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WALIIdSA OLNFINISSAYD O 3 SIVNOMIGVEL STHOTVA SO ‘WOW 0 AUBOS ViOOTOOISd YO OYSIA VAON ¥¥A YIIawWoaIwag SONIAW vIn by ORES Eni) BTA Op BAljesowlauing 88d HOIS “Nl Ss vin ss ra na roxio di te ot hhumano, ha sempre o isco de que aquela pessoa se afaste de voo8, delxando-o mais dolorosamente sozinho do que estava antes. Ame qualquer coisa viva — uma pessoa, um bicho de estimagéo, uma planta 8 ela manera. Confe em qualquer um @ seré magoado; dependa de elguém @ essa pessoa o decepcionard. O prego 4o investimento é a dor. Se alguém esti determinada a no se arriscara sentir doy, entdo deve abrir mao de muitas coisas — fihos, casamento, sexo, ambigdo, amizade — tudo o que toma a vida viva, signicativa 8 importante, Mude ou cresga em qualquer dimensdo @ a dor, assim como a alegria, serd sua recompensa, Lima vida plene serd chela de dor, Mas a Unica alternativa 4 rdo vive plenamente ou simplesmente 1d vive. A esséncia da vida & a mudanga. Temos um limite de tempo para vver 6 amar, Pademos sempre ser qulados para usé-lo da melhor maneira possivel @ dasirutar vida ao méximo, Mas se néo estamos dlispostos @ encararplenaments a presenca assustadora da morte sobre o nosso ombro equi, nos prvamos da sua sabedoria € rio hé como vivermos ou amarmes com clateza. Quando recuamas dante da mort, da natureza sempre mutavel das coisas, inevitavelmente recuamos dante da vida A TRitHa MENOS PERCORRIDA M. Scott Peck A TRiLHA MENOS PercorriDA UMA NOVA PSICOLOGIA DO AMOR, DOS VALORES TRADICIONAIS E DO CRESCIMENTO ESPIRITUAL ‘Tradugo de MARIA CLARA DE B. W. FERNANDES Reyisio técnica de CELIA RESENDE psicoterapeuta e escritora 3! EDICAO @ CtP-basil Caslongio-safere Sintcao Naso de ores de Lito, Pook M, Sot Morgan Seat), 1986. pssst A uta mens pecorida una ova piologa doar, {Pod doy wlres eens eb crsement cope / MC Scot TeclvundutedeManaClarade 8 W.Fesapdes = e.- Rio bor: Nowe, 208. “Trad de The rd ess evel ISBN 97eAS-TOL LIZ |. Matarago (scoop. 2. Pig rip. 3. lcs ego. Lua. cpp 1581 ox 1908 (cou ~ 130903 ‘Titulo orginal norte-americano ‘THE ROAD LESS TRAVELLED Copyright © 1978 by M. Scott Peck ‘Copyright do Pretcio © 1985 by M. Scott Peck Copyright da Introdugio © 2002 by M. Scott Peck ‘Copyright da tradugao © 2004 by Distribuidora Recotd de Servigos de Imprensa S.A. Publicado mediante acosdo com Simon and Schuster, ne Acoitora agradece pela autorizago para reprodugdo dos textos listados nas piginas 331 © 332. ‘Todos os direits reservados. Proibidla a reprodugo, no todo ou em ‘pric, sem autorizagto prévia por escrito da editora, jam quais forem ‘0s melos empcegados. Direitos exclusivos de publicagdo em lingua portuguesa para o Brasil adquitidos pola Eoirora Nova Exa um seo da Eorrora Best Saute Lrpa, Rua Argentina 171 —Rio de Janeiro, RI—20021-380-—Tel: 2585-2000 ‘que se rexervs a propriedade literdria desta tradusa0. Impresso no Brasil ISBN 978-85-7701-112-4 PEDIDOS PELO REEMBOLSO POSTAL ‘Caixa Postal 23.052 Rio de Jancio, RJ ~20922-970 A meus pais. Elizabeth e David, ceuja disciptina e eujo amor deram-me olhos para ver a graca Sumikrio Introdugao a edigdo norte-americana de 25° aniversério Prefacio Parte | DISCIPLINA Problemas e sofrimenta Adiamento da gratificagdo (Os eros das pais Solugao de problemas e tempo Responsabitidade Neuroses e desondens de cariter Fugindo da libertade Dedicagdo a realidade Transferéncla: 0 mapa ulerapassado Abertura ao desafio Ocultando a verdade Equilibrio Quando a depressdo é saudével Rentincia e renascimento 15 19 22 25 31 a Resrs ase 78 8 SUMARIO Parte Il AMOR Definigdo do amor “Apaixonar-se” O mito do amor roméntico Mais sobre fronteiras do ego Dependéncia Investimento sem amor “Auto-sacrificio” (O aamor ndio & um sentimento O trabalho da atengao O visco da perda O risco da independéncia O risco do compromisso O risco do confronto Ocamor é disciplinado O amor é distingao Amor e psicoterapia Omistério do amor Parte Ill CRESCIMENTO E RELIGIAO Vises do mundo e religito A religiao da ciéncia Ocaso de Kathy Ocaso de Marcia O caso de Theodore O bebe e a dgua do banho Visdo em tinel cientifica 87 90 7 100 104 112 118 123 127 139 142 148 159 164 170 179 190 195 203 208 219 221 233 237 SUMARIO Parte IV GRAGA O milagre da sovide O milagre do inconsciente O milagre da cogni¢do A definigdo da graca O milagre da evolugdo OAlfa eo Omega Entropia e pecado original O problema do mal A evolugto da consciéncia A naturexa do poder Graga e doenga mental: 0 mito de Orestes Resisténcia @ graga As boas-vindas da graca Epllogo Agradecimentos O autor 247 256 267 213 27 282 285 291 294 298 303 3iL 321 327 331 333 INTRObUC ho A ESICAO NORTE-~AMERICANA DE LI” ANIVERSARIC “Amanhi um estranho diré com magistral bom senso exatamente aquilo que pensamos ¢ sentimos 0 tempo todo.” Ralph Waldo Emerson, Self Reliance RESPOSTA MAIS COMUM QUE OBTIVE DOS LEITORES DEA TRI- Tha menos percorrida foi de gratidio por minha coragem —nfo por dizer algo novo, mas por escrever sobre coisas que eles haviam pensado e sentido 0 tempo todo, mas sobre as quais temiam félaz, Néo estou certo sobre a questio da coragem. Um derermina- do tipo de esquecimento congénito poderia ser um termo mais adequado. Nos primeiros dias apés o langamento do livro, uma paciente minha estava em um coquetel quando ouviu por acaso uma conversa entre minha mée e uma outra senhora. Referindo- se 20 livro, a mulher disse: “Certamente vocé deve estar muito corgulhosa do seu filho Scotty.” Minha mée respondeu com aquela, ironia tipica dos idosos: “Orgulhosa? Néo, nfo particularmente, Isso no teve nada a ver comigo. Veja bem, é a mente dele, Um dom." Acho que minha mae estava errada a0 dizer que nio tinha nada a ver com isso, mas estava certa ao dizer que A trilha foi o resultado de um dom — em muitos niveis, n InTRODUGAO. Parte desse dom remonta ao passado. Ewe minha mulher Lily tinhamos nos tornado amigos de ‘Tom, um homem mais jovern, que freqiientara a mesma coldnia de férias que eu. Durante aque- les verdes eu havia brincado com seus irmos mais velhos, e sua ‘mie me conhecera quando eu era crianga. Uma noite, alguns anos antes da publicagio de A trilha, Tom iria jantar conosco. Estava nna casa de sua mae e na véspera lhe dissera: — Mie, amanhi a noite vou jantar com Scott Peck. Voct se lembra dele? — Claro — ela respondeu. — Era aquele menino que sem- pre falava de coises sobre as quais as pessoas niio deveriam falar Portanto, pode-se ver que esse meu dom remonta ao passado. Pode-se ver também que, na cultura predominante na época da minha juventude, eu era considerado um pouco “estranho”, Como era tim autor desconhecido, A tritha foi publicada sem alarde. Seu surpreendente sucesso comercial foi um fendmeno gradativo, O livro s6 apareceu nas listas de mais vendidos cin- co anos apés sua publicagio em 1978 — ¢ sou extremamente grato por isso. Se tivesse se tornado um sucesso da noite para 0 dia, duvido muito que eu soubeste lidar com a fama stbita. De qualquer modo, 0 livro demorou a se tomar um sucesso e sua divulgagdo se deu, como se diz nos meios editoriais, através do boca a boca. No inicio, acs poucos, essa publicidade seguiu varias rotas. Uma delas foi o Alcoslicos Anénimos. De fato, a primeira carta que recebi comegava assim: “Caro Dr. Peck, 0 senhor deve ser um alco6latra!” O remetente achou diffeil imaginar que eu poderia ter escrito um livro como este sem ter sido durante muito tempo um membro do AA e humilhado pelo alcoolismo. Se A tilha tivesse sido publicada vinte anos antes, duvido que teria feito qualquer sucesso. O Alcoblicos Anénimos s6 decolou INTRODUGAO. 13 em meados da década de cinglienta (nfo que a maioria dos leito- res do livro fosse alcoSlatra) e — mais importante ainda — isso também ocorreu coma psicoterapia, O resultado foi que, em 1978, quando A trilha foi originalmente publicada, um grande ndimero de mulheres e homens nos Estados Unidos mostrava um requinte psicolégico e espiritual e comegara a contemplar profundamente “todos os tipos de coisas sobre as quais as pessoas nfo deveriam falar®. Estavam quase literalmente esperando que alguém dissesse aquelas coisas em voz alta. Eassim A nilha se tomou progressivamente populat —e con- tiftua sendo. Mesmo perto do final da minha carreira no circuito de conferéncias, eu dizia ao piiblico: “Vocés nfo séo um grupo tipico dos Estados Unidos, mas tém muitas coisas em comum. Uma delas 6 que muitos de voeés fizeram — ou ainda fazem— tratamento psicoterdpico, seja com programas tipo Doze Passos ou ajuda de terapeutas tradicionais de formagao académica. Nao creio que vio achar que estou invadindo sua privactdade se pe- dir que todos aqui que fizeram ou fazem esse tratamento levan- tem as mios.” Noventa por cento das pessoas levantavam as mos. “Agora olhem ao redor", ditia-thes. “Isso tem implicagées importantes”, continuava. “Uma delas € que vocts sio pessoas que comegaram a transcender a cultura tradicional.” Com isso eu queria dizer, entre outras coisas, que hd muito haviam comegado a pensar naquele tipo de coisas sobre as quais as pessoas no deveriam falar. E quando eu explicava o que queria dizer com “transcender a cultura tradicional” e o significa- do exiraordindtio desse fenémeno, elas concordavam. Algumas me chamavam de profeta. Posso aceitar esse titulo aparentemente grandioso apenas porque muitos salientaram que um profeta néo é alguém que pode ver o futuro, mas sim alguém capaz de interpretar os sinais dos tempos. A trilha foi um sucesso 14 INTRODUGAO. principalmente porque foi um livro fruto do seu tempo. Seus lei- tores 0 tornaram um sucesso. Quando A wilha foi publiceda pela primeira ver, em inglés, ha vinte cinco anos, minha fantasia era a de que seria criticada em jor- nis de todo 0 pats. A realidade foi que, por pura graca, recebeu uma Gnica critica... mas que critical Devo creditar grande parte de seu sucesso a Phyllis Theroux. Na época, Phyllie, ela mesma uma 6tima autora, era também critica literdcia e acidentalmente descobriu um exemplar de A trtha entre uma pilha de livros no escrit6rio do editor do The Washington Fost. Depois de examinar 0 sumério ela resclveu levé-lo para casa, voltando dois dias depois para perguntar se poderia fezer sua crftica. O editor concordou, quase relutantemente, ¢ entio Phyllie pés-se a—em suas préprias palavras —“deliberadamente elaborar uma erftica que tornaria 0 livro um best seller”. Foi o que ela fez. Uma semana depois de sua crftica, A witha estava na lista de bestsellers de Washington, D.C, anos antes de entzar em qualquer lista de ambito nacional. No entanto, aquilo foi suficiente para alavancar o livro. Sou grato a Phyllis por outro motivo. Quando a popularidade do livro aumentou, desejando gorantir que eu teria a humildade para manter 0s pés no chéo, ela me disse: "Voce sabe que o livro nao é seu.” Compreendi imediatamente o que ela quis dizer De modo algun nenhum de nés deseja afirmer que A trilha foi « palavra li- teral de Deus ou material “canalizado”, Eu o escrevi, e hd vérias partes nele em que gostaria de ter escolhido palavras ou frases melhores. O livro no € perfeito, e sou totalmente responsével por suas falhas. Contudo, talver porque apesar de suos falhas terem sido necessétias, no tenho davidas de que, quando o escrevi na solidao de meu exfguo escritério, recebi ajuda. Realmente nao posso explicd-la, mas essa experiéncia dificilmente é Gnica. Essa ajuda o tema fundamental do préprio livro. PREFACIO .MAIORIA DAS IDAIAS APRESENTADAS AQUI PROVEM DO MEUTRA- batho clinico didrio com pacientes que lutavam para evitar ou atingie niveis ainda maiores de maturidads, Conseqiientemente, este livro contém partes de muitos relatos. Comoo sigilo éindispensévela pré- tica psiquistrica, em todas as descrigdes de casos alterei nomes e ou- tros detalhes para preservar o anonimato de meus pacientes sem distorcer a realidade essencial da nossa experincia comum, Condo, devido a forma concisa com que os cases foram apre- sentados, pode haver algumas distorgbes. A psicoterapia raramente € um processo répido, mas como tive de me concentrar nos pon- tos-chave de cada caso, & possivel que o leitor fique com a im- presslio de que o proceso é claro e dramatico, O drama é realea clareza pode finalmente ser atingida, mas & preciso lembrar que, para tornar aleitura mais fluente, omiti nessas descrigées de casos os relatos dos longos perfodos de confusto e frustraggo inerentes A maior parte da terapia. ‘Também gostaria de me desculpar por me referie continuamen- tea Deus na imagem masculina tradicioncl. Fiz isso mais por um desojo de simplicidade do que por qualquer conceito rigido relati- Vo a08 Sexos, Como psiquiatra, sinto que é importante mencionar desde o {nfcio dois pressupostos bésicos contidos neste livro. O primeiro é que no faco distingo entre mente e espfrito, ¢, portanto, néo diferencio os processos que levam ao erescimento espiritual e 20 crescimento mental. Bles sio um s6. 16 PREFACIOL O segundo € que esse processo é um trabalho complexo, ér- duo e para toda a vida, Como a psicoterapia visa a fornecer uma considerdvel assisténcia a0 processo de crescimento mental e es- piritual, nao é um procedimento rapido ou simples, Eu ndo per- tengo a nenhuma escola de psiquiatria ou psicoterapia; nao sou simplesmente freudiano, junguiano, adleriano, behaviorista ou gestaltista, Nio acredito que haja uma resposta finica e facil. As formas répidas de psicoterapia podem ser fiteis e nfo devem ser desprezadas, mas o auxslio que prestam ¢ inevitavelmente super- ficial. A jomada do crescimento espiritual ¢ longa. Eu gostaria de agradecer aos pacientes que me concederam o privilégio de acompanhé-los durante grande parte dela. Sua jornada também foi minha, e muito do que € apresentado aqui aprendemos juntos. ‘Também gostaria de agradecer a muitos dos meus professores € colegas, especialmente 8 minha mulher, Lily. Ela foi tao generosa que é dificil distinguir seu conhecimento como mulher, mic, pricoterapeuta e pessoa da minha prépria sabedoria. PARTE Pisci P lia Problemas e sofrimento AVIDAé Dien. Essa é uma grande verdade, uma das maiores.’ £ uma grande verdade porque quando realmente a enxergamos, nésa transcen- demos. Quando realmente sabemos que a vide é diffeil —quando entendemos e aceitzmos isso — ela deixa de ser dificil. Uma vee que tenhamos aceitado essa realidade, o fato de a vida ser diffe deixa de terimporténcia. ‘A maioria das pessoas nfo enxerga totalmente essa verda- de. Em vez disso, queixa-se com maior ou menor freqiiéncia, em voz alta ou sutilmente, da enormidade de seus problemas, de seus fatdos e dificuldades, como se a vida fosse geralmente facil, como se a vida devesse ser facil. Elas expressam sua cten- 5, em vor alte ou baixinho, de que suas dificuldades represen- tam um tipo tinico de aflicao que ndo deveria existir e que lhes foi de algum modo imposta, ow imposta a suas famflias, sua tri- bo, sua classe, sua nagdo, sua raga ou até mesmo sua espécie, € no 20s outios. Conhego bem esse tipo de queixa, porque tam- bém jé fui assim. "A primelta das “Quatro Verdades Nobres" ensinadas por Buda foi “A vida € sofrimento” 20 DISCIPUNA, A vida € uma série de problemas. Queremos nos queixar deles ou resolvé-los? Queremos ensinar aos nossos flhos como resolvé-los? A disciplina é a caixa de ferramentas basica de que precisa- ‘mos pata solucionar os problemas da vida. Sem disciplina nao podemos resclver coisa alguma. Com pouca disciplina podemos resolver poucos problemas. Com total disciplina podemos resol- ver todos os problemas. O que toma a vida diffcl € que o proceso de enfrentamento ¢ resolugio de problemas é doloroso. Dependendo de sua nature- za, 0s problemas causam frustrago, mégoa, tristeza, solidao, cul- pa, arrependimento, raiva, medo, ansiedade, angiistia ou desespero. Esses sentimentos so muito desagradaveis, freqtientemente to dolorosos quanto qualquer tipo de dor fisica, es vezes se equipa- ram a0 pior tipo de dor fisica. De fato, 6 a dor provocada pelos acontecimentos ou conflitos que nos leva a cham-los de proble- mas. E como a vida vive apresentando uma série intermindvel de dificuldades, é sempre difcil e plena tanto de dor quanto de alegria. Contudo, 0 sentido da vide esté nesse processor enfrentar € resolver problemas. Os problemas sfo 0 fio da navalha entre 0 sucesso ¢ 0 fracasso. Eles despertam nossa cotagem e sabedoria. E s6 por causa deles que crescemos mental eespiritualmente, Quan- do desejamos encorajar o crescimento do espirito humano, desa- fiamos e estimulamos a capacidade humana de resolver problemas, do mesmo modo como na escola, deliberadamente, propomos questGes para nossas criangas resolverem. E por meia da dor gera- da pelo enfrentamento ¢ resolugio de problemas que crescemos. Como disse Benjamin Franklin, “As coisas que doem ensinam”. E [por essa razfio que as pessoas sibias aprendem a ndo ter medo dos problemas, mas a aceitar de bom grado a dor que eles provocam. A muioria de nés nfo € to sibia, Temendo a dor envolvida rentamos, em maior ou menor grau, evitar os problemas. Deixa- mos pare encaré-los depois, esperando que desaparegam. Nés os PROBLEMAS E SOFRIMENTO a ignorames, os esquecemos, ingimos que eles nfo existem. Chega- mos a usar drogas na tentativa de ignoré-los, certos de que, anestesiando-nos, seremos capazes de esquecera dor que causam. “Tentamos evité-los em vez de encaré-los, tentamos fugir deles em vez de vivé-los ¢ softer. Essa tendéncia a evitar os problemas e o sofrimento emocio- nal que lhes ¢ inerente a fonte de todas as doencas mentais que afligem a humanidade. Uma vez que a maioria de nés tem essa tendéncia, em maior ou menor grau, a verdade é que de certa for- ‘ma quase todos experimentamos algum tipo de desequiltbrio men- tal. Alguns néo medem esforcos para evitar os problemas e 0 sofrimento que causam, distanciando-se de tudo que é claramen- te bom e sensatona tentativa de encontrar uma saida fécil, eecen- dos mais elaboradas fantasias es vezes até excluindo totalmente a realidade. Nas palavras sucintas e elegantes de Carl Jung, “a neurose € sempre uma substituta do softimento legitimo”? Mas em diltima anélise a substituta causa mais dor do que o so- frimento que ela deveria evitar. A neurose toma-se o problema maior Confirmando isso, muitos tentam evitar a dor e os préprios proble- ‘mas, construindo camadas sobre camadas de neuroses. Felizmente, alguns tim coragem para enfientar suas neuroses ¢ comecam—em geral com a ajuda de psicoterapia —a aprender como experimen- ‘ar 0 softimento legttimo. Seja como for, quando evitamos a dor, evitamos também o crescimento. £ por isso que, nas doengas men- tis crOnicas, nds paramos de crescer,ficamas inertes, E, sem espe- ranga de cura, o espirito humano comega a definhar. Portanto, devemos incutir em nds mesmos e em nossos filhos os. meios de atingir a satide mental e espiritual. Com isso, quero dizer que devemios ensinar a nés mesmos e aos nossos filhos que o softi- Collected Works of C. G. Jung, Bollingen Ser, 1220, 28 edigdo (Princeton, N. Princeton Univ, Press, 1973), trad. R. FC. Hill, vol I, Palchology and Religion: West and East, 75. 