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ANNE DUFOURMANTELLE CONVIDA, Jacques Derrida AFALAR DA HOSPITALIDADE ‘Tradugdo ‘de Antonio Romane Revisio Técnica de Paulo Ottoni ‘D by Eeitora Escuta para edigio em tingua portuguesa Tela original: Anne Dujournantele smite Jacques Dera d repondre De Uhspitalite Calmennévy ‘Mesige: margo de 2003 Epmrones Manoel Testa Berlinck Maria Cristina Rios Magalies ISG. 2 ‘Cann Danie! Trench Propucie Boronia. “Aside Senches Calalogasdo st Fonte do Depta, Nac do Livro D438 Demis, Jacques. ‘Anne Dufourmantetle convida Jcques Deri daa falar Da Hospitalidde / Jacques Derrida (Eatrevis tado]; Anne Dofourmant \dugto de Antonio ‘Romane; revisto téeniea de Paulo Otoni .~ Sto Paso + Bseata, 2003 144 Hx2t an ISBN 85-7137-209-8 |, Derrida Jacques. 1930- 2. Psicanslse 1. Du- fourmartele. Anne. 1. Titato cop-150195, ace $4293 1 ditora Escuta Lida, Homem de Mella, 446 07-001 Si0 Paulo, SP Telefax: (11) 3865-8950 / 3675-1190 / 3672-8345 S533 im sete ol amb SUMARIO ‘Anne Dufourmantelle 4 0 DO ESTRANGEIRO: VINDA DO ESTRANGEIRO Jacques Derrida 5 .DA DE HOSPYTALIDADE, PASSO DA HOSPITALIDADE Jacques Derrida 67 Ave Durovewanreite Convite Um ato de hospitatidade s6 pode ser poéiico Jacques Derrida Ea hospitalidade pottica de Derrida que ex gos- teria de evocar nestas paginas, coma dificuldade da Parte noite, a parie que num pensamento filosdfico no pertence orden do diay do vst edo memé- ria, E buscar aproximar-se de um siléncia em torno do qual o discurso se ordena, e que as vezes 0 poe: ma descobre, mas poien ; Mas que senypre, no proprio moviment da patavra ou da escrita esgivacse an desde ‘mento, Se uma parte noite se inscreve na linguagem, la € também, ali, 0 momento do ocultamento, Essa vertente noturna da palavra poder-se-ia chamar obsessito. Um fulsitio pode imitar 0 gesto do intor ou 0 estilo de um escritor tormando impercep- ‘vel sua diferenga, mas jamais conseguird rornar sua obsessito, aquilo que os obriga a incessantemente voltar ao siléncio no qual esta seladas as primeiras impresses. A obsessito' de Derrida nesta narrativa 1 Obsessio que nos¢ indica por virins mas dos seminirios {O etemun’. A amizade",°Oserede, "Rei do a. Jacques DERRIDA Questdo de estrangeiro: vinda do estrangeiro Quarta sessio (10 de janeiro de 1996) ‘A questio do estrangeiro nio seria uma questo cstrangeiro? Vinda do estrangeiro? ‘Antes de dizer a questao do estrangeiro,talvez se se precisar: questo do estrangeiro. Essa dife- 1 de acento, como entendé-la? Existe, como dizfamos, uma questao do estran- ‘ro. E urgente abordi-la — como tal. Esta bem. Mas antes de ser uma questo a ser tra- ‘antes de designar um conceito, um tema, a ques- do estrangeiro & ma questo de estrangeiro, uma io vinds do estrangeiro, © uma questo a0 es fo, dirigida ao estrangeiro. Como se 0 estran- io fosse, primeiramente, aquele que coloca a do ou agucle a quem se enderega a primeira 20, Como se 0 estrangeiro fosse 0 ser-emn-ques- ‘2 propria questo do ser-em-questo, 0 ser-ques- ‘ou 0 ser-em-questio da questio. Mes também le que, ao colocat a primeira questio, me ques- ‘Que se pense na situago do terceino e na jus- que Lévinas analisa como “o nascimento da [Antes de prosseguir nessa questio da questio a ir do lugar do estrangeiro, ¢ de sua situagio gre- |—como havfamos anunciado -, limitemo-nos a al- observagies a titulo de exdrdio. 