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NMicnet Yove kl X Ideologias e mentalidades: um esclarecimento necessario* Bis uma questo que poderd parecer ingénua, mas que de fato assume, sem timidez e falso pudor, a sua simplici- dade. Sou um historiador formado nos métodos de abor- dagem marxista — e no os renego, longe disso — mas ao mesmo tempo classificado na categoria dos historiadores das mentalidades, corretamente 6 provével, no que se re- fere as produgdes que me tornaram conhecido, ou seja: os estudos sobre as atitudes coletivas diante da morte; os en- saios sobre a festa e sobre fatos da histéria religiosa, tais como a descristianizagao do ano II, tratada em termos de uma mutagGo critica no centro do processo revolucionério.** Nao creio, com isso, estar sendo infiel aos meus pres- supostos iniciais, mesmo que minha trajet6ria possa parecer paradoxal a outros. Por exemplo, para historiadores que néo * Comunicagao inédita apresentada em dezembro de 1980, na Uni- versidade de Dijon, por ocasifo do encontro sobre as mentalidades nna época revoluciondria, A. ser publicada nas atas do coléquic. Estd prevista a publicacio de uma verso inglesa deste texto em: Mélanges offerts & Eric Hobsbawm. (Misturas oferecidas a Eric Hobsbawm). ** 0 autor se refere ao ano II do novo celendério instituido pela Revolugao Francesa, (N.T.) W MicHEL VOVELLE se reconhecem — ou nfo se reconhecem mais — como marxistas, como Emmanuel Le Roy Ladurie que, em uma avaliagao sobre minha obra Piéié baroque et déchristiani- sation: les attitudes devant la mort en Provence au XVIII* sigele (Piedade barroca e descristianizagao: as atitudes dian- te da morte na Provenga no século XVIII), surpreendese ante um historiador marxista hébil em descrever 0 “como” que se recusa a dizer 0 “porqué”. Uma observagao talvez tao simplista quanto a minha, pois parece investir 0 histo- riador marxista da perigosa responsabilidade de dizer 0 por- qué... o que, afinal, € uma homenagem nada desprezivel. Por outro lado, causei surpresa, algumas vezes, a his toriadores marxistas devido a uma aparente complacéncia com temas heterodoxos. Recordo, assim, uma interrogagéo amistosa de Pierre Vilar, preocupado em saber se, em lugar dos temas que evidentemente me atraem — a morte ou, entio, a festa — ndo seria preferivel que eu estudasse os processos de tomada de consciéncia entre as massas: voca- io certamente menos ambigua para um historiador mar- xista, Cada qual tem seu estilo; ¢ as duas histérias refletem pelo menos im mal-entendido, ou talvez até um pouco mais do que um mal-entendido, Acima de minha aventura pes- soal, porém, percebi, naquela pergunta, uma questo mais ampla e profunda: a necessidade que se coloca para o his- toriador marxista de precisar os seus proprios conceitos, confrontando com o refinamento de sua prépria problem: tica, assim como de solicitacées exteriores. Também a ne- cessidade, para toda uma nova geracao de historiadores de mentalidades, de definir — de maneira muito simples, po- rém rigorosa — a propria nogfo de mentalidade, tornan- doa operatéria, embora guardando um certo toque artis- tico. Para isso, 6 necessdrio tomar claramente consciéncia da coexisténcia, dentro de um mesmo campo, de dois con- ceitos que, além de rivais, so herdeiros de duas correntes diferentes e, por isso mesmo, dificeis de se ajustarem, em- vmRoDUCAO " bora apresentem, incontestavelmente, uma étea real de su- perposi¢ao, Evidentemente, porém, ideologia ¢ mentalidade nfo so uma tinica € mesma coisa Nao cairei na armadilha de iniciar com uma nova de- i¢ao do conceito marxista de ideologia. Outros jé o fize- fam, a comegar pelos fundadores, até os recentes exegetas omo Louis Althusser, imaginéria dos ii Ein Balavras: 0 conj junto de_repesentases-mas também de préticas e comportamer ir \conscientes. 