacao brasileira. Aquestio ndo parece residir em com quemta Psicologia, nesse movimento, ‘vem se comprometendo, mas na forma desse compromisso. Para discutir essa questo, tomemos 0 caso do setor da satide, aquele no qual a Psicologia tem logrado uma insergéo mais significativa. Os determi- nantes historicos dessa inserc4o — a reorganizacao profissional no contexto da luta antiditatorial dos anos 80, politizando os debates antes de cunho mais corpotativo (Bock, 1999; Pécaut, 1990; Yamamoto, 1996), as conferéncias nacionais de satide, os embates no nivel congressual na Assembleia Nacional Constituinte, enfim, a incorporacao, no texto constitucional de 1988, da ideia de satide como responsabilidade do Estado e direito de todos e a previsao da onganizagao de um sistema integrado de satide — so temas ja amplamente debatidos na literatura." Concretamente, os psicdlogos ingressam no campo da satide através de duas formas: nas Unidades Basicas de Satide, articulado com os demais, profissionais do campo, no desenvolvimento de estratégias de intervengao da 1B, Existe uma fartaproducio acerca da questio. Apenas como refencia, citamos Guimaries & Tavares (1984), Teixeira (1995) e Mendes (1996). 14. Hi um terceto eixo de insergdo que se refere ae hospital geal, que no estésendo objeto de anslise aqui, em virtue das especifcidades dessa insituiglo da forma pela qual os pricSlogos| PSIcOLOGIAE 0 CowPRONESSO SOCIAL “vigilncia da satide”, que resultam da combinagao de promogao da satide, de prevencdo das enfermidades e dos acidentes, e da atencao curativa (Mendes, 1996), € nos Nuicleos e nos Centros de Atengao Psicossocial (NAPS/CAPS), modelo alternativo (conduzido por equipes multiprofissionais) para 0 tra- tamento manicomial. A pttica dos profissionais nos diversos equipamentos de satide, contu- do, tem se mostrado bastante problemética. Silva (1988 e 192) afirma que 0 ‘modelo tradicional de psicoterapia tem impedido o psicélogo de desenvolver agies de atengio priméria a satide (embora outros autores, como Campos (1988), lembrem que a psicoterapia, embora ndo seja a tinica, nao deixa de ser uma atividade de atengao priméria a satide, coerente com as distingdes entre ages de cunho preventivo e compensatdrio). Aquestio em jogo, sem embargo, nao nos parece simplesmentea possibi- lidade ou nao da transposicao de recursos técnicos tradicionais da Psicologi em especial, o instrumental clinico desenvolvido para contextos socioculturais bastante diversos nos servigos piiblicos de satide, mas a viabilizacao de uma pratica que possa se articular, de forma qualificada, nas chamadas “politicas de vigilancia da satide”, antes aludidas. Estudos que conduzimos no estado do Rio Grande do Norte, para tomar um exemplo, tém demonstrado que estamos longe dessa meta. Ao contrério, a intervengio do psicélogo tem, virtualmente, se resumido a reproducao do modelo clinico tradicional, em boa parte dos casos, informado pelas diversas vertentes psicanaliticas, sem nenhuma problematizagao acerca da adequacio desses modelos te6rico-técnicos para as exigéncias do servigo piblico de satide, ou de desenvolvimento de agoes integradas em equipes multiprofissionais."® Aquestio mais preocupante é que, se em anos passados a tentativa (nem sempre eficiente) de focalizacao das atencGes dos psicélogos para as classes subalternas, no contexto da rearticulacéo do movimento popular (de corte antiditatorial), era fortemente motivada por um reconhecimento da impor- tancia do comprometimento social da agao profissional, hoje, 0 quadro nos tem desenvoivido suas agées, Para discussdes sobre esa questio, ver Yamamoto e Cunha (1998) © ‘Yamamoto, THindade e Oliveira (2002). 