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A ULTIMA FITA DE KRAPP Samuel Beckett Tradugdo de Fabio de Souza Andrade Tarde da noite, num futuro préximo. Escritério de Krapp. No centro do palco, d frente, uma pequena mesa cujas duas gavetas se abrem em direcdo 4 plateia. Sentado d mesa, encarando a plateia, ou seja, do lado oposto das gavetas, um velho acabado: Krapp. Caleas justas, curtas demais, de um preto desbotado. Colete sem mangas, de um preto desbotado, quatro bolsos grandes. Pesado relégio de prata com corrente. Camisa branca encardida, desabotoada na altura do pescoco, sem colarinho. Surpreendente par de botas brancas e sujas, no minimo mimero 44, muito estreitas e pontudas. Rosto branco. Nariz avermethado. Cabelo grisatho em desordem. Barba por fazer. Muito miope (mas sem éculos). Dificuldade para ouvir. Voz rachada, entonagdo muito particular. Andar laborioso. Sobre a mesa, um gravador de rolo com microfone e varias caixas de papeliio, contendo rolos de fitas gravadas. A mesa e as imediacdes banhadas por uma luz branca intensa, Resto do paleo as escuras. Krapp permanece imdvel por un momento, suspira profundamente, olha para o relégio, remexe nos bolsos, tira um envelope, devolve-o, remexe novamente, tira um pequeno motho de chaves, eleva-o d altura dos olhos, escolhe uma chave, levanta-se e vai para a frente da mesa. Abaixa-se, abre a fechadura da primeira gaveta, espia dentro dela passeia a mao em seu interior, tira um rolo de fita, examina-o de bem perto, devolve-o, fecha a gaveta a chave, abre a fechadura da segunda gaveta, espia dentro dela, passeia ‘mao em seu interior, tira uma banana grande, examina-a bem de perto, fecha a gaveta a chave, devolve as chaves para o bolso. Vira-se, avanca para a beira do palco, para, acaricia a banana, descasca, joga a casca a seus pés, coloca a ponta da banana na boca € permanece imével, olhando fixamente 0 vazio @ sua frente. Por fim, morde a ponta da banana, vira-se e pée-se a ir e vir pela beira do palco, sob a luz, ou seja, dando quatro ou cinco passos no maximo para cada lado, mastigando meditativamente a banana. Pisa na casca, escorrega, quase cai, reequilibra-se, abaixa-se, olha a casca ¢ finalmente a empurra, ainda abaixado, com o pé, da beira do palco para o fosso. Retoma seu vai vem, termina a banana, volta para a mesa, senta-se, permanece imével por um momento, suspira profindamente, tira as chaves do bolso, eleva d altura dos olhos, escothe uma, levanta-se e vai para frente da mesa, abre a fechadura da segunda gaveta, tira wma segunda banana grande, examina-a de bem perto, fecha a gaveta, devolve as chaves para o bolso, vira-se, avanca para a beira do palco, para, acaricia a banana, descasca-a, atira @ casca no fosso, coloca a ponta da banana na boca ¢ permanece imével, othando fixamente o vazio sua frente. Por fim tem uma ideia, coloca a banana num bolso do colete, a ponta aparecendo, e vai a toda velocidade de que é capaz em diregito ao fundo do palco as escuras. Dez segundos. Barulho de rotha espocando. Quinze segundos. Volta para a luz, carregando um livro-registro e senta-se d mesa. Coloca o registro na mesa, limpa a boca, limpa as maos no colete, junta as maos espalmadas e as esfrega. Krapp: com vivacidade. Ah! Inclina-se sobre 0 registro, vira as paginas, encontra a inscrigdo que procura ¢ lé: Caixa... tnés..rolo...ciinco, Levanta a cabeca ¢ olha fixamente a sua frente. Deliciado. Rolo! Pausa. Rroolo! Sorri feliz. Pausa, Inclina-se sobre a mesa, comega a remexer nas caixas, examinando-as de bem perto. Caixa. trrés...trrés...quatro...dois...surpreso... nove! meu Deus!... sete... ah! a safadinha! Pega a caixa, examina-a bem perto. Caixa trrés. Coloca-a sobre a mesa, abre-a ese inclina sobre os rolos que ela contém. Rolo... inclina-se sobre o registro...cinco... inclina-se