5 AD, Cowvire Ailoséfica, recida em torno do belo tema dai hespita- lidade, demora-se em desenhar os contornos de wna gcografia ~ impossivel, ilfcita ~ da proximidade. Uma proximidade que néo se oporia a um algures vindo cered-la de fora, masao “prima do préximo”, este orbe insustentdvel da inimidade que se esvai en dio. Se dissermos que 0 assassinio e 0 édio desig- tnain tudo 0 que exclui o proximo, isto € assim por- quanto arrasem pelo interior uma relagéo origindria com a alteridade. O “hostis” responde & hospitalida- 2 Hosts em lain, significa héspede, mas tambén host ii igo. J.D, QuESTAODO ESTRANGEIHO: VINA DO ESTRANGEIRO Voltemos para aqueles lugares que acreditamos, familiares: aos muites diélogos de Platio, nos 4) quientemente € o Estrangeiro (Ksénos) quem ques jona, Ele carrega e dispde a questio, Logo nos lem- Ie ice do Softsa. Bie Kutrangiirs ques prosipitando; questo intoleravel, a quesiao parricidio, contesta a -¢ parmenidiana, questiona o logos do nosso pai ienides, rom tou patrds Parmenido tégon. O es- mngeiro sacode o dogmatismo ameagador do logos paterno: 0 ser que é 0 nio-ser que no 6. Como se o Estrangeiro devesse comerar contestando a autori- xde do chefe, do pai, do chefe da familia, do “dono do lugar”, do poder de hospitalidade, do hosti-per-s de que tanto jé falamos. (0 Estrangeiro do Sofista parece aquele que, no undo, deve dar conta da possibilidade da sofistica. E ormo se 0 Batrangeiro aparecesse nos tragos que fa- fem pensar num sofista, alguém que a cidade ou 0 tado vai tratar como sofista: alguém que nao fala Como o$ outros, alguém que fala uma lingua engraga- Mas o Ksénos pede para nio ser tomedo por par- ricida. “Eu faria ainda um pedido”, diz 0 Ksénos a “O que queres dizer”, pergunta Teeteto. O wgeiro: “E que seri necessério, para nos defender, jucstionar a tese (Vdgon) do nosso pai Parménides e, forca, estabelecer que 0 ndo-ser €, sob qualquer ideragHo, ¢ que 0 ser, por sua vez, de certa ma- ira no Eis a questo temida, a hipétese revolucionéria i) Estrangeiro. Ele se previne de ser parricida por enewacdo, Ele ndo cuidaria de se defender se sentis- ‘no fundo, que na verdade cle & parricida, virtual- ne parricida, c que dizer “o nao-ser é” & um io a l6gica paterna de Parménides. um desafio do do estrangeiro. Como todo partictdio, este ontece em familia: um esirangeiro $6 pode ser par- jcida se estiver de alguma forma em familia. Nés AD. Convite de como o fantasma se faz lembrar aos vivos sem admitir 0 esquecimento. A racéo pacificada de Kant, Derrida opve a teimosia de uma pessoa em quem a «alteridade impede de fechar-se em sua quietude. Quando Derrida lé Séfocles, Joyce, Kant, Hei- degger, Celan, Levinas, Blancho: ou Kafka, ele néo ‘apenas acompanha os textos oferecendo-lhes uma seguada ressonincia, mas “obseda-os” com 0 tema com o qual ele trabalha, 0 qual desde entdo atua como wn revelador fotogrifico. Testemunha disso é © momento em que, no semindrio, comentando as tle timas cenas do Edipo em Colona, a partir da idéia de hospitalidade dada & morte ¢ aos mortos, Derrida 8 D_-QUESTIODO ESTRANGEIO: VINA DO ESTRANGEIRO 10 iremos encontrar algumas implicagies dessa 7 de {amilia ¢ dessa dilerenca de gerarao assina- por toda alusio ao pai. A resposta de Teeteto fica sfraquecida pela wadusdo. Ela registra bem o cars propriamente polémico, belicoso mesmo, disso mais do que um debate (“debate” & a palavra da lucio convencional da resposta de Teeteto quan- ele diz Phainetai to toiuton diamakéteon en t0is sois: € evidente, parece evidente que & aqui que se ve se baler, diamikéteon, livrar um combate enc: igado ou & aqui que se deve levara gucrra para den- dos 16g0i, dos argumentos, dos discursos, dentro Jogos — ¢ no, como diz. amavelmente, pacifica- te, tragugao Dies: “E