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A QUESTAO DO MOVIMENTO NO COTIDIANO DE UMA PRE-ESCOLA* Izabel Galvao** Pedagoga e doutoranda pela Faculdade de Educagao da USP RESUMO Este artigo relata uma pesquisa realzada numa pré-escola em ‘Sdo Paulo, com 0 objetivo inicial de diecutir a adequago das exigéncias propostas do meio escolar as possibildades psi- comotoras das criangas, as quais siuavam-se na feixa dos sels ‘anos. ‘A metadologia inspirou-se numa perspectiva etnograca, recor tendo principalmante a observagio dita do cotidiano escolar. ‘Como referencia teérco para a coleta e andlise de dados ut- lizamos @ psicologia gonética de Hen Wallon. ‘A observagao do dla-a-dia da pré-escola revelou uma atmostera 4e contitos @ tensio nas intoragées entre professora e alunos: turbuléncia © impulsividade motora por parte desses @ reproon- 808s © adverténcias visando & contengéo do movimento por pat= te daquel. Mostrando imbricadas inter-rolag6es entre os diversos planos do ‘meio escolar e a dinémica de interagées sociais quo nele se estabelece, este estudo dostaca, como sugestao, que se revela ' compreenséo que se tem do movimento infant assim como © espago dado a ele no cotidiano pré-escoar MOVIMENTO — ESPAGO — INTERAGOES — CONFLITOS ABSTRACT THE ISSUE OF MOVEMENT IN DAILY LIFE OF A PRE-SCHOOL. This article reports on research carried out in pre-school in S80 Paulo, The inal aim of the study was to iscuss the appropriateness of the demandes and proposals of the school environment to the psychomotor capabiltos of six yoar oid chiléron The mathodology was inspired in an ethnographic perspective, and had recourse mainly to direct observation of dally school life, As a theoretical reference for the colection and analysis of data we used the genetic psychology of Hensi Wallon. ‘The day to day observations at the pre-school revealed an atmosphere of confits and tension in the intoracions between teachers and students — turbulence and motor impulsivity on the students! part and reprimands and wamings by the meant to contain the students’ movements Showing ovectapping Interrlatons on planes in the school environment and the dynamics of social intoractions that are established there, this study suggasts that an understanding of child movement as well as the space devoted to it daly school le be reviewed, * © artigo, originamente pubicado na infomational Review of Educstion, do Instituto de Edueaeso da Unesco, sob o tito “L'Espace {du mouvement: une analyse des confits dans les interactions entre inttutice et éléves d'une école mate prémio Gotttiod Hausmann para jovens pesquisedores. i", 8 vencedor do “A claborapao deste trabalho, inserida no mestrado da Faculiade de Educago da USP, nao teria sido possivel sem a competente desicada orientagéo da profa. dra. Heloysa Dantas, Cad. Pesq., So Paulo, n.98, p.37-49, ago. 1996 37 {A discussao sobre as fungbes sociais da creche @ da pré-escola esteve, durante as décadas de 70 ¢ 80, no centro do debate sobre a educacao infantil, Em melo aos anos 90 é consensual a idéia de que essas insttuigbes t8m fungdo educativa e que, como tal, de- vem ter objetives pedagégicos préprios. ‘Apesar desse consenso no plano do discurso, 0 contato com realidades concretas revela que um lo {90 caminho ainda esta por ser feito para a construgéo de uma identidade pedagégica propria de cada esta- belecimento que compée a educacao infantil. No caso da pré-escola, entendida como equipamento que aten- de a faixa dos quatro aos seis anos, a aproximago da prética efetiva deixa evidente marcas da histéria, do atendimento crianga pequena, uma histéria mar- cada por ambigdidades e indefinigdes (Kishimoto, 1988). Foi isso 0 que sugeriu o presente estudo, em que 1 observaco continuada de um grupo de classes do titimo estdgio da pré-escola nos apresentou um uni- verso em que indefinigbes quanto ao papel da pré- escola diante do 1? grau imprimiam marcas na orga- nizagao das atividades pedagdgicas @ na dindmica de interagdes que se estabelecia ‘A pré-escola cujo cotidiano observamos, ao mes- mo tempo que se recusava a desempenhar uma fun- go meremente preparatéria, antecipava para o seu estdgio (criangas de seis anos) uma rotina de tra- baiho muito préxima a normalmente utlizada no 1® Grau, Isto 6, atividades pedagégicas organizadas sob a forma de “aulas” convencionais, em que os alunos ‘devem permanecer sentados e atentos ¢ realizar a ta- refa proposta pela professora. Entendemos que a “im- portagdio" deste modelo era fortemente responsével