sobre os rolos...ciinco... cinco... ah! a safadinha! Tira wma fita, examina-a bem perto, Rolo ciinco. Coloca-a sobre a mesa, fecha a caiva trés, coloca-a junto das outras, pega o rolo. Caixa trrés, roolo cinco. Debruca-se sobre o gravador, otha para cima. Deliciado, Rrolo! Sorri feliz, Inclina-se, Carrega 0 rolo do gravador. Esfrega as mdos, Ah! Examina o registro bem perto, Ié a anotagéo ao pé da pagina. Mamie descansou afinal... Hum... A bola preta... Levanta a cabeca, olhar vago a sua frente. Intrigado. Bola preta?... Mais uma vez examina de bem perto o registro, lé: A baba morena... Levanta a cabega, sonhador, inclina-se novamente sobre o registro, lé: Discreta methora do estado intestinal... Hum Memorivel... qué? Examina mais de perto. Equindcio, memorivel equindcio. Levanta a cabeca, othar vago a sua frente. Memorivel equinécio? .. Pausa. Dé de ombros, examina o registro de bem perto mais uma vez, Ié. Adeus ao... vira a pagina... amor. Levanta a cabega, sonhador, debruca-se sobre o gravador, liga-o ¢ assume uma postura de escuta, ou seja, inclinado para a frente, cotovelos sobre a mesa, mao em concha no ouvido voltada para o gravador, rosto de frente. Fita: voz forte, um pouco pomposa, claramente a voz de Krapp muito tempo atras. Trinta e nove anos hoje, firme como... Se acomodando mais confortavelmente, derruba uma das caixas, xinga, desliga 0 gravador, varre com violéncia da mesa para o chdo as caixas € o livro-registro, volta a fita até o comeco, retoma a postura anterior. Trinta ¢ nove anos hoje, firme como uma rocha, a nao ser pela minha velha fraqueza. E intelectualmente, tenho todas as razdes para suspeitar, na... hesita... crista da onda ~ ou por perto. Celebrei a terrivel ocasido, como nos iiltimos anos, tranquilamente na Taverna. Nem uma alma. Fiquei sentado a frente do fogo, com os olhos fechados, separando 0 joio do trigo. Rabisquei umas notas, nas costas de um envelope. & bom estar de volta ao meu abrigo, aos meus velhos trapos. Acabei de comer, lamento confessar,trés bananas, e s6 com muita dificuldade desisti da quarta. Veneno para um homem no meu estado. Com veeméncia: Chega, nunca mais! Pausa, A limpada nova sobre a me: € uma grande melhoria, Com toda esta escuridio 4 minha volta me sinto menos s6. Pausa. De certo modo. Pausa. Adoro me levantar: explori-la, ¢ entdo voltar para c4, para... hesita... mim. Pausa. Krapp. Pausa 0 trigo, vejamos, que seré que quero dizer com isso? Quero dizer... hesita... acho que quero dizer as coisas que ainda valerdo a pena quando todo pé — quando todo o meu pé tiver assentado. Fecho os olhos ¢ tento imagind-las, Pausa. Krapp fecha os olhos, brevemente. Extraordindrio siléncio esta noite, aguyo os ouvidos no escuto um pio. A velha Srta McGlome costuma cantar a esta hora, Mas no esta noite, Cangdes do seu tempo de menina, ela diz. Dificil de imaginé-la menina, Uma velha maravilhosa, contudo. De Connaught, eu acho, Pausa. Seré que cantarei quando tiver a sua idade, se & que algum dia vou ter? Nao. Pausa, Cantei quando era um menino? Nao. Pausa. Acabei de ouvir um dos anos passados, passagens ao acaso. Nao verifiquei no livro, mas devem ser de uns dez ou doze anos atrés. Naquele tempo, acho, ainda estava morando com Bianca na Kedar Street, quer dizer com idas e vindas. Bem longe de li, pode apostar que sim! Caso sem futuro. Pausa. Nao ha grande coisa sobre ela, ano ser por um tributo aos seus olhos. Entusid fico, De repente posso vé-los de novo. Pausa, Incompariveis. Pausa, Bom... Pausa, Sinistras, estas exumagdes, mas quase sempre me ~ Krapp desliga © gravador, sonhador, liga 0 gravador — ajudam, mas antes de embarcar num novo. hesita... retrospecto, Dificil de acreditar que algum dia tenha sido este cretino. Que voz! Meu Deus! E as aspiragdes! Riso breve ao qual Krapp