0 cardter muito geral da definicdo pa cr muito geral da definiglo p pare apto_ congregar em torno de uma hipdtese de arto Taraistas Gomo_nioomarints Se € posse! obietar Ihe © eardter incontestavelmente vago, também se pode afirmar ter sido essa a intencao de Marx mesmo, preocupa- do, em sua Introdugio de 1857, em responder &s acusagdes de economicismo reducionista de que fora alvo A ideologia alemd. Nessa Introdugdo, ele define modo de produgio em termos talvez citados demais, mas sempre essenciais: “em todas as formas de sociedade, é um modo de produgao de- terminado ¢ as relagGes por ele engendradas que determi- nam todos 0s outros modos de produgio ¢ as relagées en- gendradas por estes iiltimos, como também seu nivel e sua importincia. E como uma luz geral onde estéo mergulha- das todas as cores e que lhes modifica as tonalidades par- ticulares. E como um éter particular que determina 0 peso especifico de todas as formas de existéncia que dali emergem”, Luz geral, ter particular: podemos, sem nos tornar- mos iconoclastas, reconhecer com Pierre Vilar que, estilis- ticamente, esse no é “o melhor de Marx”. Porém, pouco 2 MICHEL VoVEILE importa, desde que a intengdo seja nitidamente percebida, tal como foi depois comentada por Engels, em 1890, em uma carta a Ernst Bloch: “Segundo a concepgio materia lista da Historia, o fator determinante 6, em iiltima instn- cia, a produgio e a reprodugéo da vida real. Nem Marx nem eu jamais afirmamos mais do que isso, Se, mais tarde, alguém torce essa proposigao, fazendo-a dizer que o fator econémico ¢ 0 tinico determinante, transformaa em uma frase vazia abstrata e absurda Assim, Engels, em seguida a Marx, respondia, por an- tecipagao, a toda uma critica ao mesmo tempo opinativa ¢ jo elementar que nfo deverfamos nos deter nela: a do “marxismo vulgar”, como explicagéo mecnica através do econémico, em um universo onde as superestruturas ideol6- gicas responderiam, como em um passe de mégica, as soli- citagSes da infra-estrutura. Debate académico, certamente, que deixaremos a cargo dos criticos “vulgares” do marxis- mo “vulgar”. preciso, porém, reconhecer que tais este- reétipos tém vida longa e eficécia real. Nem sei se essa cri- tica ndo teria contribuido na historiografia francesa para esse tipo de prudéncia; aliés, mesmo uma certa timidez dos historiadores marxistas em abordar objetos que poderiam expé-los a tais censuras. Até data recente, tinha-se a im- pressio de uma partitha implicita & qual subscreviam, pelo menos por seu siléncio, numerosos historiadores marxistas, confinando-se no dominio da economia ¢ das estruturas so- ciais (mas em liberdade muito vigiada), e reservando aos mais qualificados que eles os territérios mais complexos da historia religiosa, das mentalidades e das sensibilidades. Assim, o Goldmann de Diew cacké (Deus escondido) pet- ‘maneceu por longo tempo como a excecio que confirma a regra de ndo-intervengao dos pesquisadores marxistas em assuntos que nfo eram considerados de sua competéncia, Confinados 20 subsolo e abandonando para outros os andares nobres, os historiadores marxistas no foram nem seRODUGAO 6 mesmo recompensados por sua prudéncia, visto que conti- nuaram a ser solicitados ou confrontados por objegdes que pesquisas em novas freas de investigagéo colocavam sem cessar a uma leitura supostamente marxista. Essas abjegdes so fortes — sobretudo quando apre- sentadas por criticos que nao sao adversdrios do marxismo. Vejamos, limitando-me 20 préprio campo de minha pes- quisa sobre 0 século XVIII, o questionamento maior que suscitou o estudo da ruptura entre a ideologia ““burguesa” do Iuminismo e 0 grupo que era seu porta-voz nas acade- mias de provincia, repdblicas literdrias e nas lojas magéni- cas, Nas estatisticas irrefutdveis de Daniel Roche, o bur- gués se oculta, deixando no proscénio os aristocratas ou os representantes de uma “elite” de talento. .. Pergunte-se entio: o que significa uma ideologia que ndo é representa- da pelos agentes apropriados, ou melhor, que & avancada justamente por aqueles cuja destruigao