aqui, evidentemente, que preciso levar o debate” (241, d). Nao, mas mais gra ‘vemente: “Parece que aqui deve ser a guerra armada, “ou 0 combate, dentro dos discursos out dentro dos ar- ‘umentos”. A guerra interna ao loges, esta € a ques- ‘ao do estrangeito, a dupla questio, a altercagio do pai com o parricida, E também o lugar em que a uestio do estrangeiro como questo da hospitalida- Ge articuls-se com a questo do set. Nés sabemos que a0 Sofista aes Sein und Zeit,em sua introdu Nas deverfamos, se fosse possivel, reconstituir ‘guase todo 0 contexto e reler a seqiéncia encadeada pela réplica do Estrangeiro. Ela evoce, ao mesmo tempo, a cegueira ea loucura, uma estranhs alana dacegueira com a loucura. ‘A cegueira primero. A resposta de Teeteto — “Parcee evidente, phainerai, que aqui & preciso levar a guerra” -, 0 Estrangeiro responds, pore valorizar: “E evidente mesmo para um cego”. Ele 0 diz sob for- ma de questéo ret6rica; & um simulacro de questio, © {que em ingles se chama rhetorical question: “Como “fo seria evidente e, como se diz, evidente mesmo “para um cego, kai ro legdmenon de touta tuphlo?” ‘A loucara em seguida. Para um tal combate, para a refutagio da tese patema, tendo em vista um possf= 9 AD. Cowne acentua nisso a absoluta contemporaneidade, en- quanto se impoe aos que 0 ouven a necessidade des- Sa estranha “visitagdo” da tragédia de Séfecles. A convocagdo que ele endereca a eutores mortos ow vives para vaguear com ele pelas paragens de wn tema indo o faz dar as costas “és urgéncias que nos assal- tam nesie fim de milénio", segundo suas proprias pa- lavras. Pelo contrério, ele sustenta a confrontacdo. Neste seminévio existe uma justeza perceptivel ao ‘ouwvido, Isto se deve, creio ev, intona concordancia do pensamento e da palavra ~ seu ritmo cancertado ~ como nessa escansto do tenia que obceca a reflexaio fllosofica, mas também nas passagens ao limite que 10 J.D. QuisTA0 00 ESTRANGERO: VINDA DO ESTRANGEIRO vel parricidio, 0 Ksenos se diz muito fraco: ele no tem em si a confianga necesséria. E como um Estran~ geiro parricida, portanto um filho estrangeiro, pode- fra @-la? Insistamos sobre a evidéncia enceguecedora ‘eenlouguecedora: um “flho estrangeiro” porque um parricida nao pode ser senao um filho, Na verdde, com a questo que coloca sobre 0 ser do nBo-ser. 0 Estrangeico teme que o tratem de louco (manikés), Fle teme passar por um filho-estrangeiro-louco: “Te- rho entéo medo d= que o que eu disse possa dar-te ‘ocasio de me olhar como desequilibrado”, diz atra~ fetes de “estrangsince” na domesticdade. Pode-se falar bas- tae sobre linguas dentro de ura lingua: da as crivagens, 28 teases, os confitos vuss ou obguos, declaados ou dif ios, ete 19 AD, Conve 4, de seu ritmo e do tempo exigido para dizé-la. "O como da verdade é precisamente a verdade”,*escre= veu Kierkegaard. Entao, é é escuta desse “como” préprio ao pensamento de Derrida que me apego, a0 invés do exercicio estérit do comentario. “E preciso 29 fildsofo um duplo ouvido. insistia Nietzsche, “no sentido de que hd um dom de visio dupla isto é, ore= thas as mais suiis”. E uma atengio sensivel & carne da patavra que Nietzsche exigia para sua obra. “O homem, 6 1 komem superior, presta atengao. Este 3. S. Kierkegaard. Postscriptum definitif aux Mietes philo- sophiques. Euvres complbier. Ed. de POrante t. Xl. p. 22 20 J. D.