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0 QUE MEDEIA NOS ENSINA SOBRE AS MAES, HOJE? Sérgio Laia’ Resumo: Medi, trapédia escrita por Buripedes, apresenta um crime terive: uma mulher tr por scu mario se vinga dele matando os filhos que tiversin juntos. Lacan aborda esea mulher, Medeia, como “ama verdadeira mulher” porque, com seu hortvel ato, ela se distancia de x posigio como mile, Hoje em dia, ser mie no ¢ tio atracnte quanto ser uma verdadcra mulbe cntio, este artigo, basesdo na psicanilise de orientagio lacaniana, investiga como Medeia elucid tos atosinsensatos sustentados por mies na contemporancid Palavras-chave: mie ~ mulher ~ verdade — gozo ~ filhos ~assasinato. WHAT MEDEA TEACHES ABOUT TODAY'S MOTHERS Abstract: Medea tragedy written by Euripides presents an awful crime: a woman betrayed b his husband revenges him killing theirs children, Lacan envisages this woman, Medea, true woman” beeause, with ths boerendous act, she takes distance from her positon as mother Nowadays, to bea mother is not so attractive as to be a tre woman, 80, this article, based on th pete teal seer et astlr a can clay ma sustained by contemporary moth Keywords: mothe a0 : children — murder Embora o titulo da proxima Jornada da Seco Minas Gerais da Esco: Brasileira de Psicanélise (EBP-MG) convide-nos a tematizar 0 que querem as mies em nossos dias, eu me endereco, na minha intervengio no segundo Psicanalista,Anaiste Membro da Escola (AME) pla Escola Brasileira de Psicandlise(EBP) eMombro 44 As ociagio Mundial de Psicanlise; Professor da Universidade FUMEC; Pesquisedor do Programe de Pesquisa e nicagdo Ciontiiea da Universidade FUMEC (ProPIC-FUMEC) do Conselho Nacional {de DesonvolvimantoCientiic e Tecnolgico ICNP) Mestre om Filosofia eDoutor em Letras (UFMG) Paychoanalyst, Analyst Memberof School AME) a EBP, Esco Brasvra de Psicandlse EB) and Associa tion Mondiale de Psychanayse (AMP! Member; Professor etFUMEC University; Researcher of Programe de Poesia Iniciago Cente da Universidade FUMEC (ProPIC-FUMEC) andofConselho Nacional de DesonvolvimentaCienifcoe Tecnoldgico {CNP}: Mastor in Phitsophy and PHD in Literature at UFMG. E-mail clea. bhe@terra.com br: Seminirio Preparatorio referente a esse evento, para uma época cronologi camente bem distante de nossa atualidade: o século 431 a.C., quando Med. escrita por Euripedes, foi primeiramente montada e concedeu-lhe, juntamente com Filoctees, Diztis e Os egfeiras, o terceiro lugar no festival ateniense conhecido como Grandes Dionitas'. Para esse enderegamento, pude contar com 0 amigo Teodoro Renné Assungio, sempre gentil ¢ preciso em responder a meus in teresses pelo mundo grego antigo ¢ que ainda me guiou, dessa vez, a Tereza Virginia Ribeiro Barbosa, tesponsivel pela direcio de uma recente traducao dessa tragédia para o portugués (FuRiPeDes, 431 a.C./2013) e que, também com muita generosidade € rigor, me passou referéncias decisivas para relé-la em fungio do tema a ser abordado aqui. A cada um desses dois professores da Pés-Graduagio em Estudos Literivios da Faculdade de Letras da Univer sidade Federal de Minas Gerais (UFMG), meu agradecimento especial: eles me permitiram esclarecer e embasar ainda mais as referencias que Jacques Lacan e Jacques-Alain Miller fizeram 4 Medeia, bem como sustentar muitos dos argumentos deste texto. A desmesura de Medeia e o que nela se mensura intre as referencias a que tive acesso, gracas a Tereza Virginia Ribei: 10 Barbosa, vou