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ae # + a ALFREDO Bost O SER E O TEMPO” DA POESIA ? EDITORA CULTRIX SAO PAULO IMAGEM, DISCURSO A _idéia, na imagem, petmanece infinitamente ativa e inexautivel. GorrHE A experiéncia da imagem, anterior a da palavra, vem entai- zat-se no corpo. A imagem é afim a sensacao visual. O ser vivo tem, a partir do olho, as formas do sol, do mar, do céu. O perfil, a dimensfo, a cor. A imagem é um modo da presenca que tende a suprir o contacto direto e a manter, juntas, a realidade do objeto em si e a sua existéncia em nds, O ato de ver apanha nao s6 a aparéncia da coisa,-mas alguma relacdo entre nds e essa aparéncia: primeiro ¢ fatal intetvalo. Pascal: “Figure porte absence et présence.” A imagem pode ser retida e depois suscitada pela reminis- céncia ou pelo sonho. Com a retentiva comega a correr aquele processo de co-existéncia de tempos que marca a acao da memoria: 0 agora tefaz o passado e convive com ele. Pode-se falar em deformagio ou em obscutecimento da ima- gem pela acio do tempo. Na verdade, “le temps ne fait rien a l’af- faire’. O nitido ou o esfumado, o fiel ou o distorcido da imagem devem-se menos aos anos passados que a forga e 4 qualidade dos afetos que secundaram o momento da sua fixacao. A imagem amada, e a temida, tende a perpetuar-se: vira fdolo ou tabu. E a sua forma nos ronda como doce ou pungente obsessao. As artes da figura supdem esse momento de quase-idolatria. As religides que vetaram a representacao “direta” do sagrado, de 13 Tsrael no Isla, dos iconoclastas de BizAncio aos calvinistas de Genebra, sabiam o que temiam ao mover guerra a toda imagem de culto, A estétua do deus é uma apropriacio de algo que nos deve transcender, Pode abrir a porta para o fetiche. Formada, a imagem busca aprisionar a alteridade estranha das coisas e dos homens. O desenho mental ja € um modo inci- plente de apreender o mundo. O desenho inscrito o faz com o ins- trumento da mao; e 0 fato de ser, na crianca e no selvagem, um esquema, pura linha, abstragao, nao significa menor poder sobre 0 objeto; antes, é sinal de uma forca capaz de atingir a estrutura que sustém a coisa, e bastat-se com ela. A imagem, mental ou inscrita, entretém com o visivel uma dupla relagzo que os vetbos aparecer e parecer ilustram cabal- mente. O objeto da-se, aparece, abre-se (at.: apparet) 4 visao, entrega-se a nds enquanto aparéncia: esta é a imago primordial que temos dele. Em seguida, com a teproducao da aparéncia, esta se parece com o que nos apareceu. Da aparéncia 4 parecenca: momentos contiguos que a linguagem mantém préximos. Que seja esse o processo, prova-o a histéria semAntica do tetmo semblante, que j4 designou parecenca (0 nosso arcaico “semblar”), e hoje quer dizer, valendo-se daquela contigiiidade, aparéncia, fisionomia, Imagem e semelhanca do tosto humano 2. Toda imagem pode fascinar como uma aparicao capaz de perseguir. O enlevo ou o mal-estar suscitado pelo outro, que im- pOe a sua presenca, deixa a possibilidade, sempre reaberta, da | @vocagio. Para nossa experiéncia, o que dé o ser A imagem acha- | sSe necessariamente mediado pela finitude do corpo que olha, A _ imagem do objeto-em-si é inaferravel; € quem quer apanhat pata be Sempre o que transcende o seu corpo acaba criando um novo | ‘Corpo: a imagem interna, ou o desenho, o fcone, a estdtua. Que | #e pode adorar ou esconjurar. Mas que assume, nem bem acabado © posto a nossa frente, o mesmo estatuto desesperante da trans- : cendéncia, Assim, nos percursos da imagem, por mais que se evite a distancia nao se consegue nunca suprimi-la. A fusio, que (1) Em outras linguas convivem ambos os significados. |. Em Francés: semblant (aparéncia) e sembler (parecer). + Em Inglés: semblance (aparéncia e semelhanga). Em Italiano: sembianza (aparéncia) e sembrare (parecer). se deseja e nao se alcanga, produz um desconforto que semelha a angustia do cao mal amado pelo dono que, no entanto,’ nao sai nunca da sua frente. A imagem, fantasma, ora déi, ora consola, persegue sempre, nao se d4 jamais de todo. A aparéncia, desde que vira semelhanga, sela a morte da unidade. Mas 0 convivio com a imagem d4-lhe um ar de consisténcia. Lucrécio, materialista, falava em figuras e imagens sutis emitidas pelos objetos, e que jorravam da sua superficie: Dico igitur rerum effigias tenuisque figuras mittier ab rebus summo de corpore rerum quae quasi membranae yel cortex nomini tandast, quod speciem ac formam simile gerit eius imago, circumque cluet de corpore fusa vagari (De Rerum Natura, IV, 46-50) (Digo, pois, que figuras ¢ imagens ténues das coisas sio emi- tidas pelos objetos, e saem da superficie das coisas, de tal modo que poderiam chamar-se suas membranas ou cascas; cada uma delas traz 9 aspecto e a forma do objeto, qualquer que seja este, ¢ que emana para vagar no espaco,] A Teoria da Forma ensina que a imagem tende (para nés) ao estado de sedimento, de quase-matéria posta no espaco da pet- cepeao, idéntica a si mesma. Cremos “fixar” o imaginario de um quadro, de um poema, de um romance. Quer dizer: é possivel pensar em termos de uma constelagdo, se nado de um sistema de imagens, como se pensa em um conjunto de astros. Como se objeto e imagem fossem entes dotados de propriedades homdlogas. Mas é a mesma ciéncia que nos adverte do engano (parcial) que a identificacZo supde. A imagem nao decalca o modo de ser do objeto, ainda que de alguma forma o apreenda. Porque o imaginado é, a um sé tempo, dado e construido. Dado, enquanto matéria. Mas construfdo, enquanto forma-para o sujeito. Dado: nao depende da nossa vontade receber as sensagdes de luz e cor que o mundo provoca. Mas consttufdo: a imagem resulta de um complicado processo ‘de organizacao perceptiva que se desen- volve desde a primeira infancia. As aparéncias mais “‘superficiais” j4 sfo efeito de um alto grau de estruturacZo que supde a existéncia de forcas hetero- géneas e em equilibrio. A imagem nunca é um “elemento”: tem um passado que a constituiu; e um presente que a mantém viva 15 © que permite a sua recorréncia. Os grandes tedricos da per- Fepelo procuraram entender o movimento que leva a forma, e eonelufram que os caracteres