por uma atmosfera de tensao e conflitos que carac- terizava as interagdes entre alunos e protessora, pois, ‘em desajuste com as possibilidades psicomotoras & cognitivas da idade Dispondo de um instrumento teérico extraido da psicologia do desenvolvimento — a psicogenética de Henri Wallon — priorizamos a reflexdo sobre a ade- quagdo do meio escolar as possibilidades infantis. Nao obstante, a permanente preocupa¢do em levar ‘em conta a complexidade das situagdes pedagégicas bem como 0 contexto educacional no qual se inserem, possibilitou que identificassemos vinculos entre o uni- verso pesquisado e questies do debate sobre a edu- cago infantil Nesse sentido, consideramos que a realizagio de investigagées no cotidiano de universos singuiares vi- sando & compreensao de suas especificidades e dos elos que tecem a trama de uma realidade nica pro- picia revelar problemas pertinentes a um contexio mais geral (Azanha, 1992). Esta potencial fecundidade do estudo da vida cotidiana depende, todavia, de um cconsistente instrumental tedrico que leve de um plano descritivo a um plano de compreensao do universo deserit, ‘Tendo como objeto de estudo a crianga em sua totalidade © no seu meio, a psicogenética walloniana apresenta-se como interessante interlocugdo tedrica 38 para a educagdo. Especialmente no campo da edu: cago infantil, j4 que é para a primeira infancia que se volta a maior parte de suas elaboragées. No presente estudo, em que a observagao do co- tidiano escolar teve por objetivo inicial discutir a ade- uago das exigéncias e propostas da pré-escola as possibilidades psicomotoras das criangas, a psicoge- niética de Wallon revelou-se valiosa ferramenta teori- ca, possibiltando apontar inadequagdes e esbocar pistas para superé-las, UMA CONCEPGAO DIALETICA DO DESENVOLVIMENTO HUMANO Definindo o homem como ser “geneticamente social, ‘a concepgo walloniana do desenvolvimento humano propée a existéncia de uma complexa imbricagao en- tre 08 fatores biolégicos e sociais. Conforme as dis- ponibilidades de amadurecimento da idade, a crianga interage de maneira mais forte com um ou outro as- pecto de seu ambiente, retirando dele os recursos para o seu desenvolvimento © aplicando sobre ele suas condutas; a cada idade estabelece-se um tipo particular de interagdes entre o sujeito e seu ambien- te, numa dindmica de determinagoes reciprocas. Nesse sentido, a andlise das interag5es da crian- ga com 0 seu meio fisico @ social’ é uma ferramenta indispensavel para a compreensao de cada etapa do desenvolvimento, ao mesmo tempo que o é para a ‘compreenséo do proprio meio. Seguindo este racioci- rio, consideramos que pesquisas que enfocam a crianga no contexto escolar podem trazer conttibui- ‘g6es tanto no plano psicolégico quanto pedagégico, esse Ultimo referindo-se as possibiidades que ofere- ‘cem para uma reflexao critica sobre a pratica educa- tiva. A psicogenética walloniana contrapée-se as con- ‘cepgdes que véern no desenvolvimento uma lineari- dade, encarando-o como simples adigao de sistemas progressivamente mais complexos. Para Wallon (1968. p.95), @ passagem de um a outro estagio nao 6 somente uma ampliagao, mas uma reformulagao. Cada etapa traz uma profunda mudanga nas formas do atividade do estagio anterior — inaugurando novas, possibilidades de interagao com 0 meio —, ao mesmo tempo que condutas tipicas de etapas anteriores po- dem sobreviver, adquirindo um significado distinto do que possulam. O ritmo pelo qual se sucedem as eta- pas 6 descontinuo, marcado por rupturas, retrocessos @ reviravoltas. Com frequéncia instala-se, nos momentos de pas- ‘sagem, uma crise que pode desorganizar momenta- neamente o comportamento, gerando confitos na re- ago do Individuo com 0 outro ou consigo mesmo. 5 contltos sao vistos, portanto, como propulsores do desenvolvimento, isto 6, como fatores dinamogénicos, 1. Pata Wallon (1975), 0 aspecto histérico @ cultural permela tanto a dimensdo fisica quanto social (numana) do meio, A questéo do movimento. ‘capazes de produzir saltos qualitativos na conduta do sujeito. Este valor funcional atribuido aos conflitos asse- melha-se ao significado atribuido pelo materialismo dialético a contradigao, vista como elemento constitu- tivo do sujeito e do objeto. Em coeréncia ao referen- cial epistemolégico que utiliza para sua psicologia, Wallon adota uma atitude de enfrentamento diante dos conflitos @ contradigbes que encontra no seu ob- jelo de estudo, buscando compreender suas motiva- Q6es @ significados Como exemplo desta