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AyPOSticg Charles Kiefer Porto Alegre, 2004 C i pe JULIO CorTAZAR LE Epcar ALLAN POE Charles Kiefer No FINAL DA DECADA DE 40, JorGE Luis BorcEs, entio se- cretario de redagio da Revista Anales de Buenos Aires, recebeu a visita de um jovem estranho, que lhe trazia um conto inédito, manwuscrito, para leitura. Além da insdlita altura do autor, impres- sionow-o a qualidade do relato. E assim, com a publicagio de “A casa tomada”, nascia o escritor Julio Cortazar, sobre cuja obra o mestre argentino diria, meio século depois, que “ninguém pode contar o argumento de um texto de Cortazar”, porque se “tentar- mos resumi-lo, verificaremos que algo precioso se perdeu”.56 Aquele rapaz, que sofria de uma doenga rara - nao parou de crescer até a sua morte em 1984 -, viriaa destacar-se, entre os escritores que também produziram poéticas sobre o conto, como um dos renovadores do género, por seus enredos quase inapreenstveis, por sua linguagem encaracolada, escorregadia, por suias ousadias sintaticas. Para Davi Arrigucci Jr., a admiravel arte do contista ja est4 toda em Bestidrio, publicado em 1951. O critico aponta a “perfeita naturalidade com que seu mundo cotidiano sofre a ruptura abrupta do fantastico”, “o gosto por animais in- sdlitos”, “as brechas insuspeitadas no cotidiano mais banal”.57 Volodia Teitelboim lembra a poética da esponja e do camaleao, referida pelo proprio Cortizar: “A esponja como figura da 36 In: Borges, Jorge Luis, Biblioteca personal: Prélogos. Madrig, Alianza, 1988, p. 10. 57 Arrigucci Jr, Davi. O escorpida encalacrada, Sho Paulo: Companhia das Letras, 1995.p.14. 55 1 Poética do Conto porosidade de uma realidade intersticial; 0 do camale3o como a figura da confusio e da alteridade, ligada épocas obscuras” 58 A poética do conto de Julio Cortazar é tomada, lenta e pro- gtessivamente, pela Presenca de Edgar Allan Poe, Em artigos, ensaios, prefacios, notas as tradugées, 0 escritor do Sul procurou desvendar os mecanismos de funcionamento da histéria curta, acrescentando novas formulagées tedricas Preceptisticas as j4 estabelecidas pelo autor do Norte. Segundo Jaime Alazraki, as “relagdes de Cortazar com a obra de Poe é tio Precoce quanto sua descoberta do fantistico, Remonta a sua infincia eA suspeita de que toda a crianga seja ‘essencialmente gotica’,59 Em A tha final, Corthzar afirma que sao “inegaveis os rastros deescritores como Poe nos niveis ‘mais profundos de muitos de meus Contos, ¢ creio que sem I seeia ou_A queda da casa de Usher eu nto teria sentido essa Predisposiga0 ao fantdstico que me assalta nos momen- tos mais inesperados e me impulsiona a escrever, apresentando-me Esse ato como a tinica forma possivel de ultrapassar certos limites e me instalar no territério do “outro”, Mas desde 0 comego algo me indicava que o caminho formal dessa outra realidade nfo se encon- tava nos recursos e truques literdrios dos quais a literatura fantastica tradicional depende Para seu tao celebrado parhay.”60 Cortazar traduziu, analisou, organizou antologias das obras de Poe, citou-o em seus Proprios textos, desenvolveu e ampliou 35 lm Los dos Borges — vida, sueitos, 30 In: Julio Cortizar: Obra Critica 2 61. ibid, p. 0. Charles Kiefer conceitos latentes em sua poética. Em 1956, publicou, pela Unie versidade de Porto Rico, a tradugao das Obras en a do bi bostoniano, em dois volumes, com uma antrodhieae biografica, A esse trabalho, anexou notas com comentarios sobre cada um dog contos. Classificou 0 conjunto em alguns grupos, a saber: 1. Contos de terror; 2. Contos do sobrenatural; 3. Contos do metafisico; 4, Contos analiticos; 5. Contos de antecipagao; 6. Contos de retrospeccao; 7. Contos de paisagem; 8. Contos do grotesco; 9. Contos satiricos. E importante destacar que a ordenacio dos relatos em gru pos tematicos, tais como a propée Cortazar, tem por base — carta de Poe, em que este afirmava que, embora escritos - a gos intervalos de tempo, sempre tivera em mente a unidade de um livro. Afirmava que cada um deles fora escrito tendo como objetivo “seu efeito como parte de um toda’ 61 a coma inteng3o de mostrar a “maxima diversidade de ta Pp samentos e, sobretudo, /om e apresentacdo”. Chegara a a antologia em que todos os seus contos estariam reunidos. “ oe. proprio leria o grande volume como se fosse “obra alheia”,6? col 57 a do Conto a certeza de que sua atencio seria despertada pela diversidade e variedade. Os principais trabalhos ensaisticos de Julio Cortazar sobre 9 criador do conto moderno sio “Vida de Edgar Allan Poe” ¢ “Poe: o poeta, o narrador e 0 critico”, escritos como introdugdes a antologias de contos traduzidos por ele. Os outros ensaios, “Al guns aspectos do conto” e “Do conto breve e seus arredores”, sofrem visivel influéncia das idéias do autor da “Filosofia da com- posicio”. “Vida de Edgar Allan Poe”, escrito em 1956, segue as li- nihas gerais da biografia de Harvey Allen, org, the life and times of Edgar Allan Poe. Divide-se em “Infancia”, “Adolescéncia”, “Ju- Maturidade” e “Final”. Cortazar elaborou fichas para cada um dos contos da antologia, destacando o titulo original, o ventude” local, a data e a ordem cronoldgica de publicacio. A rigor, nao interessa, aos propdésitos de nossa investiga- Gao, o exame da vida dos autores, No entanto, alguns comenté- rios de Cortazar iluminam aspectos da poética de Poe, o que bas- ta para que os observemos com maior cuidado. Embora nascido no Norte, Edgar Allan Poe cresceu no Sul. Isto, para o autor de Bestidrzo, é importante j que “muitas de suas criticas 4 democracia, ao progresso, 4 crenca na perfectibilidade dos povos nasceu do fato de ser um Canalfeiro do Sul, com arraigados habitos mentais e morais moldados pela vida virginiana”. Para Cortazar, muito da tematica de Poe tem origem no fato de ter cresci- do numa regiio em que as amasdeleite negras eram comuns. O menino Poe passou a sua infincia e adolescéncia junto a criados es- 58 Charles Kiefer cravos, ouvindo-os contar histérias de assombrag6es, de mortos-vi- vos, Esse “repertério sobrenatural” da comunidade negra influiu pro- fundamente na imaginacio do autor de “O barrilde Amontilhado”.6 A esses fatores da cultura oral, tipica das sociedades agrarias, devem acrescentar-se outros, da cultura livresca. O pai adotivo de Poe, comerciante escocés emigrado para Richmond, entre outras atividades, vendia revistas européias. No escritério de Ellis & Allan, o menino Edgar entrou em contato com um mundo erudito e pe- dante, gdtico e novelesco, no qual os restos de “engenhosidade do século XVII se misturavam como romantismo em plena eclosio”. Johnson, Addison e Pope preparavam a emergéncia de Byron e de Wordsworth. Enquanto isso, Poe lia com avidez romances e contos de terror. Aos quatro ou cinco anos, declamava extensas composi- ges poéticas as amigas da mie, na hora do cha. Para Cortazar, contudo, a obsessio pela escansio e magia ritmica viria de sua manny, aama-de-leite negra. Os ritmos da gente de cor aparecem em O cores, Wehtin:/Annabel Tre, Todo oat. matinkd” queci¥culd etnsua literatura - as imagens de Arthur Gordon Pym e 0 redemoinho do Maelstrém -, fora trazido pelos capitaes de veleiros que freqiienta~ vam 0 escritério do pai. Mais tarde, uma viagem a Inglaterra e a Escécia daria ao futuro escritor o “prestigio das singraduras, os creptisculos em alto-mar, a fosforescéncia das noites atlanticas”. Desse periodo em Irvine e Londres, de suas lembrangas escolares entre 1816 e 1820, nasceria o “estranho e misterioso cenario inicial de William Wilson”. 59 A Paética do Conto A adolescéncia é 0 tempo dos amores impossiveis, matriz, talvez, do amor eternamente irrealizado dos contos de Bos if lel, senhora Stanard na vida real e mie de um colega seu, éa pti ra mulher” por quem Edgar Allan Poe iria se apaixonar “saberdo que era um ideal, apenas um ideal”, e pela qual “se apaixonava porque era esse ideal e nao meramente uma mulher ‘conquistavel”.64 Mais tarde, na Universidade fundada por ‘Thomas eifersel Poe mergulhara numa vida desregrada. Jogava, perdia quase i Havelmente, e bebia. Cortazar faz uma analogia entre Poe e Pishkiny 0 grande romintico russo, dipsSmano também.65 Ao contraito deste, sobre Poe 0 alcool tem um efeito evicted misteniose e terrivel. A tinica explicacio para cial hipersensibilidade seriam as “taras hereditarias”. Poe, 0 “feixe d nervos 4 flor da pele”, intoxicava-se com um tinico ccna der : Antes da depressio, transformava-se num conversador brilhante, um génio momentineo. Nio so poucos os contos em que me estado de hiperlucidez, se manifesta. A gueda da casa de Usher talvez seja o mais emblematico, Além do estado de intoxicagio de Roderick Usher, sua profunda depressio, os elementos di “ descritos, tanto os da natureza, no exterior, quanto . lo mobiliario, no interior da mansio, esto vazados de estranhae So. uli i nambrlica melancolia, que os exegetas identificam como um quadro delirante produzido pelo uso do Opio. 4 Id. ibid. p. 278. 