2 DISCIPLINA. mento 6 necessério. E preciso encarar diretamente os problemas € experimentar a dor envolvida. Bu afirmei que a disciplina 6a caixa de ferramentas bésica de que precisamos para resolver as dificulda- des da vida, Essas ferramentas sfo técnices de sofrimento, através das quois experimentamos a dor gerada pelos problemas, de modo que possames nos esforcar para resolvé-los, aprendendo e crescen- do durante esse processo. Quando ensinamos a nds mesmos € 40s nosso filhos disciplina, estamos ensinando —a eles ea nés —nio ‘apenas como softes, mas também como crescer: ‘Quais séo exatamente essas ferramentas? Que téonicas sio es- sas, que nos fazem experimentar constrotivamente a dor dos pro- blemas, que eu chamo de disciplina? Sao quatro: adiamento da sgrotificagdo, aceitagio da responsabilidade, dedicagio a verdade e ‘equilrio, Como logo se tornar4 evidente, elas nfo so ferramentas complexas, cujo uso exige um treinamento intensivo. Ao contrd- rio: so simples, e quase todas as criancas conseguem domind-las ppor volta dos des anos. Apeser disso, presidentes e reis com freqiién- cia se esquecem de usé-las, € 0 resultado é sua propria queda. © problema no esté na complexidade dessas ferramentas, mas na vvontade de usé-las. Com elas, a dor é enfrentada em vez de eviteda, ‘e quem deseja fugir do sofrimento legitimo prefere abrir mao delas. Sendo assim, depois de ansalisar cada uma dessas ferramentas, exa- rminaremos a vontade de usé-las, que & 0 amor. Adiamento da gratificagao HA POUCO TEMPO UMA ANALISTA FINANCEIRA DE TRINTA ANOS de idade queixou-se comigo de sua tendéncia a adiar suas tarcfas no trabalho. Durante meses discutimos seus sentimentos quanto ADIAMENTO DA GRATIFICAGAO 2B aos patrSes e de como estes se relacionavam com os sentimentos dela quanto & autoridade em geral e, mais especificamente, aos seus pais. Examinamos suas atitudes quanto 20 trabalho e ao su- cesso ede como elas estavam interligadas com seu casamento, sua identidade sexual, seu desejo de competir com o maridoe com os ‘medos referentes a essa competicéo. Entretanto, apesar de todo esse cuidadoso trabalho psicanalitico pad, ela continuava agin- do da mesma forma, deixando suas obrigagées para depois. Certo dia, finalmente, ousamos contemplar o ébvio. “Vocé gosta de bolo?", perguntei-the. Ela respondeu que sim. “Qual parte do bolo voce prefere?", continuei, “O bolo propriamente dito ou a caber- ”. “Ab, a cobertural”, respondeu entusiasticamente, “Ecomo vor’ come bolo?”, insisti, sentindo-me o psiquiatra mais idiota do mundo, “Comego pela cobertura, claro.” Dos seus hébitos tares passamos a examinar seus hibitos profissionais e, como era de se esperar, descobri que diariamente ela dedicava a primeira hora do seu dia A metade mais gratificante do seu trabalho e, nas, seis hors restantes, se alongava nas tarefas que no apreciava. Sugeri que, se ela se forgasse a realizar a parce desagradével de seu trabalho durante a primeira hora, ficaria livre para apreciar as outras seis, Afinal, uma hora de softimento seguida por seis de prazer é preferivel a uma hora de prazer seguida por seis de softi- mento, Ela concordou comigo e, comose trata de uma pessoa com forga de vontade, jé nao deixa as coisas para depois, Retardar a gratificagdo é um processo de organizar 0 softimento 0 prazer na vida com 0 objetivo de aumentar o prazer, encon- ‘trando e experimentando a dor para finalmente acabar com ela. 0 Gnico modo decente de viver. Essa ferramenta — ou método de organizagfio— 6 aprendida pela maioria das criangas bem cedo na vida, as vezes jé aos cinco anos de idade, Comto, por exemplo, ao brincar com um amigo, ela sugere que este comece o jogo primeiro, para poder apreciar sua ene 24 vez depois. Aos seis anos, as criangas podem comegar a comer pri- miro o bolo e depois a cobertura. Durante todo o jardim-de-in- fancia, essa capacidade de adiar a gratificagéo € diariamente exercitada, particularmente durante o dever de casa. Aos doze anos, algumas criancas jé so capazes de, sem qualquer ordem dos pais, terminar o dever de casa antes de assistir & tcleviséo. Aos quinze ou dezesscs, tal comportamento 6 esperado do adolescen- te e considerado normal. Contudo, fica claro para os educadores que um expressivo nimero de adolescentes no corresponde a essa norma. Embora muitos demonstrem ser capazes de adiar o prazer, alguns pare- ccem ter essa capacidade pouco desenvolvida; de fato, sequer parecem t€-la. Esses sio os alunos-problema, Nao importa se sua inteligéncia é média ou superior; suas notas so baixas apenas porque nfio se esforcam. Bles matam oula ov faltam a escola de acordo com o capricho do momento. So impulsivos, ¢ essa impulsividade também permeia sus vida social. Vivem se meten- do em brigas, envolvem-se com drogas, comegam a ter proble- mas com a policia, Seu lema é: divirta-se agora, compense depois. Entfo os psicSlogos e psicoterapeutas so chamados. Mas, na maioria das vezes, parece ser tarde demsis. Esses adolescentes ressentem-se de qualquer tentativa de interferéncia em seu im- pulsivo estilo de vida, Mesmo quando esse ressentimento pode ser superado pelo calor e amizade e por uma atitude imparcial por parte do terapeuta, que nfo julga, sua impulsividade fre- ajientemente € tao acentuada que impede que eles participem ignificativamente do processo terapéutico. Nao comparecem as sessGes ¢ evitam todos os temas importantes e dolorosos. Por isso, em geral, a tentativa de intervengio falha. Quando deixam a escola, esses jovens continuam a seguir um padrao de fracasso que muitas vezes os conduz @ casamentos desastrosos, aciden- tes, hospitais psiquidtricos ou a prisdo. (0S ERROS DOS PAIS 25 Por que isso ocorre? Por que & maioria deles desenvolve uma capacidade de adiar a gratificago enquanto uma minoria signifi- cativa fracassa, com freqiiéncia de maneira irrecupervel? A res- posta no é definitiva e cientificamente conhecida, O papel dos fatores genéricos nfo esté claro, As variéveis nfo podem ser cien- tificamente controladas, Mas a maioria dos sinais aponta clara- mente — como um fator determinante — para a qualidade da ceducagio familias. Os erros dos pais NAO f QUE NOS LARES DESSAS CRIANGAS SEM AUTODISCIPLINA ‘Go exista algum tipo de disciplina familiar. Muitas vezes, durance toda a infincia, elas sio severamente punidas — esbofeteadas, esmurradas, chutadas, golpeadas e chicoteadas por seus pais pelas mfnimas infragbes. Mas essa disciplina nada significa, porque néo passa de uma disciplina indisciplinada, ‘Como os préprios pais néo possuem eutodisciplina, tornam-se modelos de indiscipline para os filhos: “Faga o que eu digo, nfio.0 ‘que et fago.” Eles podem se embriagar com freqiiéncia diante dos filhos e brigar na frente deles, sem controle, dignidade ou racio- nalidade. Podem ser desleixadose fazer promessas que nSocumprem. Suas proprias vidas se encontram freqiientemente desorganizadas, «por isso suas tentativas de organizat as vidas dos filhos no pare- com fazer sentido para eles. Se o pai bate na mie regularmente, que sentido tem para um garoto apanhar da mae porque ele bateu na irma? Faz sentido quando lhe dizem que ele deve aprender a controlar seu mau génio? Na infincia, como nfo temos o bene- 26 DISCIPLINA. ficio da comparago, nossos pais sto figuras divinas acs nossos olhos. Quando os pais fazem as coisas de uma determinada ma- neira, a crianca acha que esta ¢ 2 maneira certa de fazt-las, Se uma crianga vé diariamente os pais se comportando com autodis- ciplina, controle, dignidade e capacidade de organizat suas pré- prias vidas, acredita em seu intimo que é assim que se deve viver. Se os vé diariamente agitido sem a menor disciplina ou controle, acredita em seu fntimo que esta € a maneira ideal de se viver. No entanto, ainda mais importante do que seguir um padrao €0 amor. Mesmo em lares caéticos e desorganizados o amor ver- dadeiro est4 ocasionalmente presente e, desses lares, podem sur- gir criangas autodisciplinadas. Por outro lado, nao é raro que pais que trabalham —médicos, advogados, membros de entidades fi- Iantr6picas —e t8m vidas de rigido decoroe ordem, mas sem amos, coloquem no mundo filhos to indisciplinados, destrutivos e de- sorganizados quanto qualquer crianga nascida em um lar empo- brecido e caético. Conclusio, 0 amor & tudo. Seu mistério seré examinado mais tarde, neste livro. Mas, por uma questdo de coeréncia, pode ser Util este breve comentério, relacionando o amor coma discipline. Quando amamos elguma coisa, ela tem valor para nés ¢ Ihe dedicamos nosso tempo, apreciando-a ¢ cuidando bem dela. Ob- serve um adolescente apaixonado por seu carro ¢ 0 tempo que cle passa admirando, polindo, consertando e regulando o automével. (Observe uma pessoa mais velha em seu adorado jardim de rosas e tempo que ela gasta podando, protegendo, fertilizando e admi- rando o seu jardim. ‘A boa disciplina exige tempo. Geralmente, nfo temos tempo ou disposigdo para nos dedicar aos nossos filhos, nem mesmo os observamos de perto o bastante para perceber quando sutilmente dao sinais de que precisam de nossa assisténcia disciplinar. Se es- ses necessitam de disciplina a ponto de ulerapassar os limites, ain- (OS ERROS DOS PAIS 2 ddaassim podemos ignoré-los, agumentando que 6 mais ffeil deixé- los fazer o que querem: "Simplesmente nfo tenho energia para lidar com eles hoje.” Ou, finalmente, quando somos forgados a agir pelos seus erros e acabamos por itrtagao impondo disciplina, as vezes brutalmente, Movidos mais pela raiva do que pela deliberagio, sigimos sem examinat 0 problema ou 20 menos refletir sobre a for- ma de disciplina mais adequada para aquele problema especifico. Os pais que dedicam seu tempo 20s filhos, mesmo quando néo siio obrigados a agi assim, percebem neles um mau comportamen- to, percebem neles necessidades sutis de disciplina, &s quais rea- gem com conselhos, reprimendas, apoio ou elogios, administrados ‘com brandura, ponderagio e cuidado. Eles observam como seus filhos comem bolo, como estudam, quando contam pequenas ‘mentiras, quando fogem dos problemas em vez de enfrenté-los. Reservam algum tempo para fazer pequenas corregdes ¢ ajustes, ‘ouvindo seus filhos, oferecendo respostas, apertando um pouco aqui, soltando um pouco ali, fazendo pequenos sermdes ¢ adver- téncias, contando hist6rias, dando-lhes abragos, beijo e tapinhes nas costas. Assim, a qualidade da disciplina proporcionada por pais amo- ros0s € superior 2 disciplina dos pais sem amor. Mas isso & apenas ‘ocomego, Ao observarem e refletirem sobre as necessidades dos filhos, 0s pais amorosos freqlientemente se afligem com as deci- ses a serem tomadas e, de modo muito rea, sofrem com eles. Os filhos néo sio cegosa isso. Sabem quando os pais estéo dispostos a softer com eles, ¢ embora possam no ser imediatamente gratos também aprenderioa sofrer. “Se meus pais estéo prontes para softer comigo”, dirioa si mesmos, “enti softer nfo deve ser tio rim, ¢ eu deveria estat disposto a softer comigo mesmo.” Este é 0 come- co da autodisciplina. ‘A quantidade e qualidade do tempo que os pais dedicam acs filhos indica-Thes © quanto sfo valorizados por eles. Alguns pais 28 DISCIPLINA essencialmente néo-amorosos, em uma tentativa de disfarcar seu desinteresse, fazem frequentes declaracBes de amor aos filhos, di- zendo-thes repetida e mecanicamente o quanto os valorizam, mas sem lhes dedicar parte considerdvel e preciosa de seu tempo, Seus filhos nunca séo inteiramente enganados por tais palavras vazias. Conscientemente podem se apegar 2 elas, desejando acreditar que so amados, mas inconscientemente sabem que as palavras dos pais no correspondem aos seus atos. Por outro lado, as criangas verdadeiramente amadas, embora em momentos de raiva possam sentir ou afirmar conscientemente _que esto sendo negligenciadas, inconscientemente sabem que so volorizadas. Esse conhecimento vale mais do que ouro, porque quando elas sabem intimamente que so valorizadas, realmente se sentem valiosas. ‘Assensagio de ser valioso — “Sou uma pessoa de valor” — cessencial para a satide mental ¢ 6a base da autodisciplina. B o re- sultado direto do amor dos pais. Tal conviegao deve ser adquirida na infincia, jf que é extremamente dificil adquitila naidade adul- ta, Uma vez que os filhos aprendem através dos pais a se sentir valiosos, & quase impossfvel que as vicissitudes da idade adulta destruam seu espfrito. A sensagio de ser importante 6 a base da autodlsciplina por- que quando alguém se considera valioso, cuida de si mesmo de todas as maneiras possfveis, Autodisciplina € cuidar de si mesmo. Por exemplo — jé que estamos discutindo 0 processo de adiar a sgratificagao, de programar e organizar o tempo—, vamos exami- nar a questo do tempo. Se nos sentimos veliosos, achamos que nosso tempo é valioso e desejamos aproveité-lo bem. A analista finaneeica que adiava tarefas no valorizava seu tempo, Se valori- zasse, nfo teria se permitido passar a maior parte dele sendo infe- liz e improdutiva. O fato de ter passado toda a inféncia sendo “despachada’ para passat as férias escolares com pais adotives pagos (05 ERROS DOS PAIS Pe Por seus pais, que poderiam perfeitamente, se assim o tivessem desejado, ter tomado conta dela, teve suas conseqiiéncias. Seus pais ndo a valorizavam, Nao queriam cuidar dela. Ela cresceu aachando que tinha pouco valor, que nfo metecia ser cuidada; por iss0, nfo cuidava de si mesma. Achava que nfo valiaa pena disci- plinar-se. Apesar de ser uma mulher inteligente ¢ competente, precisava da instrugo mais elementar sobre autodisciplina, por- que néo avaliava tealisticamente seu pr6prio valor e 0 valor do seu tempo, Quando se deu conta de que seu tempo era valioso, nnaturalmente desejou organizé-lo, preservé-lo e titar o méximo proveito dele. As criancas que tém a felicidade de experimentar 0 amor e 0 cuidados constantes dos pais durante a infaincia entratio na idade adulta ndo s6 com uma profunda consciéncia do proprio valor como também com uma forte sensagéo de seguranga. To- das as criangas t@m pavor do abandono, e com razo. Esse medo omega por volta dos seis meses, assim que a crianga € capaz de se perceber como um indivfduo distinto dos pais. Paralela a essa percepgio de si mesma vem a compreensio de que é indefesa, totalmente dependente e & mercé dos pais pata todas as formas de sustento e meios de sobrevivéncia, Para a crianga, ser aban- donada pelos pais equivale & morte. A maioria dos pais, mesmo quando telativamente ignorantes ou frios diante de outras ques- tes, so instintivamente sensiveis ao medo que os files tém do abandono, Por isso, diariamente, centenas ¢ milhares de vezes, oferecem a eles a seguranga de que precisam: “Voce sabe que a mame e 0 papai nfo vo deixar voeé para trés”; “E claro que 1nés vamos voltar para buscar voc8"; “Mamie e pepai nfo vo se esquecer de vocd”, Se essas palavras refletem as suas atitudes, més a més, ano apés ano, ao chegar a adolescéncia a crianga teré perdido o medo do abandono e teré uma forte sensagéo de que o mundo € um lugar seguro e que ela ser protegida sempre que 20 DISCIPLINA for preciso. Dessa forma, ela fica livre para adiar todos os tipos de gratificagdo porque esté certa de que, assim como o lar € os pais, a oportunidade de gratificacdo sempre existiré e estaré dis- ponfvel quando necessaria. ‘Mas muitas eriangas no tém tanta sorte € so realmente abandonadas pelos pais durante a infancia —seja devido & mor- te, desercio, pura negligéncia ou, como no caso da analista fi- nanceira, a uma simples falta de interesse. Outras, embora néo sejam de fato abandonadas, nao obtém dos pais garantias de que isso nfo ocorrerd. Alguns pais, por exemplo, em seu desejo de ¢ rapidamente possfvel, usam a impor disciplina o mais fé ameaga de abandono, de forma clara ou sutil, para atingir esse objetivo. A mensogem que transmitem aos filhos é: “Se nao fizer exatamente o que eu quero néo vou mais amar vocé, ¢ tente adivinhar sozinho o que isso pode significa” Abandono ¢ mor- te, & claro, Em sua necessidade de controlar e dominar os filhos, cesses pais sacrificam 0 amor ¢ o resultado sfo criangas com medo excessive do futuro. Abandonadas psicolégica ou literalmente, elas ingressam na idade adulea sem aquela certeza de que o mundo 6 um Luger seguro e protegido. Ao contrério, € perigoso e assus- tador, ¢ elas nio estéo dispostas a desistir de qualquer gratifica- (G0 ou segurana imediatas em troca de uma promessa de maior sratificagao ou seguranga fururas, jé que para elas o amanha parece realmente duvidoso. Em resuimot para que as criangas desenvolvam a capacida- de de adiar a gratificagio, é necessério que elas tenham mode- Jos de autodisciplina, uma consciéncia do proprio valor e alguma certeza de seguranga em suas vidas. Esses “bens” soidealmente adquiridos por meio de autodisciplina e de cuidado constante e genutno — os dons mais preciosos que os pais podem ofere- cer. Quando por alguma razo os pais no conseguem oferece- Tos, é posstvel que os filhos venham a obté-los em outras fontes. SOLUGAO DE PROBLEMAS E TEMPO. x S6 que, nesse caso, 0 processo se traduz invariavelmente numa luta contra a corrente, que muitas vezes, além de malsucedida, dura toda a vida, Solugdo de problemas e tempo [DO MENCIONADO ALGUMAS DAS MANEIRAS PELAS QUAIS 0 amor ou desamor dos peis pode interferir no desenvolvimento daautodisciplina em geral,e em particularna capacidade de adiar 1 gratificago, vamos examinar algumas das formas mais sutis, porém bastante devastadoras, pelas quais as diftculdades em re- tardar 0 prazer afetam as vidas da maioria dos adultos. Isso por- que, embora felizmente a maioria de nés desenvolva essa capacidade, de forma 2 completar 0 ensino médio ou a universi- dade e entrar na vida adulta sem parar na cadeia, nosso desen- volvimento tende a ser imperfeito e incompleto, fezendo com que nossa aptido para resolver os problemas da vida continue imperfeita e incompleta. ‘Avs 37 anos, aprendi a consertar coisas. Antes disso, quase todas as minhas tentativas de fazer pequenos reparos no enca- namento, consertar brinquedos ou montar méveis seguindo ins- trugées diffceis de decifrar terminaram em confusio, fracasso e frustragio, Apesar de ter conseguido me formar em medicina e sustentar uma familia como um executive ¢ psiquiatra razcavel- mente bem-sucedido, no que dizia respeito @ mecfnica eu me considerava um imbecil, Estava convencido de que tinha algu- ma deficigncia genética, ou de que uma maldigio da natureza me privara de uma determinada qualidade mistica responsSvel 2 DISCIPLINA pela habilidade mecénice. Entéo, certo dis, no final do meu 37° ‘ano, enquanto caminhava em um domingo de primavera, encon- ‘rei um vizinho consertando um cortador de grama. Depois de ‘cumprimenté-lo, observei: “Puxa, eu admiro vocé. Nunca con- segui conserter esse tipo de coisa nem nada do género." Sem he- sitar, meu vizinho respondeu: “E porque vacé nunca dedicou 0 tempo necessirio para fazer isso.” Continuei a caminhat, um pou- co inquieto com a simplicidade, espontaneidade e precisa de guru da resposta. “Serd que ele estd certo?” De alguma forma registrei aquilo e, assim que tive oportunidade de realizar um pe- queno conserto, lembrei-me de dedicar-lhe o tempo necessério, O freio de mao do carro de uma paciente minha estava em- petrado, ¢ ela sabia que havia algo embaixo do painel que pode- tia solté-lo, embora no soubesse o qué, Eu me deitei no chao, na frente do banco dianteiro do automével. Esperei um tempo até me sentir em uma posigdo confortavel e, em seguida, consi- derei colmamente a situagao. Examinei tudo durante varios mi- nutos. A principio, s6 consegui ver um emaranhado de fios, tubos ¢ barras, cujo significado desconhecia, Mas gradualmente, sem pressa, focalizei minha visfio no mecanismo do freio e tomei seu curso. Entio pude observar um pequeno trinco prendendo o fieio. Lentamente, estudei-o até perceber que, se 0 empurrasse para cima com a ponta do dedo, ele se moveria facilmente, liberando © freio, Foi exatamente o que fiz. Um tinico movimento, uma leve pressio com a ponta de um dedo e o problema estava resol- vido, Eu era um mestre em mecénical Na verdade, nfo tenho conhecimento— ou tempo para ad- quiri-lo— para consertar a maioria dos defeitos mecénicos, por- que prefiro me concentrar em questdes que no dizem respeito mecfinica. Assim, ainda corro para a oficina mais préxima sem- pre que necessfrio, Mas agora sei que essa é uma ope4o minha. ‘Nao fui amaldigoado e tampouco carrego um defeito ou qual- SOLUGAO DE PROBLEWAS E TEMPO 33 quer outro tipo dé incapacidade genética. Sei que posso — como qualquer um que ndo seja deficiente mental — resolver qualquer problema, desde que me disponha a reservar-lhe o tem- po que for preciso. 