me ater a um artigo de Anne Burnett, publicado na Ch Philology. Essa professora da University of Chicago situa Medeia como uma “tragédia de vinganga”, mas, jé desde o inicio, xessalta a razio ao mesmo tempo inusitada e certeira — inclusive para a propria Grécia do século V aC. — de, nessa peca, a vinganga ser perpetrada por uma mulher e no por um homem. O inusitado se apresenta porque a “educagio helénica” de uma mulher, carac terizada por “aids” (que acabamos traduzindo como “vergonha") e “quietude”, contrasta com “qualquer ato de autoafirmacio (sejfascerton)” e “afasta da vio- Jéncia” as mulheres (BURNETT, 1973, p. 5). Mas também é possivel dizer que tum ato to desmedido como o de Medeia certamente s6 poderia ser realizado por uma mulher, pois “o agente central” de uma “vinganca cega” era mais apropriadamente feminino”, as mulheres “podiam ser cegas com muito mais eneantamento (gra) que os homens” ¢ cra-lhes “natural... serem insensatas foolish)” (Burners, 1973, p. 8). A observagio dessa estudiosa das tragédias iticas nao deixa de evocar a labilidade das mulheres a fiiria, ao desco: 0 | pp.2 que hoje chegou mesmo a ser cifrada em uma sigla mensalmente relacionada igamos assim, “certeza antecipada” de que nao Ihes seri possivel, mais uma vez, serem mies —a’TPM. Essa observaciio pode ser ainda cotejada com a mencio de Lacan (1973/2001, p. 540) ao dito corrente de que “as mulheres sio loucas” e que, mesmo nuangado como “niio loucas-de-todo”, articula-se 10 “ponto de niio haver limites para as concessGes que cada wma fay a tz homem: de seu corpo, de sua alma, de seus bens”. No caso da personager Medeia, a firia eclode quando ela se descobre langada, sem recurso, no abismo dessas concessdes ilimitadas que fez a Jasio, ex-marido ¢ pai dos filhos que tiveram ¢ que ela propria assassina En bora Medeia nio seja a vinica mulher a perp uma vinganca , Burnett (1973, p. 9) destaca sua diferenga em relagio a outras, como Electra, Creusa e Pedra, 3 medida que ela nfo porta “as marcas de fraqueza ou de inocéncia”, nfo é “nem muito jovem, nem muito velha, nem doida (wad), nem mutilada”, mas alguém “de meia-idade com uma tremenda vitalidade”, Além disso, a desgraga de Medeia “é ainda mais desproporcional por sua bruxaria ¢ sua liberdade, da vergonha” (BURNETT, 1973, pp. 9-10): no seu caso, mesmo sendo mulher , por isso, mais propensa 20 aides, a vergonha, o fato de ser bruxa ¢ estran mais prop a ! ‘a em terras helénicas poderia explicar — plateia do século V aC. mesmo ainda para nés —seu ato desmedido: s6 mesmo uma barb ‘cometeria tal desfacatez. Nesse contexto, considerado “um dos piores crimes conhecidos pela humanidade”, o ato de Medcia assassinar os dois filhos que teve com Jasio, e nfo s6 a nova esposa deste iltimo, é ainda perpetrado sem qualquer inocéncia: cla tem “pleno conhecimento da situacio” ¢ sustenta ‘ama determinacio fixa de agit em defesa de sua honra” (Burne, 1973, p. 10) Importante acrescentar também que nao é “um delito publico” o mobil dessa “sanguinolenta agio particular (blody private acto que, de fato, Medeia tem trés inimigos sem qualquer agiio piblica contra ela: Jasio “nio é um rival que usurpa pela forga um lugar efvico", m ilegitio mm homem que aban + particular” ¢ que foi “livremente oferecido” a cles a Futura itimidade para casar-se com ele @ nova esposa desse seu ex-marido tinha le Creonte, rei de Corinto e pai da futura nova esposa de um“ gislador legitimado (legitimate