65 Ateksa io livro, € a eriagdo de um editor, A, P, que comenta et rsh nscreve uma carta d toned esr : obras forma da boc, cl éculo depois, recuperaria o método. nee Suposto amigo de Bi pode-se dizer que P eslava. Jorge Luis Borges, 6 Charles Kiefer No seu periodo académico, Poe estuda “histéria antiga, his- toria natural, livros de matemitica, de astronomia”. Sua paixiio pelo cdlculo e pela circunvolugio das estrelas encontrara nos con- tos de raciocinio e de aventura campo fértil para desenvolvimen- to. Dividas de jogo levam-no a abandonar os estudos ¢ a retornar para casa. No entanto, as brigas com o padrasto forcam-no a partir para Boston, onde inicia carreira literaria, com a publicacao de ‘Tamerldo ¢ outros poemas, em maio de 1827. A miséria absoluta a que se viu submetido obrigou-o aalistar-se como soldado raso no Forte Moultrie, na Carolina. Da experiéncia, e do cenario pitores- co, reuniu material para a composigio de um de seus melhores contos analiticos, “O escaravelho de ouro”, que se transfor maria na matrizestrutural e ideolégica da literatura policial moderna, de enredos misteriosos, detetives intelectualizados e auxiliares-nar- radores. Sobre periodo de juventude, Cortazar descreve Poe guinda- do A posigao de sargento, depois de prestar bons servigos ao exército como soldado raso, O “tédio insuportavel daquela mediocre compa- nhia humana” leva-o a reatar relagdes com o padrasto, a quem pede ajuda para ingressar em West Point. Nesse meio-tempo, sua mie adotiva morte, sem que ele participe do velério. Apés a entrada na Academia de West Point, aproximou-se de sua familia verdadeira. Tenta, em vao, publicar E/ Aaraaf, um longo poema. Para Cortazar, esse momento é crucial na sua vida, pois lhe da um pouco de estabilidade para escrever. Poe é acolhi- do pela tia Maria Clemm. Passa a viver com ela, a avé paterna, 0 irmo mais velho, os sobrinhos Henry e Virginia. Gragas ao sotio 61 que compartilhou com o irmio tuberculoso, az, € esti 6 i P: abelecer relacées com editores e eriticos, A vida de caser- na, por outre é" Pp © lado, é “vulgar, tosca, carente ad nauseam de imagi- nacao e capacidade criadora”.66 Diante desse quadro, isola-se ¢ estuda Coleridge, mas nao conse le suportar o ambient te 7 ge, ‘gue suportar o ‘e militar. caba por provocar a prépria ex ulsaO, Lantos sA0 Os seus atrasos Propi a 4 € as suas desobediéncias. Apesar disso, com a ajuda de um coro nel, con: inanci » Consegue que os alunos financiem seu novo livr : ‘ode Israfél, a Helena ¢ Leonore. onl Em fevereiro de 1831, rompecom o padrasto, . i ‘ definitivamente, arte, entao, no dia 19, para Nova York, “envolto na capa de cadete que 0 acompanhou até o fim de seus dias”. - Faminto e angusti i ge) angustiado, pensa alistar-se no Exército da Polénia ; 5 em guerra contra a Riissi: za tissia, Le acaba voltando para a casa de Maria Clemm, Depois da morte lo irmio, i “ oa , consegue instalar-se e “trabalhar com relativa comodida- € 110 desvao que compartilhava com o doente”. oy . Dedica- ver histérias curtas, nA tee pening e que além disso interessam- a ‘ario. Percebe que, poétics pode criar uma atmosfera especialissii nao confundir conto com poema, m0 conto, seu talento ima, subjugante. E 6 ou conto com fragmento d. : 2 le TO- mance. Para Cortazar, ‘Metzengerstein Publicada por Poe, ja tem “todas as qu: mais tarde chegariam 4 perfeicga0”. » a primeira historia curta alidades que alguns anos 7 Na casa da tia, Poe comportou-se sobriamente, ajudando-a ito quanto possivel, Esse periodo, entre 1831 € 1832 sel lou de- 66 1d. Ibid. p. 285. pode escrever em Charles Kiefer finitivamente a sua carreira de escritor. Em abril de 1833, com “Manuscrito encontrado numa garrafa”, venceu um concurso de contos do Baltimore Saturday Visiter. A publicagio rendeu-lhe os primeiros admiradores e cingiienta délares. Em 1835, publicou “Berenice”, na revista Savthern Literary Messenger, de Richmond. Um pouco mais tarde, regressou a essa cidade virginiana e assu- miu seu primeiro emprego estavel, na redacio da revista. A sau- dade da mulher, que permanecera em Richmond, ¢ a companhia de amigos que também bebiam, fez com que mergulhasse, outra vez, no seu Maelstrém particular. Perdeu o emprego. A conselho do diretor de Messenger, buscou a familia. Reassumiu 0 posto na revista. Comegou a fazer fama com suas “resenhas criticas, Aci- das, instigantes, muitas vezes arbitrarias e injustas, mas sempre cheias de talento”. A revista publicou, em forma de folhetim, Narragio de Arthur Gordon Pym&7 Nos meses em que trabalhou na redagao, a tiragem da revista octuplicou. Poe retornou as bebe- deiras e acabou perdendo o emprego outra vez. Partiu para Nova York. Desempregado, instalou-se numa precaria penséo com a familia. Aproyeitou a ociosidade para escrever uma nova série de contos. A grande depressio econémica do governo Jackson obri- gou-o a migrar mais uma vez. Refugiou-se na Filadélfia, entao o principal centro editorial e literario dos Estados Unidos. Em 1831, suas dificuldades financeiras eram tantas que envolveu-se num lamentivel episddio de plagio. Justo ele, o agressivo denunciador 1 Poética do Conto de outros plagiérios, Publicou, como sendo seu, refundido, um livro inglés sobre conquiliologia, Para Cortézar, a publicag%o do conto “Ligéia”, em 1838, marca © inicio da maturidade artistica de Poe. No ano seguinte, hasceria outro, ainda mais extraordinario, “A queda da casa de Usher”, em que “os elementos autobiograficos proliferam e sio facilmente discerntveis, mas no qual, sobretudo, revela-se — de- pois do antincio em “Berenice” e da explosio terrivel em “Liggia” ~ 0 lado anormalmente sddico e necrofilico do génio de Poe, as- sim como a Presenga do épio.68 Torna-se assessor literdrio da Burton ‘r Magazine, colocando- a “A frente das outras em termos de originalidade e auddcia”, Em 1839, retine as histérias publicadas em jornais e revistas no volu- me Tales of the grotesque and arabesque. A Burton's Magazine funde-se com a Grahams Magazine e Poe consegue uma posi¢3o mais van- tajosa. Com seu talento editorial, faz a revista passar de cinco mil assinaturas para mais de quarenta mil, em apenas quatorze meses, Deixa a revista e atravessa uma “€poca brilhantissima”, Em janeiro de 1842, uma hemoptise revelou a seriedade do estado de satide da esposa, langando Poe em profundo desespero. Conforme Cortazar, esta “foia tragédia mais terrivel de sua vida. Sentiu-a morrendo, sentiu-a perdida e sentiu-se perdido tam- bém. De que forgas horrendas ele se defendia ao lado de “Sis”? A partir desse momento, seus tracos anor mais come¢am a mostrar- se abertamente. Bebeu, com os resultados conhecidos. Seu cora- 8 ld, ibid. p. 295. Charles Kiefer cdo falhava, ingeria alcool para estimular-se e o resto era um in- e jurava dias.”6? - pain ambiente carregado, o estribilho de Ko cao Come) cou a persegui-lo. “Pouco a pouco, o poema mares rae — sujeito a mil revisdes”. Em 1844, alteenand periodos a : - delirio, retorna a Nova York, com Virginia gente ali H Ee do Balio” e faz um grande sucesso. Seu relato é Le vecnsstial que uma multidio reune-se para saudar a chegada do fee etic et lado por ingleses, que teria acabado de cruzan ee De ae varanda, Poe contempla a cena com um. spurts oa Seu poder narrativo era capaz de subjugar multiddes. Conseguiu, com o dinheiro de seu labor jornalistico, alugar uma casa de campo, em Bloomingdale. Foi um pequeno paraiso na vida do casal. ae Segundo Cortazar, “ali havia ar puro, pradarias, alimen em abundancia e até mesmo alegria. (...) Edgar jeomesou Pesci: ver regularmente e os contos e os artigos se sucediam e & ~ mo eram publicados rapidament, porque bastava 0 nome do ns autor para interessar os leitores de todo o Pals. oS ee prematuro’, mistura de conto e crénica, foi Seoul no /pesisiig céu’ de Bloomingdale e prova a invariavel aeabivaléncia da i de Poe; é um de seus relatos mais mérbidos e ana cheio de uma doentia fascinacio pelos horrores do timulo 3 Naquele verao, “O corvo” mecehe uma nova versio, quase definitiva, mas que sofreria ainda infinitos retoques. O —_ chegou, e Poe retornou a Nova York, onde passou a trabalhar ©9 I, ibid. p. 297. 65 Al Poética do Conto Evening Mirror, recém-inaugurado. Em 1845, afastou-se deste jor nal e ingressou no Broadvay Journal. Publicou “O corvo” e trans: formou-se no “homem do momento”, Segundo Cortazar, 0 poe- ma teria abalado os circulos literdrios ¢ todas as camadas sociais a um “a um ponto que atualmente é dificil imaginar.” O contista argentino prossegue: “A misteriosa magia do poema, seu apelo obscuro, o nome do autor, satanicamente aureolado por uma “legenda negra”, uniram-se para fazer de O corvo a propria imagem do romantismo na América do Norte e uma das mais memoraveis instancias da poesia de todos os tem- pos. As portas dos salées literarios abriram-se imediatamente para © contistae poeta. O publico comparecia a suas conferéncias com © desejo de ouvi-lo recitar O convo experiéncia inesquecivel para muitos ouvintes e da qual ha testemunhos inequivocos,”71 No auge da fama, 0 4lcool ressurgiu na sua vida. No final de 1845, 0 Broadway Journal deixou de circular, e 0 escritor vé-se, mais uma vez, desempregado, Durante 0 ano seguinte, freqiien- tou as rodas literarias de Nova York, Depois, como que enfarado daquela vida artificial, passou a publicar criticas contundentes sobre aobra dos escritores da moda, no Godey + Lady ’s Book. Uma série de mais de trinta resenhas, “quase todas implacaveis, que provo- cou uma comogio terrivel, réplicas furibundas, édios e admira- ges igualmente exageradas”, Em 1846, escreveu “Annabel Lee”, um canto de amor 4 esposa moribunda. No cortejo fiinebre, em janeiro do ano se- Charles Kiefer guinte, uso a velha capa de cadete militar, at forao ee aga- salho na cama de Virginia, e que ele usaria até al propria mor- te. Depois disso, sua vida ingressou num turbilhio paolo bebedeiras, idealizagées amorosas e nenhuma produgio literaria. Morreu as trés da madrugada do dia 7 de outubro de 1849, sozinho. © segundo ensaio de Julio Cortazar, fPoe: ° poeta, ° narrador e 0 critico”, é considerado por Davi steel nea junto com “A urna grega na poesia de John Keats”, ain mee 0 de cunho académico, por apoiar-se num. ee S HE so. Nele, Cortazar observa que ha duas cendee gerais da a ca norte-americana sobre o escritor bostoniano. Uma, gua mete a obra “ds circunstancias de carater pessoal e Se que puderam condicioné-la”; e outra, ais ‘traduz uma certa de preciagio da poesia ¢ da literatura de Poe 72 - Entre os dois caminhos que se bitarea - odo caso clinico e oda simples série de textos literarios -, Cortazar eee: eae quase metafisico, que se coaduna melhor com sua propria visa de literatura: “HA em nés uma presenga obscura de Poe, uma laténcia de Poe. Todos nés, em algum lugar de nossa pessoa, a mos ele, e ele foi um dos grandes porta-vozes do homem, aque le que anuncia o seu tempo noite adentro. Por isso sua obra, atingin- do dimensdes extratemporais, as dimensdes da natureza humana profunda do homem sem disfarces, é tio profundamente tempo- Al Poética do Conto rala ponto de viver num continuo presente, tanto