1ss0 ¢ importante, porque diversas pessoas simplesmente no dedicam o tempo necessério para resolver muitos dos problemas intelectuais, sociais ou espirituais da vida, assim como eu nfio re- servava parte do meu tempo para resolver problemas mecénicos. ‘Antes da minha iluminacZo em mecfinica eu teria enfiado desa- jeitadamente a cabega embaixo do painel do carro da minha pa- ciente e puxedo alguns fios, em ter a minima idéia do que estava fazendo. Nao conseguindo nenhum resultado, teria erguido as mos e proclamado: “Isso esté além da minha capacidade!” E é cexatamente assim que muitos de nés reagem diante dos dilemas da vida cotidiana, A analistafinanceira a que jé nos referimos era uma mie basicamente amorosa e dedicada, mas tina diffculda- des para lidar com seus dois filhos. Era atenta e interessada 0 bas- tante para perceber quando eles tinham algum tipo de problema cemocional ou quando algo nfo estava dando certo em sua cria- io. Nessas ocasides ela inevitavelmente reagia de duas maneiras diferentes: ou realizavaa primeira mudanga que lhe vinha a cabe- g2 6, em questéo de segundos, alimentava-os mais no café da ma- mihi ou mandava-os para a cama mais cedo—independente dessa mudanga ter algo a ver com o problema —, ou comparecia & nos- sa préxima sesso (comigo, 0 “mecfinico”) desesperada, “Isso est além da minha capacidade. O que devo fazer?” Aquela mulher tinha uma mente perfeitamente agugada e analitica e, quando nfo deixava as coisas para depois, era capaz de resolver questées com- plexas no trabalho. Contudo, quando o dilema era pessoal, compor- tava-se como se nfo tivesse inteligencta alguma. A questo era 0 tempo. Diante de um problema pessoal, ficava tio transtomnada que exigia uma solugdo imediata, e nfo conseguia rolerat seu des- 34 DISCIPLINA conforto por tempo suficiente para analisar o problema, Em busca de uma gratificagaioimediata —a solugio do problema—, ela era incapaz de adi4-la por mais um ou dois minutos, e por isso suas solugdes em geral eram inadequadas e sua fama vivia em cons- tante agitaco. Felizmente, através de sua perseveranca na tera- pia, pouco a pouco ela aprendeu a se disciplinare a dedicar o tempo necessério para analisar as questdes familiares e encontrar solu- ‘goes bem pensadas e efleazes. ‘No estamos falando sobre as dificuldades que as pessoas que manifestam claramente disttirbios psicol6gicos tém para solucio- nar problemas. A analista financeira é uma pessoa comum. Quem entre nés pode dizer que dedica tempo suficiente para enalisar 0s problemas dos filhos ow as tenses na familia? Quem € to auco- disciplinado que, em face dos dilemas familiares, nunca diz, resig- nadamente: “Isso esté além da minha capacidade?” De fato, hé uma falha na abordagem da resolugao de proble- ‘mas que é mais primitiva e destrutiva do que as tentativas impa- cientes ¢ inadequadas de encontrar solugGes imediatas; uma falha ainda mais comum e universal. E a esperanga de que os proble- mas se resolvam sozinhos. Um vendedor solteiro, trinta anos de idade, fazendo terapia de grupo em uma pequens cidade, come- gow a sair coma mulher recém-separada de um outro membro do grupo, um banqueizo. Ele sabia que o banqueiro era um ho- mem cronicamente raivoso que se ressentia do fato de sua mu Iher té-lo abandonado. Sabia também que néo estava sendo honesto nem com o grupo nem como colega ao esconder o rela- cionamento que vinha mentendo coma mulher. Sabia ainda que era quase inevitdvel que o banqueiro descobrisse o que estava acontecendo, e que a Gnica solugdo seria confessar tudo e, com co.apoio do grupo, suportar a raiva do banqueiro, Mas ndo feznada disso, Trés meses depois o banqueiro descobriu tudo e, como era de se esperar, ficou furioso, usando o incidente para abandonar SOLUGAO DE PROBLEMAS E TEMPO 5 a terapia. Quando © grupo salientou seu comportamento destrutivo, o vendedor disse: “Eu sabia que falar sobre esse as- sunto acabaria em briga, entao achei que, se me calasse, poderia evitar isso. No fundo, fiquei pensando que, se esperasse o bas- tante, 0 problema se resolveria sozinho.” Os problemas iio se resolvem sozitihos, Dever ser enfrenta- dos. Caso contrétio, impedirdo o crescimento ¢ o desenvolvimen- to do espitivo. O grupo disse claramente para o vendedor que esta era a sua maior difculdade: sua tendéncia a evitara solugéo de problemas, ignorando-os, na esperanga de que se resolvessem sozinhos. Qua- tro meses depois, no infcio do outono, ele realizou uma fantasia abandonando subitamente seu trabalho de vendas iniciando seu préprio negécio de conserto de méveis, que néo exigia que ele viajasse. O grupo lamentou o fato de ele estar apostando todas as fichas no novo negécio e questionou se era born fazer isso com 0 inverno chegando, mas 0 vendedor Ihes garantiu que ganharia 0 suficiente para progredir. O assunto foi encetrado, Ent, no int- cio de fevereiro, ele anunciou que teria de deixar o grupo porque no podia mais pagar as sessbes. Estava totalmente quebrado.ete- tia de comecar a procurar outro emprego. En cinco meses conser- tara oito méveis. Quando lhe perguntaram por que niio comegara ‘procurar um emprego antes, ele respondeu: "Ha seis semanas eu sabia que meu dinheiro estava acabando depressa demais, masnao acteditei que chegaria a este ponto, A coisa toda nfo parecia muito urgente, mas, puxa, agora é.” B claro que ela havia ignorado seu problema. Pouca pouco, comegou a perceter que, enquantondo resolvesse seu problema de ignorar as problemas, nunca progredi- tia — mesmo com toda a psicoterapia do mundo. Eu repito que essa tendéncia é uma sinples manifestagio da falta de disposigio de retardar a gratificagéo. Como eu jé disse, cenfrentar os problemas € doloroso. Confronur voluntariamente 0 36 DISCIPLINA problema no infcio, antes que as circunstncias nos forcem a for8- lo, significa deixar de lado algo meis agradével ou menos doloroso pare lidar com algo incémodo. E escolher softer agora na esperan- ca de gratificagio futura em vex de optar por gratificar-se agora esperando que o sofrimento futuro nao seja necessério. Pode parecer que o vendedor que ignorou esses problemas tio <ébyios era emocionalmente imeturo ou psicologicamente primiti- vo, mas nZo; insisto em dizer que ele é um homem comum e que sua imaturidade e primitivismo existem em todos nés. Um grande general, comandante de um exército, uma ver me disse: “O nosso maior problema, e creio que o de qualquer outra organizagio, & que a maioria dos dirigentes prefere ficar sentada, sem fazer coisa alguma, vendo os problemas de suas unidedes passarem bem diante dos seus clhos, como se esses problemas se resolvessem sozinhos enguanto eles permanecem sentedos.” O militar no se refetia a pessoas de mente fraca ou anormais, mas sim a outros generais e coronéis, homens maduros de capocidade comprovada e treina- dos em disciplina. (Os pais sio dirigentes. Apesar de, em geral, nfo estarem devi damente preparados para isso, sua tarefa pode ser tfo complexa quanto dirigir uma empresa ou corporagiio. E, tal como oscoman- dantes dos exércitos, a maioria dos pais perceberd problemas nos filhos — ou em seu relacionamento com eles — meses ou anos antes de efetivamente agir, se 6 que algum dia conseguiré tomar qualquer atitude. “Achamos que ere s6 uma fase", eles dizem quan- do procuram um psiquiatra especializado em criangas cinco anos depois de detectarem o problema, Com relagao & complexidade inerente & paternidade, deve-se dizer que as decis6es dos pais si0 dificeis, e que muitas vezes as criangas realmente “esto passando por uma fase”. Mas quase sempre 6 til tentar ajudé-las a sair dela ou analisar mais atentamente 0 problema. E ainda que muttas criangas “superem essa fase”, muitas vezes isso nfo acontece, E RESPONSASILIDADE 37 assim como ocorre com tantas outras dificuldades, quanto mais os problemas das criangas so ignorados, mais se tornam dolorosos e dificeis de resolver. Responsabilidade ‘SO PODEMOS RESOLVER OS PROBLEMAS DA VIDA RESOLVENDO- os, Esta afirmago pode parecer idiotamente redundante ou db- via, mas eparentemente est além da compreensto de grande parte da taga humana. Isso ocorre porque um problema s6 pode ser re- solvido depois que assumimos a responsabilidade de resolvé-lo. Nao podemos resolver um problema dizendo “isso néo é problema meu". Nao podemos resolvé-lo esperando que outra pessoa o resolva por nés. $6 posso resolver um problema quando digo “isso é problema ‘meu e cabe a mim resolvé-lo". Mas muitos tentam evitar a dor dlizendo para si mesmos: “Esse problema me foi causado por ou- tras pessoas, ou por condigGes sociais que fogem go meu controle. Portanto, cabe a outras pessoas ou A sociedade resolvé-lo, Nao realmente meu problema pessoal.” O ponto até onde as pessoas so capazes de psicologicamente ir para evitar assumir a responsabilidade por problemas pessoais, embora seja sempre triste, &s vezes & quase ridliculo. Um sargento do.exército, servindo em Okinawa e com sérios problemas devido 10 abuso de lcool, foi-me enviado para avaliagdo e, se possivel, auxilio psiquidtrico. Ele negava ser alcoslatra, ou até mesmo que seu uso do Alco! fosse um problema pesscal, dizendo: "Néo hé nada para fazer & noite em Okinawa, além de beber.” — Voct gosta de ler? — perguntei. 38 DISCIPLINA, — Ah, sim, claro. — Entio por que nao Ié & noite em vez de beber? — Oalojamento é barulhento demais. — Bem, entdo por que no vai a biblioteca? — Emuito longe. — Mais longe do que o bar que vocs freqtientat — Bem, nfo sou de ler muito. Tenho outros interesses. — Vocé gosta de pescar? — perguntei entao. — Sim, adoro. — Por que no pesca em vez de beber? — Porque trabalho o dia inteiro. — No pode pescar & noite? — Nao, no existe pesca noturna em Okinawa. — Existe, sim — observei. — Sei de vérias organizagées que ‘peseam & noite por aqui. Gostaria que eu 0 colocasse em contato comelas? — Bem, na verdade nao gosto de pescar. — Oque vocé esta me dizendo — esclareci —é que existem ‘outras coisas para fazer em Okinawa além de beber, mas o que voc prefere é beber. — Sim, acho que sim. — Mas isso esté Ihe criando dificuldades, Portanto, na ver- dade, vocé est com um problema, no é? — Esta maldita ilha levaria qualquer um a beber. Continuei tentando durante algum tempo, mas o sargentonso estava nem um pouco interessado em ver a bebida como um pro- blema pessoal que poderia resolver com ou sem ajuda, Por isso, infelizmente, tive de dizer a0 seu comandante que ele ndo estava disposto a ser ajudado. Tanto que continuou bebendo, e foi afas- tado do servigo no meio de sua carreira militar. ‘Uma jovem esposa, também em Okinawa, cortou levemente co pulso com uma lamina de barbear e foi levada para a emergén- cia, onde eu a vi. Perguntei-lhe por que fizera aquilo. NEUROSES E DESORDENS DE CARATER 29 — Para me matar, & claro, — Por que queria se matar? — Porque ndo suporto esta ilha estipida. Voces precisam me mandar de volta para os Estados Unidos. Vou me matar se tiver de continuar aqui. — O que em Okinawa é tao doloroso para vocé? — perguntei. Ela comegou a choramingar. — Nio tenho amigas aqui, fico cozinha o tempo todo. — Isso é uma pena. Por que nao conseguiu fazer amizades? — Porque vivo numa droga de drea de alojamento e nenhum dos meus vizinhos fala inglés. — Por que nao pega o carro e vai para a érea de alojamento americana, ou o clube das esposas, durante o dia, para tentat fa- zer algumas amizades? — Porque meu marido precisa do carro para ir trabalhar — Vocé nfo pode levar seu marido de carro para 0 trabalho, {8 que fica sozinha e entediada o dia inteiro? — Nio. & um carro de marcha manual, e s6 sei dirigir carros autométicos. — Por que ndoaprende a dirigie um carrode marcha manual? Ela me langou um olhar feroz. — Nestas estradas? Deve estar maluco! Neuroses e desordens de cardter A MAIORIA DAS PESSOAS QUE PROCURA UM PSIQUIATRA SOFRE do que é chamedo de neurose ou desordem de catétes. Em poucas palavras, essas duas condig6es sio desordens da responsabilidade, 40 DISCIPLINA c estilos opostos de relacionamento com o mundo e seus proble~ mas. O ncurético assume responsabilidades demais; quem tem desordem de caréter assume responsabilidades de menos. Quan- do 0s neuséticos esto em conflito com o mundo automaticamen- te presumem que a culpa é deles. Quando aqueles que tm desordens de caréiter esto em conflito como mundo automatica- ‘mente presumem que aculpa é do mundo, Os dois individuos que acabei de descrever tinham desordens de cardter: o sargentoacre- ditava ser de Okinawa e nfo dele mesmo a culpa por seu alcoolis- ‘mo, tampouco a jovem esposa assumia qualquer responsabilidade por seu préprio isclamento. Por outro lado, uma mulher neus6ti- ca, tambSm sofrendo de solidao e isolamento em Okinawa, quei- xou-set "Dirijo todos os dias até o Clube das Esposas dos Oficiais para tentar fazer amizades, mas nfio me sinto bem I8. Acho que as outras mulheres nio gostam de mim, Deve haver algo de errado comigo, Eu deveria ser capaz de fazer amizades mais facilmente, sex mais extrovertida. Quero descobrir o que hi em mim que me toma to impopular.” Essa mulher assumia total responsabilidade por sua solidi, achando que a culpa era toda dela, Durante a terapia, descobriu que era ambiciosa e possufa uma inteligéncia acima da média, por isso nfo se sentia bem com as outras mulhe- res, € tampouco com © marido. Conseguiu ver que sua solidio, cembora fosse problema dela, nio se devia necessariamente a um defeito seu, Acabou se divorciando, fez faculdade enquanto eria- ‘yas {ilhos, tornou-se redatora de uma revista e se casou com um editor bem-sucedido. ‘Até mesmo os padrées de linguagem dos neuréticos e dos que 1@m desordens de carter sfo diferentes. O discurso do neur6tico € notvel por expressdes como “eu devo”, “eu deveria e “eu nfo deveria’, indicando sua auto-imagem negative. Alguém que se julga uma pessoa inferior, sempre abaixo das suss possibilidades ¢ que vive fazendo as escolhas erradas. Jé 0 discurso do individuo INEUROSES E DESORDENS DE CARATER a ‘com desordem de cardter & cheio de “eu nao posso”, “eu no po- deria’, “eu tenho que” ¢ “eu tive que”, indicando a auto-imagem de alguém sem poder de escolha, cujo comportamento é comple tamente dirigido por forcas externas sobre as quais néo tem qual- quer controle. Comose poderia imaginar, comparados com aqueles que possuem desordens de cardter, os neurSticos s40 mais faceis de tratas, uma vez que assumem a responsabilidade por suas difi- culdades e por isso se véem como pessoas que tém problemas, Jé 1s individuos com desordens de caréter so muito mais dificeis — se ndo impossiveis — de serem tratados porque néo se conside- ram a fonte de seus problemas. Acham que o mundo, e néo eles, precisa mudar e por isso nfo reconhecem a necessidade de um auto-exame, Na verdade, muitos individuos sofrem simultanea- mente de neurose e desordem de carétere sao chamados de “neu- réticos de caréter”, Isto indica que em algumas éreas de suas vidas siio tomados de culpa por terem assumido uma responsabilidade ‘que no era realmente sua, enquanto que em outras deixam de assumir uma responsabilidade realista por seus ates, Felizmente, quando 20 longo do processo psicoteripico o terapeuta conquista af € a confianga desses individuos, ajudando-os com a parte neurética de suas personalidades, 6 possivel fazé-los examinar e vencer sua relutfincia em assumir a responsabilidade que lhes cabe. Poucos de nés conseguem escapar da neurase e desordem de caréter, pelo menos até certo ponto (¢ é porisso que praticamente todos podem se beneficiar da psicoterapia, desde que estejam se- riamente dispostos a participar desse processo). Distinguir quais siio as nossas responsabilidades é um dos maiores problemas da existéncia humana, que nunca é completamente resolvido. Due rante todas as nossas vidas precisamos avaliar ¢ reavaliar as nossas responsabilidades no curso sempre mutvel dos acontecimentos. Uma analise que néo é nada indolor se feita edequada e conscien- ciosamente. Para realizarmos esses processos de maneira adequa- 2 DISCIPLINA da, devemos ter disposicfo e capacidade de realizar um auto-exa- me continuo — qualidades que nfo so inerentes a nenhum de ‘ngs, Em um certo sentido, todas as criangas tém desordens de ea- tater, porque elas tencem instintivamente a negar sua responsa- bilidade nos muitos conflitos em que se envolvem. Assim, dois imios sempre culpam um ao outro pelo inicio de uma briga, ne- gando totalmente sua parcela de culpa. Igualmente, todas as criangas tém neuroses, porque assumem instintivamente a res- ponsabilidade por certas privag6es que sofreram, mas que ainda no compreenderam, Assim, a crianga que nao é amada por seus pais, em-vez de vé-los como incapazes de amar, sempre se consi- deraré indigna de amor. Adolescentes que ainda no se destaca- tam no namoro ou nos esportes se vero como seres humanos deficientes em vez de perceber que podem ter um desenvolvi- ‘mento tardio mas perfeitamente adequado, como em geral ocorre. 