ela porta em germe? Daf o sucesso, em determinada época, da teoria das elites, naturalizada francesa, como tentativa de romper o encadea- mento “'mecdnico” das participagdes e opedes, ou das to- madas de consciéncia, ‘A medida que se atingem as representagdes mais com- plexas, a dificuldade cresce para explicar corretamente, € até mesmo levar em conta, um certo némero de dados. ‘Uma tese muito recente de histéria social & luz do marxis- mo, que visa a reconstituir em toda a sua profundidade © grupo da aristocracia parlamentar francesa do século XVILL, esbarra em obstéculos que ela nao pode nem elidir nem reabsorver no momento mesmo em que retine com muito brilho todos os elementos do estudo. Por exemplo: © jansenismo dos magistrados persistindo no século XVIII seria uma sobrevivéncia, uma forma vazia? So essas formas “‘nobres” de expresso ideol6gica, ‘mas uma histéria que amplia cada vez mais o campo de sua curiosidade, englobando comportamentos mediante os quais o homem se define em sua plenitude — isto 6 a cus VovELLE familia, os costumes, os sonhos, a linguagem, a moda... —, confronte-se, nesses domfnios, com o aparentemente gratui- to, mas nem por isso menos significativo. . Que significado, porém, lhe atribuir? M: inda: exis- te nos comportamentos humanos — proposigo aparente- mente absurda em vista da definigio de que partimos — uma parte que escape & ideologia, que esteja abaixo ou de lado? O uso comum do termo no vocabulério cotidiano ten- de a ser desorientador nesse dominio: “Isto € ideol6gico” ouvesse dizer, uma expresso que remete A representagdo que se faz no senso comum (a partir de uma certa pritica social do discurso) da ideologia como um configuragio or- gazinada ¢ polarizada, em contraste com um certo bom senso, onde se refletiria a atmosfera da época... a men- talidade talvez? Mentalidade ‘A nogio de mentalidade conforme atualmente defi- ida, remete a uma heranga diverse ¢ muito mais recente — datando de vinte a trinta anos, se nos referissemos & difusdo geral do termo. Contudo, é preciso reconhecer que © conceito esté Jonge de ser universalmente aceito: basta verificar com que dificuldade historiadores de fora de Fran- a conseguiram adaptar 2 noo ou mesmo traduzir o ter- mo. Os alemdes procuraram um termo congruente, enquan- 0 0s ingleses, seguindo-se aos italianos, resignaram-se prag- maticamente a utilizar a propria expresso francesa. Por outro lado, sabe-se perfeitamente que se pode des- cobrir toda uma préhistéria da historiografia das mentali- dades; ¢ também que é evidente (exatamente como o sr. Jourdain, que fazia prosa sem o saber), que jé se fez his- t6ria das mentalidades sem Ihe dar esse titulo. O que ¢ La Grande Peur (O Terror) de Georges Lefebvre, senio 0 estudo impressionantemente moderno de um dos diltimos ermapvcKo 6 grandes pénicos de estilo antigo na sociedade francesa? Pen- semos, em seguida, em alguns dos grandes cléssicos, como Le déelin du Moyen Age (O declinio da Idade Média) de Huizinga, incontestavelmente uma das obras fundadoras dessa nova abordagem hist6rica. Se jé € possivel comesar a falar em hist6ria das mentalidades no sentido estrito partir de Lucien Febvre ¢ da escola dos Annales (Anais) — assim como em Le probléme de U'incroyance au XVI" sidcle: la réligion de Rabelais (O problema da descrenga no século XVI: a religiéo de Rabelais) —,¢ apenas_com. Robert Mandrou_e Georges Duby, nos anos sessenta, que S© opera, com fortes resist@nclas, 0 feconhecimento de u novo lexiono- de Histéra--Dieseia, poréim, qu ete cam” u com um agressividade conquistadora as dificulda s:_na Hista_dos_atuais sucessos editorias, a his iente figurar,.na_h a alernativa para a histéria social anteriormente dominan- te. A curiosidade ¢ 0 efeito de atracdo sentido por outras, correntes hist istoriograficas teste as_tes! E ai também que se coloca o primeiro dilema de uma Inogo conquistadora, mas que conserva, a0 mesmo tempo lum cardter no minimo