15.feconvenienteassinalar que, embora essa tendéncia seja dominante, a busca poralternativas ‘mais consistents io esté totalmente descartada do horizonte dos psiclogos. Diversosestudos tm -demonstrado essa preocupacio, como os de Hoarin (1996), Dimenstein (1998), Lo Bianco etal. (1994), ‘Silva (1988 e 1952) e Spink (1992}, apenas para citar alguns % -ANAA.8 200K parece radicalmente diverso. A agao profissional dos psicélogos que atuam no campo da satide (ao menos considerados os exemplos que temos em mos, 0 que nao representa, necessariamente, a auséncia de outras formas de insergdo) nos indica uma extensao da pratica convencional (calcada no ‘modelo médico) com uma escassa ou nenfuma problematizagao dessa forma de intervencao, reforgando um dos aspectos mais dramaticos da pratica dos profissionais que atuam no setor social publico: 0 acesso desqualificado por parte de parcelas cada vez maiores da populagio aos servigos bésicos no setor social Se tiver pertinéncia essa linha de raciocfnio, é urgente que todos que estéo envolvidos com a producio de conhecimento e com as agéncias responséveis, pela formagao dos profissionais, sem a desconsideragao das caracteristicas do mercado de trabalho e das condicSes por ele impostas, discutam a cons- trucdo de alternativas consequentes do ponto de vista da atengdo as demandas das classes subalternas partindo de outras modalidades de leitura do real e de abordagem do fendmeno psicolégico.'* E importante lembrar que nosso objeto, aqui, sdo as ages desenvolvi- das pelos psicdlogos no campo das politicas sociais piiblicas tradicionalmente definidas. Embora a relevancia da insergao nesse terreno seja indiscutivel, © quadro da exclusdo social que ¢ a tOnica das nac6es latino-americanas coloca em questao a possibilidade e a necessidade de acao de profissionais, do setor bem-estar, no nosso caso, do psicélogo, em outros contextos, nio necessariamente piiblicos, nao necessariamente vinculados as politicas sociais cléssicas, mas atinentes & questo social capitalista, como sao os casos de assentamentos decorrentes dos movimentos sociais no campo, as questdes vinculadas a violéncia nas cidades, a exploragao sempre presente do trabalho infanto-juvenil, entre tantos outros tépicos. As possibilidades, pesando as condigdes, limites e questdes postas para o exercicio profissional do psicélogo, estéo abertas. Finalmente, gostariamos de propor que, considerando os limites da atuacao profissional do psicdlogo — e eles estao dados por sua posigao na divisdo social do trabalho e pelas possibilidades de acao nas sequelas da questo social capitalista —, 0 desafio posto para a categoria é ampliar os limites da dimensao politica de sua aca profissional, tanto pelo alinhamento com. 16, Sem entrar no mérito das proposigdes, uma das tentativas nessa direglo & explorada por Bock, Gongalivese Furtado (200) 08 setores progressistas da sociedade civil, fundamental na correlacao de forcas da qual resultam eventuais avancos no campo das politicas sociais,” quanto pelo desenvolvimento, no campo académico, de outras possibi- lidades tebrico-técnicas, inspiradas em vertentes teérico-metodologicas divergentes das que tém se constituido na Weltmischauing (hegeménica) da Psicologia Referéncias bibliograficas ABRANCHES, 8. H. Os despossufdos: cescimento e pobreza wo paso milagre. 2. ed. 