ruler)” perante 0 qual Medeia aparece como “a forasteir: intrusa (be foreign intruder)” (BunNETT, 1973, p. 10). Ademais, o assassinato dos préptios filhos por ela per Jo tende a parecer “gratuito ¢ desnecessario’ evista Cur BP-MG 19.40 1 porque esse crime “parece ter substituido 0 verdadeiro ato de vinganca” que seria “matar Jasio” (Burverr, 1973, p. 10). Portanto, quando sio os corpos dos filhos que aparecem no final da tragédia, jf nfo hi qualquer “possibilidade de redencio” € tem-se a impressio de que “o cosmos trigico saiu dos trilhos (cot out of joint), que 0 palco nos traiu, e as coisas ficam muito piores do que é consentido a arte mostrar” (BuRNETr, 1973, p. 11) Nesse contexto — ¢ também ji adiantando um elemento impor- tante para elucidar o que fex Lacan (1958/1966, p. 761) designar Medeia uma verdadeira mulher” cm fungio do modo como 0 filicidio é 0 ato pelo qual la visa a atingir diretamente Jasio — parece-me muito oportuno considerar © que Barbosa (2013, pp. 37-38) demarca a partir da inexisténcia de registto da palavea “filho"” (Liai) nos textos trigicos, embora esse termo fosse comu: mente utilizado pelos gregos antigos. Apés indagar como é possivel ma que mio existe, é destacado que, “de fato, Medeia no mata seus filhos", mas “todos os corzelatos que determinam a relagio matriz ¢ filial: os herdeiros, prole, os rebentos, fratos, cris, a estixpe, os descendentes..” (BARBOSA, 2013, p.38). Em suma, Medeia, 20 matar os préprios filhos ea nova mulher ¢ Jasio, compromete de modo radical a descendéncia do ex-marido, O crime de Medeia parece, entio, indicar que poeta “pretende redescobrir a ago da vinganga nua ¢ erua (in its naked stat)” (BURNETT, 1973, p. 11). O que ele faz precipitar em cena instiga estudiosos da tragédia g1 averiguar 0 que permitiu Medea ter sido encenada e aclamada na Atenas do século V a.C. quando, a principio, ela parece contrariar até mesmo 0 “cos mos trigico”. Burnett (1973, p. 12) nao deixa de assinalar que 0 gozo (minha tradugio lacaniana para o que ela situa como /uf) seja um tema em Medeia € se encontra subordinado “a uma corrupgao moral”, fazendo com que essa deca nio se distancie da tendéncia das teagédias fticas apresentarem crimes relacionados 20 espitito ¢ nao a carne. Afinal, Jasio — principal alvo de Me- Jeia — no é punido pura e simplesmente por ser um adtitero: “ele tem outro tributo que € muito mais importante... ele é um homem injusto” ¢, em s xcio, convoca a vinganca de Medeia posto que se coloca “primiria © persis tentemente.... como um impio injuriador (catb-breaker)” ou, literalmente, um ““quebrador-de-promessas” (BURNETT, 1973, pp. 12-13), aquele que desonra © que foi jurado, prometido, Nesse mesmo contexto, Oliveira (2006, p. 13), responsivel por outra traducio de Media para o portugués, sustenta que o citime de Jasiio” que aciona a vinganga da ex-esposa traida, mas 0 “que 08 gregos chamavam simé", traduzido em geral “como ‘honra™ ¢ indicando, ‘gr0380 modo, o valor atribuido a alguém por seus iguais’ Para nds, bem distantes do século V a.C., 0 “juramento” ou, como também encontramos nas duas tradugdes de Medeia a que faco referéne aqui (Euaivepes, 431 a.C./2006 e 2013), a “honta”, pode ser, segundo Bur nett (1973, p. 13) um “pobre substituto para 0 goz0 (usf)” ¢, assim, a ideia de uma Medeia mordida e enfurecida pelo citime pode nos parecer mais atraente. Porém, nos tempos de Euripedes, “juramentos” ou “honras” niio eram “simples conveniéncias