nas vitrinas das livrarias como nas imagens dos pesadelos, na maldade humana e também na busca de certos ideais ede certos sonhos,73 Cortazar situa o ambiente em que Poe vivia, compadecen- do-se de sua pouca sorte, pois “A sua aristocracia intelectual teria sido conveniente um meio de alta cultura”. A industrializacio eo Progresso mecinico destrufam o antigo mundo pastoril e ingé- nuo; a guerra civil entre abolicionistas ¢ escravistas principiava; a literatura, em descompasso coma modernidade emergente, agar- rava-se as “elegancias retéricas”; Poe, provinciano da Virginia, sentia-se “inc6modo e fora de mio” em grandes cidades como Nova lorque, Baltimore, Filadélfia. Enquanto os intelectuais de Boston elaboravam uma filosofia transcendentalista sem “maior originalidade”, 0 mesmerismo, o espiritismo e a telepatia faziam “bons negécios nos salées das senhoras inclinadas a buscar no além o que nao viam a dois passos no aquém”,7+ Cortazar imagina seu companheiro de offcio diante de uma pagina em branco, num dia qualquer de 1843: “Que inevitaveis fatores pessoais vio desembocar nesse novo conto, e que ele- mentos exteriores se incorporar‘io A sua trama? Qual é 0 proces- So, 0 silencioso ciclone do ato liter4rio, Cujo vortice esta na pena que Poe apdia neste instante sobre a pagina? Era um homem que amava seu gato, até que um dia comegou a odié-lo e lhe arrancou um olho... O monstruoso esta de imediato ai, presente e inequi- voco. A nogio de normalidade se destaca com violéncia da totali- 7 Op. cit, p. 104, 74 Op.eit. p. 105, Charles Kiefer dade de elementos que integram sua obra, se) porsias eel am. tos. (...) Mas nada, diurno ou noturno, tl ou infeliz, é nor! } no sentido corrente que aplicamos mesmo as aormalicags atl: gares que nos rodeiam e nos dominam e que ja quase nfsleonst deramos como tais. O anormal, em Poe, pertence sempre a gran- de espécie.”75 Do ponto de vista dos recursos eomposicianais, essa nea ca de apresentar 0 monstruoso de chofre, presente ednequtyo co”, corresponde, na pratica, 4 sua teoria do isito petal a atencdo do leitor. Para suportara realidade, sprecania, ins ficiente e falsa”, 0 caranguejo ermitio, o orgulhoso refugiado itn wi col de violéncia luciferina”, que s6 se abre diante do carinho e do cuidado das mulheres, refugia-se na literatura, sem prestar aten- ciio aos outros. Cortazar justifica esse egotismo cabal de Poe. i que sé consigo mesmo ele dignava-se a falar. Sem imag transformou o espaco nas revistas e nos jornais em eau, end le era “um ‘pequeno deus’, mitido arbitro num mundo arise miu- do”. Compensagio que talvez o acalmasse, mas que nao foi capaz de salva-lo da loucura. Campa ; Oescritor argentino encontra uma explicacio psicologizante parao que acritica, especialmente nos EUA, sempre apontou - o maior defeito do contista de Boston. Por causa desse orgulho e egotismo, Poe nfo teria sido capaz de compreeuden ° on se “aproximar dos outros”, de “medir a dimensao lhe dec ; uma “sé personagem com vida interior.” Segundo Cortazar, 0 ro 75 Op. cit. p. 107-8. 69 | Poétiow do Conta mance psicoldgi i © psicoldgico o teria desconcertado, No en © especialmente nas tiltimas décadas - ador do romance poli criticos Pp, aa ara Cortazar, 60 mundo oniric tivas de contos; Personagens e os acontecimentos do pl verbal; mas ele no se di ao nislids explora-los, de descobrir as molas que uma explicac&o dos modos de agir que sos see cre que a antipatia dos ing]. : Pelo trabalho de Poe advenha de sua i lumor. Quando o tenta, mesma forma que L 76 Nao se pode esi op ia 7 Op. cit. p, 110, Poe: cer que Dosti, co contos de Poe p ad ici : ie ; ictal e da novela de ficg&o cientifica, lor também do romance Psicc ! “Os pesadelos organiz: basta vé-los para sentir 0 hor: se explica, que nasce tio sé da Presenga, oo condena ou a que eles conderiardo poe diretamente em comunicag3o 0 mu: ° : palco das narrativas de Poe nao faz ny oe Para o macabro ou o grotesco, Da aici ode di | nae -Mucia Santaella péde dizer que a literatura f, criou, borgianamente, Ed. ie, , All sor, pode-se dizer que o atual Pp oe re | tab] violéncia cria-o como seu idedlog. 1c consumidor da estética da 0, ; Para o autor de Bestiario, este egotismo precisa dominar com suas tanto, para outri , além de ser o ¢ Poe seri ‘oldgico.76 © que impulsiona as narra am seres como os dos se Tor, mas éum horror gue ni da fatalidade a que a acio a acio. E a escotilha que indo do inconsciente com mais que transmudar og ano sonhado ao plano de olhi-los a fundo, de os impelem ou de tentar Os caracterizam,”77 eses e norte-america- incapacidade de fazer ‘fraco cheio de orgulho e armas, intelectualmente”, 0 > n dos cridares do ro Charles Kiefer meio social que lhe é hostil. Por isso, desde cedo organizou um “sistema de notas, de fichas, onde, no decorrer de suas leituras variadissimas e indisciplinadas, vai registrando frases, opinides, enfoques heterodoxos ou pitorescos.” Nas revistas inglesas, teria aprendido um pouco de “francés, latim e grego, hebraico, italia- no, espanhol e alemio”.78 Assim, em cada pagina de critica ou de ficgfo de Poe, aparece “uma cultura vastissima, particular, com tons de mistério e vishumbres de iniciagio esotérica”, sem que haja, no entanto, uma organizagio sistematicae orgdnica desses dados. Poe, que defendeu a informacio contra a dissertagio, intuia o poder da imagem. Parecer sabio, profundo e muito ilustrado, no novo mundo em construgio, é tio importante quanto ser. A maneira de Borges, quando lhe é necessario, inventa autores, obras e cita- ces, Transformar falsas referéncias bibliograficas em elementos constitutivos do préprio fazer literario é mais uma das invengdes do escritor norte-americano, proceso que Borges transformaria em uma das fungSes dominantes de seu estilo. No cerne da teoria do efeito, na submissio da vontade do leitor ao autor durante o periodo de leitura, Cortazar encontra a justificativa para a sua teoria do egotismo poeano: “Poe escrevera seus contos para dominar, para submeter 0 leitor no plano imagi- nativo ¢ espiritual. Seu egotismo e seu orgulho encontrarao no prestigio especial das narrativas curtas, quando escritas como as suas, instrumentos de dominio que raras vezes podia alcangar pessoalmente sobre seus contemporaneos.”7? Bop. 79 Op. cit. p. 121 Al Poétiva do Conto Cortézar tevela o calcanhar-de-aquiles do miétodo de Poe ae eubordinay 0s incidentes a intengio de obter um efeito inico: Na pratica, ocorrer4 com quase todos os contos de Poe o ri mo ave) com 0s poemas, isto é, 0 efeito obtido depende, emsuma, de episédios ou de atmosferas que escapam originariamente a oa dominio, o qual 86 se impée a posterior’. Mas certas narrativas ~ as de puro raciocinio, Por exemplo ~ aparecem mais bem subordi- nadas a esta técnica Pragmiatica que devia satisfazer profunda- mente 0 orgulho de seu autor.”80 / Cortazar aponta como importante na teoria de Poe “a li- quidacio de todo Propésito estético do conto” e a coeréncia de sua obra neste sentido, j4 que; como se pode ver “pela leitura de seus contos completos”, nao ha “ siderado nascido de um impuls tos de Wilde, de Henri de Régnier, de Rémy de Gourmont, de Gabriel Mird, de Dario. Eo tinico que toca neste campo no lind verbal, no seu ritmo de Poema em prosa ~ aludimos a a om tem como subtitulos za fibula? um SO conto que possa ser con- ‘© meramente estético ~ como tan- . Para ° contista argentino, Poe teve uma perfeita compreen- -° dos Principtos que regem o género: “As suas observagdes tebricas Se agregam as que podemos deduzir da sua obra, e que Sao, como sempre, as verdadeiramente importantes, Poe perce- beu, antes de todos, 0 rigor que exige o conto como género, e que as diferengas deste com rela¢do ao romance no eram sé u: ma ques- ¢ 40 de tamanho. (...) Compreendeu que a eficdcia de um conto 40.Op cit, p. Charles Kiefer depende da sua infensidade como acontecimento puro, isto é, que toe comentario ao acontecimento em si (¢ que em forma de descri- g6es preparatérias, didlogos marginais, consideracdes a posteriori alimentam 0 corpo de um romance e de um conto ruim) deve ser radicalmente suprimido. Cada palavra deve confluir, concorrer para o acontecimento, para a coisa que ocorre € esta coisa que ocorre deve ser sd acontecimento e nio alegoria (como em muitos con- tos de Hawthorne, por exemplo) ou pretexto para generalizagSes psicolégicas, éticas ou didaticas. Um conto € uma verdadeira ma- quina literaria de criar interesse.”81 Para Cortizar, 0 ctitério da intensidade é, no fundo, o “cri- tério da economia, de estrutura funcional. No conto vai ocorrer algo, e esse algo sera intenso. Todo rodeio é desnecess4rio Sempre que nfo seja um falso rodeio, ou seja, uma aparente digressio por meio da qual 0 contista nos agarra desde a primeira frase e nos predispée para recebermos em cheio o impacto do acontecimen- to.”82 A “propriedade magnética dos grandes contos” ~ 0 ambi- ente - é trabalhada por Edgar Allan Poe com perfeicio, pois ele tem a aptidio de “nos introduzir num conto como se entra numa casa, sentindo imediatamente as miltiplas influéncias de suas for- mas, cores, méveis, janelas, objetos, sons e cheiros”. Essa aptidao nasce da sua concepgio de economia narrativa: “A economia nao éali somente uma questio de tema, de ajustar o episodio ao seu miolo, mas de fazé-lo coincidir com a sua expresso verbal, ajus- 81 Op, cit, p. 122. 