simétrico/assimétrico, regular/irre- gular, simples/complexo, clato/escuro, das imagens dependem da fituagiio de equilfbrio — ou nao — de forcas dticas e psiquicas que interagem em um dado campo perceptual 2. Constituidas, as formas aparecem ao olho como algo de fir- me, consistente. Mesmo as imagens ditas fugidias, esgarcadas, vaporosas, podem ser objeto de retengao e de evocacio, Sendo finito 0 sistema de percepcao de que o corpo dispée, as formas percebidas terao, necessariamente, margens, limites. A imagem terd dreas (centro, periferia, bordos), terd figura e fundo, terd dimensdes: teré, enfim, um minimo de contorno e coesdo para Subsistir em nossa mente. Os estudiosos da Gestalt chamam a esse ponto final da Organizacdo imagética “lei da pregnancia” (a expressio é de Max Wertheimer). Por esse princfpio, as forcas em campo acabam-se compondo em um minimo ou em um miaximo de simplicidade. (2) “Parece a coisa mais simples do mundo ver uma superficie plana; nada sabemos das forcas que lhe dao existéncia ¢€, no entanto, a mera percepcao € uma coisa altamente dinamica que se altera de imediato $e as forcas que a mantém sofrerem interferéncia” (Koffka, Principles of Gestalt Psychology, Londres, Routledge & Kegan, 4.* ed., 1955, p. 117. A primeira edigio & de 1935, Ha tradugao brasileira, publicada em 1975 pelas editoras Cultrix e USP), Em outro passo, Koffka chega a sugerir que uma absoluta homoge- Neidade de forcas nada produziria no sistema neuroperceptual: “Seria temerério demais dizer que, se todos os estimulos, e nfio apenas 0 visuais, fossem completamente homogéneos, nao haveria em absoluto Organizacao perceptiva? “Que acontece quando estamos nas trevas e fechamos os olhos? Vemos a principio um pequeno espaco, escuro acinzentado, mas depois de algum tempo nao vemos mais nada. O mundo da visio deixou de existir para o ser, Nao estou certo de que o mesmo efeito nfo possa ocotrer fe estivermos num espaco homogéneo que nao seja totalmente escuro” (Id. p. 120). luanto \ formagio da imagem na crianca, os trabalhos de Piaget e Tohelder acentuam o cardter nfo sé mimético mas também simbélico da imagem enquanto “imitagao interiorizada” (V. Liimage mentale chez Venjant, P.U.F., 1966). Para o nosso discurso, importa assumir a imagem constitufda, na sua fisionomia Ultima, que nao pode deixar de nos aparecer como estitica, 16 ) No primeiro” caso, a imagem aparece uniformé. No segundo, mostra-se um todo que integra o miiltiplo. Em qualquer dos extremos, porém, o efeito ¢ o da consisténcia quase material da imagem: 0 que os mesmos estudiosos conhecem sob o nome de constancia da forma. As figuras das coisas distinguem-se e separam-se umas das outras, ¢ do seu prdprio fundo; e aparecem-nos como formatos que se destacam e que permanecem: podem-se discernir, E uma afirmacgao que vale tanto para a “imago” interna quanto para a sua inscrigao, a imagem pictérica. Pode-se considerar o imagindtio em si na sua camada ma- terial. Mas sera, sempre, também um duplo “espectral” do ente com que se relaciona. Outro cardter da imagem (este, essencial pata o desenvolvi- mento do nosso discurso) € o da simultaneidade, que Ihe advém de ser um simulacro da Natuteza dada. Natura tota simul. A imagem de um rio dard a fluidez das 4guas, mas sob as espécies da figura que é, por forca de construcio, um todo estével. A finitude do quadro, a espacialidade cerrada da cena tém algo de sdlido que permite & meméria o ato da representacao. Finita e simultanea, consistente mesmo quando espectral, dada mas construfda, a natureza da imagem deixa ver uma com- plexidade tal, que 86 se tornou possivel ao longo de milénios e milénios durante os quais_o nexo homem-ambiente se veio afi- nando no sentido de valorizar a percepcao do olho, as vezes em prejuizo de outros modos do conhecimento sensfvel, o paladar, 0 olfato, o tacto. O resultado do processo setia o triunfo da informagao pela imagem. Para Santo Agostinho, o olho é 0 mais espiritual dos sen- tidos. E, por tras de Santo Agostinho, todo 0 platonismo teporta a idéia A visio. Conhecendo por mimese, mas de Jonge, sem a absorcao imediata da matétia, o olho capta 6 objeto sem tocé-lo, degusta-lo, cheiré-lo, degluti-lo. Intui e compreende sintetica- mente, constrdi a imagem nao por assimilac¢io, mas por simili- tudes e analogias. Daf, o cardter de hiato, de distancia, terrivel- mente presente as vezes, que a imagem detém; daf, o fascinio com que o homem procura achegar-se 4 sua enganosa substan- cialidade. La, Eppur s1 muove Aparecendo como um todo finito e simultaneo, a imagem parece alinhar-se entre os fendmenos estéticos, ja feitos, per- feitos, no sentido etimoldgico do tempo. Seré assim, desde que nilo esquecamos que 0 estdtico se compde de forcas diferentes em equilibrio. Em outro nfvel, a psicandlise, que tanto se ocupou com a génese do imagindtio, tem dado respostas maduras ao problema das suas motivacdes. A vontade de ptazer, o medo a dor, as redes de afeto que se tecem com os fios do desejo vao saturando a imaginagao de um pesado lastro que garante a consisténcia e a persisténcia do seu produto, a imagem. Que o imagindrio decotta da co-extensidade de corpo e natureza; que ele mergulhe tafzes no subsolo do Inconsciente, é a hipétese central de um Gaston Bachelard, para quem € preciso descer aos modos da Substancia — a terra, o ar, a 4gua, o fogo —, pata aferrar o eixo natural de um quadro ou de um simbolo poético. A imagem, catarse das pulsdes do Id, recebe no seu nasce- douro 0 dom da identidade. Id, idem. O risco do eterno retorno do mesmo nao embaraca Bachelard nem a psicandlise. E um risco calculado, se nao desejado, no seio de teorias que se escoram na exigéncia de constantes psicossomdticas: vastas e sempiternas pla- taformas de onde elas descolam para, percorrido o circuito, retor- nar a seguranga. Das matrizes matetiais da matéria (mater-matrix), do Id, tesultam pata Freud as andancas e as formas do Imagindrio. Uma pulsio (Trieb) aflora, na vida da psique, como uma repre- sentacéo (Vorstellung). A imagem é ttansformacao de forcas instintivas; estas, por sua vez, respondem, em ultima instancia, pela sua génese. Nunca é demais insisti para Freud, forca e sentido alimentam-se no Inconsciente. Assim, se a geometria da imagem se deve ao trabalho da percep¢ao, a sua dindmica faz-se em termos de desejo. Mas, na superficie ou na profundidade, o imagindrio é uma contextura sensivel, sistema em equilibrio, uma constelacdo de formas demat- cAveis. 