humanas” expressas, por exemplo, como hoje ‘em dia, em contratos de negécios em que se tende a dissipar ou pelo menos gular a intima relagio, segundo Lacan (1972-1973/1975, p. 10), “do direito ¢ do gozo”. Os gregos antigos tomavam “juramentos” “hontas” como 0 que era “divinamente ordenado ¢ magicamente protegido”, uma espécie de pilar primitivo que suportava o céu, um lago que podia, ao mesmo tempo, evitar uma raiva possivelmente pesada” (BURNETT, 1973, p. 13). Dessa forma, » proprio casamento de Jasio e Medeia comportava um “juramento” ou uma “honra” realmente peculiar, porque a unio entre esse grego ¢ essa estrangeira foi sancionada pelos deuses por cles evocados: Medeia nio foi transferida de seu pai para seu marido como uma pega de propriedade (tal como acontecia com as noivas em geral). Solenemente € por si mesma, ela se moveu cheia de autonomia para se unir a ele ..]. Aos olhos dos deuses, eles se uniram pelo poder meio migico dos juramentos honras (eats) que repetiram [.] palavras teriveis administradas por Mede ¢ faladas por Jasio ao tocar-Ihe a mio dircita [.., palaveas que os uniram, gracas Terra e 20 Sol, ea todos os outros deuses (BURNETT, 2003, p. 13). Para os gregos antigos, “quebrar uma promessa”, “desonrar”, “inju iar” era um ato “simil: nguineo” ¢ tanto a desonra quanto esse tipo de assassinato tinham a capacidade de convocar uma Exinia, ou seja, essa forma demoniaco-divina também conhecida como Furia € que 86 seria apaziguada quando “se tivesse feito sofrer o malfeitor” (BURNETT 1973, p. 13). Portanto, Medeia vai, desonrada por Jasio, responder-Ihe & altura, assassinando-Ihe os filhos apés ter matado também a nova esposa do exmarido. Ao Coro, Medeia prenuncia o ato criminoso que atingira Jiretamente Jasio: sta Curinga | EBP-MG | 9.4 Ele nio veré mais meus meninos ivos daqui pra frente, nem com a noiva recém-casada teri crias ¢ é preciso que a hor morta de morte horrivel com meus venenos Burirepes (versos 803-806)? ‘Também ao Coro — que se espanta e tenta dissuadi-la dizendo: “Mas ousaris matar tua semente, mulher?” — Medeia responde, peremptoria “Assim mais forte mordo meu marido” (Evaireprs, 431 a.C./2013, p. 108 versos, B16 ¢ 817 Tanto esse antincio quanto sua determinada consumagio podem fa ‘er parecer que até mesmo 0 “cosmos trigico” saiu dos trilhos, mas é também com seu ato que a barbara ¢ bruxa Medeia visa a reconstruir 0 “pilar” capaz de manter 0 céu acima da terra, sem qualquer risco de cle despencar sobre as cabecas, tecendo de novo 0 “lago” possivel de conter a Exinia que ela propria acolhe em sua casa. Nessa mengio ao “pilar”, ou mesmo ao “lago”, um psica- nalista de orientacio lacaniana poder’ também encontrar uma referencia 20 falo ¢, assim, a mesma Medeia que, por sua desmesura, fez Lacan (1958/1966, p. 761) designé-la uma “verdadeira mulher”, almeja também se apresentar como responsivel pela medida do cosmos ¢ recolocé-lo, de novo, como ve temos, nas trilhas do Sol, este que € conhecido — mesmo em um universo como 0 nosso, onde cle jé no tem mais esse lugar — como 0 “astro-Rei” ¢ {que Medeia apresenta nos seguintes termos: “o pai do meu pai” (EuriPepes, 431 a.C./2013, p. 143), ow seja, seu av6 paterno. Mutheres de verdade, maes em declinio Podemos perguntar se o desconcertante aforismo A mulher nao existe (Lacan (1972-1973/1975, pp. 15, 99, 108-109, 111, 140-141) poderia ser contra posto, ou mesmo ganhar um forte oponente, sua afirmagio de que Madeleine esposa de