82 Op. cit, p. 124, Al Poética do Conto tando-a ao mesmo tempo Para que nao ultrapasse os seus limites, Poe Procura fazer com que o que ele diz seja presenca da coisa dita e nfo discurso sobre a coisa. (...) Para ele, um ambiente nao constitu como que um halo do que acontece, mas forma corpo com o proprio acontecimento e, 3s vezes, é 0 acontecimento,”83 Entre os recursos técnicos empregados por Edgar Allan Poe na composigio de suas obras, Julio Cortizar indica ainda a sua capacidade de fazer 0 “desenvolvimento tematico” repetir-se na moldura tonal, no cenario, e a “perfeita coeréncia” que ele consegue entre duracio e intensidade, Com isso, finaliza o exame dos aspectos doutrinarios da pottica do escritor norte-america- no, para ele secundarios, e passa para o “terreno muito mais am- plo e complexo”, onde se encontram “os elementos profundos” que dio aos contos de Poe “sua inconfundivel tonalidade, resso- nancia e prestigio”: as obsessSes inconscientes, Para Cortazar, o material inconsciente se “impée irresisti- velmente a Poe e /pe dé 0 conto”, sob a forma de “sonhos, alucina- g6es, idéias obsessivas”. O dlcool eo 6pio, ao mesmo tempo que colaboram nairrup¢ao no plano consciente desse material incons- ciente, ajudam o escritor a iludir-se ¢ a pensar que tudo é fruto de “achados imaginativos, produtos da idealidade ou faculdade cria- dora”. As obsessées fundamentais que assolam o espirito de Poe ~necrofilia, sadismo e desforra da inferioridade social - apare- 8 9 Op. cit, p. 125. Da forma como Cortizareoloea a questo, © anbi ‘aimosfera, de Telvecov. A rigor, slo diferentes. E exer us ie 0 diferentes. E exercem dite coy, adve ios do texto, O. 74 Char Kiefer cem nos seus contos “refletindo-se umas nas outras, contradizen- do-se aparentemente e dando quase sempre uma impressio de ‘fantasia’ e ‘imaginacdo’ marcadas por uma tendéncia aos tracos grossos, as descricdes macabras”, com que o ptiblico da época estava acostumado. Para Cortazar, somente hoje em dia, com 0 devido distanciamento do modelo gético, podemos julgar o que, em Poe, é fruto da criagao e o que é fruto da imposigao técnica. Cortazar recusa, parcialmente, a tese de Krutch - de que a mania analitica de Poe no seja sendo “o reconhecimento tacito de sua neurose, uma superestrutura destinada a comenta-la num plano aparentemente livre de toda influéncia inconsciente” -, ao indagar se basta a neurose para “explicar 0 efeito desses relatos sobre o leitor, a existéncia deles como literatura valida. Os neuré- ticos capazes de refletir sobre suas obsessdes sao legido, mas ndo escrevem O honem da multidéo nem O deménio da perversidade.” De- pois de admitir que neuréticos possam produzir fragmentos poé- ticos, recusa-se a crer que possam escrever contos: “Ja é tempo de dizer com certa énfase aos clinicos de Poe, que se este nao pode fugir das obsessdes, que se manifestam em todos os planos dos seus contos, mesmo nos que ele julga mais independentes e mais pro- prios da sua consciéncia pura, nao é menos certo que possui a liberdade mais extraordindria que se possa dar a um homem: ade encaminhar, dirigir, enformar conscientemente as forcas desata- das do seu inconsciente. Em vez de ceder a elas no plano expres- sivo, as situa, hierarquiza, ordena; aproveita-as, converte-as em literatura, distingue-as do documento psiquiatrico. E isto salva o conto, cria-o como conto, ¢ prova que o génio de Poe nao tem, em tltima andlise, nada que ver com a neurose, que nao é 0 “ge 75 Al Poética do Conto nio enfermo” como foi chamado, e que, pelo contrario, seu génio goza de espléndida satide, a Ponto de ser o médico, 0 guardiao eo Psicopompo da sua alma enferma.”84 Cortazar reprova em Poe ~como Edmund Wilson - 0 “vo- cabulirio enfatico”, influéncia direta da leitura de romances negros de autores como Charles Brockden Brown, autor de Wielande de narrativas onde aparecem também “sondmbulos, ventriloquos, loucos e seres fronteirigos”. Os personagens de Poe “levam ao limite a tendéncia noturna, melancdlica, rebelde e marginal dos grandes herdis inventados pelo romantismo alemio, francés e in- glés; com a diferenca de que estes agem por razGes morais ou Passionais que carecem de todo interesse para Poe. A influéncia precoce de Byron na sua formacio niio se discute, e é evidente que os romances ‘géticos’ alemies e ingleses, a poesia noturna francesa e germinica, deixaram marcas num temperamento avi- damente disposto a compartilhar essa atitude romantica cheia de contradi¢ées, na qual, porém, as notas dominantes so 0 cultivo da solidao por inadaptagao e a busca de absolutos, Sea isto se soma o isola- mento precoce de Poe de toda comunicagio auténtica com os homens, seu continuo e exasperante choque com o mundo dos “deménios’, e seu refigio facil no dos ‘anjos’ encarnados, no serA dificil explicar esta total falta de interesse e capacidade para mos- tar caracteres normais, que é substitufda por um mundo especial de comportamentos obsessivos, nados.”85 , de monomanias, de seres conde- id p. 128-9, 851d, ibid. p. 131, Charles Kiefer Para Edgar Allan Poe “nio ha beleza rara sem algo de ae nho nas proporgées”, conceito que ele foi buscar em Haga NEG) surpreende, pois, que sua obra seja “um afastamento de todo c4non, de todo denominador comum”, Cortazar aponta ainda ay sats traco que torna diferentes os personagens de Poe, a eee le uma sexualidade normal: “Nao é que os personagens nado amem, pois com freqiiéncia o drama nasce da paixdo amorces Mas - paixZo nfo é um amor dentro da dimens§o erética poten pelo contrario, situa-se nos planos de angelismo ou peaniaue) assume os tracos prdprios do sadico, do masoquista e do wench esca- moteia todo processo natural, substituindo-o por a paixdo que oherdié o primeiro a nao saber como qualificar — suelo mH cala, como Usher, aterrado pelo peso da culpa ou da obsessio.”86 ie Cortazar conclui 0 ensaio lembrando que Poe prescingty da dimensio humana em seus contos, pode enor ano Piso) a pai- xo, os conflitos do carter e da ago porque “seu proprio ion é tao variado e tao intenso, tao assombrosamente adequado aes- trutura do conto como género literario, que cabe afirmar paralley xalmente que, se ele tivesse jingido todas as stay incapacidaaes) teria agido em legitima defesa da sua obra, satisfatoriamente i lizada em sua propria dimensio e com recursos apenas a lo fundo, seus inimigos de ontem e de hoje sio os inimigos da - tura de ficcdo (e que bem se aplica o termo aos contos de Poel), plenamente, 7 Al Poética do Conto ‘ A palestra “Alguns aspectos do conto”, My Cortazar em Cuba, em 1963, forma, segundo Jaime Alazr: uma verdadeira pottica cortazariana do género breve”.88 F, pumeiro lugar, o contista argentino define sua isto é, dentro de um mundo regido cartografadas”,89 Reconhece a sua particular preferéncia por tudo o que é excepci i “ ‘ peional em literatura, quer se trate dos temas ou mesmo das crt expressivas”. Embora isso explique a sua visdo de mundo, nao é suficiente para definir o géner Soe . Ele préprio tem certeza da exist€ncia de “certas constantes, certos valores que se aplicam a todos 9s contos, fantasticos ou realistas, dramaticos ou humoris- ticos”, Tratard, pois, de examinar tais elementos, Diante da “importincia excepcional” que os paises de lin- gua espanhola dao ao conto, diante da “enorme quantidade de contos do passado e do Presente” produzidos em tais Paises, é possivel “fazer um balango, tentar uma aproximacio aptichdoad a esse género de tio dificil definigko, tao esquivo nos seus multi- losers ni Plos € antagénicos aspectos, e, em ultima anilise, tio secreto e Prologo & Julio Cortizar: Obya Critica, 2. Rio de Ja Valise de Crondpia. $30 Paulo: ie spective, 1984. p, 148, aco Brasileira, 1999. p. 11, 7B répria a como sendo do género fantastico, “por falta de os ne lhor”, e quese opée ao “falso realismo que consiste em crer que todas as coisas podem ser descritas e explicadas como dava or assentado 0 otimismo filosdfico ¢ cientffico do século xvi ; mais ou menos harmoniosa- mente por um sistema de leis, de principios, de relaces de cau- sa e efeito, de psicologias definidas, de geografias bem Charles Kiefer Itado para si mesmo, caracol da linguagem, irmao misterioso |i poesia em outra dimensdo do tempo literario.”9° Como Poe, Cortazar examina a nocio de tamanho, para estabelecer a diferenga entre romance e conto. Aquele, diz 0 es- eritor, “se desenvolve no papel e, portanto, no tempo de leitura, sem outros limites que o esgotamento da matéria romanceada”. O conto, por seu turno, “parte da nogo de limite e, em primeiro lugar, de limite fisico, de tal modo que, na Franca, quando um conto ultrapassa as vinte paginas, toma ja o nome de monvelle, g8- nero a cavaleiro entre 0 conto eo romance propriamente dito”. A. analogia entre cinema/ fotografia e romance/conto é automatica. Filme e romance sao ordens abertas. Fotografia e conto, por opo- Sigdo, sao ordens fechadas, em que ha “limitacdo prévia” imposta tanto pelo narrador quanto pelo tema. Segundo Cortazar, grandes fotégrafos definem “sua arte como um aparente paradoxo: o de recortar um fragmento da rea- lidade, fixando-lhe determinados limites, mas de tal modo que esse recorte atue como uma explosao que abra de par em par uma realidade muito mais ampla, como uma visio dindmica que trans- cende espiritualmente o campo abrangido pela camara. Enquan- to no cinema, como no romance, a captagao dessa realidade mais ampla e multiforme é alcangada mediante 0 desenvolvimento de elementos parciais, acumulativos, que nao excluem, por certo, uma sintese que dé 0 “climax” da obra, numa fotografia ou num conto de grande qualidade se procede inversamente, isto é, 0 fotdgrafo ou 0 contista sentem necessidade de escolher e limitar uma ima- 90 Op. cit. p. 149. Al Pottica do Conto gem ou um acontecimento que sejam signifivativos, que no sO va- lham por si mesmos, mas também sejam capazes de atuar no es- pectador ou no leitor como uma espécie de abertura, de fer mento que projete a inteligéncia e a sensibilidade em direcdo a algo que vai muito além do argumento visual ou literario contido na foto ou no conto.” 