muito vago. Embora nai ropa do. da_propria jogio de “mentalidade”, nfio_conhego ainda melhor defi- nigéo do que a proposta por Robert Mandrou, cenirada ud -isieadas esd mundo" io, ntestavelmente vaga. Poderia-se ainda contestar R. Mandrou, ao se verificar 1 forma como tem evolufdo 0 préprio contetido dessa his- t6ria nos iltimos vinte a trinta anos? Assumindo tudo que essa redugSo possa ter de empobrecedor, ¢ até de caricatu- ral, parece-me bem que se passou de uma histéria das men- talidades que em seus primérdios situava-se essencialmente 16 dca VorELLE ao nivel da cultura ou do pensamento claro Le plane 1e de V'ineroyance au XVI siécle: la réligion de R roblema da des “aux XVII et XVII sidcles (Da cultura popular nos culos XVII ¢ XVIN), de Mandrow, para uma histéria das. iudes, dos comportamentos ¢ das representagdes coletivas E precisamente isso que se inscreve maciga—_ jovos centzos de interesse em voga: a crianga, a me, a famflia, o amor ¢ a scxualidade.., a morte. Para tomar consciéncia dessa trajetéria, basta acompa- nhar dois temas que aparecem constantemente na produ- so da Histéria das mentalidades. Tomemos, por exemplo, a feiticaria, Desde o estudo histérico de R. Mandrou — cujo mérito nunca seré suficientemente lowvado —, Magistrats et sorciers en France au XVII* sigcle (Magistrados e feiti- ceiras na Franca no século XVID, até as abordagens mais recentes de C. Ginzburg e R. Muchembled, a visdo do his- toriador tem-se modificado. Mandrou nos revela a mutagiio histérica do ponto de vista da perspectiva das clites ¢ do poder, quando os parlamentares, em algum momento em tomo de 1660, decidiram néo mais queimar os feiticeiros. ‘Atualmente, esforgamo-nos para passar para o outro lado da barreira a fim de tentar analisar, de seu préprio interior, tuniverso mental dos marginais e desviantes. Da mesma ‘maneira, seria talvez fécil demais demonstrar a mudanca operada entre o Rabelais de L. Febvre, hoje historicamen- te datado — reflexo de uma histéria que permanecia a0 nivel das elites, a meio caminho entre a histéria das idéias © histéria das mentalidades —, ¢ 0 Rabelais! de Mikhail Bakhtine — expresso e reflexo de uma cultura popular * Loouvre de Frangois Rabelais et ta culture populaire au Moyen ‘Age et sous la Renaissance (A obra de Francois Rabelais e a cultura popular na Idade Média e Renascimento). snermapug4o 1" apropriada. A histéria das mentalidades mudou em muito pouco tempo, @ propria nogdo de mentalidade também: ex- perimentamos atualmente o sentimento de lidar com uma disciplina com bulimia, levada a anexar a si mesma, sem complexos, areas inteiras da Hist6ria: religiosa, literdria, das idéias, mas também do folclore ¢ de toda uma dimen- siio da etnografia... Bulimia perigosa em ato: quem de- voraré 0 outro? B tempo de fazer uma pausa e reenfocar o problema que nos preocupa: mentalidade ¢ ideologia. Entre um con- eeito elaborado, longamente amadurecido, mesmo que a Gltima palavra esteja evidentemente longe ainda de ser dita; uma nogo como a de mentalidade, reflexo conceitual de uma prética ou de uma descoberta progressiva — é verdade que recente, mas incontestavelmente fluida ainda —, carre- gada de sucessivas conotagées, compreende-se que 0 ajus- tamento seja dificil: eles provém de duas herangas diferen- tes; € também de dois modos de pensar: um mais sistemé- tico ¢ 0 outro voluntariamente empirico, com todos os ris: £08 que isso acarreta. Todavia, existe entre os dois termos uma indiscutivel ¢ ampla érea de superposi¢fo. Se nos reportarmos a0 seu ‘emprego corrente, pareceré — no que se arrisca a tornar-se tum didlogo entre surdos — para alguns que as mentalide- des se inserem naturalmente no campo do ideolégico, en- quanto para outros a ideologia, no sentido estrito do ter- mo, no poderia ser sendo um aspecto ou um nivel no cam- po das mentalidades, isto €, 0 da tomada de consciéncia ou de formalizagio do pensamento claro, Percebe-se 0 que essa dupla