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Pos é claro que, sob sua aparente simplicidade, a palavra “psico- logia” recobre um campo vastissimo, subdividido em muitas disciplinas, povoado por correntes e teorias antagénicas e impelido por um movimento centrifugo, que nos leva a questionar sobre a possibilidade de pensa-lo como um saber unitério, Por outro lado, a intengao de projetar no tempo esse saber ™ Bste texto foi apresentado na Mesa Magna do { Congresso Brasileiro de Psicologia; Citncia e Profisio e publicada parcilmente no Jorn de Psicologia do CRP-SP,n, 134, outubro-dezembro de 2002. Foi, no entanto roesctoe aumentado para esta publica. ** Psicéiogo; professor de Antropologia Filoséfica no Departamento de Filosofia da UEMG, « professor de "Historia do Pensamento Psicanalitico” no Curso de Pés-graduagSo em Psicanslise do Departamento de Psicologia da UFMG. E-mail: carlosdeawin@yshoo.com br, s ANAM.B BOCK tao polarizado e dispersivo, a pretensdo de discorrer sobre o “futuro da psi- cologia”, nao poderia deixar de soar como uma insensatez e uma temeridade. No entanto, as muitas dtividas suscitadas pela imprecisio do conteddo e pela obscuridade do objetivo poderiam convergit para uma justa suspeita: ao articularmos esses dois termos, “futuro” e “psicologia”, no estariamos pressupondo uma certa opgao ideolégica? Nao estarfamos excluindo, por principio, aquilo que nao caberia em “nossa ciéncia” e que, portanto, ndo poderia permanecer em “nosso futuro”? E preciso admitis, sem tergiversagdes, que esta 6 uma justa suspeita, que se alimenta de uma quase evidéncia e que apenas 0 excessivo apego as nossas opcdes pode mascarar: a de que é impossfvel e, alias, nao é nem ‘mesmo desejével, nos arrogarmos uma posicao de neutralidade e de superior objetividade. Essa admissio, porém, nao significa que nao seja imprescindivel cexplicitar, com a maxima clareza, a intengio subjacente ao titulo genérico de nosso texto, de modo a possibilitar, a um possfvel leitor, 0 distanciamento necessario para um discernimento critico. O subtitulo que adotamos, talvez, nos possa socorrer no esforco de explicitar a nossa intencao: ha, sem diivida, uma opcao claramente assumida e que designamos como “compromisso ético”, mas hé também a ideia de que tal opgao nao s6 nao anula, mas antes exige, o que designamos como “pluralismo teérico”. Devemos esclarecer, no ‘obstante, 0 vinculo entre as duas expressoes. Em primeiro lugar, parece-nos bvio, ao reconhecermos 0 “pluralismo te6rico” em relacdo ao futuro da psicologia, que assumimos o pressuposto de sua irremissibilidade e que reconhecemos a inviabilidade de nos colocarmos, num ponto de vista superior, de onde poderiamos discernir a unidade da psicologia. Sea hist6ria da psicologia pode ser caracterizada como uma “dia~ Iética da fragmentacao”, se ela jamais alcangou a serenidade de uma “ciéncia normal”, entao néo podemos construir um discurso epistemolégico que se imponha sub specie aeternitatis e nao podemos julgé-la, enquanto totalidade multiforme, em nome de alguma idealidade cientifica.’ Se o fizermos, esta- remos nos retirando do didlogo racional, que deve lidar com as diferencas ¢ ‘com os antagonismos que foram sendo engendrados na histéria efetiva da psicologia e estaremos nos abrigando numa ilusdo, aquela que confunde facilmente a particularidade de uma opcio tedrica com a universalidade 1. Sobre este tema, permito-me remeter a um texto meu que o aborda,enfretanto, numa outra perspectiva. Ver, Drawn, Carls R,Psicolgi:daltce da fagmentago. In: CPF — Quem & psicbogo brasileiro? S30 Paulo: EDICON /FDUC /Scientia et Labor, 1988, p. 236-51 PSICOLOGIA EO COMPROMISSO SOCIAL, abstrata de uma cientificidade ideal. Ao contratio, cremos que um tipo de saber'como o psicoldgico, pertencente de uma forma ou de outra ao dominio das “Ciéncias do Homem", nao pode desconhecer a historia dispersiva de seus conceitos, de seus modelos e teorias, porque esta ndo advém de uma patologia dese saber, algo sandvel com a terapéutica do rigor metodol6gico, mas decorre da historicidade intrinseca aos objetos que visa apreender. Assim, 6 “futuro da Psicologia” é um futuro plural, ndo pode ser abarcado num 86 olhar e nao pode haver uma solucao epistemolégica capaz de nos absolver do fardo histérico dessa irrtemedidvel pluralidade e da interlocugao critica que ela exige. Portanto, néo pretendemos nos referir ao futuro da Psicologia como o de uma ciéncia unitéia, numa espécie de utopia epistémica que po- deria englobar todas as suas vertentes, mas, em oposig&o a uma concepgio idealizada e progressista do conhecimento, ressaltar que o seu s6 pode ser um futuro incerto, o da permanéncia e, até mesmo, o da proliferagdo das, Giferencas.