6 por meio de muita experiéneia e de um longo e bem-sucedi- do amadurecimento desenvolvemos a capacidade de ver realis- ticamente o mundo e nosso lugar nele, tomando-nos capazes de avaliar de mancira realista nossa responsabilidade por nés mes- mos ¢ pelo mundo. Hé muito que os pais podem fazer para ajudar os filhos nesse processo de amadurecimento. Enquanto eles crescem, surgem milhares de oportunidades de faz8-los confrontar sua tendéncia a fugir da responsabilidade por seus atos, ou de thes garantir que nao so culpados por certas situagées. Mas, como eu jé disse, para apro- veitar essas oportunidades, os pais precisam ser sensiveis as neces- sidades dos filhos e estar dispostos a investir tempo e a fazer um esforgo, freqiientemente incémodo, para satisfazé-las. E isto, por sua veo, exige amore vontade de assumir a devida responsabilida- de pelo crescimento dos filhos. Por outro lado, além da simples insensibilidade ou negligén- cia, hé muitas outras atitudes paternas que etrapalham 0 processo [NEUROSES E DESORDENS DE CARATER a dde amadurecimento, Devido & sua tendéncia a ascumir responsa- bilidades, os neuréticos podem ser 6timos pais —istose suas neuro- ses forem relativamente leves e nfo estiverem tio sobrecarregados de responsabilidades intiteis que os impecam de canalizar a energia necesséria para a criagdo dos filhos. Jé os individuos com desor- dens de caréter tomam-se pais desastrosos, totalmente incons- cientes do modo destrutivo e cruel com que muitas vezes tratam os flhos. Diz-se que “os neuréticos estragam as proprias vidas ¢ as pessoas com desordens de carter estragam as vidas dos outros”. Acima de tudo, estas pessoas causam softimento aos proprics &- Ihos. Como ocorre em outras éreas de suas vidas, ndo assumem a devida responsabilidade pela paternidade. Tendem a ignorar 03 filhos de milhares de pequenos modos, em vez de Ihes dar a aten- ao de que precisam. Quando eles se tornam delingitentes ou tém dificuldades na escola, os pais com desordens de caréter automa- ticamente culpam o sistema escolar ou alguma outra crianga que — insistem em dizer — exerce uma “mé influéncia” sobre seus filhos. E claro que essa atitude ignora 0 problema. Como evitam a responsabilidade, esses pais sio modelos de irresponsabilidade para os filhos, a quem freqtientemente culpam na tentativa de evitar a responsabilidade por suas prOprias vidas. “Vos estéio me deixan- do louco”; “86 continuo casado(a) com seu pai (sua mée) por causa cde vocés”; “Sua mae est uma pilha de nervos por causa de vocés"; “Bu poderia ter ido para a universidade e obtido sucesso, se no tivéssemos de sustentar voc8s”. O que os pais na verdade esto dizendo aos filhos é: “Vocés sfo responséveis pela qualidade do ‘meu casameento, por minha satide mental e meu sucesso na vida.” ‘Como as criangas séo incapazes de perceber que isso nao é verda- de, freqiientemente assumem essa responsabilidade e se tornam neuréticas. E assim que os pais com desordens de caréter quase inevitavelmente produzem filhos neursticos ou com desordens de carter $40 0s préprios pais que, com seus erros, punem os flhos, 4 DISCIPLINA, io & apenas quando desempenbam o papel de pais que as pessoas com desordens de cardter sfc ineficazes e destrutivas. Es- sas mesmas caracterfsticas costumam se refletir em seus casamen- tos, suas amizades, seus negécios — em qualquer érea de suas vidas em que néo assumam a esponsabilidade por seus atos, Isso é ine- vitével porque, como jé foi dito, um problema s6 pode ser resolvi- do depois que assumimos a responsabilidade de resolvé-lo. Quando indivéduos com desordens de caréter culpam outras pessoas — cOnjuge, filhos, amigos, pais, patrio — ou outra coisa — més in- fluéncias, escolas, governo, racismo, sexismo, sociedade, o “siste- ‘ma’ — por seus problemas, estes permanecem sem solugéo. Nada foi feito. Fugindo & responsabilidade, eles podem se sentir bem cconsigo mesmos, mas deixaram de resolver os problemas da vida, deixaram de crescer espiritualmente e se tornaram um peso mor- to para a sociedade, Transferiram seus problemas para os ombros da coletividade. O ditado dos anos sessenta (atribufdo a Eldridge Cleaver) fala a todos nés, para sempre: “Se voc nao é parte da solugdo, entio é parte do problema.” Fugindo da liberdade (QUANDO UM PSIQUIATRA FAZ UM DIAGNOSTICO DE DESORDEM. de carster, o padréo é relativamente claro no paciente. Contudo, quase todos nés de vez em quando tentamos evitar— de manei- ras que podem ser bastante sutis—a dor de assumir a responsabi- lidade por nossos préprios problemas. Devo a cura da minha leve desordem de carétes, quando eu tinha trinta anos, a Mac Badgely. Na época ele era o diretor da clinica psiquistrica de pacientes FUGINDO DA UsERDADE 8 externos onde eu completava minha residéncia, Nessa clfnica, meus colegas residentes e eu nos revezdvamos no atendimento a pacientes novos. Talver porque me dedicasse mais aos meus pacien- tes 8 minha prépria educagio do que a maioria dos meus colegas, eu acabava trabalhando muito mais horas do que eles. Enquanto cos demais residentes costumavam atender pacientes apenas uma ‘vez por semana, eu os atendia duas ou trés vezes semanalmente. Enquanto eles safam da clinica &s quatro e meia da tarde, eu per- manecia Ié até as oito ou nove da noite, e meu coragdo cade ver mais se enchia de ressentimento, Exausto, percebi que algo pre: sava ser feito. Entdo procurei o dr. Badgely e Ihe expliquei a mi- nha situagao. Eu queria saber se, durante algumas semanas, eu poderia deixar de aceitar novos pacientes, para ter tempo de me recuperar: Isso era posstvel? Ou haveria outra solugao? Mac me ou- viu atenta e receptivamente, sem me interromper uma tinica vez. Quando terminei, disse-me com muita: simpatia apés um momen- to de siléncio: — Bem, estou vendo que vocé tem um problema, Eu sort sentindo-me compreendido. — Obrigado — respondi. — O que acha que devo fazer? — Eu jé the disse, Scott — Mac replicou, — Vocé tem um problema, Aguela ndo era a resposta que eu esperava, — Sim — confirmei com uma certa irtitagéo. — Sei que te- ho um problema. E por isso que vim aqui. O que acha que devo facer? Mac respondeus — Scott, parece que vocé nfo prestou atengao ao que eu dis- se, Ouvivocé, e concordo. Vocé tem um problema — Que droga! — exclamei. — Sei que tenho um problema. Sabia disso quando entrei aqui. A pergunta é: 0 que vou fazer? 46 DISCIPLINA — Scott —insistiu Mac. — Quero que me escute. Ouga com atengéo porque eu vou repetis: Concordo com voe8. Vocé tem um problema. Especificamente, tem um problema como tempo. O seu tempo. Nao o meu. Nao é problema meu. B problema sew com 0 seu tempo. Voc@, Scott Peck, tem um problema com oseu tempo. Isso 6 tudo que eu vou dizet sobre o assunto. Dei meia-volta e saf do gabinete de Mac furioso. E continuei furioso, Eu detestava Mac Badgely. Durante trés meses, eu o odiei. ‘Achei que ele tinka uma grave desordem de caréter. De outro ‘modo, como poderia ser to insensfvel? Eu o procurara humilde- mente pedindo apenas um pouco de ajuda, algum conselho, ¢ © desgragado nem mesmo se dispds a assumit a responsabilidade de tentar me ajuday, fazer seu trabalho. Se, como diretor da clinica, no podia tentar resolver esse tipo de problema, que diabos ele cestava fazendo la? Mas trés meses depois, de algum modo, me dei conta de que ‘Mac estava certo, Era eu,¢ nfo ele, quem tinha uma desordem de carter, Meu tempo era responsabilidade minha. Cabia apenas a mim decidir como queria usé-lo e organizé-lo. Se eu optei porin- -vestir mais tempo no meu trabalho do que meus colegas residentes, foi uma escolha minho, e suas conseqiiéncias eram responsabilidade minha, Podia ser doloroso vé-los deixar seus consult6rios duas ou tués horas antes de mim, e ainda tendo que ouvir as queixas da minha mulher de que eu niio me dedicava o suficiente & familia, ‘mas esse softimento era o resultado de uma escolha que eu fizera, Se eu no quisesse passar por ele, era livre para escolher nao tra- balhar tanto e organicar meu tempo de outra maneira. Tiabalhar duro nao era um fardo que me fora imposto por um destino cruel ou um diretor de elfnica malvado; era o modo de viver e estabele- cer prioridades que eu havia escolhido. Assim, acabei optando por no mudar meu estilo de vida. Gragas a minha mudanga de atitu- de, meu ressentimento em relago aos meus colegas desapareceu. FUGINDO DA LIBERDADE a7 Simplesmente nfo fazia mais sentido eu me ressentir deles por te- rem escolhido um caminho diferente do meu quando eu era to- talmente livre para escolher ser como eles. Ficar com raiva dos ‘outros residentes era ficar com raiva da minha prépria escolha. Uma escolha que me fasia feliz. A dificuldade que temos de aceitar a responsabilidade por nosso comportamento est4 no desejo de evitar sofrer suas conse- «ligncias. Ao pedir a Mac Badgely para assumir a responsabilida- de pela organizagao do meu tempo eu estava tentando evitar 0 softimento de trabalhar durante longas horas, embora tal carga horéria fosse uma conseqiiéncia inevitavel da minha escolha pro- fissional: dedicar-me aos meus pacientes ¢ ao meu treinamento, Contudo, ao fazer isso eu também tentava, inconscientemente, ‘aumentar a autotidade de Mac sobre mim. Estava lhe dandoomeu poder, minha liberdade. Na verdade, era como se eu dissesse: “Tome conta de mim. Vocé é 0 meu chefe!” Sempre que tentamos cvitar a responsabilidade pelo nosso préprio comportamento, ten- tomes transferi-la para outra pessoa, organizago ou entidade. Mas isso significa entregar nosso poder para terceiros —, seja o “desti- no”, a “sociedade”, 0 governo, a empresa ou nosso chefe. E por esse motivo que Etich Fromm, de forma to adequada, deu ao seu cstudo sobre o nazismo e 0 autoritarismo o titulo O espirita de li- berdade. Tentando evitar 0 softimento da responsabilidade, milhdes © até mesmo bilhées de pessoas tentam disriamente fugir da pré- pria liberdade, ‘Tenho um conhecido brilhante mas rabugento que, sempre que cu deixo, fala elogtientemente e sem parar sobre as forgas opres- soras da nossa sociedade: racismo, sexismo, o sistema industrial militar e a polfcia do intetion, que vive implicando com ele e seus ‘amigos por causa de seus cabelos compridos, Tenet repetidamen- te mostrar-the que ele nfo é mais criangs. Quando somos crian- a5, devido & nossa verdadeira e total dependéncia, nossos pais 48 DISCIPLINA t8m um real e imenso poder sobre nés. Na verdade, so em gran- de parte responssiveis por nosso bem-estar. Estamos & mercé de- les. Quando os pais sao opressores, como muitas vezes ocorre, pouco ou nada podemos fazer em relagio a isso; nossas escolhas sio limitadas. Mas como adultos, quando somos fisicamente sa- dios, nossas opgées so quaseilimitadas. Isso no significa que no stio dolorcsas. Freqtientemente pre- cisamos escolher entre o menor de dois males — mas ainda assim temos uma escolha. Sim, concordo com o meu conhecido, realmente Id forgas opressivas atuando no mundo, Contudo, ao longo do ca- rminho, temas a liberdade para escolher cada passo, o modo como ‘vamos reagir e lidar com essas forces. E uma escolha dele manter os cabelos compridos vivendo em uma érea rural em que a policia no gosta de “tipos cabeludos”. Ele é livre para mudar de cidade ou cor- tar os cabelos — ou até mesmo se candidatar ao cargo de comiss4- rio de policia. Mas, apesar de seu brilhantismo, ndo reconhece essa Iiberdade, Prefere lamentar sua falta de poder politico a aceitar € louvar seu imenso poder pessoal. Fala sobre seu amor i liberdade € das forgas opressoras que a tolhem, mas sempre que se coloca como vitima dessas forgas estd na verdade abrindo mfo da sua liberdade. Espero que algum dia ele pare de se ressentir com a vida apenas porque algumas das suas escolhas so dolorosas.? A dra. Hilde Bruch, no prefécio de seu livro Leaming Psycho- therapy, firma que basicamente todos os pacientes procuram os peiquiateas com “um problema comum: a sensagio de imporén- cia, omedo e a conviegao interior de que sio incapazes de ‘lidar’ 3Que eu sb, nenhuma outea pessoa definiu de modo mais elogiente e 2 mesmo poéticoo tema da liberdade de escolha entre dois males do que o psi ‘quiatra Allen Wheelis, no capitulo "Freedom and Necessity” (Liberdade Necessidade} de seu livo How People Change (Nova York: Harper & Row, 1973). ‘Senti-me tentado a citar todo o capitulo, ¢o recomendo a todos que desejem ‘explorar melhor esse tema, DEDICACAO A REALIDADE 49 com as coisas e mucdé-las."* Uma das causas dessa “sensagéo de imporéncia" ¢ um desejo de escapar, parcial ou totalmente, da dor da liberdade, e, portanto, uma incapacidade parcial ou plena de aceitara responsabilidade por seus problemas e suas vidas. Eles se sentem impotentes porque, de fata, renuneiaram ao seu poder. Cedo ou tarde, se desejam ser curados, devem aprender que a vida adulta € uma série de escolhas e decis6es pessoais. Se eles pude- rem aceitar isso \teiramente se tornardo pessoas livres, caso con- trério se sentirio para sempre vitimas. Dedicagao a realidade ‘A TERCEIRA FERRAMENTA DA DISCIPLINA OU TECNICA QUE LIDA coma dor de resolver problemas — que deve ser constantemente usada para que nossas vidas sejam sadias e nossos espititos eres- sam — éa dedicagao a verdade. Aparentemente, isso poderia set Gbvio, Afinal, a verdade é realidade. O que é falso € irreal. Quan- to mais claramente vemos @ realidade do mundo, mais estamos preparados para lidar com cle. Quanto menos claramente a ve mos, mais nossas mentes esto enevoadas com mentiras, enganos c ilus6es e menos somos capazes de determinar os cuts0s corretos deagéo ede tomar decisdes sibias. Nossa viséo da realidade € como uum mapa com o qual temos de atravessar o territério da vida. Se cle € verdadeiro e exato, em geral sabemos onde estamos, se co- nnhecemos nosso destino, saberemos como chegar Id, Entretanto, se © mapa for felso e incorreto, provavelmente nos perderemos. ‘Cambridge, Mass, Harvard Univ, Press, 1974, p. be. 50 DISCIPLINA Embora isso parega Sbvio, € algo que a maioria das pessoas, ‘em maior ou menor grau, prefere ignorar. Isso acontece porque © caminho para a realidade nfo ¢ fécil. Em primeiro lugar, néo nas- cemos com mapas; temos de fazé-los, isso requer um esforgo considerdivel. Quanto mais nos esforgamos para perceber a reali- dade, maiores e mais exatos serio os nossos mapas. Todavia mui- tos denés no querem fazer esse esforgo. Alguns deixam de fazé-lo no final da adolescéncia, Seus mapas so pequenos ¢ malfeitos, suas visdes do mundo, estreites ¢ enganosas. No final da meia-ida- de, a maioria das pessoas j& desistiu. Elas tém certeza de que seus mapas esto completos e seu Weluanschawmng é correto (na verdar de, até mesmo sacrossanto), endo estéio mais interessadas em novas informagées. £ como se estivessem cansadas. Somente uns pou- 0s felizardos, até o momento de sua morte, continuam exploran- do o mistério da realidade, sempre debatendo, aprimorando redefinindo sua compreenséio do mundo e da verdade. ‘No entanto, a maior dificuldade de fezer mapas nao é o fato de termos de comegar do nada, mas sima necessidade permanen- te de revissio. O proprio mundo esta constantemente mudando, ‘As geleiras vém e vaio; as culturas também. Em um determinado momento hé pouca tecnologia, em outro, tecnologia demais. De modo ainda mais dramético, a maneira como observamos o mun- cdo muda constante e rapidamente. Na inféncia, somos dependen- tes eimpotentes. Como adultos, podemos ser poderosos. Contudo, na doenga ou na velhice, é possfvel que nos tornemos de novo impotentes e dependentes. Quando temos filhos para cuidar, 0 mundo parece diferente daquele que viamos antes deles nasce- rem; quando criamos bebés, o mundo parece diferente quando criamos adolescentes. Quando somos pobres vemos o mundo ferente de quando somos ricos. Diariamente somos bombardea- dos com informages novas sobre a natureza da realidade, Para assimilé-las temos de revisar constantemente nossos mapas e, 2s TRANSFERENCIA: © MAPA ULTRAPASSADO at vvezes, quando as informagSes se acumulam, temos de fazer gran- des corregGes, Esse processo de fazer revises, sobretudo as maio- res, ds veres & extremamente doloroso. E af esté a principal fonte cde muitos dos males da humanidede, Oque acontece quando alguém que lutou durante muito tem- po para desenvolver uma visto funcional do mundo, um guia apa- rentemente til, se depara com uma nova informago que o obriga arever grande parte do seu mapa? O daloroso esforgo que isso exige parece assustador, quase excessivo. Eis porque, na maioria das ‘vezes, o que fazemos — em geral inconscientemente — é ignorar a nova informegdo. Um ato fregiientemente muito mais do que passivo. Podemos denunciar a nova informagéo como falsa, peri- 08a, herética, obra do diabo, Podemos fazer uma eruzada contra ela e até mesmo manipular o mundo para que se adapte & nossa visdo, Em vez de tentar mudar 0 mapa, o individuo pode rentar destruir a nova realidede, Infelimente, a energia que ele gasta defendendo uma visio ultrapassada do mundo & maior do que ele sastaria para revist-la e corrigila Transferéncia: 0 mapa ultrapassado ESSE PROCESSO DE INSISTIR EM UMA VISAO ULTRAPASSADA DA realidade é a base de muitas doengas mentais. Os psiquiatras 0 chamam de transferéncia. Provavelmente hi tantas variéveis su- tis definindo a transferéncia quanto hé psiquiatras. Segundo a tninha prépria definic4o, trata-se do conjunto de modes de per- ceber o mundo e reagir a ele desenvolvido na infincia, em geral totalmente apropriado ao ambiente infantil (na verdade, freqtien- 2 DISCIPLINA, temente muito oportuno), mas transferido de maneira imprépria para o ambiente adulto. ‘As formas pelas quais a transferéncia se manifesta, embora sempre difusas e destrutivas, costumam ser sutis. Contudo, os exemplos mais claros geralmente so Sbvics. Tive um paciente cujo tratamento falhou devido & sua transferéncia. Era um brilhante mas malsucedido técnico em computagdo, de trinta e poucos anos, que me procurcu porque sua esposa o havis deixado, levando com ela seus dois filhos. Néo estava pacticularmente infeliz por té-la perdido, mas sentia-se arrasado com a perda das criangas, com quem tinha uma ligago profunda, Foi na esperanca de recuperd- las que ela iniciow a psicoterapia, jé que sua mulher afirmara cate- goricamente que s6 voltaria se ele resolvesse se tratat. As principais queixas dela disiam respeito ao citime irracional e continuo do arid, que ao mesmo tempo se mostrava frio, distante, lacénico seco. Suas constantes mudancas de emprego também a incomo- davam, Desde a adolescéncia, a vida dele tinha sido muito inst4- vel. Quando jover, envolvera-se em varias pequenas confusdes coma polfcia e fora preso ts vezes por embriaguez, agressividade, “vadiagem” e “inftagio as leis". Mais tarde, abandonou a univer- sidade, onde estudava engenhatia elétrica, porque, segundo ex- plicou, “Meus professores eram um bando de hipécritas, iguais & policia”. Devido ao seu talento ¢ & sua criatividade na frea de tecnologia da computago, seus servigos eram muito requisitados pela industria, Mas ele nunca conseguiu progredir ou manter um emprego por mais de um ano e meio, ocasionalmente sendo de- ritido e na maioria das vezes pedindo demisstio depois de brigas com supervisores, a quem descrevia como “mentirosos, trapacei- 105 ¢ interessados apenas em se proteger”. Sua expresso mais fre- aliente era: “Nao se pode confiar em ninguém.” Ele descreveu sua inffincia como “normal” e os pais como “comuns”. Entretanto, no $ breve perfodo que passou comigo, citou casual e fiiamente v4 TRANSFERENCIA: © MAPA ULTRAPASSADO 53 momentos em que seus pais o decepcionaram. les prometeram. the dar uma bicicleta em seu aniversério, mas esqueceram da pro- messa e lhe deram outra coisa. Certa vez nem lembraram do seu aniversério, mas ele no viu nada de muito errado nisso, j& que “estavam muito ocupados”. Prometiam fazer programas com ele nos fins de semana, mas geralmence estavam “ocupados demas". Virias vezes se esqueceram de buscé-lo em reunies ou festas por- que “tinham coisas demeis na cabege”, O que aconteceu com esse homem foi que, quando era crian- ‘2, sofreu uma série de dolorosos desapontamentos devido ao de- samor dos pais. Néo sei se gradual ou subitamente, mas no meio da inféncia chegou A terrivel conclusio de que ndo podia confiar neles. No entanto, a0 perceberisso, comegoua se sentir melhor, ¢ sua vida tornou-se mais confortavel. Deixou de ter expectativas cemrelagio aos pais ou de esperar que cumprissem suas promessas. Quando parou de confiar neles a freqtiéncia cintensidade de seus desapontamentos diminufram muito. Contudo, esse tipo de ajuste & a base de problemas futuros. Para uma crianga, os pais so tudo; representam o mundo. Ela néo possui a perspectiva necesséria para ver que os outros pais so di- ferentes e muitas vezes melhores. Acha que as coisas devem ser {eitas segundo o exemplo dos pais. Por iss0, a conelusio—a *rea- lidade” —a que essa crianca chegou nko foi “No posso confiar nos meus pais”, mas “N&o posso confiar nas pessoas”, Com este: ‘mapa e um grande ressentimento resultante de seus muitos desa- pontamentos, ela entrou na adolescéncia e vida adults, Foi inevi- vel um conflite constante com figuras de autoridade — policia, professores, patrées. Eesses conflitos $6 serviram para reforgar seu. sentimento de que as pessoas que no tinham nada para Ihe dar ‘io eram dignas de confianga. Ble teve muites oportunidades de ajustar seu mapa, mas nfo as aproveitou, Por um lado, sé havia um Gnicomodo de aprender que havia algumas pessoas confléveis 54 DISCIPLINA ‘no mundo adulto: arriscando-se a confiar nelas. Mas, para isso, ele nao poderia seguir seu mapa. Esse novo aprendizado exigiria que ele revisasse a sua opiniio sobre seus pais — percebendo que no oamavam, que ele nfo tivera uma infaincia normal e que nem todos os pais eram insensiveis As necessidades dos flhos. Essa per- cepefo teria sido extremamente dolorosa. }é sua falta de confianga nas pessoas, sendo um ajuste & realidade da sua infancia, diminufa seu sofrimento. Como é extremamente dificil desistir de um ajus- te que funcionava téo bem, ele prosseguiu com sua atitude de desconfianga, criando inconscientemente situagdes que serviam_ para reforgé-la, afastando-se de todos, fazendo com que fosse im- posstvel para ele apreciar 0 amor, 0 calor humano, a intimidade eaafeigéo. Ele nem mesmo se permitia ser intimo de sua mulher; tampouco podia confiar nela. Sé conseguia se relacionatr intima mente com seus dois filhos, as Gnicas pessoas no mundo sobre as {quais ele tinha controle, que nfo tinham autoridade sobre ele nas quais ele podia contiar. ‘Quando existem problemas de transferéncia —o que em geral ‘ocorre—a psicoterapia é, entre outras coisas, um processo de revi- slo de mapa, Os pacientes buscam a terapia porque seus mapas cla~ ramente nfo estdo funcionando. Mas como padem se apegar a eles ¢ lutar contra 0 processo durante cada passo do caminho! Fre- cientemente, seu apego e seu medo de perdé-lo 6 tao grande que a terapia se toma impossivel, como no caso do técnico em computa- <0. Inicialmente, ele pedi um horério aos sibados. Apés trés ses- s6es, parou de vir porque passou a trabalhar nos fins de semana aparando grama, Bu lhe ofereci um horério nas noites de quinta- feira, Ele compareceu apenas a duas sess6es porque estava fazendo serio na fibrica, Entao remanejei meu horério para atendé-lo nas noites de segunda, quando, segunda ele mesmo dissera, era impro- vvavel que fizesse hora extra. Contudo, depois de mais duas sessGes, ele parou de vir porque aparentemente surgira trabalho extra nas TRANSFERENCIA: © MAPA ULTRAPASSADO 55 segundas-feiras. Foi quando the disse que era impossivel fazer tera- pia naquelas circunstancias. Ble admitiu que nfo era obrigado a fa- zerhora extra, mas que precisava do dinheiroe, para ele, o trabalho 1a mais importante do que a terapia, Falou que s6 poderia me ver nas noites de segunda-feira em que estivesse livre, e me telefonaria todas as segundas, &s quatro da tarde, para confirmar ou nfo sua vinda naquela noite. Expliquei-lhe que aquelas condigies eram ina- ceitveis, que néo estava disposto a desistir dos meus planos todas as noites de segunda contando com a possibilidade de que ele pu- desse comparecer lis sess6es, Ele achou que eu estava sendo rigido demais, nao me preocupava com suas necessidades, claremente s6 me interessava pelo meu tempo, nao por ele, e portanto nfo era confiével. Foi assim que terminou a nossa tentativa de trabalhar juntos e passei a ser outro marco em seu velho mapa, A transferéncia nfo ocorre apenas entre psicoterapeutas & ientes. Acontece também entre pais e filhos, maridos e mu- Ihetes, patrdes © empregados, amigos, grupose até mesmonagées. interessante especular, por exemplo, sobre o papel da transfe- réncia nos assuntos internacionais. Nossos Ifderes nacionais s40 seres humanos que tiveram inféncias ¢ foram influenciados por cexperiéncias infantis. Que mapa Hitler estava seguindo, e de onde le veio? Que mapa os lideres americanos seguiam quando decla- ‘oram e mantiverama Guerra do Vietné? Claramente, era um mapa muito diferente daquele utilzado pela geragao que os sucedeu, De ‘que maneira a experiéncia nacional dos anos da Depressio con- tribuiu para 0 mapa desses Iideres, e a experincia dos anos cin- {qUienta e sessenta influenciou o mapa da geragdo mais jovem? Se ‘experiéncia nacional dos anos trinta e quarenta contribuiu para © comportamento das dirigentes americanos que declararam guerra Vietnd, 0 quanto essa experincia foi apropriada para a reali clade dos anos sessenta e setenta? Como podemos revisar nossos ‘mapas mais rapidamente? pa 56 DISCIPLINA A verdade ou realidade é evitada quando dolorose. 