18 A leitura que Paul Ricoeur fez da obra freudiana ilumina esse cardter “feito” da representacio. Como Eros e instinto de morte se dao a conhecer — no espaco da consciéncia — no modo da imagem, “a relacéio entre expressio ¢ pulséo nos aparece sem- pre como uma relagao institufda, sedimentada, fixada; seria pre- ciso remontar além do: recalcamento ptimério para atingir uma expresstio imediata” ®. E o que seria essa inalcancdvel “expressao imediata”? Algo que fundisse imagem e pulsio? Algo que ope- rasse, num dtimo, o milagre de ser formante e formado? A psi- candlise, tomando o formado, a representac3o, como o tnico ponto acessivel de partida, d4 por desesperada a tarefa de apreen- der as pulsdes em si. Estamos condenados a ver apenas a media- tizagao formal, as aparic6es capilares, as imagens. Ricoeur com- para o Inconsciente, lugar das pulsdes, a uma rede tamificada, feita de arborescéncias indefinidas cujos rebentos se nos dao sob a forma de representacdes. A rigor, porém, a pulsfio nao se coalha toda na imagem. Sobra a energia afetiva que acompanha e transpassa musicalmente a representacao; e que encontra modos peculiares de aparecer nas passagens decor e de timbre, na intensidade do gesto, na ento- nagdo da voz, no andamento da frase. Esses tltimos fendmenos, porém, jd nfo sio mais a imagem. Dela se distinguem como o puro dinamismo se distingue das figuras encerradas nos seus confins, Eppur si muove. Mas como pensar que as imagens possam “encertat-se nos seus confins” no interior do fluxo animico? As paginas da Interpretagao dos Sonhos que apontam a condensacio e 0 deslocamento como processos do sonho representam um esforgo pata mostrar que a imagem nfo se reduz a um sulco tiscado pelo desejo, mas que ela trabalha com outras imagens, petfazendo um jogo de aliancas ¢ negacas que lhe da aparéncia de mobilidade. A imagem assume fisionomias vérias ao cumprir 0 seu destino de exibir-mascarar 0 objeto do prazer ou da aver: sao. A imaginacao ativa, a imagination que Coleridge opunha 4 passiva fancy, € o nome dessa mobilidade. E a fantasia, ou produgio de novos fantasmas. Freud realgou a vis combinatéria do devaneio como passo inicial da ctiacao poética, (3) De Vinterprétation. Essai sur Freud. Paris, Seuil, 1965, pp. 143-144. nS) Traumerie, réverie, daydream, ensuefio: sho todos termos lve designam o momento do sonhar acordado, a zona crepuscular ‘ vigilia fluindo pata o sono. Em nossa lingua, 0 dado posto em televo é outro: devaneio diz-se de um pensamento vagamundo que se engendra no vao, no vazio, no nada, Devanear é com- prazerse em que o espirito etre a-toa e povoe de fantasmas um espago ainda sem contotnos. EB o “magind” do caboclo, siné- nimo as vezes de “‘cismar”, desde que sobrevenha a notacio de estranheza ou de receio. O devaneio seria a ponte, a janela aberta a toda ficcdo. Leopardi, que deixou paginas cristalinas sobre a fantasia consolo unico da dor de viver, associou o devaneio a idéia do nao-finito, No vazio que se abre além do horizonte de uma visio presente e finita, é possivel imaginar. : Essa presenca ativa, de segundo grau, nao comportaria os limites da outra: Sempre caro mi fu quest’ermo colle © questa siepe che da da tanta parte del’ultimo orizzonte il guardo esclude. Ma sedendo e mirando interminati spazi di la da quella, e sovrumani silenzi e profondissima quiete io nel pensier mi fingo; ove per poco il cor non si spaura. E come il vento odo stormir tra queste piante, io quello. infinito silenzio a questa voce vo comparando: e mi sovvien J’eterno, e le morte stagioni, e la presente e viva, e il suon di lei. Cosi tra questa immensita s’annega il pensier mio: e il naufragar m/é dolce in questo mare, (L'Infinito) A IMAGEM E 0 TEMPO DA PALAVRA Uma dhivida, porém, impede de conceder ao devaneio, a ima- ginagao criadora de textos, todos os desdobramentos e as expan- 86e3 que a palavra tem conhecido nas estéticas de detivacio ro- miantica e surrealista. A geracéo de novas cadeias imagéticas € a sua diferenciacao continua na histéria da Poesia serao fendmenos ainda presos principalmente a percepgdéo visual? Ou, mesmo, 20 pe as andangas do devaneio pré-onitico? Por acaso, o discurso poé- tico se reduz ao que Taine, falando da inteligéncia, chamava “am polipeiro de imagens”? Por acaso, as effigies do quotidiano, as ficgSes da vigilia e os fantasmas do sonho com todo o seu tesouro de um saber sensfvel teriam entrado para o patriménio da experiéncia cultural, se nao os trabalhasse um processo novo, transubjetivo, de expressio — a palavra? “Sem a lingua” — disse Hegel —, as atividades da recor- dagao e da fantasia sao somente exteriorizagdes imediatas” +. O fendmeno verbal é uma conquista na histétia dos modos de franquear o intetvalo que medeia entre corpo e objeto. Os estudiosos dé pré-histéria tém confirmado a intuigdo genial de Sao Gregério de Nyssa, que, no Tratado da Criagao do Homem (379 d.C.), associa o gesto 4 palavra: desenvolvendo as maos € os instrumentos que estendem o seu uso, os homens puderam exercer mais eficazmente a sua acdéo sobre o mundo exterior. O resultado foi a liberacao dos érgaos da boca (outrora 86 ocupados na preensio dos alimentos) para o servico da pa- lavra. Em posigao ereta e com a face distanciada do solo, o homem péde, mediante a voz, criar uma nova fungao e codificar o ausente *, A Semiédtica hoje tem esmiucado as diferencas entre o icone € 0 processo signico verbal. E preciso tirar todas as conseqiiéncias dessas distingdes quando se fala do discurso poético. O que é uma imagem-no-poema? Jé nao é, evidentemente, um {cone do objeto que se fixou na retina; nem um fantasma produzido na hora do devaneio: é uma palavra atticulada, A superficie da palavra é uma cadeia sonora, A matéria verbal se enlaga com a matétia significada por meio de uma série de articulagées fénicas que compdem um cédigo novo, a lin- guagem. Desse cédigo pode-se dizer que é um sistema construfdo para fixar experiéncias de coisas, pessoas ou situag6es, ora in praesen- tia, ora in absentia. (4) Filosofia da Historia. (5) Cf. LetoiGourhan, Le geste et Ia parole, Albin Michel, 1964, I, pp. 41-56. 