se junta. E as decisdes! Riso breve ao qual Krapp se junta, Beber menos, particularmente. Breve riso de Krapp apenas Estatisticas. Mil e setecentas horas, das oito mil e poucas precedentes, consumidas apenas pelas dividas com a bebida. Mais de 20%, 40% digamos, de sua vida acordado, Pausa. Planos de uma vida sexual menos... hesita... absorvente, Doenga final de seu pai. Busca cada vez mais extenuante da felicidade. Fiasco total dos laxantes. Desprezo pela, como ele mesmo chama, sua juventude, e gragas aos eéus pelo seu fim, Pausa. Som falta nesse onto. Vestigios da obra... prima, E para concluir um (riso breve) grito dirigido & Providéncia. Riso prolongado ao qual Krapp se junta. Que resta de toda esta miséria? Uma garota num saco verde na plataforma de uma estagdo de trem? Nao? Quando olho— Krapp desliga o gravador, sonhador, olha o reldgio, levanta-se e vai em direcio ao fundo do paleo ds escuras. Dez segundos. Barulho de rolha espocando. Dez segundos. Mais uma vez, Dez segundos. Uma terceira vez. Sibita explosio de um canto trémulo: Krapp: cantando Chega ao fim dia, C As trevas — i a noite, Acesso de tosse. Volta para a luz, senta-se, limpa a boca, liga 0 gravador, retoma a postura de escuta Fita; - para tris, para 0 ano qu foi, com 0 que, espero, hd de ser meu velho olhar futuro, hd naturalmente a casa do canal em que mamée jazia agonizante, no fim de outono, depois de uma prolongada existéncia virtual, e 0 ~ Krapp desliga, levanta a cabeca, olhar vago a sua frente. Seus libios movem-se reproduzindo as silabas de vidual silenciosamente, Levanta-se, vai para os fundos do alco ds escuras, volta com um imenso diciondrio, coloca-o sobre a mesa, senta-se € procura a palavra. Krapp: lendo 0 diciondrio. Referente ao estado — ou condigdo — de ser — ou permanecer ~ uma vitva — ou vitivo. Levanta a cabeca. Intrigado. Ser - ou permanecer? ... Pausa. Debruca-se novamente sobre o dicionério, vira as paginas. Viva... Viiwa... Viuyez. Lé: © negro véu vidual... Diz-se também de um animal, mais exatamente um passaro... A viuvinha ou tecela...Plumagem negra dos machos... Levanta a cabeca. Deliciado: A ave vida! Pausa. Fecha o dicionério, liga o gravador, retoma a postura da escuta. Fita: - banco junto da represa do qual se podia ver a sua jencla. Eu ficava ld, sentado a0 vento cortante, querendo que ela se fosse. Pausa. Quase nenhuma alma, s6 alguns frequentadores habituais, babs, criangas, velhos, cachorros, fiquei conhecendo todos bastante bem — quer dizer, de vista, é claro! De uma jovem beldade morena me lembro particularmente, toda palidez ¢ amido, seios incompardveis, empurrando um carrinho enorme de capota preta, coisa mais fimebre. Todas as vezes que olhava em sua dirego, estava com os olhos pregados em mim. F, mesmo assim, quando tomei coragem € me dirigi a ela sem ter sido apresentado — ameacou chamar a policia. Como se eu tivesse cobigado a sua virtude! Ri, Pausa, Como... hesita... erisolita! Pausa, Bom... Pausa. Eu estava lé quando ~ Krapp desliga 0 gravador, sonhador, liga novamente — a persiana baixou, uma destas coisas encardidas, escuras, de rolo, estava brincando com uma bola ¢ um cachorrinho branco, por obra do acaso, Aconteceu de levantar os olhos e pronto, 14 estava. Ponto final, tudo acabado, enfim, Fiquei sentado um momento com a bola na mao ichorro ao meu lado, ganindo ¢ suplicando com a pata, Pausa. Um momento, Um momento dela, um momento meu, Pausa. Um momento do cao. Pausa. No fim dei-a a ele, que apanhou-a com a boca, calma, calmamente. Uma bola de borracha, pequena, 5 velha, preta, maciga, dura, Pausa. Vou senti-la, na minha mio, até o dia da minha morte, Pausa, Podia té-la guardado. Pausa, Mas dei-a ao cdo, Pausa. Bom.. Pausa, Espiritualmente, um ano de profunda melancolia ¢ mi aquela noite memorivel de margo, & beira