86 pode- mos revisar nossos mapas quando temos a disciplina necesséria para superar essa dor. Para isso, devemos nos dedicar totalmente & ver- dade. Isto, devemos sempre considerar a verdade —da melhor forma que pudermos determin4-la — como mais importante e vi- tal do que nosso conforto. Ao mesmo tempo, devemos considerar nosso desconforto pessoal como algo relativamente pouco impor- tante e, de fato, até mesmo bem-vindo a servigo da busca pela verdade, A satide mental é um processo continuo de dedicagao a todo custo a realidade. Abertura ao desafio O.QUESIGNIFICA UMA VIDA DE TOTAL DEDICAGAO A VERDADE? Antes de tudo, uma vida de rigoroso e permanente auto-exame. S6 conhecemos 0 mundo através do nosso relacionamento com cle. Portanto, para conhecer o mundo, devemos néo s6 examiné- Jo, mas também examinar simultaneamente o examinador. Os psiquiatras aprenclem isso em seu treinamento e sabem que é im- possivel entender realisticamente os conilitos ¢ as transferéncias de seus pacientes sem entender seus proprios conflitos e transfe- réncias. Por esse motivo, so incentivados a fazer psicoterapia ou psicanélise como parte de seu treinamento e desenvolvimento. Infelismente, nem todos fazem. Existem muitas pessoas, entre elas alguns psiquiatras, que realizam um exame rigoroso do mundo, mas no de si mesmas. Podem ser competentes, segundo os padres vigentes, mas nunca sébias. A vida de sabedoria deve ser de con- templagio combinada com ago. No passado da cultura norte ABERTURA AO DESAFIO 57 americana, a contemplagéo no era muito apreciada. Nos anos cingiienta as pessoas chamaram Adlai Stevenson de “crainio” e acharam que ele ndo seria um bom presidente exatamente por- que era um homem contemplativo, entregue a pensamentos pro- fandos, e com davidas sobre si mesmo. J& ouvi pais dizerem com toda a seriedade aos filhos adolescentes: “Voce pensa demas.” Isso um absurdo, porque so nossos lobos frontais, nossa capacidade de pensar e de nos auto-examinar que nos tornam humanos, Fe- liamente, parece que essas atitudes esto mudando, Estamos co- megando a perceber que as fontes de perigo no mundo estéio mais, dentro de nés do que Ié fora, e que o processo de constante auto- ‘cxame e contemplago é essencial para a sobrevivéncia. Ainda assim, estou falando de um némero relativamente pequeno de pessoas que esto mudando suas atitudes. Examinar o mundo ex- terior no déi tanto quanto examinar o mundo interior, e certa- mente € esta a razéio que leva a maioria das pessoas a evitar uma vida de genuino auto-exame: a dor envolvida, Contudo, quanda alguém se dedica a verdade essa dor parece relativamente sem importéncia — e quanto menos importante (e, portanto, menos dolorosa), mais ela avanga no caminho do auto-exame. Uma vida de total dedicago a verdade também significa ter «lisposigdo para ser desafiado pessoalmente. O tinico modo de es- tarmos certos de que nosso mapa da realidade € vélido é exp6-lo critica e ao desafio de outros cartégrafos. Caso contrétio, vivere- ‘nos em um sistema fechado — dentro de uma redoma de vidro, para usarmos a analogia de Sylvia Plath—, respirando apenas nosso priprio ar fétido, cada vee mais sujeitos&iluséio, Contudo, devido dor inerente 20 processo de revisio, geralmente tentamos evitar ow afastar qualquer dGvida quanto a sua realidade. Dizemos aos jnossos filhos: "Nao me responda, sou seu pai.” Aos nossos cOnju- 1s, transmitimos a seguinte mensagem: “Viva e deixe viver. Se ne criticar, vou tomar a sua vida um inferno, e vocé vai se arre- 58 DISCIPLINA. penden” A mensagem dos idosos para suas familias eo mundo é: “Sou velho e frail. Se voc me desafiar, posso morrer, ot, no mif- ‘nimo, voce seré responsivel por tomar infelizes meus tltimos dias na terra.” Aos nossos empregados, comunicamos: “Se voct tiver a ousadia de me desafier, é melhor que faa isso com muita discri- ‘fo, ou teré de procurar outro emprego.”> ‘A tendéncia a evitar desafios € tao onipresente nos seres hu- ‘manos que pode apropriadamente ser considerada uma caracte- ristica da natureza humana. Mas o fato de ser natural néo significa que seja um comportamento essenciel, benéfico ou imutével. Tam- bém é natural defecar nas calgas ou nunca escovar os dentes. Contudo, aprendemos a fazer 0 inatural até que se torne uma se- gunda natureza, Na verdade, toda autodisciplina poderia ser defi- nida como aprender a fazer o inatural. Qutra caracteristica da natureza humana —talvez a que nos torna mais humanos — é SNiio 6 or individuos com também as organizagbes so notérios por e prote- {rem contra desafios.Certa ver fu indicado ao Estado Maior do Bxército para preparar uma andise das causas psicolgicas das atrocidades de My Lal e do seu subseqlente abafamento, com recomendagées de pesquises que poderiam evitar esse tipo de comportamento no futuro. As pesquisss selecionadas foram esoprovedas pelo Estado-Maior do Exército, sob a alegacfo de que néo pode- sama ser mantidas ema segredo. “A existéncia dessos pesquicas podetia nos expor a novos desaios, Neste momento © presidente ¢ 0 Exéreito no precisa de mais desafion” Assim, a peépria andlise dos motivos que levaram um incidente ater sido abafado acabou sero abafada também. Esse tipo de comportamento no é excluivo do Exército ou da Casa Branca; pelo contrtio, €comum 20 Congresso, 0s outros Seis federais, orporactes, até mesmo universidades © orgenizagbesfilantsépicas — em suma, a todas as organtzacSes humanas, Do ‘mesmo modo que, para crescer em sabedoria eeficicia, 0s individuas precisam admits e até mesmo apeeciar os desfios aos seus mapas da realidede e madi ‘operandi, se quiserem tornat-se insituigées viéves e progresistas, as organiza- hes preceom ociare peer o deaf Eas oto ers endo cada vr mat reconhecido por pessoas como John Gardnes da Common Cause, para quem cst claro que uma das tarefus mais essenciaise excites da nossa sociedade nas préximas décadas € insitui na estruture burocratica de noseas organiza- ‘bes uma abercura aos desafios, que substitua a esisténciatipica da atualidade, ABERTURA AO DESAFIO 59 nossa capacidade de fazer transcender e, portanto, transformar ‘nossa prépria natureza. ‘Nenhum ato é mais inatural, e portanto mais humano, do que se submeter & psicoterapia. Isto porque ao realisé-lo deliberada- mente nos abrimos a0 maior desafio por parte de outro ser huma- no, eaté mesmo pagamos pelo servigo de exame e discernimento, Essa abertura ao desafio é uma das coisas que o ato de deitar no diva de um psicanalista pode simbolizar. Submeter-se& psicoterapia um ato de grande coragem. O principal motivo pelo qual as pes- s0as nfo 0 realizam néo é a falta de dinheiro, mas a falta de cora- gem. Isso inclui até mesmo muitos psiquiatras, que nunca parecem. achar conveniente iniciar sua propria terapia, embora tenham ain- dda mais razdes do que os outros para se submeter & disciplina en- volvida. Por outro lado, & por terem essa coragem que muitos analisandos, mesmo no inicio da terapia, e ao contrério da ima- stem estereotipada, sfo pessoas basicamente bem mais fortes e sa- dias do que a média Embora submeter-se & psicoterapia seja uma forma suprema dese abrir a0 desafio, nossas interagées mais comuns diatiamente nos oferecem oportunidades parecidas de arriscar uma abertura: no bebedouro, na conferéncia, no campo de golfe, & mesa de jan- at; na cama quando as luzes esto apagadas; com nossos colegas e ‘amigos, supervisores e empregados, conjuges e amantes, pais e fi- thos. Uma mulher muito bem penteada, minha cliente jé hi al- ‘gum tempo, passou a escovar os cabelos sempre que se levantava do diva, no final da sessio. Comentei com ela esse novo padrao de comportamento. “Hé varias semanas meu maride notou que meu penteado ficava achatado atrés toda ver que eu voltava de uuma sesso”, explicou, enrubescendo. “Eu néo lhe disse por qué, ive medo de que zombasse de mim se soubesse que, quando ve- ‘ho aqui, me deito no diva. Assim tinhamos outro tema para ser trabalhado. O maior valor da psicoterapia esté em estender a dis- a DISCIPLINA ciplina envolvida na “hora de cinqilenta minutos” aos problemas erelacionamentos cotidianos do paciente. A cura do espitito s6 € completa quando a abertura zo desafio se torna um modo de vida. Fssa mulher 36 ficaria inteiramente bem quando pudesse ser tio direta com 0 matido quanto era comigo. De todos aqueles que procuram um psiquiatra ou psicotera- peut, raros sfio os que desde o infcio buscam conscientemente tum desafio ou exercicio de disciplina. A maioria busca apenas “alivio". Quando essas pessoas percebern que nfo serio apenas apoia- das, mas também desafiedas, muitas so tentadas a fugir — e fo- ‘gem, Ensinar-Ihes que 0 nico alivio verdadeino vird através do desafio e da disciplina é uma tarefa delicada, e com freqtiéncia demorada e malsucedida, Por isso, falamos em “atrair” os pacien- tes pera a psicoterapia. Esobre alguns que atendemos hi um ano cou mais podemos dizer: “Eles realmente ainda ndo comegaram a terapia.” A abertura na psicoterapia € particularmente incentivada (ou exigida, dependendo do seu ponto de vista) pela técnica da “li- vyre associagéo”, Dizemos para o paciente: “Ponha em palavras tudo que vier & sua cabeca, nfo importa o quanto possa parecer insignificante, constrangedor, doloroso ou sem sentido. Se hou- ver mais de uma coisa em sua mente a0 mesmo tempo, escolha justo aquela que reluta em mencionar.” E mais fécil falar do que fazer. Mesmo assim, aqueles que trabalham conscientemente em geral progridem com rapide2. Mas alygumas pessoas sio tio resis- tentes 20 desafio que simplesmente fingem fazer livres associa- .G6es, Falam voluvelmente sobre varios assuntos, mas deixam de fora os detalhes cruciais. Uma mulher pode falar durante uma hora sobre experiéncias desagradéveis da inffincia sem mencio- nar que, pela manhé, seu marido a confrontou com ofato de que uultrapassara em mil délares seu saldo bancério, Pacientes assim tendem a transformar a terapia em uma espécie de entrevista ‘ABERTURA AO DESAFIO et coletiva, Na melhor das hipéteses perdem tempo em seu esforgo para evitar o desafio, ¢ em geral se entregam a uma forma sutil de mentira, Para que individuos e organizagdes se abram aos desafios, & preciso que seus mapas da realidacte estejam verdadeiramente aber- tos para inspego ptblica. E preciso mais do que entrevistas cole- tivas. Portanto, a terceira coisa que uma vida de total dedicagao& verdade significe € uma vida de total hones ; idade, um processo continuo e permanente de automonitoramento para assegurar que nossas comunicagdes — nfo s6es palavras que dizemos, mas tam- byém o modo como as dizemos —reflitam sempre, com oméximno de exatidao humanamente possivel, a verdade ou realidade como a conhecemos, Essa honestidade nao é indolor. As pessoas mentem para evi- tara dor do desafio e suas conseqiiéncias. A mentita do presiden- te Nixon sobre Watergate nfo foi mais sofisticada ou diferente aquela dita por um garoto de quatro anos tentando explicar a it me como a limpada caiu da mesa e se quebrou. Quando a nnatureza do desafio é legftima (e costuma ser), mentir & uma ten- tativa de evitar 0 sofrimento legitima e, por essa razfo, produz doengas mentais, Isso levanta a questo do “atalho”. Sempre que tentamos evi- (ar um obstéculo, procuramos um caminho mais facil e répido. Acredito que o crescimento espiritual é objetivo da existéncia humana e, por esse motivo, me dedico a nogdo do progresso. E certo e apropriado usarmos atalhos legftimos para o crescimento pessoal. Contudo, a palavra-chave é “legftimo”. Os seres huma- hos tendem quase tanto a ignorar os atalhos legitimos quanto a procurar os ilegftimos. Quando se estuda para um exame de gra- «luago, por exemplo, é um atalho legitimo ler 0 resumo de urn liveo em veade lero livro inteiro. Se o resumo for bom e o contet eo DISCIPLINA. do for assimilado, o conhecimento essencial pode ser obtido com considerdvel economia de tempo e esforgo. A cola, entretanto, no é um atalho legitimo, Pode até economizar mais tempo e, se for bem-sucedida, garantir uma boa nota no exame ¢ 0 titulo al- mejado, mas ndo fornece o conhecimento essencial. Assim, 0 re- sultado passa a set uma mentira, uma farsa, capaz de contaminar vida do trapaceiro e tomé-la igualmente uma farsa, com freqiién- cia dedicada a preservar a mentica, ‘A verdadeita psicoterapia é um atalho legftimo para 0 eresci- ‘mento pessoal, que muitas vezes & ignorado. Uma das racionaliza- ges mais freqtientes usadas para ignoré-lo é questionar a sua legitimidade, dizendo: “Tenho medo de que a psicoterapia se tor- rne uma muleta. Néo quero depender de uma muleta.” Em geral esse tipo de justificativa encobre temores mais significativos. O apoio que a psicoterapia oferece equivale ao uso de marteloe pre- gos na construg&o de uma casa. E possfvel construf-la sem usé-los, ‘mas 0 processo no costuma ser eficiente ou desejével. Poucos carpinteiros lamentam sua dependéncia desses inscrumentos. De igual modo, é possivel alcangar o crescimento pessoal sem 0 uso da psicoterapia, mas a tarefa torna-se freqiiente ¢ desnecessaria- mente tediosa, longa e diffel. Em geral, € razodvel usar as ferra- ‘mentas disponiveis como um atalho. Por outro lado, a psicoterapia pode ser procurada como um atalho ilegitimo, Isso costuma ocorrer com certos pais que dese jam que os filhos mudem de alguma forma: parem de usar drogas, de ter acessos de raiva, de tirar notas baixas, e assim por diante, Alguns deles esgotaram seus préprios recursos tentando ajudar os filhos e recorrem 20 psicoterapeuta com um desejo genuino de trabalhar o problema. Outros jé aparecem sabendo qual é a ori- gem do problema do filho, esperando que o psiquiatra possa fazer uma espécie de magica, que consiga mudar a crianga sem ter de eliminat a causa bésica do problema, Alguns pais, por exemplo, [ABERTURA AO DESAFIO @ dlizem abertamente: casamento, e que provavelmente ele pode ter algo a ver com 0 problema do nosso filho. Mas niio queremos mexer com o casa mento; ndo queremos fazer terapia; s6 queremos que trabalhe com nosso ilho, para, se posstvel, ajudé-lo a ser mais feliz.” Outros sfo menos sinceros. Aparecem manifestando 0 desejo de fazer tudo ‘Sabemos que temos um problema em nosso que for preciso, mas quando eu explico que os sintomas do filho io uma expressi de seu ressentimento em relaglo ao estilo de Vida deles, que ndo deixa qualquer espaco real para sua educacéo, eles respondem: “E ridfculo achar que deverfamos nos virar pelo tavesso por ee.” E partem em busca de outro psiquiatra, que possa Ihes oferecer um atalho indolor. Algum tempo depois, provavel- mente dito 20s amigos e a si mesmos: "Fizemos tudo que era pos- svel por nosso filho; chegamos a procurar quatro psiquiatras diferentes, mas nfo adiantou nada.” E.claro que mentimos no s6 para os outros mas também para nds mesmos. Os desafios para o ajuste de nossos mapas — apre- sentados por nossas prdprias consciéncias ¢ reais percepgées — podem ser to legitimos e dolorosos quanto qualquer desafio apre- ventado por outras pessoas. Das indimeras mentiras que as pessoas costumam dizer a si mesmas, duas das mais comuns, poderosas € strutivas sG0: “Nés realmente amamos nosses fillios” ¢ “Nossos puis realmente nos amavam”. Pode ser que isso seja verdade, mas, quando nao é, costuma-se ir muito longe para evitar essa percep- (jlo. Freqtientemente chamo a psicoterapia de “jogo da verdede” ‘ou “jogo da honestidade”, porque uma de suas fungées € ajuda os pacientes a enfrentar esse tipo de mentira. Uma das rafzes da doen- (8 mental 6, invariavelmente, o sistema interligado de mentitas «ue nos contaram € que contamos uns aos outros. Essas rafzes 86 podem ser descobertas e eliminadas em uma atmosfera de total honestidade, Para criar tal atmosfera é essencial que o terapeuta st DISCIPLINA demonstre em seus relacionamentas com os pacientes uma capa- cidade de ser totalmente aberto e sincero, Como esperar que um ppaciente suporte a dor provocada pelo confronto com a realidade se nfo suportarmos a mesma dor? 86 podemos guiar se jf conhe- ‘cemos 0 caminho. Ocultando a verdade AS MENTIRAS PODEM SER DIVIDIDAS EM DOIS TIPOS: BRANCAS E pretas.6 Uma mentira preta & uma afirmagéo que fazemos sahen- do que é falsa. Uma mentira branca néo é propriamente falsa, mas deixa de fora uma parte significativa da verdade, 0 que nfo a tor- rna menor ou mais desculpdvel. As mentiras brancas podem ser to destrutivas quanto as pretas. Um governo que usa a censura para ocultar do pavo informagies essenciais nfo é mais democra- tico do que aquele que faz declaragées falsas. A paciente que na terapia omitir o fato de ter excedido o limite da conta bencéiia familiar esta impedindo seu proprio crescimento tanto quanto se mentisse diretamente, Na verdade, como pode parecer menos re preensfvel, ocultar informagées essenciais é a forma mais comum. de mentira, e por ser mais dificil de descobrir e conftontar, muitas vezes é ainda mais nociva. ‘O sewigo de incligtncia nore-americano possui um conhesimento especial essa rea e costuma usar um sistema de clasificagéa mais elaborado, que in- cluitipos de propaganda cinza, além da preta eda branca. Para ees, a propa. ganda cinze,apesar de ser neutra, possi forte carga de mentea peta porque & fonte 60 adversco a propagands preta vem com carga “amiga, mas na ver" dade, afonte ver do adversiio.