21 A linguagem indica os seres ou os evoca. Karl Biihler, feno- mendlogo, explorou em um estudo vigoroso® as riquezas do campo demonstrativo da linguagem assumidas pelas formas déic- ticas: artigos, demonstrativos, advérbios de lugar ¢ de tempo, recursos anaféticos da sintaxe... Mas 0 que importa apreender € a diferenga especifica dos modos imagético e lingiifstico de acesso ao real; diversidade que se impde apesar da semelhanca do fim: presentificar 0 mundo. A seqiiéncia fénica articulada nao tem a natureza de um simulacto, mas a de um substituto. “Um signo é algo que estA para alguém no lugar de alguma outra coisa sob algum aspecto ou capacidade” (Pierce, Coll. Pap., 2 228). Formando-se com o apoio exclusivo da corrente de ar em contacto com os érgios da fala, a linguagem se vale de uma tética toda sua pata recortar, transpor e socializar as percepgdes € os sentimentos que o homem € capaz de experimentar. Dizer, como faz o poeta, Qualquer que seja a chuva desses campos devemos esperar pelos estios; ¢ ao chegar os serées € os fi¢is enganos amar os sonhos que restatem frios 7, nunca serdé o mesmo que transmitir a outrem, por meio de fcones aglomerados, a mensagem da situacao global vivida e das relacées internas pensadas pelo falante ao significar o periodo dado. O modo encadeado de dizer a experiéncia renunciou, por certo, Aquela fixidez, aquela simultaneidade, aquela forma-dada-imedia- tamente do modo figural de concebé-la. A frase desdobra-se ¢ rejunta-se, cadeia que € de antes e depois, de ainda ¢ j4 nao mais, Existe no tempo, no tempo subsiste. Para o emissor que a ptofere, para o receptor que a ouve, silaba apés sflaba, A oracgao nao se da toda, de vez: o morfema segue 0 mor- fema; 0 sintagma, o sintagma. E entre a cadeia das frases e a cadeia dos eventos, vai-se urdindo a teia dos significados, a rea- lidade paciente do conceito, Mediagao e temporalidade supdem-se e necessitam-se. (6) Teoria del Lenguaje, Madri, Revista de Ocidente, §§ 6-9. (7) Jorge de Lima, Invencéo de Orfeu, XXVI. ee A exptessao social do pensamento depende da possibilidade do discurso. Nao se pode ignorar nem baratear esse arduo ¢ longo itinerdrio em diregéo ao ato simbolizador que o homem tem percorrido desde que lhe foi dado significar mediante a arti- culagao sonora. A conquista do signo verbal pode ser tida como um gesto a mais na gesta da diferenciacéo. Todo e qualquer pensamento, ensina Pierce, é sempre um signo, e é essencialmente de natuteza lingiifstica (Coll, Pap., 5420). Vimos como a imagem (visual ou onirica) j4 se apartava do conhecimento assimilativo do pa ladar, do olfatd, do tacto. O olho j4 é mais livre do que os demais sentidos aos quais sempre se atribui maior catga de passividade e sensualidade. O fantasma, por seu turno, pode transformar-se ao longo do devaneio, embora, enleando-se sobre si mesmo, costume preservar a sua identidade. Fi nessa altura que Freud, Bachelard ¢ outros minetadores do Id se poem a construir uma ponte entre a imaginagao “ativa” e 0 poema. Mas nao é licito, epistemologicamente, saltar da imagem (mesmo se elaborada pelo devaneio) ao texto sem attavessar o curso das palavras, o seu discurso. A atividade poética, enquanto linguagem, ptessupde a dife- renga, A PALAVRA BUSCA A IMAGEM No entanto, a poesia, toda grande poesia, nos dé a sensagho de franquear impetuosamente o novo intervalo aberto entre a imagem e o som. A diferenca, que é o cédigo verbal, parece * mover-se, no poema, em funcao da aparéncia-parecenca. Esse aparecer é, a rigor, um aparecer construfdo, de segundo grau; e a “semelhanca” de som e imagem-resulta sempre de um encadea- mento de relagdes, de modos, no qual j4 nao se reconhece a mimese inicial propria da imagem. Karl Biihler, falando da onomatopéia, e revendo com extrema agudez o velho problema da iconicidade da linguagem, comenta: “...0 homem que aprendeu a ler ¢ interpretar o mundo sila- bando vé-se, pelo instrumento mediador que é a linguagem ¢ suas leis préprias, apartado da plenitude imediata do que os olhos 23 podem ver, os ouvidos escutar, a mao “apreender”, e busca o camnho de volta, trata de lograr uma apreensao plena do mundo eonereto, salvando o silabeio, no que é possivel” (grifo nosso) °. Na poesia coexistem as sombras da matriz e o discurso feito de temporalidade e mediagao. O discurso acha meios de trazer a matriz 4 tona, de explorar 8 suas entranhas, de comunicd-la. Os meios (no caso, procedi- mentos) visam a compensar a perda do imediato, perda fatal no ato de falar. A petgunta fundamental é: como a série temporal do dis- curso persegue o imediato, o simultaneo, 0 “finito” da imagem? Como se comporta o tempo 4 procura da matriz atemporal? Por hipdtese, a resposta seria esta: O discurso tende a recuperar a figura mediante um jogo alternado de idas e yoltas; séties de re(o)corréncias. A expresso verbal em si mesma, ainda quando teduzida a blocos nominais, atémicos, é serialidade. Implica sempre um minimo de expansao, de diferenciagdo. Se assim nao fosse, toda linguagem morreria logo depois de proferido o “grito original”, a interjeic4o, a onomatopéia. Mas a verdade é que mesmo a poesia mais primitiva, do esconjuro a palavra ritual e 4 narracao mitica, j4 exibe todas as estruturas diferenciais da série fonold- gica, da morfologia, da sintaxe (atribuicao, predicagio...). Falar significa colher ¢ escolher perfis da experiéncia, recorté-los, trans- p6-los, e arrumd-los em uma seqiiéncia fono-sem4ntica, Agora que a Gramética Racional retoma o seu prestigio, explorar a serialidade basica do discurso é aceder a uma teoria da predicagao. Dizer algo de alguém ou de alguma coisa supde uma estrututa profunda que se atualiza na série verbal. Sem predi- cago, o discutso emperra. Sem discurso, a predicacdo petde o seu melhor apoio para suster-se. Sobreviriam o siléncio ou o gesto quase-figurativo com todos os seus limites. Pre(dic)ar é admitir a existéncia de relagdes: atribuir o ser A coisa; dizer de suas qualidades reais ou ficticias; de seus mo- vimentos; de seus liames com as outras coisas; referir o curso (8) Teoria del Lenguaje, cit, § 13. 