-QUESTAO DO ESTRANGEIRO: VINDA DO ESTRANGEIRO ‘go paradoxal de hostis (sobre 0 que fialamos bastante ‘nas sessGes anteriores}, Seguindo a légica desse argu- ‘mento — que nds discutimos pela titima vez — a pro- ‘pisito da reciprocidade ¢ da igualdade do “contra” na ‘roca, Benveniste sublinha que “a mesma instituic20 ‘existe no mundo grego sob outro nome: Asénos indi- ‘carelagdes do mesmo tipo entre homens ligados por ‘um pacto que implica obrigagdes precisas estenden- do-se 40s descendentes”. Este ponto & critico. Trata-se de saber se esse pacto, esse contrato de hospitalidade que liza ao es- trangeiro ¢ que liga reciprocamente 0 estrangeito. vale para além do individuo e se estende-se, assim, & toda a familia, a gerarao, & genealogia. Nao se trata, ainda que as coisas sejam conexas, do problema clis- sico do diteito & nacionalidade ou & cidadania como direito de nascenga — ligado, aqui, a0 solo ¢, Ii, a0 sangue. Nio se trata apenas do elo entre nascimento ‘enacionalidade; ndo se trata apenas da cidadania ofe- recida a alguém que nfo a tinha anteriormente, mas “do dircito acordado ao estrangeiro enquanto tal, a0 -estrangeiro que continua estrangeiro,€ aos seus, & sua familia, a seus descendentes. ‘© que nos leva.a refletir sobre esse dircito fami- lial ov geneal6gico que avanca para mais de uma ge- ragio é, no fundo, que nao se trata de uma extenso do direito ou do "pacto” (para me servir da palavra de Benveniste, que insiste sobre a reeiprocidade do en- _gajarnento: o estrangeiro nao tem apenas um dircito, ‘mas também, reciprocamente, seus deveres, como s° diz. comumente, cada vex que se quer repreendé-lo ‘por alguma md conduta); nao se trata, aqui, de uma ‘simples extensio do dircito individual, da extenszo familia ¢ as geraybes de um dircito ecordado primei- ramente a um individuo. Bem pensado, isso faz ref tir sobre 0 fato de que, para comegar, 0 direito & hospitalidade pressupde uma casa, uma linhagem, ‘uma familia, um grupo familiar ow étnico recebendo A.D. Conve discurso se enderega a twas finas orelhas, a twas orelhas ~o que diz a profunda meia-noite?"*, Nés devernes aprender a perceber 0 quase inaudivel Porque, disse ainda Nietzsche, “a isso que nito se tem acesso pela experiéncia vivida, nio se tem are. thas para ouvilo. Imaginemos que se trate de una nova linguagem falando pela primeira vez de uma nova ordem de experiéneia. Neste caso, aconiece um Fenbmeno extremamente simples: nao se ouve nada 40 F Nietzsche. Ainsi parlatt Zarathoustra, “Le ehant du ‘mareheur de nuit’. Gres completer, Pans: Gallimard 1971 LVL p. M2 2 J.D.—QUESTAO DOESTRANGEIRO: VINDA DO ESTRANGFIRO. um grupo familiar ov éinico, Justamente por estar ins- ito num direito, um costume. um erkos € uma. inichkeir, essa moralidede objetiva, da qual falamos sna Glkima vez, supoe 0 estatuto social e familiar dos gontratantes, 1 possibilidade de que possam ser cha- ados pelo nome, de ter um nome, de serem sujeitos de direito, dotados de uma identidade nomindvel e de “um nome préprio. Um nome préprio no € nunca pu- ramente individual. Se nos detemos um pouco mais sobre esse dado ‘significativo, pode-se notar mais um paradoxo ou ‘uma contradigao: esse direito a hospitalidade ofereci- “doa um estrangeiro “em familia”, representado e pro- ‘legido por seu nome de familia, €a0 mesmo tempo o “que toma possivel a hospitalidade ou a relagio de “hospitalidade com o estrangciro, o limite ¢ o proibi- ‘do, Nessas condicbes, ndo se oferece hospitalidade 20 ‘gue chega andnimo e a qualquer um que néo tenka “nome proprio, nem patronimico, nem familia, nem es “tatuto social, alguém que logo seria tratado nao como trangeiro, mas como mais ur bésbaro. Jé fizemos aluso a isso: a diferenga, uma das sutis diferencas, 85 ‘vores imperceptiveis entre 0 estrangeiro e 0 outro