(N. de A.) CCULTANDO A VERDADE 6 ‘A mentira branca & considerada socialmente aceitével em muitos relacionamentos porque “no queremos fetir os sentimen- tos das pessoas". Contudo, estamos sempre reclamando da su- perficialidade dos nossos relacionamentos. Quando os pais alimentam seus filhos com uma combinagdo de mentiras bran- «as consideramos essa atitude ndo 86 aceitavel como também be- néfica e amorosa. Ats mesmo maridos e esposas suficientemente cotajosos para se abrir um com 0 outro costumam achar difteil agir da mesma forma com os filhos. Bles nio Ihes contam que famam maconha, que brigaram na noite anterior, que se ressen- tem dos prOptios pais e de suas manipulagées, que 0 médico dis- -que um deles ou ambos t8m doengas psicossomiiticas, que esto fazendo um investimento financeiro de risco ou mesmo quanto tém no banco. Em geral, essa omisslo e falta de sinceridade sao tacionalizados como um desejo amoroso de proteger e poupar os filhos de preocupagées desnecessérias, Mas raramente essa "pro- tego” funciona, De algum modo os filhos sabem que a mae ¢ 0 pai fumam maconha, que discutiram na noite anterior, que se ressentem dos avés, que a mie esté nervosa e que o pai esté pet- dendo dinheiro. O resultado portanto nfo é protegio, mas pri- vagao. Os filhos so privados do conhecimento que poderiam adquitir sobre dinheiro, doengas, drogas, sexo, casamento, pais, sivds e pessoas em geral. Também sio privados da seguranga que poderiain obter se esses temas fossem discutidos mais abertamen- te. Finalmente, so privados de modelos de sinceridade e hones- tidade, e sua tinica referencia so modelos de honestidade parcial, tncias verdades e coragem limitada. Em alguns pais, o desejo de “ proteger” os filhos é motivado por um amor verdadeiro mas mal expresso. Em outros, o desejo “amoroso” de protesio serve mais, para ccultar e racionalizar 0 desejo de néo ser desafiado ¢ de manter sua autoridade sobre eles. Na verdade, esses pais esto dizendo: “Continuem sendo criangas com preocupagdes infan- 66 DISCIPLINA tis ¢ deixem as questées adultas conosco. Vejam-nos como pro- tetores fortes e amorosos. Essa imagem & boa para todos nés, por issondoa questionem. Ela permite que nossintamos fortes e voces se sintam seguros, e seré mais fécil para todos nés se nfo exami- ‘narmos com profundidade esses temas.” Contudo, quando o desejo de plena honestidade se opde & necessidade que algumas pessoas tém de certos tipos de prote- 40, pode surgir um conflito, Por exemplo: até mesmo os pais com étimos casamentos podem ocasionalmente pensar no di- v6rcio como uma opgao possfvel, mas falar sobre isso com os filhos quando & improvével que se divorciem coloca um peso desnecessirio nos ombros das criangas. A idéia do divércio & extremamente ameacadora para o senso de seguranca delas — na verdade, tio ameagadora que elas nao tém a capacidade de percebé-la com muita perspectiva. Entéo sentem-se seriamen- te ameagadas pela possibilidade do divércio mesmo quando é remota. Se o casamento dos pais estiver definitivamente amea- cado, as criangas lidardo com a possibilidade do divércio, mes- ‘mo que os pais nfio.a mencionem. Mas se 0 casamento estiver basicamente seguro, 0s pais far’o um mal aos filhos se disserem com total sinceridade: “Papai e mamée conversaram ontem & noite sobre separagio, mas neste momento no estamos pen- sando seriamente nisso.” ‘Outro exemplo: nos primeiros estgios da terapia, quando é necessério que os psicoterapeutas escondam seus pensamentos, opines e insights porque os pacientes ainda ndo esto prepara- dos para lidar com isso. Durante meu primeiro ano de treinamen- to psiquistrico um paciente me contou, em sua quarta visita, um sonho que obviamente expressava uma preocupaco com a ho- mossexualidade, Em meu desejo de parecer brilhante e de progre- dir rapidamente eu Ihe disse: “Seu sonho indica que vocé esté preocupado com a possibilidade de ser homosexual.” Ele ficou OCULTANDO A VERDADE 7 visivelmente ansioso, ¢ faltou as trés sessSes seguintes. Somente com muito trabalho ¢ sorte consegui persuadiclo a voltar. Tive- mos outras vinte sess6es antes que ele se mudasse por motivos profissionais. O trabalho Ihe foi muito benéfico apesar de nunca Inais termos levantado a questo da homossexualidade. O fato de sow inconseiente estar preocupado com essa questo ndo signifi- cava que ele estivesse pronto para lidar com cla em um nfvel cons- ciente. Ao Ihe revelar o meu insight causei-lhe um grande mal, e quase 0 perdi, nfo s6 como meu paciente mas como o paciente de qualquer um. ‘A omissio seletiva de opiniGes também deve ser praticada de vez em quando no mundo dos negcios ou da politica, se quisermos ser bem acolhidos pelos poderasos. Se as pessoas sempre dissessem o que pensam sobre questdes grandes e pe- quenas, seus supervisores as considerariam insubordinadas e @ ‘dministrago as veriam como uma ameaga & organizagao. Elas ficariam com fama de desagradéveis, seriam consideradas in- dlignas de confianga e jamais seriam cogitadas como porta-vo- zes da organizagao. Nao h4 como negar que, para alguém ser considerado eficiente em uma determinada empresa, deve se tomar parte dela, demonstrar ponderagio a0 expressar as prd- prias opiniSes e &s vezes incorporar sua identidade pessoal & da organizago. Por outro lado, se considerarmos a eficiéncia a \inica meta de um comportamento organizacional, permitindo apenas a expresso de opiniGes que nfo gerem conflitos, esta- ‘amos aceitando que o fim justifique os meios, e perderiamos toda a integridade e identidade, tornando-nos uma pessoa to- talmente da organizagio. O caminho que um grande executivo dove trilhar entre a preservagio e a perda de sua identidade e ntegridade € extraordinariamente estreito, e muito poucos realmente conseguem percorré-lo com sucesso. Esse 6 um enor me desafio. e DISCIPLINA Portanto, a expressio de opinides, sentimentos, idéias e até mesmo de conhecimentos deve ser ocasionalmente evitada nes- sas e em muitas outras circunstncias dos relacionamentos hu- ‘manos. Sendo assim, quais so as regras que devem ser seguidas pelos que se dedicam & verdade? A primeira é nunca dizer men- tiras. A segunda é ter em mente que a omissdo da verdade sem- pre € potencialmente uma mentira, e que cada vez que a verdade & ocultada é preciso tomar uma importante deciso moral. A terceira é que a decisfo de esconder a verdade nunca deve se basear em uma necessidade pessoal, tais como um de- sejo de ter poder, de ser apreciado ou de proteger o préprio mapa dos desafios. Essa decisio — e esta é a quarta regra — deve sempre se basear nas necessidades das pessoas de quem se esta cocultando a verdade, A quinta € que a avaliagio das necessi- dades alheias é um ato de responsabilidade to complexo que 86 pode ser realizado sabiamente quando agimos movides por um auténtico amor pela outra pessoa. A sexta que o fator primério na avaliagfio das necessidades do outro é a avalingio da capacidade daquela pessoa de usar a verdade para seu pr6- prio crescimento espiritual. Finalmente, 20 realizar essa avali- ago, devemos ter em mente que em geral tendemos a subestimar, em ver de superestimar, essa capacidade. Tado isso pode parecer uma tarefa extraordindria e inter mindvel, impossfvel de ser perfeitamente realizada, um fardo cexdnico, algo muito chato. De fato, trata-se de um trabalho sem fim de autodisciplina, e por isso.a maioria das pessoas opta pot uma vida de pouca honestidade e abertura, relativamente fe- chada, ocultando a si mesmas e aos seus mapas. E mais facil assim. No entanto, as recompensas desta dificil opgao pela honestidade e dedicagio A verdade justificam os esforgos. Como ‘0s mapas dessas pessoas so constantemente desafiados, elas estdo sempre crescendo. Podem criar e manter mais facilmen- EQUILIBRIO o {ea intimidade em seus relacionamentos. Como nunca men- em, podem se sentir seguras e se orgulhar do fato de nfo con- Uribuirem em nada para a confusio do mundo e de servirem como fontes de iluminagio e esclarecimento, Finalmente, si0 totalmente li res para ser. Nao precisam se esconder nas som- bas. NSo precisam criar novas mentiras para ocultar as anti- rns: Nao desperdigam esforgos encobrindo pistas ou mantendo disfarces, pois sabem que a energia necesséria para a autodis- ciplina de honestidade 6 muito menor do que aquela que é gasta para manter segredos. Quanto mais uma pessoa for honesta, mis Fécil seré continuar sendo, quanto mats mentiras contar, ints precisaré mentir de novo, Devido a sua abertura, as pes- sons dedicadas & verdade vivem as claras, e por meiode seu exer- eicio de coragem se livram do medo. Equilibrio A\ESTA ALTURA ESPERO QUE TENHA FICADO CLARO QUEO EXERCI- coda disciplina ndo 6 apenas uma tarefa difcil, mas também com- plexa, que requer flexibilidade e discernimento. As pessoas corajosas devem se comprometer a ser inteiramente honestas, mas também ter a habilidede de ocultar a verdade quando for apro- priado. Para sermos livres, devemos assumir a total responsabi dade pornés mestnos, mas ao mesmo tempo ser capazes de discernit c rejeitar a responsabilidade que no é realmente nossa. Para ser- ‘nos organizados e eficientes, vivermos com sabedoria, devemos Wiariamente adiar a gratificag&o e prestar atengo ao futuro; con- tudo, se quisermos ser felizes, também devemos ter a capacidade 70 DISCIPLINA —quando ela néo é destrutiva — de viver no presente e agir es- pontaneamente. Em outras palavras, a propria disciplina deve ser disciplinada, Esse quarto e tltimo tipo de disciplina, que eu gosta- ria de discutir aqui, eu chamo de equilrio. O equilfbrio é a disciplina que nos dé flexibilidade. E preciso ser extraordinariamente flexivel para ter sucesso em todas as esfe- ras de ago. Para usar apenas um exemplo, vamos considerar a questo da raiva e sua expressio, A raiva foi uma emogao incuti- da emnés (c nos organismos menos evolufdos), por intimeras ge- ragdes evolutivas para promover nossa sobrevivéncia. Sentimos raiva sempre que percebemos que esto tentando invadis nosso territério geogréfico ou psicalégico, ou de alguma maneira procu- rando nos diminuis, A raiva nos leva a revidar. Sem ela seriamos ‘constantemente pisados, até sermos totalmente esmagados e ex- terminados. Sé com a raiva podemos sobreviver. Mas na maioria das vezes, quando inicialmente achamos que alguém parece estar tentendo invadir nosso espaco, apés um exame mais atento per- cebemos que no era bem isso o que estava ocorrendo. Mesmo quando temos certeza de que essa era a real intengdo de alguém podemos concluis, por alguma razfio, que seria melhor para nés néo reagir com raiva. Assim, & preciso que os centros superiores donosso cérebro (discernimento) possam regular ¢ modular os cen- tros inferiores (emogdo). Para sermos bem-sucedidos em nosso mundo complexo, temos de ser capazes ndo s6 de expressar como ‘também de conter nossa raiva. Além disso, temos que aprender a ‘expressar nossa raiva de maneiras diferentes, Em algumas ocasi6es, por exemplo, s6 devemos expressé-la depois de muita teflexio € auto-avaliagio. Em outras, & melhor expressé-la imediata eespon- tancamente, Hé momentos em que devemos ser frios e calmos, ‘em outros, claros ¢ enfiticos. Portanto, néo s6 precisamos saber lidar com a raiva de diversos modos em ocasiGes diferentes como também combinar o momento ¢ 0 estilo certo de expresso. Para EQUILIBRIO a” lidarmos com nossa raiva de maneira adequada e competente, precisamos de um sistema de resposta elaborado e flexivel. Assim, jo 6 de admirar que aprender a lidar com a prépria raiva seja ‘uma tarefa complexa, em geral nfo realizada antes da idade adul- ta — ou até mesmo da meia-idade — e freqiientemente nunca conelufda. Em maior ou menor grau, todas as pessoas sofrem de ina- dequagées em seus sistemas de resposta, Grande parte do tra- batho psicoterspico consiste em ajudar os pacientes a flexibilizar cesses sistemas. Em geral, quanto mais os analisandos sentem an- siedade, culpa e inseguranca, mais esse trabalho torna-se dift- cil e rudimentar, Vou dar um exemplo: trabalhei com uma corajosa esquizofrénica de 32 anos para quem foi uma verda- deira revelagao descobrir que existem alguns homens que néo. deveria deixar entrar em sua casa, outros que deveria deixar entrar em sua sala, mas nfo em seu quarto, e outros que ela poderia deixar entrar em seu quarto. Antes disso, ela operava com um sistema de resposta que Ihe dava duas opgées: ou dei- va qualquer um entrar em seu quarto, ou — quando isso parecia nao estar dando certo — nao permitia que ninguém centrasse em sua casa. Assim, oscilava entre uma degredante promiscuidade e um Srido isolamento. Com essa mesma mu- Iher foi necessério realizar varias sess6es focalizando juntos a questo das cartas de agradecimento. Sempre que recebia um presente ou convite, ela se sentia compelida a enviar uma lon- jy elaborada carta manuscrita com palavras e frases perfei- tas. Obviamente, nem sempre conseguia suportar esse fardo, e centilo passou a nao escrever carta algums ou a recusar todos os presentes e convites. Foi outra revelacio para ela descobri que alguns presentes nao precisam de agradecimento pot escrito ¢ que, quando isso é necessério, em geral basta retribuir com um carta, n DISCIPLINA ‘A satide mental exige uma capacidade extraordindria de criar e manter um delicado equilibrio entre necessidades, objetivos, de- vveres, responsabilidades, diregdes, etc. A esséncia dessa discipli- ‘na &a “renéncia”. Lembro-me de ter compreendido isso em uma mani de vertio, aos nove anos de idade. Acabara de aprender a andar de bicicleta e estava explorando alegremente as dimensGes da minha nova habilidade. A cerca de um quilémetro e meio da nossa casa, a estrada se transformava em uma ladeita ingreme que terminava em uma curva fecheda. Naquela manhé, descendo a Iadeira de bicicleta, senti minha velocidade aumentar até o éxta- se, Renunciar a esse prazer extremo usando os freios parecia una autopunigéo absurda. Entéo resolvi manter a velocidade e fazer a curva, Meu éxtase terminou segundos depois, quando fui atirado no bosque, uns trés metros e meio para fora da estrada, Fiquei todo arranhado, sangrando. A roda dianteira da minha bicicleta nova ficou inutilizada devido ao choque contra uma érvore. Eu perdera o meu equilibrio. © equiliorio é uma disciplina exatamente porque o ato de re- nunciar a alguma coisa é doloroso. No meu caso, néo me dispus a softera dor de ter que desistir da minha prazerosa velocidade para manter meu equilfbrio na curva, Contudo, aprendi que a perda do equilfbrio ecaba sendo mais dolorosa do que a rentincia neces- sévia para manté-lo. Essa foi uma liggo que, de um modo ou de ‘outro, como todo mundo, tive de reaprender continuamente a0 longo da vida. Se quisermos manobrar com seguranga nas curvas daestrada da vide temos de renunciar permanentemente a partes denés mesmos. A nica alternativa para esta renincia é abando- nar a estrada, Pode parecer estranho, mas a maioria das pessoas escolhe essa altemnativa e decide néo prosseguir em suas viagens — parando no meio do caminho— para evitar a dor de ter que abrir mao de EQUILIBRIO a partes de si mesmas. Se isso Ihe parece estranho, ¢ porque voce ainda nfioconsegue entender a profundidade da dor que pode estar ‘envolvida, Em suas piores formas, a rentincia é uma das mais do- lorosas experiéncias humanas, Até agora abordei formas menores de rendincia — a velocidade, a raiva espontanea, & seguranga da raiva contida ou A concisfo de um cartéo de agradecimento. Agora vou falar sobre a rencincia a tragos de personalidade, padrées de comportamento firmemente estabelecidos, ideologias e até mes- mocestilos de vida. Essas sfo as grandes formas de rentincia neces- sicias para ir bem longe na estrada da vida, Corta noite, recentemente, decidi passar algum tempo livre tornando mais feliz e intimo meu relacionamento com minha fi- Iha de quatorze anos. Hé varias semanas ela pedia para jogar xa- drez comigo, por isso convidei-a para uma partida. Ela aceitou animadamente ¢ iniciamos uma disputa equilibrada e interessan- te, Como ela teria de acordar ds seis da menha para irs aulas, ds nove horas ela pediu-me para apressar as jogadas, porque precisa- vair para casa mais cedo. Fu sabia que ela seguia uma rigida disci plina em seu hordrio de dormir, e achei que ela seria capaz de renunciar a isso, Entio disse-Ihe: — Ore, vamos! Uma ver na vida voce pode dormir um pou- co mais tarde, Nao deveria comegar jogos que no pode termina. Estamos nos divertindo. Jogamos por mais quinze minutos, com ela visivelmente conforcével. Finalmente implorou: — Por favor pai, apresse suas jogadas! — Nio, drogat — replique, —Xadres & um jogo sfio. Para ser bem disputado, tem de ser jogado devagar. Se voc nfo quer jogar a sério, é melhor nem jogar. E ento, com minha filha se sentindo péssima, continuamos por mais dez minutos, até que subitamente ela explodiu em légri- 7 DISCIPLINA mas, gritou que desistia daquele jogo estipido e subiu as escadas correndo e solugando, Imediatamente eu me senti como se estivesse de novo com nove anos, cafdo sangrando entre os arbustos a beira da estrada, perto da minha bicicleta. Estava claro que havia cometido um erro, ue fizeta uma manobra errada numa curva da estrada. Comecei noite querendo me divertir com minha filha. Noventa minutos depois ela estava chorando e to zengada comigo que mal conse~ guia falar. © que dera errado? A resposta era Sbvia. Mas eu nfo queria reconhecé-la, de modo que levei duas horas para aceitar 0 doloroso fato de que estragara a noite deixando meu desejo de ‘vencer um jogo de xadrez se tornar mais importante do que meu desejo de consolidar o relacionamento com minha filha. Entéio fiquei realmente deprimido. Como me desequilibrara daquela maneira? Pouco a pouco percebi que meu desejo de vencer era to grande que precisava renunciar a uma parte dele. Mas até mesmo essa pequens rentincia parecia impossfvel. Durante todaa minha vida meu desejo de vencer me fora ttil, porque me fizera conguistar muitas coisas. Como era posstvel jogar xadrez sem que- ret vencet? Eu nunca havia me sentido bem fazendo as coisas sem entusiasmo, Como podia jogar xadrez com entusiasmo, mas sem seriedade? Contudo, de alguma maneira eu precisava mudar, por- que sabia que meu entusiasmo, minha competitividade ¢ minha seriedade eram parte de um padrio de comportamento que esta- va afastando meus filhos de mim, e que se eu ndo fosse capaz de ‘mudar esse padeio haveria outros momentos de lagrimas e amar- gura desnecessérios. Eu continue’ deprimido. ‘Agotaa minha depress acabou, Eu renunciei a partedo meu desejo de vencer os jogos. Bssa parte de mim noexiste mais. Mor reu, Tinha de morrer. Eua matei. Matei-a com meu desejode ven cer como pai. Quando eu era crianga, meu desejo de vencer 08 jogos me foi muito dil. Como pai, percebi que me atrapalhava. QUANDO A DEPRESSAO £ SAUDAVEL, 5 Entdo teve que acabar. Os tempos mudaram, Para seguir adiante, tive que renunciar a esse desejo. Ble no me faz falta. Achei que faria, mas nfo faz. Quando a depressao é saudével O EPISODIO QUE ACABEI DE RELATAR & UM PEQUENO EXEMPLO. lo que as pessoas com coragem para se autodenominar pacien- tes precisam enfrentar ao longo do processo psicoterépico. O perfodo de tratamento intensivo é um perfodo de crescimento igualmente intenso durante o qual o paciente pode experimen- {ar mais mudangas do que algumas pessoas experimentam em toda a sua vida. Para que esse crescimento ocorra, uma parte proporcional de sua “antiga personalidade” deve ser abando- hada. Isso € inevitével em qualquer psicoterapia bem-sucedi- tla. De