do dique, o vento rajando, nao vou esquecer nunca, o dia em que de repente tudo ficou claro para mim. A visdo, enfim, E isto antes de mais nada, imagino, o que me io sobre cabe registrar hoje, pensando no dia em que meu trabalho esti acabado ¢ talvez vestigio em minha meméria, nem bom, nem mau, do milagre que... hesita... do fogo que a alimentou. © que eu vi foi que a crenga que tinka sustentado toda minha vida, trocando em mitidos - Krapp desliga o gravador com impaciéncia, avanca a fita, liga novamente — grandes rochedos de granito e a espuma jorrando a luz do farol e 0 anemdmetto girando como uma hélice, finalmente tomaram claro para mim que @ escuriddo que toda minha vida eu lutara para afastar era, na yerdade, minha melhor — Krapp xinga, desliga 0 gravador, avanca a fita, liga novamente — associagio inabalavel até o tiltimo suspiro da noite © da tempestade com a luz do entendimento ¢ o fogo — Krapp xinga mais alto, desliga o gravador, avanga a fita, liga novamente — 0 rosto em seus seios, a mao sobre ela. stavamos deitados ld, iméveis. Mas, sob nossos corpos, tudo se movia, e nos movia, suavemente, para cima e para baixo, de um lado para 0 outro, Pausa, Passa da meia-noite. Nunca ouvi tamanko siléncio. A terra poderia estar desabitada, Pausa. Aqui termino — Krapp desliga o gravador, volta a fita, liga novamente. ~- no alto do lago, com o barco, flutuando junto 4 margem, depois um impulso para a correnteza, navegando a deriva, Ela estava deitada sobre as tébuas do fundo, as maos sob a cabega e os olhos fechados. Sol flamejante, uma brisa suave, a dgua um pouco agitada, como eu gosto. Reparei num arranhio em sua coxa e perguntei 0 que tinha acontecido, Colhendo groselhas nos espinheitos, ela respondeu. Eu disse mais uma vez que tinha acabado, no havia esperanga, no valia a pena continuar e ela concordou, sem abrir os olhos. Pausa, Pedi que ela olhasse para mim e, depois de algum tempo — pausa — depois de algum tempo, ela olhou, mas com olhos que lembravam fendas, por causa do sol. Me curvei sobre ela para que ficasse & sombra e eles se abriram, Pausa, Me deixaram entrar. Pausa. Continuamos & deriva em meio ao junco e encalhamos. O junco que se dobrava, como que suspirando, sob a proa! Pausa. Deitei meu corpo sobre 0 teu, 0 resto em seus seios, a mao sobre ela, Estévamos deitados 1é, iméveis. Mas, sob nossos corpos, tudo se movia, ¢ nos movia, suavemente, para cima ¢ para baixo, de um lado para o outro. Pausa. Passa da meia-noite, Nunca ouvi — Krapp desliga 0 gravador, sonhador. Por fim remexe nos bolsos, encontra a banana, pega a banana, examina-a de bem perto, devolve-a, remexe, pega o envelope, remexe de novo, devolve 0 envelope, otha o relégio, levanta-se ¢ vai para o fundo do palco as escuras. Dez segundos. Barulho de garrafa contra copo. Depois barulho breve de siffo. Dez segundos. Apenas barulho de garrafa contra copo. Dez segundos. Volta um pouco desequilibrado para a luz, vai para a frente da mesa, pega as chaves, levanta as chaves 4 altura dos othos, escothe uma, abre a fechadura da primeira gaveta, olha dentro dela, passeia a mao por seu interior, tira um rolo, examina-o de bem perto, fecha a gaveta, devolve as chaves para 0 bolso, vai sentar-se, tira a fita do gravador, coloca-a sobre 0 dicionério, carrega o rolo de fita virgem no gravador, pega envelope do bolso, consulta 0 seu verso, coloca-o sobre a mesa, liga 0 gravador, pigarreia e comeca a gravar. Krapp: Acabei de escutar 0 cretino por quem eu me tomava hé trinea anos, dificil de acreditar que jd tenha sido to idiota. Mas isto j4 passou completamente, gragas a Deus. Pausa. Que olhar ela tinha! Sonhador, se dé conta que esté gravando o siléncio, desliga © gravador. Sonhador. Finalmente, Estava tudo ali, tudo, toda esta carniga planetéria, 7 toda a luz as trevas