apreciagio contém de mal-entendidos fundamentais, Os que aspiram a livrar 0 conceito de ideologia dessa mé- cula excessivamente grave de ser um conceito marxista fa- lardo de um “terceiro nivel”... sem jamais se referir, con- tudo, & hierarquizacio entre infra-estruturas econdmicas, es- truturas sociais ¢ superestruturas ideolégicas. Admitimos nv cone, vows set este um compromisso burgués, mas que tem pelo menos © mérito — tal como foi apresentado por Pierre Chaunu — de atrair a atengo para a importincia considerdvel asgu- mida nesses tiltimos decénios pela Histéria “no terceiro ni- vel” dentro das preocupagées coletivas de pesquisa. Nesse investimento coletivo na historiografia dos pai- ses liberais, ¢ particularmente na Franga, parece nitidamen- te set a nogio de mentalidade — mais flextvel, desemba- ragada de toda conotagio “ideolégica” — a parte premia- da, a mais operatdria, a melhor habilitada, gragas & propria sutileza de que se reveste, a responder as necessidacles de uma pesquisa sem pressupostos. Mentalidade contra ideotogia A hist6ria das mentalidades & antimarxista? Esse é um problema que s6 pode ser tratado a partir de uma perspec tiva hist6rica. £ inegavel que durante longo tempo tem ha- vido uma real inquietude entre os historiadores marxistas, em face de uma abordagem suspeita de ser, conscicntemen. te ou néo, mistificante. E justificada a atitude? Certamen te no, considerandose uma parte dos incentivadores eis francesa, Mlandrou ou Duby, particularmente atentos ‘im manier unidas as duas pontas da cadeia, desde o social. ao_menial e, portanio, abertos @ todas as confrontacées, Nio se pode dizer 0 mesmo, talvez, da geragao precedente, como L. Febvre e de uma parte dos primeiros Annales. Se os criadores da revista procuraram manter a énfase sobre a trilogia economia-sociedade-civilizagao (esse iltimo termo ‘como lembranga de uma codificagdo mais antiga, abrindo- se para o superestrutural), e se Fernand Braudel conserva a énfase sobre a importancia da mediagao social (“civiliza- Go material ¢ saplilimo” "},_nfio_se_distingue_menos_no_ “espirito “dos An a preocupacio em diferenciar-se_de ‘uma Histéria_marxista, tida como envelheci ‘¢ fechada emopucko 19 nos esquemas dogméticos de um reducionismo s6cio-econé- inico. Inversamente, a énfase posta sobre o mental e sobre a especificidade da “priséio de longa duragio" atesta a preo- cupago de Braudel_em_afinmar,seno a autonomia do mental, pelo.menos.a_originalidade dos _ritmos_aos_quais este_se subordina, Dentro dessa perspectiva — ela propria histérica — apesar de uma boa parte dos historiadores fran- ceses atuais das mentalidades terem vindo da histéria social ¢ de nfo a terem repudiado, pelo contrério, vé-se também adquirir um lugar mais amplo, de ambos os lados do Atlén- tico, uma nova geragio de especialistas que nao passaram pelo desvio antes obrigatério, ¢ preferiram escolher “o mé- todo curto de fazer oragio”. Esses novos Em um primeiro nivel, 0 conceito de mentalidade se constitu, como observamos, mais amplo que se ideoloso: ai Mandfow definiu”como “umm tempo mais longo", al longa duracdo braudeliana ¢ as “‘prisoes de longa duracio”. ‘As mentalidades remetem, portanto, de modo privilegia a Tembranga, 2 meméria, Ss formas de Tesisténcias. Em re- la, Bs fonmas_de resistencias suinOr@ponta_aquilo que se ‘a forca de inércia das estruturas mentais", mesmo que essa_ cpoleati-cominue-de-cardet_vetbal_Especanen constatagio — A pri- mentalidades — abre-_ 2» MICHEL vovEnAE s¢_para diversostipos_de_interpretacio_ou_hipéteses de tras. balho. 