24 da experiéncia, Predicar é exercer a possibilidade de ter um ponto de vista. Quanto 4 forma da predicacgao: ela se perfaz e se “vé” no desenho da frase, na sintaxe, cujo diagrama aponta para uma ordem que sé “imita” o espago do ‘visual através da tempora- lidade. A disposigao dos sintagmas, sobre que assenta todo dis- curso, diz o quanto a linguagem humana é, ao mesmo tempo, seqiiéncia e estrutura, movimento e forma, curso e recorréncia. A sua estratégia de ir e vir é, por forga, mais lenta e mais sinuosa do que a armada pela percepcao visual ou pelo devaneio. Nessa complexidade esté a forga e estd a fraqueza do dis- curso. Ele é forte, é capaz de perseguir, surpreender e abragar “relagdes inerentes a0 objeto e ao acontecimento que, de outr modo, ficariam ocultas 4 percepgao. Ele é capaz de modalizar, ae| pér em crise, e até mesmo negar a visio inicial do objeto. Mas 0 discurso é frdgil sé comparado ao efeito do icone que seduz com a sua pura presenga, d4-se sem tardanca a fruicaéo do olho, guardando embora a transcendéncia do objeto. A laden impGe-se, arrebata. O discurso pede a quem o profere, e a quem) escuta, alguma paciéncia e a virtude da esperanga. 4 | A predicagiio vai dando 0 justo relevo as diferencas que se estabelecem entre o antes e o depois, o causal e o casual, o pos- sivel e o impossivel e, as vezes, 0 verdadeito e a falso. Mas a imagem e o devaneio se formam aquém do juizo de verdade. A iltima observagio vale por um sinal de alerta quando se lida com 0 poema. No momento em que o discurso, fiel 4 sua lei interna de continuas diferenciag6es, atingir o limiar da Légica, estar4 ultrapassando o ponto de unido franca e amorosa com a fantasia. Um passo adiante e esvai-se a substancia mesma do Pprocesso mitopoético, Nao é, pois, nessa via empecada de re- mincias (a diferenca é,sempre espinho) que devemos seguir o discurso, mas pelas sendas nas quais persegue o encanto da simultaneidade. Ota, é forgoso voltar 4 natureza prépria, isto é, lingiifstica, dessa perseguigao. Nao se desmancham os sulcos que a alteridade do signo verbal vem h4 milénios tracando e retracando no solo diictil do pensamento. O discurso é sempre arranjo de enunciados que se comportam como processos integradores de nfveis diferentes, cujos extremos 25 aio 6 almbdlico © 0 sonoro. JA se comparou a formacgao do enun- elado a um trabalho de encaixamento, mas a metdfora, o seu tanto volumétrica, traduz mal o caréter a um sé tempo fluido e¢ satu- taco do discurso. Roman Jakobson, grande mestre, denso, posto que ameno, disse coisas fecundas a tespeito do discurso poético, e abracou-o com uma férmula cortante, de lingiiista: projecdo do eixo das semelhangas no eixo das contigiidades. Isto é: subordinagao do serial as leis da analogia. B uma definicao que dé conta das reite- ragdes: do metro, da rima, das aliteragdes, das regularidades mor- fo-sintdticas, da sinonimia, da paronimia, das correspondéncias semanticas. Numa palavra, é 0 triunfo do paradigma, da matriz, a deleitacao em um universo curvo que se fecha e se basta no seu circulo de ressonancias, E a imitagao do Parafso ainda nao machucado pela dor da ruptura e do contraste, A forca de persuasio de que dispdem algumas leituras for- malistas, nas quais tudo é espelho de tudo, provém, quem sabe, de um desejo intenso de eludir a mediatidade do discurso e gozar, sem demoras, da supressio do diferente. Que a férmula de Jakobson seja lida em um registro dina mico, ¢ nao paralisada em compulsiva ecolalia. Um modo de auto- matizd-la é fazer certa andlise ana-( para-/hipo-) gramética que me lembra um trecho das Viagens de Gulliver: Mas se o método falhasse (fala-se da interpretagao de certos papéis politicos), poderia haver recurso Para outros mais eficientes, chamados pelos entendidos acrésticos ou anagtamas. Em primeiro lugar, deveriam descobrit-se homens hébeis ¢ de espfrito penettante, capazes de compreender que todas as letras do alfabeto sfo suscetiveis de significacio politica. Assim, N poderia significar uma conspiragao, B, um regimento de cavalaria, L, uma esquadra. Ou, secundariamente, transpondo-se as letras do alfabeto, em qualquer papel suspeito, poderiam descobtir-se os mais profun- dos designios de qualquer partido descontente. Assim, pot exemplo, se eu disser numa carta a um amigo “o nosso itmao Tomés estd com um ataque de hemorrdides”, um homem perito nesta arte poderd descobrir que as mesmas letras, que formam a sentensa, po- dem ser analisadas nas palavras seguintes: “Resista... conspitacao em tal lugar... a hora.” Este é 0 método anagramitico 9, (9) Jonathan Swift, As Viagens de Gulliver, Terceita Patte (Viagem 4 Lapticia, Balnibarbi, Luggnagg, Glubbdubdribb e ao Japio), cap. VI. ee de José Maria Machado, S, Paulo, Clube. do Livro, 1956, pp. 17-268, 26 Ao poema, enquanto continuo simbédlico-verbal, nao quadra a estrutura simples de espelho de uma natureza tota simul. Ea recorréncia, sonora, mérfica ou sintética, nao quer dizer fusao, Synopsis. Se assim fosse, como entender a fluidez da frase? E como entender os graus diferenciados da sensagao, percep¢ao e€ articulagao simbélica que marcam a histéria do individuo e o desenvolvimento do homo loquens? Puro espelhamento € tauto- logia. Para desenhar a mais perfeita e mais “harmoniosa” das figuras, o circulo, nao se superpdem no mesmo espaco pontos a pontos, mas traga-se uma linha curva que percorrerd pontos dife- rentes no plano, De qualquer modo, sé por metdfora redutora se dird que é “circulo” um poema onde hd ressonancia e retorno. Frases nfo sao linhas, Sdo complexos de signos verbais que se vao expan- dindo ¢ desdobrando, opondo e relacionando, cada vez mais las- treados de som-significante. { Se algum simile adere a natureza da frase, 0 mais justo nfo parece vir do desenho feito a régua e a compasso, mas de artes que dao corpo ao movimento, 4 agao. Assim, a danga, que, na sutil descrigao de Arnheim, produz @ efeito figural mediante uma seqiiéncia