e a fome e os banquetes de... hesita... todos os tempos! Num grito E! Pausa, Deixa escapar esta! Deus meu! Podia ter atrapalhado os seus estudos! Deus meu! Pausa, Cansado. Enfim, talvez ele tivesse razdo. Pausa. Talvez tivesse razdo. Sonhador. Se dé conta, Desliga o gravador. Consulta o envelope. Bah! Amassa-o e atira- 0 longe. Sonkador. Liga o gravador. Nada a dizer, nem um pio. E agora, que ano ser? Ruminando merda e cagando ago. Pausa. Degustei a palavra rolo! Deliciado. Rroolo! Momento mais feliz dos tiltimos quinhentos mil. Pausa. Dezessete c6pias vendidas, das quais onze a prego de custo para bibliotecas circulantes de além-mar. Ficando famoso. Pausa, Uma libra, seis shillings e uns trocados, antes que o verdo esfriasse. Fiquei sentado, tremendo, no parque, mergulhado em sonhos ¢ louco para acabar com isso. Nem uma alma, Pausa. Ultimas quimeras. Com veeméncia: A afastar! Pausa, Forcei os olhos relendo Effi mais uma vez, uma pagina por dia, acompanhado de lagrimas ainda. Eff. Pausa. Sera que teria sido feliz com ela, lé, junto ao Béltico, e aos pinheiros, e as dunas, Pausa. Teria? Pausa. F ela? Pausa. Bah! Pausa, Fanny apareceu algumas vezes. Um fantasma esquelético de puta velha, Nao pude fazer grande coisa, ainda mais, um pouco melhor do que entre 0 polegar ¢ 0 indicador. Da tiltima vez até que nio foi tio ruim, Como € que vocé consegue, ela disse, na sua idade? Respondi que tinha me guardado para ela a minha vida inteira, Pausa. Fui as Vésperas uma vez, como quando usava calgas curtas, Pausa, Canta, Chega ao fim o dia, Cai a noite, As trevas — tossindo, depois quase inaudivel — do ocaso ‘Avisam a luz, é hora, vai. Arquejando. Cai no sono ¢ do banco. Pausa. As vezes me ocorre no meio da noite se um liltimo esforgo ndo seria... Pausa. Chega! Esva je logo a garrafa © vA para a cama, Continue com essa baboseira amanhii de manhi. Ou acabe por aqui mesmo. Pausa. Acabe por aqui mesmo. Pausa. Acomode-se lé no escuro, recostado sobre os travesseitos — viaje, De novo num vale, numa véspera de Natal, colhendo azevins, 0 de frutos vermelhos, De novo em Croghan, numa manha de domingo, na neblina, com a cadela, pare ¢ escute 08 sinos. Pausa, De novo, de novo. Pausa. Toda esta velha miséria, Pausa. Para vocé, uma vez no bastou. Pausa. Deite seu corpo sobre o dela, Pausa longa. De repente, debruca-se sobre o gravador, desliga-o, arranca a fita, atira- 4 longe, coloca a outra, avanga-a até a passagem que quer, liga-o, escuta olhando fixamente a sua frente. ta: Aconselhamos inheiros, ela respondeu. Eu disse mais uma vez que tinha acabado, no havia esperanga, nao valia a pena continuar ¢ ela concordou, sem abrir os olhos. Pausa, Pedi que ela olhasse para mim e depois de algum tempo —pausa — depois de algum tempo ela olhou, mas com olhos que lembravam fendas, por causa do sol. Me curvei sobre ela para que ficasse a sombra ¢ eles se abriram. Pausa. Me deixaram entrar. Pausa, Continuamos a deriva em meio ao junco ¢ encalhamos. O junco que se dobrava, como que suspirando, sob a proa! Pausa. Deitei meu corpo sobre o seu, 0 rosto entre seus seios © amao sobre ela, Estévamos deitados li, iméveis. Mas, sob nossos corpos, tudo se movia, e nos movia, suavemente, para cima ¢ para baixo, de um lado para o outro. “ausa. Os lébios de Krapp se movem em siléncio Passa da meia-noite. Nunca ouvi tamanho siléncio. A terra poderia estar desabitada. Pausa. Aqui termina esta fita, Faixa... Pausa. Trés. Rolo... Pausa. Cinco. Pausa. Talvez os methores anos jé tenham passado. Quando ainda havia uma chance de felicidade, Mas eu no os quereria de volta, Nao agora que tenho este fogo dentro de mim, Nao, ndo os queria de volta, Krapp permanece imével, olhando fixamente & sua frente. A fita continua a rodar em silencio,

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