absoluto, € que este dltimo pode nio ter nome e nome de fama: a hospitalidade absoluta on incondicional “que cu gostaria de oferecer a ele supée uma ruptura com a hospitalidade no sentido corrente, com a hos- ‘italidade condicional, com o direito ou 0 pacto de hhospitalidade. Falando assim, ¢ uma vez mais, nds “estamos considerando uma pervertibilidade irreduti- ‘yel. A lei da hospitalidade, a lei formal que governa ‘oconceito geral de hospitalidade, aparece como uma ‘ei paradoxal, perversivel ou pervertedora, Ela pare- ditar que a hospitalidade absoluta rompe com a lei ia hospitalidade como direito ou dever, com 0 “pac- 10” de hospitalidade. Em outros termos, a hospitalida- de absoluta exige que cu abra minha casa © nao nas ofereca ao estrangeiro (provido de um nome B AD. Convire do gue diz 0 autor ¢ tense a ilusto de que ali, ‘onde nao se ouve nada, nao existe nada”? A primeira impresséo que se tem na escuta do Ssemindrio é de owir desenvolver-se uma partivara _ Musical que tornaria audivel o préprio movimento do -pensamento, Tudo se passa como se assistissemas a im Pensamento pensante no momento de sua eniin- _clagdo. Aquito que 0 filésofo desenvolve. em voz alta, ‘0 tem uma wrdidura lisa e univoca, mas expe suas "© F Nietsche. Bece Homo. umes completes, Paris Galimard, completes, 1974 cicimpressio, 1990) 4, IIL p. 277, 4 J.D.- Quistaono esreaNcrme: vinma DO RSTRANGEIRO. Fama, de um estatuto social de estrangeiro, etc), 0 otto absolute, desconhecide, anénimo, que 1 The ceda lugar. que eu 0 deixe vir, que 0 deixe shegar, ¢ ter um lugar no lugar que oferego a ele, sem xigir dele nem reciprocidace (a entrada num pacto), em mesmo seu nome. A lei da hospitalidade abso- luta manda romper com a hospitalidade de direito, com a lei ou a justiga como direito, A hospitatidade _justa rompe com o # hospitalidade de direito; no que ela a condene ou se the oponhs, mas pode, a0 contré- rio, colocd-la ¢ manté-la num movimento incessante de progresso: mas também the € tio estranhamente hreterogénea quanto a justiga € heterogénea no dirci- todo qual, no entanto, esti tio préxima (na verdade, indissocidvel). (Ora, oesirangeiro, 0 ksénas de quem Socrates diz ‘que pelo menos "v6s 0 respeitarieis, v6s tolerarieis ‘seu acento ¢ seu idioma’, ou aqucle de quem Benve- niste diz. que entra num pacto ~ esse estrangeiro que tem direito & hospitalidade na tradigo cosmopolitica que terd sua forma mais potente com Kant € 0 texto que ja lemos e relemos, esse estrangeiro, entio, éal- ‘guém que, para que seja reeebido, comega-se por {querer Saber 0 seu nome; ele € levado a declinar ¢ garantir sua identidade, como se testemunha diante de tum tribunal. Alguém a quem se coloca uma questéio ce dirige uma pergunta, a primeira pergunta: "Como te chamss”, 02, ainda, “Se me disseres como te cha- ‘mas, respondendo a esta pergunta tu respondes por ti, tu & responsavel diante da lei e diante dos teus hos- peidciros, m é5 ume pessoa de dircito”. Eis af uma questio do estrangeiro como questo da quest, ‘A hospitalidade consiste em interrogar quem che- ‘#2 Ela comeca pela questo enderecada a quem vern (© que parece bastante humano, amével, supondo-se ‘que falta ligar hospitalidade a0 amor enigma que vamos deixar, por enquanto, um pouco de lado): 23 AD. Convire rupturas. Ele dé lugar ao espanto, aquilo que rompe a relexdo sob 0 toque do susto, Por que susto? A palavra parece excessiva para dizer apenas o que espanta. No entanto, é mesmo dis- so que se trata, ndo 0 susto produzido pelo efeito de~ vastador ou que subjugue a propria palavra, mas esse espago inconhectvel que a palavra apreende dante do qual lanes faz parar um momento, sobres- saltados. Assim como numa partitura as notagdes dos siléncios fazem entrar a linha meiddica em didlogo como silencio quea sustenta, a palavrafiloséfica es- esa a ligicaprecisa de wm raciocinio pare, mun dado ‘momento, melhor farpear sua evidéncia. Costuma-se 26 ECA BRL J.D.