Gide — apds a descoberta do desejo que ligava seu marido a Mar Allégret e destruindo todas as cartas de amor que Gide Ihe escrevera e que el (coma no menos decidida concordincia do esposo-escritor) considerava como 6 que tinha “de mais precioso” (Matter, 1925/1949) —, encarna, na Franea da segunda década do século XX, nada menos que Medeia “uma verdadeira mulher” (LACAN, 1958/1966, p. 761), Portanto, mesmo considerando o fato de oaforismo sobre a inexisténcia da mulher ser bem posterior 4 constatagio da existéncia de uma “verdadeira mulher” c, nesse viés, fosse possivel dizer qu acan havia modificado suas formulagdes sobre © que conecrniria ao fem} nino, a seguinte indagacio ainda podetia scr feita: se “A mulher no exi como pode haver “uma verdadeira mulher”? ssa contradigao, que tambérr ado deixa de evocar o tensionamento sustentado por Lacan (19 1975-1976/2007) entre 0 verdadeiro ¢ © real ou, também, entre o universal € 1 existéncia, mostra-se como aparente e se desfaz quando nos pautamos pela 1 precisa indicagio de Miller (1991/2015, p. 113): se chegamos a “um impossive determinado pela articulagio de semblantes”, poderemos “conchuir que exit Gque Ja”, Es mesmo a uin impossvel asim que Medeia ¢ Madeleine Gide se tam confrontadas, respectivamente por scus maridos, ¢ que as fez, ento, se langar em cena fazendo existir, ada uma com seu modo de destruir 0 que tinha de mais precioso, cartas¢ filhos (LACAN, 1958/1966, p. 761). As traigdes, tanto de Jasio quanto de Gide, impSem as esposas o impossivel da unio arti culada e pretendida por esses dois eassis: a existéncia de Media ¢ Madeleine como “verdadeiras mulheres” se dé a partir do encontro com esse impossive Atenho-me, aqui, mais especificamente a tragédia escrita por Eu pedes e destaco que somos informados, inclusive pela propria Medeia, de que Ula é neta do deus Sol filha do tei da Célquida, onde tinha todas as honras Apaixonada por jasio, ¢ em sua honra, cla injuriaa terra natal ao trair © pay matar o préprio irmao na fuga e cometer outros crimes horrendos. Medcia io encontrou qualquer medida para as concessGes que fez a Jasio, mas, nessa desmesura, tampouco deixa de encontrar nele seu pilar, sua Hi, sua honta” e, por isso, mesmo desfazendo-se dos semblantes que The conferiam a patria, dizimando o lugar que era 0 seu, no chega ainda a experimen- tat subjetivamente (podemos dizer assim) que, conforme sustenta Lacan 1075.1976/2007, p. 98), um homem, para uma mulher, é uma “devastagio Logo, quando descobre a traigio de Jasio, Medeia nao tem mais qualquer chance de retornar a casa do pai, Sua condigio de esteangeira em Corinto se agrava sem precedentes ¢ seti de lé expulsa, juntamente com seus fillos, por Creonte, o novo sogeo do ex-marido, Assim, conforme diz as mulheres de Corinto, experimentando “ser, na cama, injuriada”, sem contar com o pilar do qual Jasio passou a ser um semblante, Medeia também experiment ‘nfo existe outra mente mais sanguinaria” (Eurirepes, 431 .C./2013, versos 265-266, p61) € ja no hi mais como conter a devastacio que Jasio, hhomem, faz propagar no seu corpo. Retomando as formulagoes 1958/196 de Miller (1991/2015, p. 113) e de Lacan smblantes” sustentada no laco de p- 761), reitero que a ‘articulacao de se Medeia com Jasio, con: Jetermina que ela se faga existir como frontando-a com “um impossivel”, Ao se dar essa existéncia como “uma verdadeira mulher” no ato de assassinar seus prprios filhos, Medeia nos mostra o quanto € certeira 2 2015, pp. 113: ante, proposigio de Miller (199) visto que ela faz, do seu nao tet 4). “uma verdadeira mulher’ nao é a mie” sua afinidade (inclusive por ser “verdadeira”) re, como sabemos, @ 0 que faz, as vezes de alguma coisa com o semblante qui ‘o que se faz passar pelo que é nada. Injuriada sem que, efetivamente, a s¢j fe desonrada, entio, por quem Ihe fazia as vezes de pilar, Media se apresenta forasteira mesmo na funcio de cuidar de vinganea contra Jasio, tornando-os portadares do véu que iri envenenar a ova exposa, declina-se como mle, fazendo sua vinganga culminar no sact ficio de sua prole. Porém, perante o vazio perturbador, par inexisténcia d’A mulhe homens ¢ mulheres, +, é importante nio nos deixarmos fascinar pela apre- centagio da “verdadeira mulher” como se cla pudesse, enfim, nos afastar ov mesmo nos livrar desse vazio. E fago esse alerta contra tal fascinio nao apenas ter barbaridades, bancar verdadeita mulher” € capaz de com« passar todos 0s Timites. Bu 0 fago ama Esinia, ultra ‘como um contraponto a0 vario da inexisténcia d’A mulher —~ 0 porque “um sobretudo porque, por mais que tracnte, constatamos que a existéncia de “uma verdadeira verdadeito possa ser wrriher”,conforme ehicida Miller (1992/2009, p. 101), s6 pode apresentar-se como fyché, ou seja, como acaso, encontso faltoso. TDesse modo, para elucidar por que Medeia é uma “verdadeira m Thee” em uma ocasiio que Ihe di essa chance ¢ no © tempo intciro,assinalo que nio é s6 a transmatar-se de novo em mie que Medeia aspira 20 Sit quem prometera, como bruxa que eta, uma Corinto para morar com Bgeu, 3 espécie de antecipagio das técnicas atuais de reproduc te farei semear geragdes! Conhe Jo assistida: “Acabarei com tua falta de filltos e de filhos 10 bons + (EuRirepes, 431 a.C./2013, p. 97, versos 717-718) ue Lacan (1960/1966, p. 825) arto alado do sol, ela vai se apresentar como © q) Permite a Miller (1992/2009, p. 104) situar: a “mulher com postiga”, isto é, aquela que se coloca como sendo o falo € age de modo muito conscrvador, Pedindo “para que nio seja othada de muito perto”, exigindo “respeito”, im. pondo uma “distincia” para “fazer erer que 0 postico [o falo que ela pretend ser] € verdadeiro” (Mute, 1992/2009, p. 292). ‘Trata-se, entio, nesse final, do contririo de “uma verdadeira mulher”. Esta tiltima, podendo mesmo arruina 1o, “faz o homem ver que o ter é ridiculo” (Muts.ER, 1992/2009, p, 104). Bem diferente, uma “mulher com postigo” nio ameaga seu par, niio o convoca como descjante: tal como Medeia se apresentando como sendo 0 remédio-falo par infertilidade-castracio de Egeu, uma “mulher com postica” coloca o bem de um homem, segundo Miller (1992/2009, p, 292), “cm uma caixa forte” da qual, acrescentaria, ela teria a chave, o segredo, Logo, no é sem razio que, apés termos de nos confrontar com 0 ato de Medeia lavat com o sangue dos préprios filhos a honta perdida, os tiltimos versos que Euripedes (431 a.C./2013, p. 153) faz 0 Coto entoar parecem-me evocar que o “cosmos trigico” entra de novo nos trilhos: Zeus no Olimpo muito distribu: € muito os deuses realizam além da expectati O esperado nio se cumpriu E do inesperado deus achou uma said: Assim termina esse ato ersos 1.415- 1.415 Vive mn um mundo onde, para muitas mulheres, “ser mulhe impera sobre “tor Ponto de que ser “uma mulher de verdade”, com todos 08 riscos que isso implica, se apresenta como uma saida que vi- Fla responder a0 vazio da “inexisténcia