fato, esse proceso de rendincia em geral comega antes «lo paciente ter sua primeira consulta. Freqiientemente, por ‘oxemplo, 0 préprio ato de decidir buscar ajuda psiquigtrica re- presenta um abendono & auto-imagem de “eu estou bem". Em cultura, essa rentincia pode ser particularmente diffeil 0s homens, que lamentavel e feeqiientemente costumam ‘usociar “eu nao estou bem e preciso de ajuda para entender por que nfo estou bem e como ficar bem” a “eu sou fraco, sem lade e impotente”. Na verdade, 0 processo de rentin- in pode comegar antes mesmo de o paciente decidir buscar sjucda, Quando tive de renunciar 20 meu desejo de vencer sem- pre fiquei deprimido, Isso aconteceu porque o sentimento as- sociado ao abandono de algo amado — ou pelo menos algo que 6 DISCIPLINA faz parte de nés e é familiar — & a depressfio. Como os seres humanos mentalmente sadios devem crescer, e a rentincia ou perda da antiga personalidade é uma parte integrante do pro- cesso de crescimento mental e espiritual, a depressio 6 um fe- ndmeno basicamente normal e saudvel. S6 se torna anormal ou doentia quando algo interfere no processo de rentincia, fa- zendo com que ela se prolongue e nfo possa ser resolvida para a conclusio do processo.? Um dos principais motives que levam alguém a pensar em buscar ajuda psiquidtrica é a depressdo. Em outras palavras, quan- do consideram a psicoterapia, freqiientemente os pacientes ja esto envolvides em um processo de rentincia, ou crescimento, € sio os sintomas desse processo que os guiam na diregao do consultério. Portanto, a fungéo do terapeuta € ajudaro paciente a completar um processo de crescimento que j& comegou. Isso nfo quer dizer que os pacientes costumem ter consciéncia do que esté acontecendo. Ao contrério, muitas vezes s6 desejam altvio dos sintomas de sua depressio “para que as coisas possam ser como antes”, Eles néo sabem que as coisas néo poclem mais “ser como antes”. Mas o inconsciente sabe. E & exatamente por ele saber que “o modo como as coisas eram” nfio é mais vilido ou ‘hultosFatores que podem interferirno processo de rentincia, prolongando uma depressio normal e ssudvel até que ela se torne patol6gica. Um dos mais comuns e potentes é um padrio de experiéncias desenvelvido na infincia em {que of pais ou 0 destino, indiferentes As necessidades da erianga traramelhe “coisas” antes que estivese psicologicamente preparada pars desistc dels ou forte. bastante para realmente accitar sua perda, Esse pari sensiiliza a ci- anga& experitncia da petda ecria uma tendéncia muito mais forte ase apegar is "coisas" e a tentar evitar a dor da pecda ou da rentincia. Por esse motivo, ‘embora todas as depresses patl6gicas envolvam algum bloguelo no processo de rentincia, acredito que ha um tipo de depressio neurétic exBnica que origina de um dano taumético na capacidade bésica do indivstuo de enunciar aaqualques coisa, e que esse subtipo de depressio poderia ser chamado de “neu- rose de rentincis QUANDO A DEPRESSAO £ SAUDAVEL n constcutivo, que o processo de crescimento ¢ rentincia comegou ‘em um nivel inconsciente ¢ a depressio é experimentada. E bem provavel que 0 paciente diga “ndo sei por que estou deprimido", ‘ou atribua a depressio a fatores irrelevantes. Como alguns pacien- tes ainda nao esto conscientemente prontos para reconhecer «qe a “antiga personalidade” au “o modo como as coisas eram” cestio ultrapassados, nao percebem que sua depressfo indica a hiecessidade de uma grande mudanga para que haja uma boa indaptagao evolutiva. O fato de o inconsciente estar um passo A frente da consciéncia pode parecer estranho para muitos leito- tes leigos; no entanto, aplica-se nfo $6 a este caso especifico como 6 tio generalizado que se torou um prinefpio bésico do funcio- hamento psiquico. Discutiremos isso mais a fundo na parte final deste liveo. Recentemente ouvimos falar da “crise da meia-idade”. Na verdade, esta € apenas uma das muitas “crises” da vida, ou etapas criticas do desenvolvimento, como nos ensinou Erik Erikson, hi tvinta anos. (Erikson delineou ito crises; talvez existam outras.) (0 que faz com que esses perfodos de transigtio no ciclo da vida se (vansformem em crises — isto é, etapas problematicas e dolorosas 0 fato de precisarmos renunciar a antigos conceites ou ma- hiras de fazer e ver as coisas se quisermos atravessé-los bem. Muitas pessoas nfo querem ou no podem superar a dor de ter «jue renunciar a0 que jé est ultrapossado, Conseqiientemente se upegam — as vezes para sempre — aos seus antigos padrées de jpensamento e comportamento, deixando de lidar com qualquer crise, de verdadeiramente crescer ¢ experimentar 0 ptazer do tenascimento que acompanka a transigo bem-sucedida rumo a \um maior amadurecimento, Embora eu pudesse escrever um livro intro sobre esse tema, vou apenas relacionat, mais ou menos na code em que ocorrem, algumas das principais condigdes, dese- cy DDISCIPLINA, jos ¢ atitudes que devem ser abandonados durante uma bem- sucedida evolugao da vida: © estado infantil, quando nfo € preciso responder a nenhutna exigéncia externa A fantasia da onipoténeia © desejo de posse total (inclusive sexual) dos pais ‘A dependéncia da inféncia Imagens distorcidas dos pais A onipoténcia da adoleseéncia A *liberdade" do descompromisso A agilidade da juventude A atratividade sexual e/ou poténcia da juventude A fantasia da imortalidade A autoridade sobre os filhos ‘Vécias formas de poder temporal. A independéneia da sade fisica E, finalmente, a personalidade e a propria vida. Rentincia e renascimento ‘MUITAS PESSOAS PODEM ACHAR QUE O REQUISITO FINAL — RE- nunciar & personalidade e a vida — & um tipo de crueldade da parte de Deus ou do destino, que torna nossa existéncia uma pia- dade maw gosto, e que nunca seré totalmente aceita. Essa atitude é particularmente verdadeira na atual cultura ocidental, em que a personalidade é considerada sagrada e a morte, um insulto inomindvel. No entanto, a realidade é totalmente o oposto. Ena RENUNCIA € RENASCIMENTO. a ‘entineia& personalidade que os seres humanos podem encontrar ‘vlegria mais arrebatadora, sélida e permanente da vida. E é a norte que dé vida todo o seu significado. Esse “segredo” & a sa- luedoria central da religiao. processo de rentincia & personalidade (relacionado ao fe- némeno do amor, como discutiremos na préxima parte deste li- yro) é para muitos de nés um processo gradual que iniciamos ‘través de uma série de impulsos. Uma forma de rentincia tempo- riria 8 personalidade merece uma mengo especial, porque sua pnitica €indispensével para o aprendizado significative durante a ishde adulta e, portanto, para o desenvolvimento do espirito hu- nano. Eu me refiro a um subtipo da disciplina de equiltorio que chamo de “contengao". A contengtio é basicamente o ato de equi- librar a necessidade de estabilidade e afirmagio da personalidade com anecessidade de adquitir novos conhecimentos ¢ uma maior ‘compreensio, renunciando temporariamente & personalidade — pondo-a de lado, por assim dizer — de modo a abrir espago para a Incorporagao de materiais novos & personalidade. Essa disciplina {oi bem descrita pelo tedlogo Sam Keen no livzo Toa Dancing Girl, © segundo passo exige que eu vé além da idiossinerasia e do cegocentrismo da experincia imediata. A consciéneia madura 86 & possfvel quando digeri e compensei as inclinagées ¢ 03 pre conceitos que restaram da minha histéria pessoal. Conscientizar- me do que se apresenta diante de mim envolve um movimento duplo da atengfo: silenciar 0 que é familiar e dar as boas-vin- das ao que € estranho, Toda vez que me aproximo de um obje- to pessoa ou evento, tenclo a deixar minhas necessidades atuais, experiéncias passadas ou expectativas futuras determinar oque verei. Para apreciar a unicidade de qualquer dado, devo estar consciente das minhas idéias preconcebides e distorges emo- cionais caracteristicas. $6 assim conseguirei conté-Las tempo 0 80 DISCIPLINA bastante para acolher bem a estranheza ¢ a novidade no meu mundo perceptivo. A diseiplina para conter, compensar ou si- lenciar exige um grande autoconhecimento ¢ uma corajosa ho- nestidade. Contudo, sem ela, cada momento presente ¢ apenas a repeticéo de algo jé visto ou experimentado, Para que surja, algo verdadciramente novo, para que a presenga dnica das coi- ‘sas, pessoas ou eventos se consolide em mim, devo descentrali- ar meu ego.’ A disciplina da contengfo ilustra o fato mais conseqiiente da rentincia e da disciplina em geral: ganha-se ainda mais do que se abdicou. A autodisciplina é um processo de engrandecimento pesscal. A dor da rentincia €a dor da morte, mas a morte do an- tigo € © nascimento do novo. A dor da morte 6 a dor do nasci- mento, ea dor do nascimento éa dor da morte. Para que possamos desenvolver uma idéia, um conceito, uma teoria ou uma com. preensfio nova e melhor, deve morrer uma idéfa, conceito, teoria ou compreensdo antiga, Assim, na concluséo de seu poema “Joumey of the Magi”, TS. Eliot descreve os Tiés Reis Magos sofrendo pela rentincia & sua visio anterior do mundo, depois de terem abragado o cristianismo. All his was along time ago, T remember, ad I would do it again, but set down This set down ‘This: were we led all that wary for Birth or Death? This was a Birth, certainly. We had evidence and no doubt. Ihad seen birth and death, But had thought they were different; this Birth was ‘Hard and bitter agony for ws, like Death, our death. 'Nova York: Harper & Row, 1970, pg. 28. RENONCIA E RENASCIMENTO at We retumed to our places, these Kingdoms, But no longer at ease her, in the old dispensation, ‘with am alien people clutching their gods. I should be glad of another death? (ud isso foi hd muito tempo, eu me lembro, ¢ fatia tudo de novo, mas considere Considere isto Isto: fomos condusides por todo esse caminho para ‘um Nascimento ou uma Morte? Foi um Nascimento, certamente, “Tinhamos evidéncias e nenhuma davida. Eu havia visto 0 nas- cimento e a morte, Mas os considerara diferentes; este Nascimento foi Uina dura e amarga agonia para ns, como a Morte, nossa morte, Veltamos 20s nossos fares, estes Reinos, Mas fndo to A vontale aqui, na vetha ordem com um povo estranho agarrado aos seus deuses. Eu ficaria feliz com outra morte.) ® Como nascimento e a morte parecem ser lados diferentes da ‘nesma moeda, realmente nfo seria absurdo que nés, ocidentais, /prestissemos mais atengéo ao conceito da reencarnago. Mas quer outejamos ou nfo dispostos a considerar seriamente a possiilida- ilo de que slgum tipo de renascimento ocorra simultaneamente ‘vom nossa morte fisica, esté bem claro que esta vida é uma série «le mortes e nascimentos simultneos. “Durante toda a vida deve- inos continuar a aprender a viver”, disse Séneca, hd dois mill anos, “eo que é ainda mais espantoso, durante toda a vida devemes "The Complete Poems and Plays, 1909-1950 (Nova York: Harcourt Brace, 1952), iy: 6. HiadugSo kee. (N. da) 82 DISCIPLINA aprender a more” Também est claro que quanto mais longe formos na estrada da vida, mais nascimentos experimentamos, €, portanto, mais mortes — mais alegria e mais dor Isso levanta a questo da possibilidade de nos livrarmos do softimento emocional nesta vida. Ou, em termos mais modera- dos, seré posstvel evoluir espititualmente até um nivel de conscién- cia em que a dor da vida sea 20 menos reduzida? A resposta &sim endo, Sim, porque quando 0 sofrimento é totalmente aceito, de certo modo ele deixa de ser sofrimento, E também porque a préti- «ca inceseante da disciplina leva a habilidade, e a pessoa evoluida espiritualmente ¢ habil no mesmo sentido em que o adulto é habil em relago 3 crianga. As questdes que representam grandes desa- fios para a crianga e Ihe causam muita dor podem nio ter qual- quer importancia para o adulto. Finalmente, a resposta é sim porque o individuo evaluido espiritualmente, como mostrarei na préxima parte, € extraordinariamente amoroso e, junto com seu amor extraordinério, vem uma alegriaigualmente extraordinétia, Entretanto, a resposta é no porque hé um vazio de habilidades no mundo que deve ser preenchido. Em um mundo que precisa de- sesperadamente de competéncia, uma pessoa extraordinariamente hrabilidosa e amorosa niio pode negar sua competéncia, assim como nao poderia recusar comida a uma crianga faminta. As pessoas evo- lutdas espiritualmente, devido & sua disciplina, habilidade e amor, io extraordinariamente competentes,¢ por isso sio chamadas para servirao mundo, e por serem amorosasrespandem ao chamado. Por- tanto, sioinevitavelmente pessoas de grande poder, emborao mundo ppossa considers-las bastante normais, porque na maioria das vezes exercem seu poder de maneiras silenciosas ou até mesmo ocultas. Contudo, realmente oexercem e, a0fazé-o, sofrem muito, as vezes tezrivelmente. Isto porque exercer 0 poder & tomar decis6es,e 0 pro- ccesso de tomar deciséio com absaluta consciéncia muitas vezes 6 infi- Gicado por Erich Fromm, The Sane Society (Nova York: Rinehart, 1955). RENUNCIA E RENASCIMENTO. 83 nitamente mais doloroso do que decidir com uma consciéncia limi- tada ou embotada (€ assim que a maioria das decis6es sfo tomadas, «© por iso acabam dando errado). Imagine dois generais, cada um deles tendo que decidir se deve enviar para a batalha uma divisio de des mil homens. Para um. doles, a divisdo é apenas uma coisa, uma unidade militar, um ins- trumento de estratégia e nada mais. Para outro é mais do que isso. Ble também tem consciéneia de cada uma das dea mil vidas e de cada fantlia de cada um dos dez mil homens. Para quem.a deciséo é mais fécil? Decerto para o general que embotou sua consciéncia ‘exatamente porque no consegue tolerar a dor de uma conscién- a mais plena. Pode ser tentador dizer: “Ah, mas um homem evo- lufdo espiritualmente nunca se tornaria um general.” Mas a mesma «questo esté envolvida quando se é presidente de uma empresa, inédico, professor ou pai, Sempre € preciso tomar decisdes que afetam a vida dos outros. As pessoas mais capazes de decidir séo aquelas que estdo dispostas a softer com suas decisbes, e que ain- «da assim mantém sua habilidade de decidir. A capacidade de s0- {rer talver seja a melhor medida da grandeza de uma pessoa. Mas os grandes também so alegres. Entio temos um paradoxo, Os budistas tendem a ignorar o softimento de Buda e os cristos se esquuecem da alegria de Jesus. Buda e Cristo nao eram homens diferentes. O sofrimento da rencincia de Cristo na cruze a alegria da rentineia de Buda sob a drvore Bo so a mesma coisa. Assim, se seu objetivo 6 evitar a dor e fugic do sofrimento, eu nfo 0 aconselharia a buscar niveis mais elevados de conscigncia ou evolugio espiritual. Primeiro porque voc® nio poderé atingi- los sem dor; segundo, porque ao atingi-los, render a ser chamado a servi de maneiras ainda mais dolorosas, ou pelo menos mais Uiffeeis, do que pode imaginar agora. Ento por que evoluir, vocd pode perguntar. Se vocé faz essa pergunta, talvez nfo saiba 0 bas- tante sobre a alegria, Talver voc€ encontre a resposta no restante deste livro; talvez ndo. 84 DISCIPLINA Uma palavra final sobre a discipline do equiltorio e sua essén- cia baseada na reriineia: voc deve ter algo a que renunciar. Nao pode renunciar a0 que néo tem. Se voc® abre milo de vencer sem nunca ter vencido, continuaré na sua posigio inicial: um perdedor ‘Vocé deve desenvolver um ego antes de porter perdé-to. Isso pode parecer incrivelmente clementar, mas acho que precisa ser dito, porque conhego muitas pessoas que possuem conhecimento tée- nico da evolugéo, mas que parecem no ter vontade de segui-la. Blas querem—e acham possivel — passer por cima de disciplina ce encontrar um atalho fécil para santidade. Muitas vezes tentam consegui-la imitando superficialmente os santos, indo viver no deserto ou aprendendo carpintaria, Algumas até mesmo acredi- tam que realmente se rornaram santas e profetas, sendo incapazes de reconhecer que ainda sfio criangas e enfrentar o doloroso fato de que devem comegar do inicio e seguir todas as etapas. ‘A disciplina foi definida como um sistema de técnicas para lidar construtivamente com 2 dor da solugo de problemas — em ver de la — de modo que todas as questdes da vida possem ser resolvi- das, Quatzo téenicas bésicas foram distinguidas ¢ elaboradas: adia- mento da gratificagio, aceitagio da responsubilidade, dedicagéo & verdade ou reatidade- equiltorio.A diseiplina 6um siera detécnicas, porque essas téenicas se encontram intertelacionadas. Em umn nico ato podemos usar duas, tés ouaté mesmo todas ao mesmo tempo, de forma que possamos distingui-las umas das outras. Como veremos a segui a forga, energia e disposigo para usé-las so fornecidas pelo amor. Essa andlise da dsciplina nfo pretende ser exaustiva,eé possivel que cu tenha me esquecido —embora nfo acredite nisso— de uma ‘ou mais técnicas bésicas adicionais. Também 6 razodvel perguntar se processos como biofeedback, meditagfo, yoga e a propria psicoterapia ‘iio seriam téenicas de disciplina, Como tais, podem ser muito diteis, ‘mas no exsenciais. Por outzo lado, as téenicas descritas aqui se pra- ticadas incessante e genuinamente, sero suficientes para permitir a0 praticante ou “tiseipulo” evoluir até niveis espiritunis mais elevados. PARTE II Amor Definigdo do amor JA FOI SUGERIDO QUE A DISCIPLINA 0 MEIO PARA A EVOLUGKO spiritual humana, Vamos examinar agora o que existe por trés dela —o que fornece o motivo, a energia para a disciplina, Eu ueredito que essa forga seja o amor. Tenho plena consciéncia dle que ao tentar examinar esse sentimento comegaremos a li- dar com um mistério. Em realidade, estaremos tentando exa- mninar 0 inexamindvel e conhecer o incognosctvel. © amor & amplo e profundo demais para ser realmente compreendido, mnedido ou limitado por nosso sistema de palavras. Eu no es- creveria este livro se no acteditasse que vale a pena tentar, ‘mas, por mais que a tentativa seja vélida, sei que em alguns spectos seré inadequada. Devido & natureza misteriosa do amor, que eu saiba ninguém encontrou uma definigao verdadeiramente satisfat6ria para ele. Entdo, em um esforco para explicé-lo, o amor foi dividido em vé- tias categorias: eros, philia, agape, amor perfeito e imperfeito, ¢ as- sim por diante. Mais uma vez sabendo que provavelmente sera de slgum modo inadequada, ousarei apresentar uma tinica definigo do amor, Para mim, ele € a vontade de se empenhar 20 maximo para promover o proprio crescimento espiritual ou 0 crescimento spiritual de outra pessoa. 88 AMOR Antes de me aprofundar mais, gostaria de comentar brevenen- te essa definigdo. Em primeiro lugar, pode-se notar que ela é teleolégica: 0 comportamento é definido em termos da meta ou finalidade que parece ter — neste caso, o crescimento espiritual. (Os cientistas tendem a suspeitar desse tipo de definigao, e talvez suspeitem desta. Entretanto, nfo cheguei a ela através de um pro- cesso claramente teleol6gico, mas sim pela minha prética clinica de psiquiatria (que inelui a auto-observagio), em quea definigfio do amor é uma questo de considerdvel importdncia. Iso acontece porque os pacientes sentem-se geralmente muito confusos em rela- 40 8 natureza do amor. Por exemplo, um jovem timido certa vez ‘mecontou: "Minha mie me amava tanto que s6 me deixou tomar © énibus escolar no timo ano do segundo grau. Ainda assim porque implorei para que ela deixasse. Acho que tinha medo de que eu me machucasse, por isso me levava e me buscava de carro todos os dias, o que era muito diffcil para ela, Minha mae realmente ‘meamava.” No tratamento da timidez desse individuo foi necess4- rio, como em muitos outros casos, ensinar-The que sua mie poderia ter sido motivada por algo diferente do amor, e que nem tudo que parece amor realmente 6. Foi através de experiéncias assim que acumulei virios exemplos do que pareciam ou nfo serates de amor. Uma das principais diferengas entre esses dois atos parece ser a finclidade consciente ou inconsciente da pessoa que ama ou no. Em segundo lugar, podemos notar que o amor, como ja foi definido, é um processo estranhamente circular, Isso porque 0 pro- cesso de se empenhar a0 maximo € evolutivo. Quando uma pes- soa consegue ampliar os préprios limites, entra em uma fase de vida de maior crescimento, Assim, o ato de amar €auto-evolutivo, mesmo quando sua finalidade é 0 crescimento de outra pessoa. & buscando a evolugéo que evolufmos. Em terceiro lugar, essa definigo unitéria inclui o amor-pré- prio e 0 amor pelo outro. Como eu sou humano e voeé também DEFINIGAO DO AMOR 9 mar seres humanos significa amar a mim mesmo tanto quanto a voc. Dedicar-me 0 crescimento espititual é dedicar-me & raga «la qual somos parte, e portanto significa dedicar-me ao meu pré- prio desenvolvimento assim como ao seu. De fato, como foi-salien- tudlo, 86 podemos amar outra pessoa se amarmos a nds mesmos, sysim como s6 podemos ensinar autodisciplina aos nossos filhos se {ormos autodisciplinados.Na verdade, € imposstvel deixar de lado ‘0 nosso crescimento espiritual a favor da evolugao de outra pes- oa, Nao podemos abandonar a autodisciplina e ao mesmo tempo sot disciplinados em nosso cuidado com o outro. 