-QUESTAO DO ESTRANGEIRO: VINDADO ESTRANGETRO ‘como te chamas? diga-me teu nome, como devo cha- ‘marete. cu que te chamo, que quero chamar-te pelo ‘nome? como vou chamar-te? E assim também que se dirige, ternamente, as criancas ou aos amados. Ou seri que # hospitalidade comesa pela acolhica in- questiondvel, num duplo apagamento, o apagamento dda questo ¢ do nome? E mais justo ¢ mais amavel perguntar ov no pergunta:? chamar pelo nome ou sem o nome? dar ou aprender um nome jé dado? Ofe- rece-se hospitalidade a um sujeito? aum sujeito iden- tificdvel? a um sujeito identificével pelo nome? am sajeito de direito? Ou 2 hospitalidade se torna, se da a0 outro antes que ele se identifique, antes mesmo ‘que ele seja (posto ou suposto como tal) sujeito, su- jeito de direito e sujeito nomindvel por seu nome de familia, etc.? ‘A questio da hospitalidade €, assim, a questo da {questiio; mas também é a questio do sujeito ¢ do ‘nome como hipdtese da geragio, ‘Quando Benveniste pretende definir ksénos, n30 existe nada de fortuito que ele parta de ksenfa. Ele inscreve ksénos em ksenia, quer dizer, no pacto, nO ‘contrato aii alianga coletiva, como também se chama- ‘ya. No fundo, néo existe kséns, nfo existe estrange’- 10 antes ou fora de Asenia, desse pacto ou troca com ‘am grupo, mais exatamente com uma linhagem. He- r6doto dizia que Policrates tinha concluide uma isenia (um pacto) com Amasis e que eles tinham tr0- ‘cado presentes: ksénien swrethekato (verbo por pac~ to: eles conclufram, como um pacto, uma xénia) pempom dora kai dekémenos alla par’ekeinou, envian- do.e recebendo dons, reciprocamente, um a0 outro. Relendo-se Benveniste nés encontrarfamos outros exemplos do mesmo tipo. Para terminar esse ex6rdio, Jembremos apenas um lugar-comam em Socrates. Ele ‘ocupa essa posigao de estrangeiro, ¢ justamente numa festranha cena da questo, da questio-resposta inver~ tida, se assim podemos dizer. Longe de perguntar ou 21 AD. Conve chamar aporia a esse momento; 0 €1 romenio; 0 cruzamento in- decidivel dos caminkos, Quando entramos num lugar desconhecido, a ‘emogdo senvida € quase sempre a de uma indefinivel inguienude. Depois comeca o lento trabalho de fami- liarizasdo com o desconhecido, e pouco a pouco 0 ‘nal-esiar se interrompe. Umea nova familiaridade se segue 40 susto provocado em nés pela inrupgao de “un outro”. Se 0 corpo é tomado por reacées instin- tivas as mais arcaicas pelo encontro com 0 que ele nao reconhece imediatamente no real, como 0 pensa- mento poderia realmente apreender, sem espanto, “um outro”? Ora, o pensamento é, por esséncia, um 28 D.—QUEsTA0 DOESTRANGEIRO: VINDA DO ESTRANGERO lar para a lei ¢ para o direito da cidade, ele € per~ tado, apostrofado pelas Leis. Estas se dirigem a ppara he colocar questies, mas falsas questdes, st@es simuladas, “questoes retéricas”. Questoes jadilhas. Ele apenas pode responder a0 que as js, em sua prosopopéia, qucrem e esperam que cle esponda. E a famosa Prosopopéia das Leis em Crf- que voe8s devem ler com a maxima atengao, as da qual quero apenas evocar o ataque. Sécrates ida finge, desta vez depois de ter sido condenado “morte, comportar-se como estrangeiro, disposto a ixar a cidade sem autorizapao, fugit de Atenas