da mulher”, Nesse mundo também, muitas vezes, a convocagio 4 maternidade vai aparccer perante a pressio de l6gio biolégico” que ameaga as mulheres com o nio-ter, Todavia, parece me importante averiguar se, bem mais do que por “mulheres de verdade”, Por “mulheres filicas” ou mesmo por “mies”, nesse mundo que a todo tempo se mostra como fora dos trilhos do pai, o vazio da inexisténcia da mulher é colocado (mesmo que de modo vio) 4 distincia, no que concerne as mulheres, alo Laie is que entre Cila e Caribde Para retomar outra referéncia grega— a Odiseae rita por Homerg Géc. VI a.C/1955, p, 714 ¢ 1992, p destaco que Ulisses, para retomnal «Itaca, teve que enfrentar, de um lack na sombria toca de um rocheda droc nara monste4 Cila que, ladrando como uma fillhote de cio, com sah love pernas, seis longos eerétcis pescogos e seis bocas com trés protuberante dlentes na frente de cada uma, causava horror aos prdprios deuses. Do out sco, porém bem proximo de Cila, i sombra de uma imensa fie ra, o mesmo Ulisses também encontrou outra monstra e nfo menos terre tratava-se de Caribde, com suas ondas “famélico-rauminantes” que,em um rederninin, tris Te, Yomitavam c sorvia tudo 0 que — sem poder ser salvo nem meain pr Netuno — acetcasse fatalmente de seu inte vrtice, Desa passagem de Ulisses, derivou-se a expressio entre Cila ¢ Carib signar, até hoj © confronto com duas situacdes perigosas As mulheres, ¢ de um modo muito mais contundente que para os homens (mas sem que $ ilkimos possam se livrat), tém suas existéncits ‘travessadas por uma variedade maior de “perigosos monstroe” que aqueles searts OS ais Ulises lura em sua volta a terra natal. Esses “monstros dem atender pelos nomes de verdadeira mulher”, “a mac”, “a mulher m postico" “a mulher fica” e, provavelmente,inumeriveis outvos. Poin ariedade de enfrentamente 55 Ga diferenga sexual nos convo ndo di lugar a qualquer expressio na ordem dos significantes diferc, te d Que encontramos na situagio espinhosa evocada na expressio “entee Caribde” e detivada da Odiseia, ou seja, da saga de Ulisscs Outras vias poderio se apresentar quando a personificacio de pelo >s um desses “monstros” conduz uma mulher, o um homem, a experi Encia analitica, permitindo-the se colocar com mais desenvoleura ro entecn {amen da feminilidade, da diferenga sexual e do impossivel de se enenntrn ms Proporsio, uma medida para o que pode acontecer entre doje pos Sexuados. Uma dessas vias, lastreada pelo termo nio-todo, marca relagic cunt mulher com o falo, com a castragio (Lacan, 1972-1973/1975), Ung Enquadramento: ser sinoma para outro corpo (LACAN, 1975-1976/20 Es. mo exceses 20 que Medeia nos ensina sobre as mies, hoje, Ainda assim, os destacaria que essa tragédia também é, como uma espécie de contraponto, 0 que me leva a fazer uma alusio a elas Notas informagio foi retirada do Argumentn da Peca, escrito pelo gramitico Aristofanes de Bizincio em torno do ano 200 a.C. Filoctetere Dictiseram duns ragédias que compunham, com Medeia, uma trilogia, mas nio chegaram }© nosso tempo; Os ins era um drama satirico que sequer Aristéfanes de Bizincio chegou a conhecer. Cf. EURIPEDES, 2006, p. C£. EURIPEDES, 2013, p. 105. Para maiores informagdes sobre André e Madeleine Gide, bem como so bre 0 ato que aproxima essa iltima de Medeia, ver: LACAN (1958/1966) MILLER (1993) e HELLEBOIS (2011 * Cf BURIPEDES, 2013. Referéncias BARBOSA, T. V. R. Preficio. 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