* Se atribuimos “incerteza” ao futuro, foi com o intuito de recusara idefa, igualmente inadmissivel, de que seria possivel predeterminar para a Psi- cologia algo como “um futuro tedrico”, de modo a assegurar um conterido determinado que a selecao empirica das teorias, imposta pelo tempo, haveria de consagrar. Pois, como vimos, a Psicologia é um campo polissémico que, em razao de sua prépria dispersividade interna, ocupa um lugar estratégico e mediador no sistema altamente complexo dos saberes contemporaneos.’ Ora, hé uma relagdo inversa entre complexidade e previsibilidade e, por tanto, podemos admitir que os sistemas complexos sto tendencialmente imprevisiveis, Desse modo, nao seria insensatez prever algum tipo de futuro teGrico para a Psicologia? Nao seria este apenas mais um exemplo daqueles exercicios de futurologia que, apés um breve prestigio, foram desacreditados pelos proprios acontecimentos que pretenderam antecipar? 2,0 ideal de uma ciéncia unitiia 6 um dos tragoscaracteristicos do neopastivsmo, Ver Boyer, Alain. L’ Utopie Unificatice et le Cercle de Vienne In: Sebestik, Janet Soulez, Antonia. Le Cercle de Vienne, Doctrines et Controverss. Pavis: Klineksick, 1986, p. 253-69. Para uma sida introdugio AS ldelas neopositivistas, ver: Echeverria, Javier. tmdnecién a la Metodlogi de la Cieein,Batcelona Bareanova, 1989, p. 7-21 3. ara a questio da importincia da psicolagia no niverso das “Ciéacias do Homem”, ver Freund, Julien. Las torlas de Jas Ciencias Hurmanes. Barcelona: Peninsula, 1975. Pode-se consultar tombe: Banckaert, Clue eal. J Histire des Sciences de L’ Hen. Paris /Montéal Harmattan, 1999, Sobrea necesidaclede um pensamento complexo na ciénca contemporinea, ver: Morin, Edgar. ‘Science aoe Conscionce. Paris: Fayard, 1982, o 4 8.800% das possibilidades que se dao na sincronia de nosso presente e, assim sen- do, é objetivamente indecidivel. Acreditar que, com base nos “dados” que possuimos sobre o “presente”, podemos prever o futuro 6, como jé afirma- ‘mos, um vdo exercicio de futurologia, que desconhece 0 carter altamente abstrato e reflexivo de nossa modemidade. Além do mais, 0 “presente” é apenas um “ponto indiscernivel” no fluxo do tempo, uma espécie de “ponto de fuga” entre o passado e o futuro, sendo incessantemente convertido em passado. Temos apenas interpretagdes que emergem no presente e que a ele podem se referir, mas no possuimos “dados” e, se como jé foi ressaltado, as interpretacdes baseiam-se numa “pré-compreensdo”,entao elas implicam necessariamente juizos de valor. Portanto, 0 futuro nao é impessoal e indi- ferente, mas é sempre o “nosso futuro”, € a projegdo da forma com que nos apropriamos do presente. Na historiografia, essa primazia do presente, esse condicionamento retrospectivo, que os anglo-sax6nicos chamam dewhiggismo, é inevitavel, mas é também, até certo ponto, passivel de correcao. O mesmo nao se aplica na antecipagéo do futuro, pois, como é dbvio, em relacéo a ele nao ha algo como uma tradigéo historiogréfica, e os acertos e erros que ‘ocorreram nas previsdes passadas podem ser apenas adverténcias acerca da inanidade dos nossos esforcos atuais de previsio, uma vez que néo podem ser transpostos para um futuro que é outro em relagio a um “futuro passa- do, a um futuro que se tornou um acontecimento e nao mais permanece como uma possibilidade. A primazia