de- fiando as Leis da cidade. Estas se dirigem a ele para ccolocar questbes maliciosas, esses questoes imposst- eis. ‘No comeyo dessa passagem € a entrada cm cena das Leis, of noméi. Entrada em cena mise en scéne por Sécrates, pelo Séerates de Platdo que, assim, fala ‘por meio do rosto das Leis, por intermédio da voz. de sua prosopopéia. Prosopopsia quer dizer rosto, mis- cara, ¢ primeiroa voc que fala por meio dessa misea- ‘ra, uma persona. uma voz sem olhar (daqui a pouco B40 wevans docogo cu vax db Ecipo,o extrangeim dir rigindo-se a esirangeiros no momento em que, apcia- do em Antigona, ee chega a Colon): ‘Socnures: Ent, consider ist. Suponha que estando ¢ pomto de nos evadie~ chame a isto como queiras ~ 265 ejamos vir sobre nbs as Leis « o Estado, que ces se pefilern 80s interroguci: “Diz-nos, Sécrates, 0 que queres fazer? O {que tentas nit € outa coisa Sento destrut-ns. 1s Leis, © todo o Exiado, se esivesse em teu alcance’ Th eres realmente ‘que um Estado ssa subsist, que ndo sei derubade, quando 6s julgamentos tomados tornam-se sem forca, quando particulars podem suprimir seus efeitos e desri-os?” O que Fespondesfames, Cts a tas questBes ecutras semethanes? {Que razdes polesfamos formular— sobretudo um orador ~ para fo defesa dessa lei, destrufda por nés, que quer que 08 julgamentos, uma vez tomades, enham sea efet0? Diriamos, ‘Mia 0 Estado nos fr um mal, ele nos juigou erradamente!” Bisioo que diiemos? 2» AD. Coxvire potencial de dominio. Ele nunca deixa de encami- nhar 0 desconhecido ao conhecido, de fatiar o mis- tério para fazéslo seu, para clared-lo. Nomed-lo. 0 que acontece quando nossos olhas se detim sobre palavras como “hospitalidade, proximidade, encrave, ddio, estrangeiro...2” Mesmo que durante um instante encontremes ali o “algures”, elas logo do assimiladas a wma paisagem marcada pelo selo do nosso habito de pensamento eda nossa membria. E provdvel que em alguns momentos 0 uso filosofico da ironia. de Sécrates a Kierkegaard, tena podido inguieiar o penswnento. Mas voltemes ao susio pro- vocado por nossa entrada num lugar desconhecido 30 J.D. QueSTAO HO ESTRANGERO: VINOADO ESTRANCEEO Cums: Ceramente, nio, Soerates Socrates: Mas suponhamos, entio, gue as Leis nos ‘gam: “Séerates, fo sto 0 que ficou convercionado entre ta f nbs? Nao foi que inhas por vilidos os julgsmentos do Estado, quaisquer que fossem eles?" E se nds nos spantisemos com tals palavras, eas poderiam dizer. "Nao te espantes, crates, comm nossa inguagem, mas responde- ‘os, jf que € feu costume perguntare responder. Vejames: 0 {que nos censuras, a nds€ 20 Estado, para tentar nos destui?? Nie é ands que dover tou nascimento, ado é a nés que ‘casinos feu pa e tua rae os dispusemos a te engendrar? Fale, tens alguma critica a fazer aquelas que dentre nés regulam os casamentos? Tuas tem por mal fetas?”—De moco falgum, recponderia eu, "E quanto iquelas que regulam os fuidados ds infincia, a educacSo que também fo a tua ~ si0 la rains, as Isis que dizem respeito a isso, aquelas que Drescreverum ao tev pai fazer-te instrir na misica © 00 -ginisiea?” Sécrates aparece, entio, como um estrangeiro tos limites de Atenas. Pensa er fugir, que foi con- denado, mas renuncia a sair da cidade quando as Leis ‘se dirigem a cle para imerrogé-lo, na verdade esten- der-Ihe falsas questdes. Poderfamos conirapor a essa figura de estrangei- 0, a0 mesmo tempo para uma analogia e para torna- fa distinta, ou mesmo para opé-la, a figura de Edipo, ‘0 fora-da-lei (andmon), Nao num momento de parti-

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