dirigida de gestos: e um gesto sé se dé por inteiro a nossa percepgao quando ja passou, ¢ foi seguido de outros. E os compassos de abertura de uma danga jé nao sao os mesmos depois de termos visto 0 resto da composicio. O que sucede durante a execugio nfo & simplesmente um acréscimo de novas contas 40 colar. Tudo o que jd ocorreu é modificado pelo que ocorre depois 1°, Depois que o enunciado se compés e chegou a termo, no poema, pode-se, em tempo de anilise, abstrair a duragao ¢ espa- cializar o texto. Basta ir A cata de reiteragdes e simetrias, tra- gando uma linha que una todas as ocorréncias de algum modo afins (quanto ao som, & fungao, 4 posic#o, ao significado). A idéia de estrutura espacial ganha, nessa fase do trabalho, uma solidez imponente. Parece, afinal, que o poema foi montado para que toda a linguagem se ajustasse a um certo esquema de paradigma; e que ela se torcesse, se contrafsse e se dobrasse sobre si mesma até se sobrepor sem sobras ao estrato dsseo das (10) Arte y percepcidn visual. B. Aires, Eudeba, 1962, p. 305. 27 correlagées. Mas nao foi bem isso o que aconteceu. O metro regular, os ecos, as rimas, as simetrias dispuseram-se no interior de um fluxo verbal que foi adensando com a Ptess4o acumulada dos signos. E enquanto o poema prosseguia, ia-nos desvendando novos perfis e novas relacdes da existéncia. A imagem final, a imagem produzida, que se tem do poema, a sua forma formada, foi uma conquista do discutso sobre a sua linearidade; essa ima- gem € figura, mas nao partilha das qualidades formais do {cone ou do simulacro: procede de operagdes mediadoras ¢ temporais, Em outros termos: a frase parece resultar de um processo antropoldgico novo de significagdo. Como diz Wittgenstein, ela é um modelo da realidade “como nés a imaginamos” (Tractatus, 4.01); como nés, sintaticamente, podemos concebé-la. : oe Toca-se aqui um ponto essencial: o da imagem” frdsica como um momento de chegada do discurso poético. O que lhe dé um cardter de produto temporal, de efeito (ex-factum) de um longo trabalho de expressao, e a diferencia do fcone, do fantasma, imagens primordiais por exceléncia. E em face desse proceso inteiro de significagao que se deve repensar o sistema das repetic6es e os paradigmas que a anilise descobre no poema. O sistema cumpre uma funcao eminente- mente estética, € a marca que leva a forma nftida. Arma da me- méria, conforto da sensibilidade (bis repetita placet), imagem da imagem, efigie remota do eterno Tetorno, a recorréncia faz o que pode para nos distrair das penas que inflige a consciéncia do tempo e da contradigao. E preciso entender na pratica dos retornos o desejo de recuperar, através do signo, o que Husserl designava como a camada pré-expressiva do vivido (Ideen, I, § 124). Esse estrato, que tem o seu lugar na sensacao anterior ao discurso, é perseguido pelo trabalho poético que, no entanto, opera na base de um dis- tanciamento em relacio 4 mesma camada. O paradoxo do instinto, que, para melhor realizar-se humanamente, se nega ou ée sublima (para Freud, o superego desentranha do Id), estd na sabedoria do camponés que poda a drvore para obter melhores frutos. O discurso, inflectindo-se para apanhar a figura da vida, tenta per- fazer a quadratura do circulo. Os radicais do Imagismo, impa- cientes com as tardancas do pensamento, hostis a todo processo que levasse ao conceito, clamavam pelo retorno ao {cone ou pelo 28 siléncio, A visio do relampago que tudo iluminasse em um atimo, ou a entrega ao Nirvana do nao-discurso seriam as opcdes coerentes de rentincia 4 expressao verbal. Lendo Octavio Paz extrai-se 0 sumo desse desespeto em face do enunciado — “Jos objetos estén més alld de las palabras” — sem que se perca a lucidez ao admitir a necessidade do verbo. Que este, porém, se reduza a rdsica callada de San Juan de la Cruz ¢ ao haicai didfano e veloz de Bashd, é a concessdo e 0 pro- jeto estético do escritor mexicano. Na verdade, ver o discutso como um obstdculo no intetior do poema é dar 4 relacio entre o vivido e 0. expresso a férmula do impasse. Aut imago aut verbum. Entao, a poesia, que é feita de verbum e s6 de verbum, deveria negat a sua estrutura éntica para ser tealmente poesia? “La expresidn poética es irreductible a la palabra y no obstante sdlo la palabra la expresa.” Que o paradoxo nao empoce em morta conclusao. Sirya, antes, de acicate ao pensamento. Um caminho € procurar enten- det a razdo de ser estética daqueles procedimentos que a anélise tem valorizado como inerentes 4 mensagem poética, A recorréncia e a analogia A ANALOGIA Pela analogia, o discurso recupeta, no corpo da fala, o sabor da imagem. A analogia é responsdvel pelo peso de matéria que dao ao poema as metéforas e as demais figuras. A critica de lingua inglesa costuma designar com o termo image no sé os nomes conctetos que figutem no texto (casa, mar, sol, pinheiro...), mas todos os procedimentos que con- tribuam para evocar aspectos sensiveis do referente, e que vao da onomatopéia 4 comparacao. Tal uso, extensivo, do termo “imagem” supée claramente que se admite um cardter motivado nos processos semanticos em jogo. Serd um critério vélido para acentuar as virtudes miméticas ou expressivas da onomatopéia e da metdfora, mas sempre dis- cutivel enquanto parece confundir a natureza lingiiistica das fi- gutas com a matéria mesma, visual ou onirica, da imagem. 