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AGRARIA, Sao Paulo, N° 3, pp. 172-175, 2006 HARVEY, David. Espagos de Esperanga. Trad, de Adail Ubirajara Sobral e Maria Stela Gongalves Sao Paulo: Edigdes Loyola, 2004. 382 p. ' Resenha André Eduardo Ribeiro da Silva” andreduardo@usp.br Espagos de Esperanga”, de David Harvey - gedgrafo britinico, atualmente professor emérito de Antropologia no centro de pés-graduagdo da City University of New York, Estados Unidos, traz como idéia principal a importincia de pensarmos o periodo atual por meio da imaginagdo utdpica, no sentido de trazer 4 luz a forga politica da mudanga, de alterativas que contraponham & légica destrutiva inerente a0 processo de globalizago contempordnea. Para isso, propde 0 “utopismo dialético”, uma forma de utopismo espaco-temporal, em que © processo de produgdo destas duas dimensdes - espago ¢ tempo - tero de ser incorporados ao pensamento ut6pico, para pensarmos 0 utopismo hoje. Seu propésito é, no entanto, instigar-nos a esta tarefa, convocando-nos a sermos “arquitetos de nosso proprio ‘onvertendo a esfera do trabalho, em uma sementeira de destino e de nossa propria sorte”, capacidades e potencialidades humanas a fim de mudar 0 mundo e a nds mesmos. Pensa isto em contraponto ao status degradado ¢ igndbil de uma “abelha operdria” sob 0 capitalismo, a redugio do ser social a “marionetes dos mundos institucionais e imaginativos que habitamos”, baseando-se nas reflexdes de Unger © livro esté dividido em quatro partes assim identificadas: Parte 1- “Desenvolvimentos Geogréficos Desiguais”; Parte 2 - “Dos Corpos ¢ das Pessoas Politicas no Espago Global”; Parte 3- “O Momento Utépico”; e Parte 4- “Conversagdes sobre a Pluralidade de Altemativas”. Ha ainda um apéndice intitulado “Edilia, ou faga disso 0 que quiser”. Os capitulos da Parte 1 estio voltados, sobretudo para a discussdo das contribuigdes de Marx para uma leitura do real, recuperando a importincia de clissicos da tradigdo marxiana, como o “Manifesto Comunista” e de seus elementos geograficos para uma ' Tradugio a partir do titulo original “Spaces of Hope”, publicada em 2000, pela Edinburgh University Press, Edimburgo, Reino Unido. Mestrando do Programa de Pés-graduago em Geogralis Humana. Bolsista CNPg. 173 __AGRARIA, Sao Paulo, N° 3, 2006 SILVA, A.E.R. compreensio da dimensdo espacial da geografia histérica de acumulagdo do capital, dimensio esta, segundo o autor promotora de desenvolvimentos geogrificos desiguais. A interpretagao que o autor faz da globalizagao contemporiinea volta-se para o entendimento desta dindmica como uma nova fase de um mesmo processo de produgdo capitalista do espago. Rechaga a face superficial da moda intelectual contemporinea, apoiada no movimento pés-modemo e num proceso de globalizagdo que se pretende onipotente homogeneizador. Dai a sua preocupagao em considerar a produgao do espago, um “aspecto fundamental ¢ intrinseco da dindmica da acumulaco do capital e da geopolitica da luta de classes , realgando a necessidade da importincia da Geografia, ao apontar 0 conceito de materialismo - histérico - geogrifico. Harvey se apéia no conceito “particularismo militante” de Williams, ao reconhecer a dimensio ¢ o fundamento geogrifico da luta de classes, condig&o essencial para admitir a existéncia de interesses coletivos, numa tentativa de se articular diferentes dimensdes de luta em diferentes escalas, de acordo com um projeto universal de socialismo, que garanta democracia e diversidade, num contexto de um desenvolvimento humano, “Apartar-nos de Marx é cortar nariz investigativo”, é permitir a incorporagio do conceito de globalizagiio de modo acritico, & render-se a0 utopismo degenerado do neoliberalismo e ao incrivel poder do capitalismo de mobilizar corpos miltiplos imaginérios visando sua auto-reproduso. A tentativa de contribuir para um projeto politico emancipatério, a partir de ideais utépicos é algo que esté subjacente em toda a sua argumentagdo A anélise que segue na Parte 2 refere-se & proposigdo do “corpo como medida de todas as coisas”, elemento fundamental naquilo que 0 autor chama de “corpo politico”. Trata-se de uma relagdo entre © modo de produ do espago-tempo com a produgdo do corpo, em que “diferentes processos (fisicos ¢ sociais) resultam tanto em termos materiais como