91 Agrega outra analogia, a da luta de boxe, creditando-aaum escritor argentino. “Um bom contoé incisivo, mordente, sem tré- gua desde as primeiras frases”, diz. Recomenda que se tome um grande conto e que se examine a sua primeira pagina: “Surprender- me-ia se encontrassem elementos gratuitos, meramente decorati- vos. O contista sabe que nio pode proceder acumulativamente, que nio tem o tempo por aliado; seu tinico recurso é trabalhar em profundidade, verticalmente, seja para cima ou para baixo do es- paco literdrio.”92 Quanto ao tempo e ao espago, afirma que eles devem estar “condensados, submetidosa uma alta pressio espiritual e formal” Para provocar essa “abertura” a que se referia anteriormente, Quando um conto é ruim? Quando é escrito sem tensio. A tenséo deve manifestar-se desde as primeiras palavras ou desde as primeiras cenas, Nesse ponto, elenca os trés elementos que sio a base de sua poética: significago, intensidade e tensio. Por significacio, entende a “misteriosa propriedade” que determinados acontecimentos tém de “irradiar alguma coisa para além deles mesmos”, Para explicar melhor seu conceito, refere-se a 91 Op, 92 Gp, 80 Charles Kiefer outros contistas - Katherine Mansfield, Sherwood Anderson e Anton Tchecovy -, cujos vulgares “episddios domésticos” transfor- mam-se no “resumo implacavel de uma certa condigdo humana, ou no simbolo candente de uma ordem social ou histérica”. Afir- ma que um conto é significativo “quando quebra seus proprios li- mites com essa explosio de energia espiritual que ilumina brusca- mente algo que vai muito além da pequena e as vezes miseravel A significagao nfo reside “somente no tema do histéria que cont: conto”, mas depende da intensidade ¢ da tensio, elementos de na- tureza técnica, resultantes do tratamento literario que o contista da ao tema. Independente da formacomo um contista chega ao tema, ele precisa ser excepcional, sem o que no se teria um bom conto. Nao necessariamente “extraordinario, fora do comum, misterioso ou insdlito”, Pode até tratar-se de uma histéria trivial e cotidiana. Onde estaria, entao, a excepcionalidade? “O excepcional reside numa qualidade parecida 4 do ima; um bom tema atrai todo um sistema de relagdes conexas, coagula no autor, e mais tarde no leitor, uma imensa quantidade de no- des, entrevisdes, sentimentos e até idéias que lhe flutuavam vir- tualmente na meméria ou na sensibilidade; um bom tema é como um sol, um astro em torno do qual gira um sistema planetario de que muitas vezes nao se tinha consciéncia até que o contista, as- trénomo de palavras, nos revela a sua existéncia.”%3 Depois de citar a lista de seus contos inesquectveis, e, portanto, ativos para si proprio, admite que essa nogao é problematica, ja 93 Op. cit, p. 153. 81 Charles Kiefer A Pottica do Conto b ¢ que um “mesmo tema pode ser profundamente significativo umescritor, e anddino para outro; um mesmo tema despertard enot mes ressonancias num leitor e deixard indiferente a outro”, Ha alg pois, “fora do tema em si , algo que “est antes e depois d E isso sé se consegue “mediante um estilo baseado na ine nsidade e na tensao, um estilo no qual os etnies formais e pressivos se ajustem, sem a menor concessio, d indole do tema, lie déem a forma visual e auditiva mais penetrante e original, o Antes est 0 escritor, com sua “carga de valores humanos e liter nem tinico, inesquecivel, o fixem para pohly gose pea fio seu ambiente e no seu sentido primordial. O que ea ‘ jntensidade num conto consiste na eliminagao de todas as idéias ui situagSes inter médias, de todos os recheios ou fases de transi- pois, “o trabalho literdrio do tema, a forma pela qual o contista, em face do tema, 0 ataca e situa verbal ¢ estilisticamente”, Como saber, Pois, se um tema é insignificante ou significativo? Por ser o “primeiro a sofrer esse efeito indefinfvel mas avassalador de certos temas” & que o escritor é escritor. A tautologia da explicagdo recebe ainda uma carga de mistificagio, quando afirma que “todo conto é assim prede- terminado pela aura, pela fascinagao irresistivel que o tema cria no seu criador”. Para chegar ao tema, 0 contista precisa valer-se “dessas sutis antenas capazes de lhe permitir reconhecer os elementos que logo haverao de se converter em obra de arte”. Ao final do processo, espera-o o leitor, “juiz implacdvel”, Mas para que o tema volte “a criar no leitor essa comogio que levou o contista a escrever 0 conto “é necessario um oficio de escritor” ho que o romance permite e mesmo CT j : A A tensio, para Cortazar, é uma variagao da intensidade; tima intensidade de outra ordem”, que se exerce “na maneira pela qual o autor vai nos aproximando lentamente do que conta”, a da se esta longe de saber 0 que vai ocorrer no ae a oleitor io consegue subtrair-se 4 sua atmosfera. ay contrat pe sidade, que joga o leitor de chofre na nab tative etn que “os aS despojados de toda preparagao, saltam sobre pesca hon a tensio organiza as “forcas que os desencadeiam, na malha sut que os precedeu e os acompahla’:, Se os contos de Poe e Hemingway apresentam exemplos indiscutiveis de intensidade de ago, os de Conrad, Fenty oe Lawrence e Kafka sio modelares no uso da tenso interna da « E esse oficio “consiste entre muitas outras coisas em conseguir esse clima prdprio de todo grande conto, que obriga a continuar lendo, que prende a atengio, que isola o leitor de tudo o que © rodeia, para depois, terminado o conto, voltar a pd-lo em contato com o ambiente de uma maneira nova, enriquecida, profunda e mais bela.”94 narrativa.% mais escapado a Cort interna € dada pela at 4 Op. cit. 156, Al Poética do Conto i Julio Cortazar principia “Do conto breve e seus arredores afirmando que os nove primeiros mandamentos de Quiroga’ so “prescindiveis”, mas o ultimo, o que recomenda que se de: narrar como sea narrativa tivesse interesse apenas para o pequi no ambiente das personagens e como seo proprio narrador foss uma delas, é de uma “lucidez impecavel”. A nogio de “pequen ambiente”, de Quiroga, reforga a idéia com a qual Cortazar com partilha, de que o conto seja uma “forma fechada”. A esse fend« meno, 0 escritor argentino chamou de “esfericidade”. E também ser um dos personagens da histéria que conta, “A situagdo narrativa em si deve nascer e dar-se dentro da esfera, trabalhando do interior para o exterior, sem que os limites da Aarrattva se vejam tragados como quem modela uma esfera de argila. Dito de outro modo, 0 sentimento da esfera deve preexistir dealguma maneira ao ato de escrever 0 conto, como se o narrador, 97 0 escritor uruguaio, Horicio Qui Decitogo do perfeito contista, cx onfesso admimador do aor de “O gato pret", escreven um andamentos sio: 1) Cré num mesire ~ Poe, Maupassant, dN ndade; 2) Cré que sua arte é um cume inacessivel, Nao sonha lo, conseguirés sem que tu mesmo o saibas; 3) Resiste quanto possivel 0 desenvolvimento da 0, as tres primeiras ‘com exatidao esta cir- mais palavras do que ests par express, Una ver sentor de tus alas ne posure oro ‘ou dissonantes; 7) Nao adjetives sem necessidade, pois serao in ran Pendirarnum subsantiv dbl Sears gue ep Feel. Mat preciso ach o:8) dent sendo pa 0 es inpora, Nao aba verdad aol we eles ndo podem ver ow 0 que romance depurado de excessos, Considera Ao escrever, no pensa cm teus telato niio tivesse deles, pois somente nela e a levasse 4 sua extrema tensio, “nasce com Edgar Allan Poe”, 4 maxima economia de meios”. Cortazar estabelece, vez, a diferenca entre o conto, a wovvelle eo romance: (..) se baseia nessa implacavel corrida contra o relégio que éum conto plenamente realizado: basta pensar em The Cast of Charles Kiefer submetido pela forma que assume, se movesse implicitamente o que faz precisamente a perfeicdo da forma esférica.8 A “miAquina infalivel” que é 0 conto contemporaneo, que cumpre sua “missdo narrativa com mais uma “a diferenga Amontillado, Bliss, Las ruinas cireulares e The Killers, Isto nao quer dizer que contos mais extensos nfo possam ser igualmente per- feitos, mas me parece dbvio que as narragdes arquetipicas dos Uiltimos cem anos nasceram de uma impiedosa eliminago de to- dos os elementos privativos da nouvelle e do romance, os exdrdios, os circunléquios, desenvolvimentos e demais recursos narrati- vos.”99 A nogio de ser uma das personagens langa o narrador de “roldio” num plano interno da narrativa. O uso da primeira pes- soa, por motivos dbvios, é a técnica mais adequada a essa internalizacao da esfera, j4 que “narragdo e aco séo ai uma coisa 36”, Mesmo em suas narrativas em terceira pessoa, Cortazar afi ma evitar as “tomadas de distAncia que equivalem a um juizo so- bre o que est4 acontecendo”. A relagio entre o narrador eo nar- rado, entre 0 contista e o conto, é uma “polarizagao”, uma “pon- te” entre a vontade de expresso ea propria expresso. A metifo- 98 In: Valise de cronépios. Sao Paulo: Perspectiva, 1974. p. 228, 99 Op, cit, p. 228. 85 Al Poética do Conto ra da bolha de sabao e do canudo é uma sintese desse processo. A narrativa precisa autonomizar-se, desprender-se do autor como a bolha do canudo, através da linguagem. Assim, screver é de algum modo exorcizar, repelir criaturas invasoras, projetando-as auma condi¢io que paradoxalmente lhes da existéncia universal a0 mesmo tempo que as situa no outro extremo da ponte, onde ja nao esta o narrador que soltou a bolha de seu pipo de gesso. Tal- vez seja exagero afirmar que todo conto breve plenamente reali- zado, e em especial os contos fantAsticos, sio produtos neuréti- cos, pesadelos ou alucinagées neutralizadas mediante a objetivagio ea translacdo a um meio exterior ao terreno neurético; de toda forma, em qualquer conto breve memoravel se percebe essa pola- riza¢o como se o autor tivesse querido desprender-se 0 quanto possivel e da maneira mais absoluta de sua criatura, exorcizando- ado tinico modo que lhe é dado fazé-lo: escrevendo-a.”100 Para livrar-se dessas “criatura obsedantes” nao bastaa “mera técnica narrativa”, é preciso arrancé-las de si: “Um contista eficaz pode escreyer narrativas literariamente validas, mas se alguma vez tiver passado pela experiéncia de se livrar de um conto como quem tira de cima de si um bicho, saber’ a diferenga que hi entre pos- sesso e cozinha literaria, e por sua vez um bom leitor de contos distinguira infalivelmente entre o que vem de um territério indefinivel e ominoso, e o produto de um mero métier. Talvez o trago diferencial mais marcante - j4 0 assinalei em outro lugar - seja a tensio interna da trama narrativa. De um modo que nenhu- Charles Kiefer ma técnica poderia ensinar ou prover, o grande conto breve condensa a obsessio do bicho, é uma presenga alucinante que se instala desde as primeiras frases para