do presente, parcialmente corrigivel, como condicionamento retrospectivo, é inteiramente incorrigivel enquanto condicionamento prospectivo.” Entretanto, a dimensio do futuro, a de que no tempo pode surgir uma realidade nova, exige, como condigio de possibilidade, uma representacéo do tempo que nao seja ciclica, enclausurada na repeticao ritualistica de uma origem sagrada ou neutralizada na fixagao de um mito, e essa representacio surge historicamente apenas quando o presente passa a adquirir uma certa primazia axiol6gica em relagao ao pasado. Essa primazia — em que o pre- sente julga o passado a partir de si mesmo, em vez de julgar a si mesmo a 7. Sao muitas as fontes em que nos baseames para esas reflexdes, Permito-me remeter a um pequeno texto meu: Drawin, Carlos RA sabedoria do tempo. In: Decat de Moura, Marisa. Picinlse «Hospital I: tempo e morte: a urgencia do ato aaltice. Rio de Janeiro: Revinter, 2003, p. 127-40. Para uma reflexio abrangente: Pomian, Krzysztof. L’ Ordre du Temps. Paris: Gallimard, 1984. A expresso "futuro passado”alude 90 titulo de uma obra fundamental, ej lissca, que versa sobre “teoria da hhistria": Koselleck, Reinhart, Futuro Pasado: Para une Senvintica de los Tiempos Histrices. Barcelona: aids, 1983. PSICOLOGIA EO COVPROMIESO EOL partir de uma época mitica e considerada superior —depende da construgao, de uma nova imagem de mundo, capaz de absorver a agio humana numa reconciliacao entre ordem ¢ histéria. Ou seja, 0 futuro s6 ¢ realidade se 0 presente for realizacao. F foi essa nova imagem do mundo que—emergindo lentamente e encontrando a sua configuracao historica em meados do século XVII — converteu-se num projeto de civilizacdo que passou a ser definido como “modernidade”. A modernidade nao designa, portanto, apenas wma época bem demarcada cronologicamente e bem diferenciada socialmente, ‘mas encama um valor e por isso foi, desde o seu inicio, atravessada por um “conflito de interpretacdes”. Ou, para falar de uma maneira provocativa, podemos afirmar que a “modernicade”, enquanto valor, sempre foi acom- panhada pela “pés-modernidade”, da mesma forma que o "Iuminismo” sempre foi acompanhado pela sombra do “Contrailuminismo”. £ esse movimento de polarizacio, mas também de interpenetracao, que constitui a “dialética da modemicade”. Nao 6, portanto, como previsdo que o futu- 10 se torna pensavel, mas como forma de julgar a nossa época. E por isso, sem veleidades proféticas, mas buscando esbogar uma tipologia, podemos delinear trés modelos de futuro ou, melhor, trés modos de pensar o futuro 2 partir do presentes* + Oprimeiro modelo, que seria tipico da Hustracao, encontrou, desde © século XIX, diferentes formas de expresso, seja na Belle époque e nos programas de industrializacio e modernizacao social, seja nas politicas desenvolvimentistas ¢ nas concepcdes do evolucionismo social e das filosofias positivistas. De um modo simplificado po- demos dizer que esse modelo pode ser condensado na imagem do “Futuro como Progresso e Emancipagao”. Nesse caso, 0 futuro seria uma espécie de projecto linear do presente e este seria interpretado como a época da instauracdo de uma forma nova e irreversivel de racionalidade: a racionalidade tecnocientifica, com o seu poder de irradiagao sistémica nos dominios da economia, da politica, da edu- cago, das organizacdes burocraticas. Desse modo, 0 avanco efetivo 18. Fssas consideragdes as que se seguem estioinspiradas na obra de extraordinatia edigio « lucidez de Henrique C. de Lima Vaz. Refiro-me, em especial, a: Vaz, Henrique C. de Lima, Esrtos se Filosofia I: Flsofiae Cultura, Sao Paulo: Loyola, 1997. A relagho orem e historia &o exo da obra ‘monumental, em cinco volumes, ce Erie Voegelin,cujaindicagio devo 20 grande mestre que foi Henrique Vaz. Ver: Voegelin Erie. Onler nd History Vn Soachof Order Baton Rouge: Ue Lousiana State University Pres, 1987. da tecnociéncia seria ampliado para todo o espectro sociocultural ea “forma de pensar” da racionalidade cientifica absorveria a totalidade da razdo, Essa perspectiva, desde Condorcet, ressuma otimismo ¢ ‘endossa a crenga no controle racional da atividade politica. (O segundo modelo, que seria tipico do Romantismo, também en- controu, desde o século XIX, diferentes formas de expressao, seja no neorromantismo e nas vanguardas estéticas do modernismo, seja ra critica cultural pessimista e na extensa processio das filosofias da vida e da existéncia e chegando, até mesmo, a alguns aspectos da contracultura. De um modo simplificado, podemos dizer que esse modelo pode ser condensado na imagem do “Futuro como Decadén- cia e Dominacio”. Esse modelo — colocado, em grande parte, sob 0 emblema heideggeriano do “esquecimento do ser” —encontraa sua confirmagao na consciéncia do fracasso da racionalidade modema em tornar-se forca de emancipacao ea sua capacidade em potenciar a violéncia e a destruigo, o que resultou numa catéstrofe de di- _mensdes planetarias. Desse modo, 0 avanco efetivo da tecnociéncia se confundiria com um mundo “totalmente administrado” e com um “homem unidimensional”. Essa perspectiva, desde Rousseau, ressuma um pessimismo que se desdobra, ora numa orientagao fortemente conservadora, ora na expectativa messianica de uma ruptura revoluciondria. O terceiro modelo ¢ mais dificil de ser caracterizado, pois ainda nao apresenta contomos bem definidos, mas parece ir tornando-se tfpico dessa nova sensibilidade que tem sido definida como “pés-moder- na”. Aparece de modo difuso, como um fendmeno que tem sido, hd algum tempo, descrito em brilhantes ensaios sociolégicos e que parece aproximar-se, em sua vertente intelectual, do pensamento pés-estruturalista. De qualquer modo, 0 seu perfil filos6fico nao é nitido, mesmo porque nele habita a recusa ao pensamento siste- mitico e fundacionista e nele se cultivam 0 “pathos do niilismo” e © gosto pelas formas hibridas e pelo bricabraque conceitual. E, por isso mesmo, talvez possamos defini-lo provisoriamente como uma forma hibrida dos dois modelos anteriores. Assim, nele ndo se tem uma visdo apocaliptica do futuro, uma visao capaz de alimentar ‘uma reacao politica, estética ou existencial na linha do conservador ‘ou do revolucionario romanticos, como é 0 caso do nosso segundo modelo. Ao contrério, aceita serenamente o cardter irreversivel da racionalidade tecnocientifica e, até mesmo, se compraz com as sas extraordindrias inovacdes tecnolégicas, endossando, sem alarde, os seus beneficios numa perspectiva intensamente individualista. No entanto, nele ndo encontramos qualquer trago da metanarrativa de ‘um progresso alavancado pela ciéncia, pela técnica ou pela economia, como € 0 caso do primeiro modelo. Se ha um progresso claramente constatavel no dominio da tecnologia, ele nao se transmite para todos 05 segmentos do universo sociocultural que permanecem completa- mente refratérios a qualquer tipo de ago racional. De modo que 0 mundo do futuro é frequentemente imaginado como um amélgama de alta tecnologia, de amplas possibilidades de fruicéo sensivel, de alguns setores submetidos a uma ordenagio asséptica e a um gerenciamento impessoal, enquanto outros esto mergulhados no aos, a vida social convive continuamente com o crime ea violéncia e 6, sobretudo, povoada por individuos anédinos que padecem de ‘uma auséncia quase completa de sentido existencial. Seria, parado- xalmente, algo como um futuro “sem futuro”, em que a novidade, gerada pela aceleracio da técnica, é apenas fruto de um automatismo que nada produz de verdadeiramente novo e é recebida na fruigéo ena