29 Analogia nfo é fusfo, mas enriquecimento da percepcio. O efeito analégico se alcanca, ainda e semptfe, com as armas do enunciado. Uma das mais agudas teorias da metéfora, a proposta por Max Black 11, vé na interacao de signos diversos, e nao na ana- logia em si, o traco distintivo dessa figura-chave, tantas vezes definida em termos de enlace de palavras que jd teriam algo em comum, Max Black analisa a metdfora “homens sao lobos”, O enun- ciado nao supde uma equivaléncia prévia, dada, entre os termos Postos em relagéo (caso em que a figura seria “natural”), mas institui uma notagdo semantica nova pela qual a énfase que a nossa cultura dé a certos atributos do lobo, como a violéncia e a ferocidade, se transporta pata o comportamento humano. Transferéncia, palavra que traduz literalmente 0 grego meta- phord: eis a operacao constitutiva de uma figura que se tem redu- zido A mera semelhanga, Aristételes: “A metéfora consiste em dar a uma coisa um nome que pertence a alguma outra coisa, vindo a ser a ttans- feréncia ou de pénero a espécie, ou de espécie a género, ou de espécie a espécie, ou na base da analogia” (Poética, 1457b, 6-10). O nticleo da definicio é 0 conceito dinamico de transfe- réncia. O fator de analogia, o ultimo a ser citado, e que, nos exemplos dados pelo fildsofo quer dizer propor¢ado, entra apenas como um dos alvos a que visa o transporte da predicagio. Ex.: se a vida & um dia, a velhice € 0 entardecer, Vida : dia : : ve- Ihice : entardecer, Estava na mente de Aristételes que a metdfora analégica, simulacro da identidade, resulta de um trabalho esté- tico sobre dados reais heterogéneos: “Uma boa metéfora implica uma petcepcao intuitiva da semelhanca entre coisas desserne- Ihantes” (Retérica, II, 7-10; TI, XI, 5). E necessdtio nao perder de vista a distingio entre efeito imagético e procedimento seméntico, Enquanto provém da intui- ¢40 de semelhancas, a metdfora apatece como fmagem,; mas en- quanto enlace lingiiistico de signos distantes, ela é atribuicao, modo do discurso. 2 (11) Models and Metaphors, Cornell University Press, 4.* ed., 1968, Pp. 38 € segs. 30 A semelhanga aparece como efeito de um movimento pelo qual a linguagem produz um contexto comum a palavras que, até entfo, eram proferidas em contextos separados. Quando se petcebe a acdo muitua entre os significados (ho- mem = lobo), entende-se melhor a natureza sintdtico-semAntica, € n&o 66 imagética, da metéfora. O espago novo em que se movem as duas flechas (do homem para o lobo, do lobo para o homem) nao é um lugar de fcones que convivem e se parecem desde sempre, mas é 0 topos onde o ponto de vista do falante tragou um novo liame entre os dois signos. “A metéfora do lobo suprime alguns detalhes, acentua outros — em suma, organiza a nossa visio do homem’’!*, © efeito é figural: o trabalho é de selegao e de combinagio predicativa. Vico, ao definir a linguagem poética dos tempos hetdicos, precisou usat de uma férmula dupla: ela teria sido “um tanto muda, um tanto articulada”. A expresséo de coexisténcia vale muito bem para a metéfora, onde a caca é imagem, o discurso o cagador. A VOLTA QUE £ IDA Essa distingao formal reponta com a maior clareza no caso da recorréncia, outto modo tético pelo qual a linguagem procura recuperar a sensagao de simultaneidade. Re-iterar um som, um prefixo, uma fungdo sintdtica, uma frase inteira, significa realizar uma operacao dupla e ondeante: progressivo-regressiva, regressivo-progtessiva. Do ponto de vista do sistema cerrado, o proceder da fala repetitiva tende ao acorde, assim como o movimento se tesolve na quietude final. E um modo estritamente teleolégico de encarar 0 poema. A beleza da forma adviria do fechamento do sistema; ¢ valotes estéticos seriam a regularidade, 0 paralelismo, a simetria das pattes, a circularidade do todo, Para alcangé-la, baliza-se miu- damente a estrada de sorte que os trechos se paregam quanto a extens4o, quanto ao comeco e ao termo, A Tepeticao, pura ou simulada, torna-se procedimento obrigatério. (12) Max Black, op. cit., p. 41, 31 Convergem para esse critério de perfeigao formal boa parte das poéticas maneiristas, e, em outro nivel, o Formalismo e o Estruturalismo literério da década de 60. Mas a verdade dessa posigéo — ou desse “gosto” — é uma meia verdade. O mesmo movimento que permite o sossego do retorno pode aceder 4 diferenciagio-para-frente do discurso, Re- -iterar, re-correr, re-tomat supdem também que se esté a caminho; € que se insiste em prosseguir. A particula re vale pio sé pata indicar que algo se refaz (1° gtau), mas também‘para dar maior efeito de presenca 4 imagem, e conduzi-la a plenitude (2.° grau), No primeiro caso, estao, por exemplo, “re-atar”, “re-ver”, “re- “por”. No segundo: “‘te-clamar” (clamar com mais forca), “re: -algar’”’ (levantar mais alto), “re-buscar” (buscar com insisténcia ), “re-generar’”” (gerar de novo, salyando ) verbos nos quais 0 sentido que se produz é antes de intensificagao que de mera tecorréncia, Entre a primeira e a segunda apari¢io do signo correu o tempo. O tempo que faz crescer a arvore, rebentar o botio, dourar o fruto. A volta nao reconhece, apenas, o aspecto das coisas que voltam: abre-nos, também, o caminho pata sentir o seu ser, A palavra que retorna pode dar 4 imagem evocada a auta do mito. A volta é um passo adiante na ordem da conota- 80, logo na otdem do valor, Os pousos se parecem uns com os outros. Sao necessdrios ao félego do viajor, mas na marcha cada Passo, mesmo o que leva ao pouso, é um novo passo. Amor € um fogo que arde sem se ver; E ferida que déi ¢ nao se sent E um contentamento descontente; dor que desatina sem doer; um nao querer’ mais que bem querer; solitério andar por entre a gente; um nfo. contentar-se de contente; cuidat que se ganha em se perder; um estar-se preso pot vontade; servir a quem vence, o vencedo: E um ter com quem nos mata lealdade. Mas como causar pode o seu favor Nos mortais coracdes.conformidade Sendo a si tao contrério o mesmo Amor? ts ch teh beh toh teh inh on “Amor € um fogo que arde sem se ver.” No soneto de Camées, a reiteragio do verbo conectivo (é... €... 