representacionais na produgao de diferentes tipos de corpos”. A recorréncia a Léfébvre ¢ Foucault & vista como possibilidades de contestagao a uma visto mecanicista € absolutista por meio da qual o corpo & contido ¢ disciplinado, esbogando uma critica & produgdo do espago e do tempo cartesianos/newtonianos, inibidora das estratégias de emancipagdo humanas, que 0 autor nos sugere refletir. Apéia-se em Marx a partir de seu rico aparato conceitual para a compreenso de processos de produgo e ago corporal no Ambito do capitalismo, como pode ser verificado por meio da categoria “trabalho vivo", Espagos de Esperanga. HARVEY, D. (Resenha), pp. 172-175 174 indicativa de qualidades fundamentais de dinamismo e criatividade do trabalho, mas, também, da origem da vida e do poder subversivo para mudanga. A janela para a anilise do esforgo de reimaginar e reconstruir a estrutura social € colocada por Harvey na terceira parte do livro, Segundo o autor, ela & nutrida por meio de ideais utépicos, desde que apoiados no real, capazes de apontar trajetérias diferentes para os desenvolvimentos geogréficos desiguais humanos, em contraponto as imagens recorrentes do presente que, recorrendo-se a Levitas, nao identificam agentes nem proceso de mudanga: a utopia fica restrita aos dominios da fantasia, Harvey esboga 0 caminho percorrido pelos movimentos utépicos - 0 utopismo da forma espacial e o utopismo do proceso social - assim como seus limites e desafios para a construgdo de um utopismo espago-temporal que permita pensar 0 utopismo hoje ¢ a nossa condi enquanto “arquitetos rebeldes”, possiveis promotores de uma politica regeneradora, conscientes de suas capacidades, possibilidades e responsabilidades perante a natureza e a natureza humana. Essa proposta se apéia em reflexdes da teoria marxiana sobre o desenvolvimento do Estado burgués - 0 Estado como comité executivo da burguesia - em consonancia com processos atuais ¢ especificos de competigao capitalista, geradores de utopias degeneradas, referindo-se interpretagio de Marin; e a materializagio de uma utopia burguesa, apoiado em Fishman, ancorada em uma configuragio ideolégica avassaladora de forgas que nao concedem oposigao. Aqui, o conceito de heterotopia, desenvolvido por Hethemgton permite, segundo Harvey, avangar na compreensGo da heterogeneidade espacial ao possibilitar o estudo da histéria dos espagos nos quais a vida é vivenciada de modo distinto, espagos fomentadores de alternativas, embora, segundo 0 autor, ndo oferega pistas sobre um utopismo espago-temporal. Baseando-se no conceito de “direitos de imunidade” de Unger, segundo o qual podemos ser tanto criadores como violadores de regras com razodvel impunidade, sugere pensar 0 processo da emancipago social, mesmo com a ressalva da despreocupagio com a temitica espacial nas reflexdes desse autor. Reafirmando esta posigdo, 0 autor parte em seguida para a iltima parte do livro, A. idéia desses dltimos capitulos é, sobretudo, a da construgdo de possibilidades politicas numa variedade de escalas espago-temporais, produto da agio do que designa ser um “arquiteto rebelde”. A intengao do autor & nos provocar a pensar altemnativas, a pensarmos ¢ agirmos de outra maneira, a partir da construgdo de uma politica de coletividades, momento crucial da tradugdo do pessoal ¢ do politico num terreno mais amplo de ago humana, numa 175 _AGRARIA, Sao Paulo, N° 3, 2006 SILVA, A.E.R. perspectiva longa ¢ permanente de revolucdo. O que ele nos sugere & mudar de nivel, transcender as particularidades e chegar a alguma concepgdo de alternativa universal sobre compromissos pessoais ¢ projetos politicos, baseado no conceito de “interesse da espécie”.Trata-se de um esforgo espinhoso, pois envolve uma tradugo do conereto ao abstrato, a busca de um ponto de encontro ou terreno comum, nos colocando diante de questdes como pensar o direito universal a auto expanso, a expansdo da vida baseando-se nas colocagdes de Naess, Rothenberg, e mais que isso concebendo o desenvolvimento geogrifico desigual como um direito © nfo como uma necessidade capitalisticamente imposta, Como aponta, este livro de Harvey, traz nesse sentido, contribuigdes para pensar ¢ ler na produgdo do espago humano a produgdo de uma “geografia da esperang:

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