fascinar o leitor, fazé-lo per- der contato com a desbotada realidade que 0 rodeia, arrasa-lo numa submersio mais intensa e avassaladora. De um conto assim se sai como de um ato de amor, esgotado e fora do mundo circundante, ao qual se volta pouco a pouco com um olhar de surpresa, de lento reconhecimento, muitas vezes de alivio ¢ tantas outras de resignacdo. O homem que escreveu este conto passou por uma experiéncia ainda mais extenuante, porque de sua capa- cidade de transvasar a obsessio dependia o regresso a condigSes mais toleraveis; ¢ a tensio do conto nasceu da eliminagao fulgu- rante de idéias inter médias, de etapas preparatérias, de toda a re- torica literaria deliberada, uma vez que estava em jogo uma ope- racio de algum modo fatal que nao tolerava perda de tempo, esta- va ali, e sd com um tapa podia arranca-la do pescoco ou da cara.”101 Segundo Cortazar, certos contos nascem de um “estado de transe, anormal para os cénones da normalidade corrente”. Para reforgar o argumento, lembra que as melhores histérias de Edgar Allan Poe também foram escritas nesse estado, que os franceses chamam de état second. A possessao se da em meio as insignifican- cias do cotidiano, no dentista, ao ler um jornal, no teatro, no me- trd, num café, num sonho, no escritério: “(...) sem aviso prévio, sem a aura dos epilépticos, sem a crispacdo que precede as gran- 1 Op. cit. p. 231 Al Poética do Conto des enxaquecas, sem nada que lhe dé tempo para apertar os den- tes e respirar fundo, é 7 conto, uma massa informe sem palavras nem rostos nem principio nem fim, mas j4 um conto, algo que somente pode ser um conto e, (...) este homem pora uma folha de papel na maquina e comecard a escrever.” 102 Sem nenhuma idéia prévia do enredo,103 essa massa amorfa é um “enorme codgulo”, um “bloco informe”, que sé ao ser escrito transforma-se num “conto coerente ¢ valido per se. (...) Ha a massa que é conto (mas que conto? Nio sei e sei, tudo é visto por alguma coisa minha que nao é minha consciéncia mas que vale mais do que ela nessa hora fora do tempo e da razio), ha a angistia e a ansiedade e a maravilha, porque também as sensagdes € os sentimentos se contradizem nesses momentos, escrever um conto assim é simultaneamente terrivel e maravi- lhoso, ha um desespero exaltante, uma exaltagao desesperada; é agora ou nunca, e€ o temor de que possa ser nunca exacerba o agora, torna-o maquina de escrever correndo a todo 0 teclado, esquecimento da circunstancia, abolic&o do circundante. Een- t4o a massa negra se aclara 4 medida em que se avanca, incrivel- mente as coisas séo de uma extrema facilidade como se o conto ja estivesse escrito com uma tinta simpatica e a gente passasse por cima o pincelzinho que o desperta. Escrever um conto as- sim nao da nenhum trabalho, absolutamente nenhum; tudo ocor- reu antes € esse antes, que aconteceu num plano onde “a sinfo- i p. 232, DS Neste aspecto, a poética de Cortizar entra em flagrant contadigdo coma poética de Poe, que preco- niza exatamente o contritio. 88 Charles Kiefer nia se agita na profundeza” para dizé-lo com Rimbaud, a que provocou a obsessio, 0 codgulo abominavel que era pice) ats rancar em tiras de palavras. E por isso, porque tudo esta decidi- do numa regio que diurnamente me é alheia, nem sequer o remate do conto apresenta problemas, sei que posso: eocreNes sem me deter, vendo apresentar-se e suceder-se os episddios, e que o desenlace esta tio incluido no coagulo inicial como © ponto de partida.” 104 oe e Enfim, reconhece que o processo de criagao desse tipo de conto-possessio é semelhante ao da poesia sits tag cita ‘ exemplo de Charles Baudelaire, no por acaso 0 responsavel C a divulgacao de Edgar Allan Poe na Europa. No entanto, apesar da ‘intengdes essenciais, nao inda- génese comum, o conto nao tem : . . » is ga nem transmite um conhecimento ou uma mensagem”. Nasc do de um “repentino estranhamento”, de um deslocsinento que “altera o regime ‘normal’ da consciéncia”, o bere conto pro- posto por Cortazar “n&o tem uma estrufura de prosa”. Como 0 poe- ma ou 0 jazz, tais estruturas narrativas dependent de wvalotes can a tensio, 0 ritmo, a pulsagao interna, a imprevisibilidade eaim- provisacio, a Jiberdade fatal. Esses contos sao “criaturas vivas, or- ganismos completos, ciclos fechados”. ; Ao final do ensaio, o escritor argentino acrescenta duas observagées especificas sobre a questio do tants: 1) que a “suspensio da incredulidade” atua como uma trégua sobre o determinismo que aprisiona o homem; e que o fantastico é uma 104 Op,, cit. p. 233-4. Charles Kiefer 1 Poética do Conto Examinemos melhor essa idéia “quase geométrica” que Julio Oortazar faz do conto, numtrecho de uma entrevista concedida a saudade; 2) que o fantastico exige “um desenvolvimento temp ral ordindrio”, que o “excepcional deve ser também a regra se deslocar as estruturas ordinarias entre as quais se inseriu”, O processo se daria por uma espécie de osmose, de des- locamento de uma ordem A outra, sem a introdugao de “cu- Omar Prego: “Vejo 0 conto mais ou menos como uma Hee platénica, uma forma pura. Quero dizer, 0 sul a metafora do conto perfeito é a esfera, essa forma da qual nao sobra nada, nhas instantaneas e efémeras na sdlida massa do habitual”, como sao as situagSes de tantos maus contos do género, de casas mal-assombradas, de cavaleiros sem-cabega, etc. Nao deve haver justaposigao entre o fantastico e o habitual, A passagent de um para outro precisa acontecer da forma mais natural pos- sivel. que envolve a si mesma de maneira total, na qual nao his a ett diferenga de volume, porque nesse caso ja seria outra coisa, ja 140 seria uma esfera.,.”105 i Poe subordinava tudo - a pureza do género, a diversidade tematica, a originalidade do enredo, a totalidade, a extensio, o burilamento da linguagem, a economia verbal, o ambiente, a anrnos: fera, o estilo eo toma busca da unidade deimpressio. oe teleologia acabava por gerar uma estrutura fechada, compacta eficiente, saul Julio Cort4zar chamou de maquina infalivel. A Ngor, a teoria da cesfericidade trabalha com os elementos composicionais do mesmo modo, mas sem levar o leitor em consideracio. O capitalismo, de Poe a Corthzar, desenvolveu-se e produziu uma reificagao estrunural, ee que tudo e todos transformaram-se em mercadorias. Pararesisti a essa desumaniza¢io, Cortazar elimina o leitor do processo, lero internaliza-o. O conto-esfera nao pode fazer nenhuma concessao a0 gosto, 4 moda, sob pena de trair sua ética de resisténcia. Ele Tene cartista, o demiurgo solitario, na torre de vidro, a enfrentar as furias com o poder de sua alquimia. E 0 resultado desse Brocesse deca taco — poesia ou conto -, sera uma estrumira perfeita, um ideal pla- tonico, a pairar acima das vicissitudes hist6ricas. Obviamente, os te- Retomemos o processo, j4 empregado, de fazer a poética. explicitada voltar-se para o explicitador, lendo Cortizar com 0 instrumental tedrico por ele produzido: esfericidade, intensidade, tensio e significagdo, A esfericidade, em Cortazar, corresponde a unidade de efeito, em Poe. Se para produzir no leitor o efeito planejado o contista precisa concentrar todo seu labor na economia verbal, no rigor da organizacao das partes, na austeridade e simplicida- de da linguagem, para se chegar A esfericidade 0 contista precisa também comprimir 0 universo narrativo em pequeno espago e trabalhar com temas realmente significativos, liberando as for- Gas miticas e os arquétipos mentais para que se produza a pola- rizagio, que conduzird 4 autonomizacio da criatura em relagio aseu criador. Os seres assim gerados siio mais que personagens, sio simbolos ou metaforas da esséncia da propria condi¢&o hu- mana. Cortazar, Rio de Janeiro: José Olympia 105 Prego, Omar. O fascinio das pc Editora, 1991. p. 55. 90 1 Poética do Cont lo Conto Charles Kiefer tais relagdes, 0 titulo de Cortazar permite, ainda, a passagem exterior para o interior, da moldura para a tela: num dos con- mas de um autor iluminado, que se propée a ser a “antena Taga", que nao pode fugir ao seu destino literario, no serio do realismo comezinho, a tranche de vie, iario”, a protagonista, Isa- mas as narragOes fanta 8, que no por acaso chama-se “Besti ticas, as alegorias, a: idaer ; pga he . Boras, as ressemantizacdes dos mitos fundadore |, junto com um colega de infancia, monta herbarios, formicarios. icular ao universal, do pequen (Como o autor faz uso do narrador onisciente, em terceira pessoa, ircunscrito ao essencial e eterno, 10 jiida nos impede de imaginar que seja Isabel a narradora do con- to que empresta 0 nome ao conjunto. Se na esfera a linha curva yelorna a si mesma, do ponto de vista estrutural temos aqui um elemento dobrando-se sobre si, sendo, a um sé tempo, significante © significado. A fabula reflete-se no titulo, o titulo antecipa a es- trutura da fabula. No bestidrio organizado por Cortazar, encon- tramos um variado conjunto de animais. Sao coelhinhos, em “Carta uma senhorita em Paris”; mancuspias, em “Cefaléia”; cies, ga- tos e peixes em “Circe”; tigres, em “Bestidrio”. Além disso, em “Onibus”, o prdprio veiculo de transporte coletivo tem algo de animalesco, bufa, morde. Em “As portas do céu”, sdo os andes e as an’s que se animalizam, transformando-se em “monstros”. Havia, em Poe, a idéia de que o autenticamente imaginativo - e portanto original -, escondesse um sentido oculto e profun- do. Por isso, um bom contista nao precisaria recobrir seus enre- dos com alegorias simplistas e evidentes. Por mais que se force o “realismo” da existéncia de Roderick Usher e sua irma Madeleine, n&o podemos aceitar, como causalidade natural, o desabamento isico de um castelo de paredes sdlidas, por mais rachaduras que tenha, por mais poderosos que sejam os ventos.108 A mansio Usher ia do mundo, da arte, ; sua estrutura cerrada, macica, abre-se para a alteridade. Aproximar-se de uma oun” formalmente perfeita, e executé-la, produz no artista o estado hiperlucidez, (Poe) ¢ de possessio (Cortazar). O préprio conto, assim, se faz parsagem, Ponte entre os dois universos, 0 das dea tadas forgas