atitude, podemos mencionar a atengdo que dedica ao estudo do terceito ano de Vida. A atitude de oposigao sistomatica ao adulto que caracteriza a conduta nessa idade 6 um exemplo de conflto que leva a salios qualitaives no desenvolv- mento do sujeito (Wallon, 1995 e 1986). A crianga re- cusa-se a seguir qualquer sugestéio ou ordem que ve- ‘nha do adulto, confrontando a isto seus desejos © Pontos de vista (muitas vezes ela até os modiica, s6 para ser “do contra"); a0 opor-se sistematicamento as proposigdes do outro ¢ como se ela estivesse retiran- do do eu 0 néo-eu, num exercicio fundamental para a diferenciagao de um eu até entao sincrético, fundido 10 outro. Esta atitude tedrica de enfrentamento da contra- digo inspirou nosso percurso de pesquisa, levando- nos a dirigir atengao especial as situacdes de confito, tanto no periodo de observagées como no de andlise do cotidiano observado, © PAPEL DO MOVIMENTO NA PSICOGENESE DA PESSOA Da mesma forma como nao admite que o estudo da ctianga sea feito abstraindo 0 ser de seu meio, a con- cepeao walloniana se recusa a isolar um tnico aspec- to do desenvolvimento e a estudé-lo separadamente. Seu projato é realizar a psicogénese da pessoa con- cteta e completa. E uma visio integrada do desen- volviriento que coloca a dimensao afetiva © a cogni- tiva no mesmo plano de importancia, mostrando que, apesar da relagdo de antagonismo que mantém entre si, controem-se reciprocamente, numa altemadncia de predominancias. Isto 6, a cada fase do dasenvolvi- mento, é uma dessas dimensdes que prepondera e 4 0 “colorido peculiar’ & atividade da crianga (Dan- tas, 1990. p.7). A uma etapa predominantemente afe- tiva, voltada para o mundo social, sucede uma outra ‘em que a preponderdncia 6 cogniiva,dirigindo 0 com- portamento para a exploragao do mundo fisico. Nesse jogo de allernancias, podemos dizer que © ato motor 6 0 fio que faz a costura entre o plano afetivo © 0 cogntiv. Dando destaque a distingdo en- tre as fungdes ténico-postural e cinética da muscula- tura, Wallon (1975) mostra como a motricidade pode estar a servico da expresso subjetiva ou da acéo conereta sobre o meio fisico. A fungéo cinética, que Cad. Pesq., n.98, ago. 1996 regula o estiramento © 0 enourtamento das fibras musculares, 6 responsavel pelo movimento propria- mente dito, ou seja, pela motricidade de realizagao. Ja a fungao ténico-postural, que regula a variago no grau de tensao da musculatura (0 ténus), é res- ponsdvel pelas modificagdes na mimica facial, gestos, posturas, ou seja, pela motricidade expressiva. Res- onde portanto pela dimensao afetiva do movimento, sendo um componente fundamental das emogées. To- davia, além de seu papel na afetividade, a funcao t6- nnico-postural tom importante papel na atividade cog- nitiva @ junto A motricidade de realizagéo, conferindo equilibrio e estabilidade aos deslocamentos do corpo todo ou de seus segmentos. Na psicogénese, a primeira fungao do movimento 6 expressiva, A impericia instrumental do recém-nas- ido © torna completamente dependente do meio so- cial para a satisfagio de suas necessidades bésicas para suas interagdes com 0 mundo fisico. Por meio do choro, das contorcdes corporais e mimicas faciais, (© bebé exterioriza estados intimos, mobilizando o adulto para 0 atendimento de suas necessidades. Na base das emocdes (Wallon, 1995), a motricidade ex- pressiva 6 0 primeiro canal de comunicagao de que dispde 0 ser humano. Ao final do primeiro ano, com 0 desenvolvimento dos gestos instrumentais como 0 de pegar, empurrar, abrir ou fechar, intensificam-se as possibilidades do movimento como recurso de exploragéo do mundo fi- sico, voltando a agao da crianga para a adaptacao a realidade objetiva. Esta concepgao quanto ao desenvolvimento do ato motor permite que se compreenda as imbricagdes entre os diversos planos da conduta infantil, a qual 6 vista como um todo integrado em que o componente psicomotor ocupa uma posigdo importante. Segundo Dantas (1990. p.29), 2 tica walloniana consiroi uma crianga corpérea, Conereta, cuja eficiéncia postural, tonicidade mus- cular, qualidade expressiva e pldstica dos gestos informam sobre sous estados intimos. O olhar se dirige demoradamente para a sua exterioridade corporal, aproveitando todos os indicios. Supée-se que a sua instabilidade postural se reflete nas suas disposigdes mentais, que a sua tonicidade muscular dé importantes informagées sobre seus estados afetivos. Consideramos que essa “lente” oferecida pela

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