47 A primeira — recurso talves cee a ¢ e urs0_talve FP togia & mentaliandes — tragos de mentalidade, ou s ferior de ideol real_para se tc sérias. Essa primeira pista exy téria em minha opinido — tem pelo menos o mérito de ten- tar reintegrar validamente, em uma visio coerente, 0 que a abordagem das mentalidades encontra em seu caminho. Mas também talvez possa ser isso 0 que seja reprovével nela, Hi um outro modo de dar ¢onta da relagdo especifica 7 jentre 0 tempo das mentali idad pontos onde a hipétese precedente identifica restos de ideo lgias mortas, muitos, ao contrério, tendem atualmente Por ocasiao de um re ééiite” encontro sobre _o tem: ia _das_mentafidades, historia das resisténcias, ou as prises ser de Tg duracao”, tealizado em Aix, em 1980, i rants na disasidOr snal dos terapo, dentro de uma 50] ciedade & procura de”suas “raizes”. Abrindo o armérig dal 6, all-se_descabre 0 essencial. to é:_a afirmagio da autonomia do mentale de-suaitre- dutibiidade ao econdmico «40 “80 social. Esta é uma nocdo Pane diz Phil poe Aris. em a su onteibugae a La Nouvelle. v rpemonveto a me fagam dizer que & recente; j também nog6es novas, tais como a8 de. “i compreende Para explicitar a primeira, podemos_reportar-nos_20_ fine nem exceto talvez Jung, eventualme critérios de uma_antro- ‘Pologia inspireda em Lévi-Strauss. E uma nogio_ que se pretende, € se declata, mu a, remetendo & a que ¢ rSprios. No campo que Ihe & ides coletivas diante ‘omentei em outras ocasides por que ssa Histéria te- cida “sobre camadas de ar", e que recusa o risco de corre- lagées pacientes — por receio, talvez, de cair no reducio- nismo ou no mecanismo —, me deixa perplexo e, de fato, insatisfeito. Porém, no estado atual dos problemas, tenho hoje menos reticéncias a acrescentar — juntamente com ou- tros como G, Duby_em suas dltimas obras — ao termo i tivo”) que me parece mais operaciondyel 10s suscelivel a extrapolagdes_temerdr icandlise. » Maciel, VOVELLE Onde o historiador marxista se faz historiador de mentalidades Diante das atuais interrogagdes que se dirigem & histé- ia das mentalidades — sem mencionar o campo da psico- histéria, que ndo examinamos ainda — tem-se a impressio que esse é um dominio onde o historiador marxista se vé diretamente interpelado. Ele esté, alids, inteiramente cons- ciente disso, ¢ ndo fica inativo, De minha parte, intitulei tum dos meus tiltimos livros De la cave au grenier * (Da ade- ga ao celeiro), como eco a uma conversa que tive hé bastan- te tempo com Emmanuel Le Roy Ladurie: o futuro autor de Montaillou, village occitan de 1294 & 1324 (Montaillo vila occitana de 1294 a 1524), surpreendido com a traje- téria que me havia levado da “adega” — isto é, as estru- turas sociais — ao “celeiro” — isto 6, minhas pesquisas sobre a descristianizagio e as atitudes diante de morte — afirmaya que ele, pessoalmente, pretendia manter-se na ade- ga. Sabe-se com que brilho ele vem desde entio desmen- tindo essa afirmagao. Nés no somos, porém, 0s ‘inicos exemplos desse it nerétio: marxistas ou nfo, outros historiadores, entre 1960 e 1980, passaram da histéria social para os novos campos de estudo de mentalidades: Georges Kuby, Maurice Agu- Thon e Pierre Chaunu & sua maneira... Cada qual com suas motivagées particulares e com um percurso espectfico. Poderia-se indagar da razio de um movimento coleti- vo, cuja importincia demonstra 0 seu caréter ndo contin- gente € significative, e que também, como se nota, tem * “Da adege a0 celeiro”: expresso que significa passar de um pélo 4 outro. (NT) INFRODUCAD a preocupado historiadores de posigdes mesmo de formagées bbem diversas. Nao faltam respostas, sendo talvez a de Pierre Chaunu @ mais elaborada, a0 analiser, em “Le quentitatif au troisitme niveau” (O quantitativo no terceiro nivel), as grandes correntes que influenciaram a historiografia nos litimos decénios. Concordamos com o argumento de Chau- nu de que cada seqiiéncia histérica abordou os problemas que se The impunham com maior forga. E essa explicacio — cada qual conservando seus préprios pressupostos — é, a rigor, suficiente. Acrescentarei a isso uma reflexio pessoal, reportando- me as condigdes de partida ao inicio dos anos sessenta Toda uma geragdo de historiadores se formou, entio, nas disciplinas da histéria social, conforme era ensinada por E, Labrousse: a