do inconsciente e o das calmarias da razdo. Sio esféricos, intensos, tensos ¢ significativos os contos de Bessidriod Podemos encontrar na primeira colegio de contos de Julio Cortazar o mesmo tigor formal que descobrimos em Edgar Allan Poe?107 Comecemos pelo titulo, como j40 fizemos com o escritor norte-americano, Bestidrio é 0 gladiador que, no circo, combate as feras. E pode ser, também, o espago em que elas sfio reunidas, Unnlivro que retine variadas feras, alegéricas ou nao, éum bestidrio. E bestiario pode ser, também, o autor que as arrebanhou. ‘Apestil certa g © que verdadeirame iuagio, o mecanis st ico que eu prete \ito, Jonge Zahar Editor, 2002. p, 14.) ara seus co ivel de qualidade” que estabelecera para si proprio. izava, era o conto em si mesmio,a n: Conversas com Cortizar. Rio de iagado por Bermejo, em 1977, por que no pi ‘esponidew que nao o fizera por ni ter aleangado 0 In: Op,, cit. p. 26, Poe salva a veross 8 92 1 Poética do Conto é secular e viu nascer ¢ morrer varias geragées da familia. Se desabamento, obviamente, é alegérico. Nele, & preciso ler outr coisa: o desmoronamento da psiqué ou de uma classe social, O conto, que comega com a chegada do narrador e termina com a sua partida, é um exemplar perfeito do que Cortazar chamou de esfericidade, Sua estrutura e sua dindmica reverberam, como num salao de espelhos, na estrutura e na dinamica de “Casa tomada”, O autor argentino, antes de ocultar a filiago, desvelou-a desde o titulo. Em ambos os contos convivem um casal de irmaos, numa telacio veladamente incestuosa. Tanto num quanto noutro hauma Progressiva antropomorfizacio da casa, de tal forma que se pode dizer que esta é Protagonista e seus inquilinos, coadjuvantes. O fantastico penetra na realidade cotidiana aos poucos, instaurando uma nova ordem, sem ruptura légica. Ao sairmos do circulo da leitura, no final do conto, sentimo-nos aliviados, Em ambos os casos, 0 efeito sobre o leitoréde sufocamento, de estranhamento, O casal de Cortdzar, mais verossimil, menos anormal — em que Pese o grotesco da sugestdo de incesto -, viverd na meméria do leitor como metafora dos exilios, dos banimentos, dos medos Opressivos e paralisantes. A safda, Parece enunciar o narrador, 6a Tua, 0 espago publico, a dissolugio do pessoal no coletivo, A técnica da primeira pessoa, ao tornar simultanea a narra- go € a acio, ao eliminar a mediacio e o distanciamento de uma voz alheia 4 fabula, presta-se melhor 4 polarizacao ¢ ao exorcismo das obsessées inconscientes. O insdlito da situago - um casal aristocratico, que vive de rendas, que historicamente detém os aparatos de repressio do Estado Para sua autodefesa, vé-se na contingéncia de abandonar bens ¢ habitos herdados, expulso por 94 Charles Kiefer lima “presenca” insidiosa, crescente, invisivel e andeserrniada : irradia a “misteriosa propriedade” que faz o conto adquizte aay ficagio ¢ ultrapassar o seu enredo simples eves iae Oni mo ea melodia da linguagem, articulados eintatiearriantsy produ- vem a intensidade e a tensio que Cortazar Lahroraamle pardios grandes contos. Nio deixa de ser sintomatico, quase profético, ae tenha sido exatamente “Casa tomada” que Se alorge Luis Borges. Neste conto, ha como que uma sintese a pottica de Cortazar, a visio do fantastico como passagem, teslizsmmente do numinoso 4 realidade, presentificag%o que é puro On nsItO} Osigno da invasdo reaparece em “Carta a uma senhoritaem Paris”, com outras nuancas. Aqui, temos um pa Ney que é ocupado, consentidamente, por um amigo da Ste que se encontra noutro pais. Por seu turno, 0 ocupante é ocupa b por pequenos inquilinos ~ os coelhinkos - que, uma vez extra dos da boca, passam a ocupar, também, o espaco. A reprodugao incessante dessas ocupag6es levara o protagonista ao desespero e 4 morte. Nio ha saida: 0 proprio corpo transforma-se numa casa tomada. Mais uma vez, a solucio é a dissolugao. Estruturalmente, refaz-se a esfera. O que comegou coma chegada do personae ag ao apartamento, terminara com a sua saida, pean Oingres- so do narrador na nova ordem, na outra ordem que é 0 ee mento da amiga, desorganizou o sistema de pred a coelhinhos, alterou o ritmo dos nascimentos des aninoal Eestaé atragédia. O fantastico nao esta no insdlito, no inusitado, mas na passagem de uma ordem a outra. J Ft icc tty » . ald A natureza da invasdo em “Distante”, terceiro conta - é mai: ati ite. Alina Re lume, é mais complexa, tematica e estruturalment yes 1 Pottica do Conto Charles Kiefer escreve um diario e acontece-lhe, ds vezes, sentir a existéncia de uma outra Alina Reyes. Através da polarizacio, a personagem dentro da Personagem toma forma e relaciona-se com a hospe- deira. Um dia, Alina vai a Budapeste e encontra seu duplo. Abra- ¢am-se, trocam de alma. Aubigiiidade de Alina corresponde uma ubiqiiidade estru- tural ~ uma parte da histéria é dada a conhecer através do diario, em primeira pessoa, ea outra, através de uma narrativaem tercei- Ta pessoa, com narrador onisciente neutro ~, 0 que duplica o pré- se concretiza no nivel superficial das agdes, vibra, no entanto, em nervosa expectativa a cada curva, a cada freada, a cada novo pas- sageiro que sobe no coletivo, e abre, na consciéncia do leitor, pas- sagens para a vasio dos medos inconscientes, das frustrag6es, das laténcias, E é nesse espago, ou nao espaco, entre narrativa e leitu- ta, que se polariza a “ubigiiidade dissolvente”. Para wr esse fan- tistico € preciso surpreendé-lo em seu proprio movimento de vir-a-ser, fragil bolha de sabio desprendida do canudo, transhicido, auratico. O leitor, antes ignorado por uma ética rigorosa, agora é Ptio doppeleinger; que emerge assim na superficie lingiifstica do texto, Sao duas Alinas, so dois narradores, sio dois textos, Em “William Wilson”, de Poe, que também tematiza 0 duplo, nao houve a du- plicagio da fabula. O que faz de “Onibus”, a histéria banal e cotidiana de uma empregada doméstica em seu Passeio de s4bado, uma obra extra- ordinaria? Davi Arrigucci Jr. apontou a “simultaneidade porosa” do universo cortazariano como um dos fatores de significagao de sua prosa melédica e encaracolada, O fantastico de Cortazar é ubicuo, sem a exigéncia dicotdmica do ser ou nio-ser. Regido | pelas mesmas leis de causae efeito da vida real, seus contos per- reentronizado, pois dele se exige que seja poeta também, que sai- ba, como 0 artista, secularizar a transcendéncia. A ri ‘or, atramaé 4 realista ~ Clara sobe no énibus, sente-se mal em ser observada pelos outros, encontra um passageiro com que estabelece uma relacao silenciosa, fraterna e solidaria, e que, no futuro, evoluird para um possivel caso amoroso ou namoro mais sério; depois, desce, acompanhada do rapaz, ¢ sente-se aliviada por ter escapa- do da porta automitica, que bufa ao se fechar. A fibula, nfo custa repetir, é rigorosamente realista. Resu- mida, como previu Jorge Luis Borges, perde sua esséncia, seu modo i mesmo de ser. Porque o fantastico, em Cortazar, esta noutro es- mitem, sempre, uma dupla leitura, No entanto, para que o fant4s- Uco se instaure, é preciso encontrar as passagens de um universo a | outro, } pago, no modo de composig&o do 7hds, na poesia da linguagem, que se faz ponte entre o real e supra-real, nos interst{cios do nio- e dito, na aura obliquamente entrevista. Em “Onibus”, sofistica-se Nada ha de anormal no Passeio de Clara, nem em seu flerte adolescente com o jovem passageiro, mas, desde o instante em que ela ultrapassa a portade entrada do énibus da linha 168, pres- sentimos que deixou o mundo das coisas sélidas e conhecidas que sua vida corre perigo, Essa ameaca velada, potencial, que no ainda mais 0 signo da invasao, j& que so 0s leitores que so, lenta ¢ inexoravelmente, invadidos pela estranha atmosfera de “ar ver- dee claro” que flutua no espago da narrago. Esfericidade, inten- sidade, tensio e significacio conjugam-se para compor uma pe- quena obra-prima, rigorosa alegoria do mistério do mundo, % 7 r Ai Pottica do Conto Se um conto fantastico pode ser a objetivizacao de uma alucinagio, neurose ou pesadelo, n’io poderia ser também a pola- rizagao de uma dor? Que forma artistica assumiria, por exemplo, uma cefalalgia? As alucinacdes, as neuroses e os pesadelos, por mais surrealistas que sejam, t&m uma sintaxe, “contam? uma his- toria, organizam-se sobre um mythis. Uma enxaqueca, com seus fluxos rajados, com suas oscilagdes de intensidade, nio compo- ria, também, um enredo? A leitura de “Cefaléia” parece confir- mar a hipotese. Se pudéssemos isolar sua estrutura, descarnando © conto do que conta, e se isol4ssemos 0 ritmo da linguagem, registrando apenas as variacGes de intensidade e tensao, talvez, tivéssemos 0 desenho, como num sismégrafo, do percurso da dor dentro de um cérebro. Infelizmente, 0 significante nao pode se- parar-se do significado, ao menos no na literatura, no no conto, que s6 se realiza com a harmonizagio entre o que se conta eo como se conta. Neste aspecto, “Cefaléia” é a cabal realizacio do tour-de-force do artista: 0 tema vira forma, projetando-se estrutu- ralmente em todas as dire¢ées da esfera narrativa. “Cefaléia” nao mimetiza a indisposigo de mesmo nome, “Cefaléia” & Em “O pogo eo péndulo”, as oscilagdes da linguagem de Poe, ea prdpria movimentacio do personagem no interior do pogo, reproduzem, 0 significado da obra na estrutura do significante. “Circe”, confessou Julio Cort4zar a Omar Prego, nasceu de uma neurose, do medo de encontrar insetos na comida. Assim que escreveu 0 conto, assim que a bolha de sabio se autonomizou, a mania desapareceu. A génese, obviamente, nio explica 0 conto, mas desvela os mecanismos de criagio do autor, Quando Cortazar afirma que as personagens de Poe sio suas “criaturas mais pro- 8 Charles Kiefer fundas”, esta dizendo também que seus proprios personagens sao o que tem de mais auténtico, projegdes fantasmaticas, cristaliza- g6es, no plano consciente, de delirios inconscientes. Dos contos de Bestidrio, quatro sao narrados por eus-prota- gonista, dois por narradores oniscientes neutros e dois por eus- testemunha. No entanto, entre “Circe” e “As portas do céu” ha diferengas fundamentais, embora a mesma técnica tenha sido uti- lizada. No primeiro, o narrador testemunhou, aos onze anos, 0 que agora conta. Por isso, lembra-se mal de Délia, lembra-se mal de Mario. No entanto, sua narrago é minuciosa e onisciente. O que, formalmente, estabelece uma inquietante fratura. Para além da leitura, permanece a questao da identidade do narrador e da sua confiabilidade. No limite, ent4o tudo pode nao passar de uma fantasia de quem conta a historia? O fantastico nao é um universo paralelo, ¢ ldgico, em que nao ha contradigées? Abruptamente, o narrador afirma: “Agora é mais dificil falar disto, isto se confunde com outras histérias que a gente acrescenta 4 base de pequenos esquecimentos, de diminutas falsidades que sio tecidas ininterruptamente por tras das recordagées”. Quem é 0 narrador? Alguém da familia de Délia? De Mario? Irmo? Primo? Vizinho? A tinica certeza que se tem é de que é alguém proximo dos prota- gonistas. Um autor como Cortizar, que declarou ter passado qua- se uma década elaborando os poucos contos de Bestidrio, nao co- meteria o descuido de deixar uma fratura exposta. A contradigio, pois, é uma apargncia, uma mensagem cifrada, uma metonimia, O que faz ai, é necessario indagar, esse menino intruso, rayeur, que depois - adulto -, confessa “confundir historias”? Sutil e licido, Cortdzar constrdi essa alteridade para desestabilizar as certezas 9 Charles Kiefer 1 Pottica do Conto um triste fim. E é exatamente pelo antincio da morte da mulher que a historia principia. Essa técnica, de narrar os fatos ja consu- mados e de fazer 0 tempo voltar-se sobre si mesmo ~ 0 flashback -, constréi, estruturalmente, a esfericidade. Trabalhando com uma temporalidade fechada e compactada, Cortizar pode dar-se ao luso de polir a esfera, de esticar os fios da tensao e da intensidade, aproximando-nos lenta e insidiosamente do que conta. O tema, por si sd, significativo - a forca do amor, capaz de apagar 0 passa- doe rumar para o sem-futuro -, agregado a técnica narrativa pre- do narrado. Se a literatura fantdstica é& capaz de criar passagens causalidade real, 0 real a mentos, diminutas falsidades”, Délia, informa esse narrador ni confiavel, nao passa de uma louca de subtrbio, que além de enve nenar gatos © peixes, recheia bombons com baratas, o que leva o: Seus notvos ao suicidio. Expulso pela porta principal, o fantastic retorna pela janela. O real-maravilhoso instaura-se também pela anormalidade mesma dos temas. E 0 que fazem os pais de Délia, nal cozinha, expectantes, trémulos de emogio, 3 espera de aul Mario a estrangule. A esfera, que parecia ter uma protuberncia, recupera sua forma perfeita, cisa, tornam este conto um exemplo magnifico do tipo de fantas- tico empreendido por Julio Cortazar. O que sabemos do advogado-narrador? Marcelo entrou na vida de Mauro através de sua profissao, com uma aio judicial. Depois da causa, tornaram-se amigos, 0 advogado ¢ o cliente. Estranhamente, o “doutor” passou a acom- panhar o outro e a sua mulher. “Eu os observava viver”, afirma. N&o apenas isso, por que diz, também, que nunca conseguiu “en- trar na sua simplicidade” e que “se via forgado” a se “alimentar por reflexo de seu sangue”, Em algumas passagens, refere-se a um fichdrio que elabora a partir da observagio de pessoas. Vai com Mauro a um baile de suburbio porque ali se reinem “os monstros”, os andes da cidade. Por mais esforco que faga para “entrar” na simplicidade dos outros, o simples esforgo ja denun- cia a sua condi¢So de estranho, de diferente. Num nivel superfici- al de interpretacio, pode-se afirmar que 0 que separa Marcelo de Mauro e Celina é a condi¢io social, a diferenca cultural e econd- mica. Um é 0 intelectual, profissional liberal, a observar os our tros, com presungio e vaidade, como se eles fossem animais do- AS portas do céu” é, aparentemente, um conto simples, A uma primeira leitura, descobrimos um narrador diferente do me- 7: a tain ino-testemunha de “Circe”. Marcelo, 0 advogado-narrador, conta a : ‘ . mente, € rgorosamente, o que presenciou. Aquela construiu-se sobse lapsos, e esta povoa-se de Pequenos, mas significativos, in- dicios, que formam uma segunda estrutura significativa, au fa- bula duplicada. Para se abrir as portas de acesso a ei histéria subterrdnea é preciso agir como advogado ou detetive, Conjuntos de indicios, por forga de sua irresistivel causalidade, constituem- seem Provas indiciais, que podem substituir até mesmo as provas materiais, Sabemos que Mauro é apaixonado por Celina, a ex-prosti- Tata Tanto, que a retirou da vida ea acolheu em sua casa, ao tédio € as cuias de mate dos finais de tarde. Sabemos que Celina sofre calada a saudade de um passado mais agitado e uma tuberculose fatal. Sabemos ainda, pela voz. narrativa de Marcelo, que tudo teve 100 101 mésticos, ou “monstros”, Vouyerista, cataloga num bestidrio Par- ticular os seres simples, auténticos, para quem tango e sentimento sao primicias do espirito. No entanto, uma leitura mais atenta, ow que atente para os indicios, revela que a diferenca entre Marcelo 3 Mauro é mais profunda, Apesar da aparente normalidade, de um aythds organizado verossimilmente, em que os efeitos sio poste- tiores as causas, Marcelo vive num outro plano. Se fosse apenas um advogado-escritor, como a aparéncia leva a crer — seu ficha- tio, seu voyerismo Brotesco, seu desejo de “entrar na simplicida- de” alheia -, viveria no real, embora cercado de simbolos e alego- tas. Mas, seu universo é outro. O monstro, 0 anormal, 0 ser fan- tastico é ele - que tenta, desesperadamente, fazer contato com Seres reais, como Mauro e Celina, e nado consegue. Para esse uni- verso fantastico, 0 estranho, o alegérico, 0 maravilhoso e 0 inusi- tado é 0 universo real. Para quem vive, como Marcelo, mundos, as “portas do céu” dio acesso ao inferno da vida cotidi- ana. Por isso, ao final do relato, 0 solitario advogado decepciona- se profundamente com Mauro, depois de ouvi-lo dizer que 0 fan- tasma de Celina “parecia” a Celi areal. Oadvogado percebe, entio, que Mauro vive apenas “deste lado”, no lado que se chama realj- dade ¢ que niio pode encontrar as “portas do céu” entre “essa fumaga e essa gente” do cabaré. Lida pelo que deixa entrever, pelo que anuncia em seus indicios, a historia de Marcelo revela o fantastico pelo avesso, Rearticulam-se os outros indicios, que du- plicam a fabula: a) Marcelo afirma ser forcado a “alimentar-se por teflexo do sangue” de Mauro e Celina. Se fosse um vampiro co- mum, haveria a ruptura no plano do real e a Passagem de um estado a outro seria mechnica, E ocaso do conto “Metzergenstein”, 102 Charles Kiefer de Poe, em que o cavalo da tela transforma-se em cavalo real, Como é um vampiro da ordem fantastica, Marcelo alimenta-se do reflexo do sangue, da propria anima de seus amigos. Por isso, acompanha-os aos bailes, ds lutas de boxe, as cuias de mate dos finais de tarde. E um vampiro psiquico, que se alimenta das forgas animicas ¢ teltiricas de seus semelhantes; b) No trem, ao regressar de Rosario, para onde viajara por causa deum congresso de advo- gados, Marcelo encontra “duas bailarinas do Moulin Rouge”. Re- conhece a “mais jovem”, que se faz de “desentendida”. Nesse outro universo, a ruptura geografica nao é uma contradi¢So, ja que a ubiqiiidade permite que o narrador esteja a um c be viajando pela pampa argentina e pelos subtirbios de Paris. A exis- téncia das bailarinas de can-can estabelece um paralelismo com a dangarina de tango. A simetria constréi uma ponte entre os dois universos, uma porta, como a que Mauro nio foi capaz de ver; c) Na cena final do conto, o fantasma de Celina reaparece aos dois homens, na pista de danga. Marcelo e Mauro encaram-se e en- contram-se no “mais intimo”, diz o narrador, A metafora dos mergulhadores trocando um olhar no fundo de uma ee unt lizada pelo narrador, é significativa. Essa comunicago subaquatica remete a um mundo tecténico, primitivo, a eras geoldgicas pré histricas, anteriores 4 racionalidade. SS imersos na Agua do mito, Marcelo e Mauro sero capazes de penetrar nas “portas do céu”, Para um, a Celina no salio é; para o segundo, parece. Para Maree. lo, Mauro éum “coitado”, que vive Peso A causalidade deste lado, Com Cortazar, pode-se dizer que o fantastico atinge ai nomia plena, realiza-se como um novo género literario. O gi co € o simbélico de Poe tinham, ainda, os pés profundam 103 AP do Conto fincados no realismo e exigiam do leitor um tipo de adesio me nos radical. Bastava a suspengao da credulidade para ingressar. num universo delirante. Nesse sentido, todos os enredos de Bes sdo alegéricos. Mesmo quando as fabulas sfo realistas, a tramaeo tratamento dos meios expressivos remetem os contos a represen- tagdo de outra coisa, de outro Universo, O conto “Bestidrio” fecha o ciclo iniciado com “Casa to- mada”. A invasio se completa, ja no é mais possivel fugir, é pr ciso conviver com as feras, Isabel, uma menina em férias na casa da familia Funes, narra as Peripécias dos moradores que convi ver com um tigre feroz sob 0 mesmo teto, Sem nenhuma per- plexidade, os inquilinos evitam 0 animal, usando apenas os quar- tos e as salas livres. Um sistema de observag4o constante evita que se encontrem. No final, Nené, 0 tio rabugento, é devorado pelo tigre. O mundo, diz-nos a ficgto de Cortazar, est sendo tomadso, invadido, lenta progressivamente, por forcas an{micas, teliiricas. “Bestidrio” a realizacao formal dessa alegoria, Se antes ainvasio eraum proceso, agora é parte da rotina doméstica. Aos habitantes, como aos leitores, resta evitar os cSmodos invadidos e procurar viver normalmente. Aimagem da esfera, que serviu a Cort4zar como metéfora do conto emi, pode ser estendida a0 conjunto de obras de Bestizrio, Os oito relatos, pelos temas, pelas técnicas narrativas, pela lingua- gem homogénea, pelo equilibrio formal, pelo acurado acabamen- to, compde uma esfera maior, um todo organico e unitario, nos moldes do proposto por Edgar Allan Poe, em 1842. 104

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