indiferenca. Em relago ao futuro nada pode ser feito, mesmo porque ele é 0 resultado da reproducao e da expansao inevitaveis do capital, cuja logica é considerada a tinica forma possivel de razio e a ciéncia, destituida de sua aura emancipatoria, ter-se-ia convertido numa espécie de destino do homem contemporaneo. Assim, de um modo ainda mais simplificado, porque o que descrevemos s80 apenas tragos impressionistas, que podem se desfazer com facili- dade, diriamos que é possivel condensar esse modelo na imagem do “futuro como indiferenca ou do futuro sent devir”. Nesse modelo, estranha mistura de inovacao e mesmice, de excitagao e tédio, cada um pode compor o mosaico que quiser com os restos que sobraram das grandes tradig6es, das antigas cosmovisdes religiosas, com os fragmentos dos sistemas filoséficos e das teorias cientificas. Nesse “futuro sem advento”, todas as combinagdes seriam aceitaveis, porque nao haveria uma realidade a ser conhecida, uma liberdade a ser realizada, nem uma verdade a ser alcangada, mas to somente individuos que garimpam no passado aquilo que Ihes pode satisfazer no presente e, para além da universalidade operacional do sistema Na m.9.800% econdmico e tecnocientifico, restam apenas demandas subjetivas e interesses particulares.? ‘A ideia de modernidade vincula-se, como jé assinalamos, a um modo de representacio do tempo que concede primazia ao presente e o que suscita essa focalizagao no presente é uma apreensio, mais ou menos explicita, de {que se vive uma intensa crise cultural. Foi o que ocorreu, por exemplo, na época do nascimento da cidade democratica na Grécia cléssica ou na época do declinio da sociedade feudal na [dade Média tardia. Diante da crise, mo- mento presente pode ser concebido como abertura para um futuro promissor ou como ponto crucial de um longo proceso de decadéncia que se agudiza. Essa € a alternativa que encontramos nos dois primeiros modelos de futuro, a modernidade como um valor a ser afirmado, perspectiva de progresso, ou negado, como signo de decadéncia. No entanto, no terceiro modelo o que se pretende é uma "suspensao do juizo de valor”, através de uma retracao total da consciéncia judicativa para a esfera privada do individuo, para o ambito da sensibilidade, em que cada individuo s6 pudesse emitir um juizo de gosto acerca do mundo em que vive. Se, de fato,o futuro nao é previsivel, mas é a projecdo de uma experiéncia vivida e compartilhada no presente, a espelhar a forma com que nos apro- priamos da realidade, entéo podemos dizer que 0 “futuro pés-moderno” no é mais do que a traducao da grande vaga de apolitismo que submergitt 0 mundo no interregno entre os séculos XX e XXI (1991-2001), seria a ex- pressio de uma profunda descrenca na possibilidade de intervir de modo intencional e efetivo no curso dos processos histéricos. Assim, enquanto 0 segundo modelo de futuro representava o desencantamento da intelligentsia, no primeiro pés-guerra, em relagao ao poder de emancipagio da racionali- dade, 0 terceiro modelo representa o desencantamento da intelligentsia, do periodo “pés-socialista”, em relagio as possibilidades da politica, uma vez que a politica, apés ter se separado da ética, teria sido absorvida na logica do sistema tecnoecondmico. Desse modo, se 0 destino foi a tragédia do homem grego e, como bem -viu Hegel, a politica havia se transformado na tragédia do homem moderno, ‘entio podemos dizer que a despolitizagao da sociedade, na esteira do de- ‘9, Aexpressfo “futuro sem devie” ou "sem advento”flinspiradano ituloda primeira parte (Le ‘Fatursans L Avenir) de um ensaio de fina percepgo acerca do nosso tempor Tague, Piere-André LL Bfacxment del’ Avenir Pris: Galilée, 2000. Sobretudo, p. 17-197.

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