histéria quantitativista que “conta, mede esa”, Depois, vieram os tempos de confrontagao: dades de ordens”, defendidas por Roland Mousnier e sua escola, contra “sociedade de classes”... Uma disputa que pode ter sido esterilizante — ¢ provavelmente 0 foi em parte —, paralisando a iniciativa e incitando uma parte dessa geragio a dissimular para avangar. Desvio benéfico, visto da perspectiva do tempo. Sem renunciar a seus métodos de abordagem nem a suas hips- teses de trabalho, os historiadores se dedicaram, além da andlise das estruturas sociais, também & explicagio das copsées, das atitudes e dos comportamentos coletivos. Assim, viram-se instigados por um catdlogo de tarefas mais denso, sendo provavelmente isso 0 que procuravam. Passando das estruturas sociais as atitudes ¢ represen- tagdes coletivas, foi sobre 0 problema das mediagdes com- plexas entre a vida real dos homens ¢ as representagdes que 6s homens produzem para si — inclusive as representagées fantésticas — que eles dirigiram sua abordagem a histéria das mentalidades. Abordagem esta que desafia todas as re- dugdes mecanicistas, enfrentendo o “entrelacamento de tem- pos da Historia", segundo a expressfio de Althusser, isto ¢: MICHEL VOVELLE a inéria na difusio de idéias-forga, como também a coexis- téncia, em estégios estratificados, de modelos de compor- tamento oriundos de herangas culturais diferentes. «7 A Partindo de problemas demarcados, encontraram outros | Jem seu caminho. Foi assim que, ao pretender explicar a | Contra-Revolug&o no Sul da Franga, fui levado a me de- brugar sobre a descristianizagao em seus dois aspectos: 0 violento e explosivo no ano II; e 0 espontineo e gradual no século das Luzes. Querendo fundamentar em fatos esse ‘iltimo fendmeno — através do que nos informam os testa- mentos provengais do século XVII] —, encontrei algo in- teiramente diverso, mais profundo ¢ essencial talvez: a mo-| dificago de uma sensibilidade diante da morte ¢, pelo mes-| smo caminho, da visio de mundo de que flava Robert, Mandrou. .. Chegando ao fim do caminho, no ponto onde a hist6- ria das mentalidades se encontra, sem se perder, com a etno- grafia hist6rica, o historiador se questiona. De mediagdes em mediacées, ndo teria ele perdido o fio da Histéria, claro demais ou linear demais, do qual havia partido? De fato, 0 historiador néo deixou, aparentemente, a ideologia sendo para reencontré-la, mais amplamente infor- mada, dentro de uma leitura precisa e refinada. Provavel- mente, ele deveria evitar aproveitarse demais do comodis- mo da férmula marxista “luz particular” ou “éter” de um dado momento: essas referéncias autorizariam uma leitura laxista, se justamente a utilizagio do modo de producéo como todo englobante — o sobredeterminante — nao le- vasse & unidade do campo histérico. Historia das mentalidades: estudo das mediacées ¢ da relagao dialética entre, de um lado, as condigées objetivas da vida dos homens ¢, de outro, a maneira como eles a nartam © mesmo como a vivem. A esse nivel, as contradi- ‘gSes se diluem entre dois esquemas conceituais, cujos as- pectos contrastamos: ideologia de uma parte, mentalidades de outra. © estudo das mentalidades, Jonge de ser um em- reTRODUGKO B preendimento mistificador, torna-se, no limite, um alarga- mento essencial do campo de pesquisa. Nao como um tetri- tério estrangeiro, exético, mas como o prolongamento natu- ral ¢ a ponta fina de toda histéria social. H4 debates essen- ciais de que tornamos devedores, como a grande discussiio sobre @ elite ¢ a natureza da burguesia do antigo estilo, que fez avangar a elaborago conceitual a passos largos. O des- pertar da hist6ria das mentalidades, hé vinte ou trinta anos, ainda que tivesse sido apenas um desvio salutar — o que no acredito — teria tido, pelo menos, o imenso mérito de nos ensinar a encarar mais diretamente o real, em toda a sua complexidade e em sua totalidade

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