6...), por dez vezes, nao se esgota no procedimento reté- tieo de volta a uma palavra-chave. Também impele o perfodo para adiante, clareia a exploracio semAntica do sujeito comum, Amor, e repuxa em diregdes novas o patadoxo inicial do Amor que é fogo e que arde sem se vet. A tepetig&o poética nao pode fazer o milagre de me dat o todo, agora agora. Ao contrdtio da viséo fulminea, ao contrdtio da posse, ela me d4 o sentimento da expectativa. Linguagem, agonia. A repeti¢aéo me preme a conhecer o signo que nao volta: as diferengas, as partes médveis, a surpresa do discurso. Em outro plano: a andfora poe e repde continuamente diante do nosso espirito a intencionalidade que anima todo o poema de Camées: 0 queter-dizer-o-que-é-Amor. A essa dupla face do procedimento (a repeticgo em si; a repeti¢ao no todo) aplicam-se com justeza as palavras que, em outro contexto, Gilles Deleuze escreveu sobre 0 co-senso: A organizagio da superficie fisica nfo € ainda sentido, Ela é ou melhor, ela seré co-senso, Isto é: quando esse sentido for pro- duzido sobre uma outra superficie, haveré também aquele sentido 13. A “organizacao da superficie fisica” é a niatéria significante do poema com todos os seus jogos de figuras e retornos, é 0 conjunto dos procedimentos, A “outra superficie” é a que se nos dard quando apreendermos o sentido pleno do texto. Mas entfo, ser4 preservado, no nfvel da meméria e da sensibilidade, também aquele primeito e volteante co-sentido, Abto a Divina Commedia ¢ leio a primeira tercin: Nel mezzo del cammin di nostra vita mi ritrovai per una selva oscura che la via diritta era smarrita, (Inf. I, 1-3) Posso comegar pela rima, retorno obrigado. Swarrita rima com vita, E um acorde. Um pouso onde descansa, sonoramente, © terceto. (13) - Logique du sens, Ed. de Minuit, 1969, p. 272. 33 Mas smarrita nao dé apenas um eco agradavel a vita. Smar- Vila @ ppredicativo de via diritta (che la via diritta era smarrita), expressilo que se op6e, pelo som e pelo significado, a selva oscura, © temete A locucao englobante cammin di nostra vita, que, por sua vez, compreende tanto via diritta quanto selva oscura. A palavra vita n3o esté sé: & determinada por nostra, cole- tivo do qual se recorta e se destaca o sujeito singular em mi ritro- vai, expresso verbal que informa ao mesmo tempo a petspectiva da enunciagio (eu, 1.* pessoa) e o significado de estranheza (encontrei-me, dei por mim), sentimento que smarrita adensa com a forte conotagio de desvio e de petda: simbolicamente, confusao, pecado, extravio. Por outro lado, smarrita ptedica via mediante uma forma verbal no passado imperfeito, era (la via diritta era smarrita), ao Passo que 0 ato de dar acordo de si (mi ritrovai) vem consttuido pelo passado remoto: de onde, a distancia que se cava entre © tempo da petdicio (era smarrita) eo tempo da consciéncia (mi ritrovai). Voltando agora ao fato da teiteragao fénica inicial: Smarvita tima com vita, nao h4 dtivida, mas o faz através de uma estrada rolante cheia de desdobramentos e nexos dos quais se mencionou apenas uma pequena parte, © que fez a linguagem de Dante com o mundo da imagem? Com o meio do caminho, com a selva, com a teta via? Deu-lhes ato de presenca, uma unidade de tom, um ponto de vista. E submeteu a matriz imagética a uma bateria de relagSes que exci- taram os podetes diferenciadores do enunciado. Relagdes de modo, tempo, numero, Pessoa, causa; inclusfo, oposicao, contra- dig&o... } Sem a poténcia expansiva do discurso, que tudo permeia, a imagem, absoluta, poderia dat a sensagao de algo empedrado: o meio do caminho 0 meio do caminho o meio do caminho a selva a selva a selva, Mas na corrente do texto nada existe de j4 feito, tudo esté- -se fazendo. Abre-se em cada imagem um vazio — cheio de desejo ou de espera — que reclama a plenitude da relacéo, E dopo il pasto ha pir fame che pria, O fundo, aparentemente concreto, de uma imagem solitdria (mezzo del cammin ou selva oscura) € um fundo falso: se nos 34 contentamos com ele, o que nos resta nas maos é um fetiche ou, pior, uma pesada alegoria. E preciso empurtar a parede desse fundo, fazé-la abrir-se para o terreno mével da frase, e o pro- cesso reviverd. O caminho passard pelo meio da nossa vida e a elva escura marcard o lugar onde um homem se perdeu e se reen- controu. A imagem que, quando s6, remetia a si mesma — e era fdolo, enigma, autofruigao — tevelard no processo verbal um poder terrivel de antecipacao. E, junto com a analogia, a recorréncia e 0 cruzamento dos sons (rimas, assonancias, paranomdsias) exetcerfio, ao longo de todo esse processo, uma fungao mestra de apoio sensorial. Ao lado das imagens do caminho e da selva, os sons lastteiam com um peso maior a diccAo poética: 0 peso do corpo que se mostra e cai sobre si mesmo. A carne do signo poético nos aparece quase-em-substancia nas imagens da selva e do caminho. Aparece menos espessa, musical quase, no eco vita-smarrita. Afinada, vazada e transformada pelas operag6es predicativas que se atualizam nos lagos da frase. As imagens, quando assumidas ¢ recodificadas pelo discurso, dao a este uma textura complexa cujos modos de base, os fan- tasmas, se poem “entre o puro pensamento e a’intuigio da natu- reza” (Hegel). Ao pensamento (“sem imagens”) devem-se as operagGes, algumas narrativas, outras conceituais; a intuicio, os matetiais substantivos que as imagens trazem A fala: o caminho, a selva, a reta via... O discurso, fiel as relagdes, contém em si uma tio alta dina- mica que, se deixado a si préprio, poderia abafar, senao abolit a imagem. O pensamento puro é negatividade. Mas o dano nao se consuma jamais, de todo, no discurso poético. Neste a imagem reponta, resiste e recrudesce, potenciando-se com as armas da figura. E como se essas armas nao bastassem, € 0 enunciado mesmo que cede o seu estrato mais sensivel: 0 som. Que o som e todos os seus ecos venham adensar a face concteta do poema. Se no fim do ttajeto a imagem parece ter ultrapassado o dis- curso, a transcendéncia se fez também em sentido conttdrio: para levar a figura plenitude, foi necessdrio desatar a corrente das palavras. Goethe: “A idéia, na imagem, permanece infinitamente ativa e inexaurivel.” 35 A tealidade da imagem esté no icone. A verdade da ima- gem estd no simbolo verbal. Pode-se ever agora, sub specie differentiae, a proposta de simultaneidade como efeito ultimo do poema. A palavra criativa busca, de fato, alcancar o coracéo da figura no relampago do instante. Mas, como sé 0 faz mediante o trabalho sobre o fluxo da lingua, que é som-e-pensamento, acaba supetando as formas da matéria imagindria. O poema — cosa mentale leonardesca — transforma em duragfo o que se dava a principio como um dtimo. Para tanto, 0 som-pensamento, a que Saussure atribuia o cardter da linearidade, melhor se entenderé como fendmeno ativo e vectorial, Entre as imagens cerradas nos seus limites e a forma em movimento do poema aconteceu passar a flecha do discurso, 36 O SOM NO SIGNO

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