86 podemos ser uma fonte de forga se alimentarmos nossa prépria forga. A medi- dla que continuarmos a explorar a natureza do amor, creio que se (omari claro que © amor-préprio eo amor pelos outros nfo s6 nam de méos dadas como sfo insepardveis. Em quarto lugas, o ato de ampliar os préprios limites requer forgo. Quando amamos alguém, nosso amor s6 se torna demons- rivel ot real através do nosso esforgo — através do fato de que por essa pessoa (ou por nés mesmos) damos um passo a mais ou seguimes um pouco mais longe. O amor no ccorre sem esforgo, elo contritio, é muito trabalhoso. Finalmente, a0 usar a palavra “vontade” tentei transcender a dlistingdo entre desejo e acdo. O desejo nao se traduz necessaria- tnente em ago. Jé a vontade é um desejo bastante forte queé tra- \luzido em agio. A diferenga entre os dois — desejo e vontade— (igual diferenga que existe entre as afirmacées: “gostaria de nadar hoje & noite” e “vou nadar hoje & noite”. Todos na nossa cultura esejam, até certo ponto, estar amando. Contudo, de fato muitos iio estdo. Portanto, concluo que o desejo de amar nilo é amor. O ‘jomor & expresso amando. E um ato da vontade — isto é, tanto uma intengéo quanto uma aco. A vontade também implica es- colha. Nés no temos de amar. Escolhemos amar. Nao importa o quanto achamos que estamos amando; se de fato no fizermos a 90 AMOR, escolha interior nfo estaremos amando, apesar de nossas boas in- tengées. Por outro lado, sempre que realmente saimos em busca do.crescimento espiritual, é porque escothemos fazé-lo. A escolha de amar foi feita. Como jé disse, pacientes que recorrem a psicoterapia invariae velmente se encontram de certa forma confusos quanto & natue reza do amor. Isso porque, devido ao seu mistério, h4 muitas concepgdes erréneas sobre o amor. Embora este livro no va rou- bar-lhe 0 mistério, espero que seja capaz de esclarecer algumas questdes que ajudem a eliminar essas concepgdes equivocadas que causam sofrimento nao s6 aos pacientes, mas também a todas as pessoas que tentam compreender suas préprias experiéncias. Par- te desse softimento me parece desnecessétia, ja que essas fanta- sias do amor poderiam se tomar menos populares através do ensino de uma definigio mais precisa do amor: Por isso, decid comegara explorar a natureza do amor examinando tudo o que ele néo é. “Apaixonar-se” DE TODAS AS CONCEPQOES ERRONEAS, A MAIS PODEROSA E IN- sidiosa € aquela que afirma que a paixio é sinénimo de amor — ou, pelo menos, uma de suas manifestagdes. 6 poderosa, porque a paixdo é experimentada subjetiva e intensamente como amor, Quando uma pessoa se apoixons, oque ele ou ela certamente sente 6 “eu 0 amo” ou “eu. a amo”. S6 que dois problemas se tomam imediatamente vistveis. O primeiro € que a experiéncia da paixao 6 especificamente exética. Néo nos apaixonamos por nossos filhos, embora passamos amé-los profundamente. Nao nos apaixonamos “APAIKONAR-SE” ” por amigos do mesmo sexo —a nio ser que sejamos homossexu- ‘is —, embora possamos gostar muito deles. S6 nos apaixonamos quando temos consciente ou inconscientemente uma motivagio sexual. O segundo problema é que a experiéncia da paixdo €inva- ‘iavelmente temporéria. Nao importa por quem nos apaixonames, Je 0 relacionamento durar, cedo ou tarde nos desapaixonaremos. Isso nfo significa que sempre deixamos de amar a pessoa por quem hos apaixonamos, mas que o éxtase que caracteriza a paixio aca- tn, A lua-de-mel sempre termina, O romance perde o brilho. Para compreender a natureza do fenémeno da paixtio ea inovitabilidade do seu fim, énecessério examinar 0 que os psiquia- trns chamam de fronteiras do ego. Pelo que podemos constatar através de evidéncias indiretas, nos primeiros meses de vida o re- 6in-nascido nfo distingue entre si mesmo ¢ o resto do universo. Quando move bragos pernas, o mundo se move. Quando tem fome, 0 mundo também tem. Quando vé sua mae se movendo, & como se ele estivesse se movendo. Quando sua me canta, o bebé niio sabe que nfo é ele quem esté produzindo o som. Ele néo con- seyue se distinguir do bergo, do quarto e dos pais. O animado eo inanimado so a mesma coisa. Ainda nfo existe distingZo entre “eu” e “voce”. Ele e omundo sao um s6. Nao ha fronteiras, sepa- rages. Nao ha idencidade, Com o tempo a crianga comega a se experimentar como uma cntidade separada do resto do mundo, Quando tem fone, a mae hem sempre aparece para alimenté-la. Quando quer brincas, nem sempre a mae esté disposta. Bato a crianga percebe que seus de- sejos nao sao ordens para a mae, que sua vontade 6 algo distinto «lo comportamento dela. Comega a surgir uma nogio do “eu”, Acredita-se que essa interago entre mies e filhos € a base sobrea qual a nogao de identidade da crianga comeca a ser construfda. Foi observado que quando a interagao entre eles gravemente perturbada— por exemplo, quando ndo hé mae nem uma substi- 22 AMOR tuta satisfatéria, ou quando a mie, devido & sua prépria doenga mental, é totalmente negligente ou desinteressada — o bebé se torna uma crianga ou um adulto cujo senso de identidade apre- senta as falhas mais basicas. A medida que 0 bebé percebe que sua vontade é apenas dele e nao do universo, comega a fazer outras distingSes entre si mes- moe o mundo. Quando tem vontede de se mover, seu brago ba- Tanga diante dos seus olhos, mas nem o bergo nemo teto se mover. Assim, aprende que seu braga e sua vontade esto ligados, e que portanto seu braco pertence a ele, nao é algo externo ou de outra pessoa. Dessa maneira, durante o primeiro ano de vida, aprende- ‘mos 03 fundamentos de quem ou o que somos ou nfo. No final do nosso primeiro ano, sabemas que o braco, o pé,a cabega, a lingua, 1s olhos ¢ até mesmo ponto de vista, a voz, 0s pensamentos, a dor de barriga e 0s sentimentos nos pertencem. Conhecemos nos- 50 tamanho e nossos limites fisicos. Esse conhecimento é 0 que cchamamos de fronteiras do ego. O desenvolvimento destas fronteiras 6 um processo que conti- nua através da infancia, durante a adolescéncia ¢ até mesmo, na ‘dade adulta, mas os limites estabelecidos posteriormente so mais psiquicos do que fisicos. Por exemplo, a idade entre dois etrés anos 6 tipicamente um perfodo em que a crianga aceita os limites do sew poder, Emborajé tenha aprendido que seu desejo nfo é necessaria- ‘mente uma ordem para a mée, ainda se apega &possibilidade de que poderia ser ¢ ao sentimento de que deveria ser. E devido a essa es- pperanga e # esse sentimento que a crianga de dois anos geralmente tenta agir como um tirano e autocrata, dando ordens aos pais, aos inmdos e aos animais de estimagao como se fossem soldados ras0s de seu exército particular, e reagindo com uma firia real quando indo 6 atendida. Por isso, os pais referem-se a essa idade como “os terriveis dois anos”, Aos trés anos a crianga geralmente se tomou ais tatével e tranqiila como um resultado da aceitagao da reali- "APAKONAR-SE" 93 lade de sua relativa impoténeia, Ainda assim, a possibilidade da nipoténcia ainda é um sonho téoagradavel que nao pode ser com- pletamente abandonado, mesmo depois de anos de doloroso con- fronto com a prépria impoténcia, Embora a crianga de trés anos \wnha passado acettara realidade dos limites do seu poder, duran- ‘alguns anos continuaré ocasionalmente fugindo para um mundo «da fantasia em que a possibilidade da onipoténcia (particularmente sua) ainda existe. £ 0 mundo do Super-Homem e do Capitéo Marvel. No entanto, gradualmente, até mesmo os super-heréis so ubandonados. No meio da adolescéncia os jovens jé sabem que so individuos, pesos aos limites do préprio corpo e poder, cada tin deles lum organismo relativamente frigil e impotente, existindo apenas através da cooperagao de um grupo de semethantes organizados em iedade, Dentro desse grupo eles néo se distinguem particular- Inente, mas sao separados uns dos outros pot suas identidades,fron- twitas e limites individuais. Essolitétio estar dentro dessas fronteiras. Algumas pessoas — pprticularmente aquelas que os psiquiatras chamam de esquizsides , devido a experiéncias desagradéveis e trauméticas na infain- cia consideram o mundo exterior irremediavelmente perigoso, hhostil, confuse insatisfatério. Acham que suas fronteiras as pto- teyem e confortam, e encontram seguranga na solidio. Mes a tnaioria de nés acha a solidao dolorosa e deseja fugie da muralha «lo identidade individual para poder se sentit mais unido com 0 inundo extemno, A experiéncia de se apaixonar nos permite essa fuga — temporariamente. A esséncia do fenémeno da paixdio 6 lum stibito colapso de parte das fronteiras do ego de um individuo, «que lhe permite unir sua identidade & de outra pessoa. A repenti- tua libertagdo do individuo de si mesmo, a explosiva fuszo com a essoa amada ¢ o grande alfvio da solidtio que acompantham esse colapso sfo experimentados pela maioria de nés como um éxtase Nés ea pessoa amada somos um s61 A solido acabou! 94 ‘AMOR Em alguns aspectos (mas certamente no em todos), 0 ato de se apaixonar é um ato de regressfo. A experiéncia de se fun- dir com a pessoa amada faz eco ao tempo em que estivamos uunidos com nossas mies. Junto com a fuséo, voltamos a experi- ‘mentar a sensagéo de onjpotncia abandonada na infancia. Tudo parece possfvell Unidos & pessoa amada achamos que podemnos superar todos os obsticulos. Acreditamos que a forga do nosso amor subjugaré e fard sumir nas trevas as forgas da oposicfo. ‘Todos os problemas sero resolvidos. O futuro serd s6 alegria. A itrealidade desses sentimentos é hasicamente a mesma da crian- gade dois anos que acha que € 0 rei da familia edo mundo, com poderes ilimitados. ‘Assim como a realidade invade a fantasia de onipoténcia da crianga de dois anos, invade a unidade fantéstica do casal apaixo- nado, Mais cedo ou mais tarde, como uma reacSo aos problemas dodia-a-cia, oindividuo se reafirmaré. Ele quer fazer sexo} elando. Ela quer ir ao cinema; cle néo, Ele quer depositar dinheito no bbanco; ela quer uma lava-lougas. Ela quer felar sobre seu traba- Iho; ele quer falar sobre o dele. Ela no gosta dos amigos dele; ele info gosta dos amigos dela. Entao os dois, no fundo de seus cora- ges, chegam a terrfvel conclusio de que eles e a pessoa amada no so tum s6, que ela — ou ele — ainda continuaré a ter seus préprios desejos, gostas, preconceitos e momentos diferentes dos seus, Uma a uma, gradual ou subitamente, as fronteiras do ego sao restabelecidas — e eles se desapaixonam. Mais uma vez so dois individuos separados. B nesse ponto que eles comegam a romper 608 lagos do relacionamento ou dio inicio ao trabalho que constréi overdadeiro amon ‘Ao usar a palavra “verdadeiro”, quero dizer que, quando estamos apaixonados, a percepgo de que estamos amando € fal- sa. Nossa sensagiio subjeriva de amar 6 uma ilusio. A elaboragao plena do verdadeiro amor seré deixada para o final desta parte. "APAIXONAR-SE” 95 Contudo, ao afiemar que quando um casal se desapaixona pode realmente comegar a amas, também quero dizer que o verdadeiro mor no se origina de uma sensago de amor. Pelo contrario, {reqientemente ocorre em um contexto em que esta sensagao est juusente, quando agimos amorosamente apesar de nfo nos sentir tnos amorosos. Se aceitamos a nossa definigéo inicial do amor, a experiéneia de “apaixonar-se” no é — pelas vérias razdes que veremos a seguir — o verdadero amor. Apaixonar-se nao é um ato da vontade. Nao € uma escolha consciente, Por mais que estejamos abertos ou dispostos, a expe- 1igneia da paixéo ainda pode nos escapar. Por outro lado, pode- ‘nos passar por ela quando definitivamente néo a procuramos, «quando é inconveniente e indesejével. Temos a mesma tendéncia ‘nos apaixonar por uma pessoa obviamente incompativel quanto por uma absolutamente apropriada. De fato, podemos até mesmo Inlo apreciar ou admirar 0 objeto da nossa paixlo e, por mais que {entemos,néio sermos capazes de nos apaixonar por alguém que res- jyeitamos muito e com quem seria desejavel ter um relacionamen- lo profundo. Isso ndo quer dizer que a experiéncia da paixio seja iinune & disciplina. Os psiquiatras, por exemplo, freqllentemente paixonam por seus pacientes, assim como seus pacientes cos- {uiam se apaixonar por eles, mas devido ao seu papel e dever prefissional geralmente so capazes de evitar 0 colapso de suas fron- Iviras egdicas e de desistir do paciente como objeto romantico. A, uta e 0 softimento da disciplina envolvide podem ser enormes. Mas a disciplina ea vontade s6 podem controlar a expetiéncia; ‘nfo podem crié-la. Podemos escolher como vamos reagir & expe- rigncia da peixio, mas nio a experiéneia em si. Apeixonar-se nfo € uma ampliago dos limites ou fronteiras \loindividuo; é seu colapso parcial e cemporsio. A ampliagio dos nossos limites exige esforgo; a paixdo no. Pessoas preguicosas € inclisciplinadas tendem tanto. se apaixonar quanto as dedicadas 96 ‘AMOR e cheias de energia. Depois que o precioso momento da paixiio passa eas fronteiras so restabelecidas, o individuo pode ficar de- siludido, mas geralmente ndo cresce com a experiéncia. Jé quando os limites so ampliados ou expandidos, cles tendem a permanecer assim. O verdadeiro amor & uma experiéncia de expansio perma- nente; a paixdio nio. O objetivo da paixio nao é estimular o crescimento espiri- tual. Se temos um objetivo em mente quando nos apaixona- mos, é 0 de pér fim & nossa solidao, ¢ talver garantir isso com o casamento, Certamente nao temos em mente a evolugao espiti- tual. De fato, depois que nos apaixonamos, e antes de nos desa- paixonarmos, achamos que chegamos ao épice ¢ que nao ha necessidade e possibilidade de ir além. Nao sentimos que pre- cisamos de desenvolvimento, Estamos totalmente satisfeitos com o lugar que alcangamas. O nosso espfrito est em paz. “Tampouco achamos que a pessoa amada precisa de crescimen- to espiritual. Ao contrério, nés a achamos perfeita, como se tivesse sido aprimorada. Se vemos nela qualquer falha, esta é descartada como insignificante ou como uma excentricidade que 86 aumenta o seu charme. ‘Se paixéo nfo é amor, ento o que é, além de um colapso tem- porério ¢ parcial das fronteitas do ego? Nao sei. Mas a caracterts- tica especificamente sexual desse fendmeno me leva a suspeitar de que existe um componente instintivo determinado genetica- mente no comportamento de acasalamento. Em outras palavras, co colapso temporsirio das fronteiras do ego que constitui a paixéo 6 uma resposta padro dos seres humanos a uma configuragio de desejos sexuais internos e estimulos sexuais externos que serve para aumentar a probabilidade de unio sexual, de modo a ampliar as chances de sobrevivéncia da espécie. Ou, usando uma linguagem mais crua, a paixio € uma pega que os genes pregam em nossa mente —prudente em relagio a outras questdes — para que caia- ‘OMIT DO AMOR ROMANTICO 7 ‘mos na armaditha do casamento, Freqtientemente algo ndo fun- ciona, como quendo os impulsos e estimulos sao homossexuais, ‘ou quando outras forgas — interferéncia dos pais, doenga men- Lal, responsabilidades conflitantes ou autodisciplina madura — impedem a ligagao. Por outro lado, sem esse pega — a regresstio ilussria e inevitavelmente temporéria (néo seria prética se nfio fosse temporétia) & fusdo e onipoténcia da inffincia—, muitos de nés, hoje felizes ou no em seus casamentos, teriam recuado aterrori- sailos diante do realismo dos votos nupciais. O mito do amor romdntico PARA NOS APRISIONAR COM TANTA EFICIENCIA NO CASAMENTO, uma das caracteristicas da paixfio deve ser provavelmente a ilusia dle que iré durar para sempre. Em nossa cultura, esta ilusio & ali mentada pelo mito do amor romntico, cujas origens remontam & inffncia, aos nossos contos de fadas favoritos em que a princesa e © principe, uma ver unidos, vivem felizes para sempre, O mito do amor roméntico na verdade nos diz que, para cada homem no mundo, hé uma mulher que “nasceu para ele” — e vice-versa Também sugere que s6 hé um homem para uma mulher e uma mulher para um homem, e que esse encontro “esté escrito nas cstrelas”, Quando encontramos a pessoa que nos é destinada, nds «vreconhecemos através da paixéo. Descoberta aquela que os cus colheram para nés, a combinagdo seré perfeita: conseguiremos satisfazer todas as suas necessidades e seremos felizes para sempre com perfeita unio e harmonia. Mas se essas necessidades nao fo- tom satisfeitas, se surgirem attitos e nos desapaixonarmos, ficard 98 ‘AMOR claro que cometemos um erro terrive, interpretamos erradamen- teas estrelas, no formamos o tinico par perfeito, o que pensiva- ‘mos que fosse amor nfo era real ou “verdadeiro”, e nada pode ser feito em relagio a isso além de vivermos infelizes para sempre ou nos divorciarmos. Embora em geral eu ache que os grandes mitos sfo grandes exatamente porque representam e incorporam verdedes univer- sais (mais tarde examinarei varios desses mitos), o mito do. amor roméntico no passa de uma terrivel mentira. Talvez seja uma mentira necesséria, j4 que garante a sobrevivéncia da espécie ao encorajar e aparentemente legitimar a experiéncia da paixdo que nos aprisiona a0 casamento. Mas, como psiquiatra, lamento pro- fundamente com freqiiéncia pela horrivel confusdo e sofrimen- toque ela causa, Milhdes de pessoas desperdigam um bocado de energia tentando desesperada e inutilmente ajustat a realidade de suas vidas @irzealidade do mito. A Sra. A. se submete absur- damente ao marido devido a um sentimento de culpa. “Eu real- ‘mente noo amava quando nos casamos’, dis, “Fingia que amava, Acho que o enganei, por isso no tenho o direito de reclamar dele, ¢ devo fazer tudo que ele quer.” O Sr. B. lamenta: “Eu me arrependi de nfo ter casado com a Srta. C. Acho que teria sido um bom casamento. Mas néo estava loucamente apaixonado por cla, ent&o achei que poderia ndo ser a pessoa certa para mim.” A Sra. D., casada hi dois anos, sente-se muito deprimida sem cau- saaparente, ¢ passaa terapia dizendo: "Nao sei o que hé de erta- do comigo. Tenho tudo que preciso, inclusive um casamento perfeito.” Somente meses depois ela conseguiu aceitar o fato de que se desapaixonara pelo marido, mas isso néo significava que cometera um erro tersivel, O Sr. E., também casado ha dois anos, ‘omega a softer de fortes dores de cabega & noite € nfo conse- gue acreditar que sejam psicossométicas. “Minha vida familiar ‘std 6tima, Amo a minha mulher tanto quanto no dia em que ‘OMITO DO AMOR ROMANTICO 9 nos casamos”, afirma. Mas s6 se livra de suas dores de cabega, tum ano depois, quando consegue admitir que “Ela me deixa louco, sempre querendo, querendo, querendo coisas sem se preocupar com o meu salério” e entdo consegue confronté-la com sua extravagincia, O Sr. B. a Sra. E admitem um para 0 outro que se desapaixonaram e entio infernizam suas vidas sendo infiéis na busca do “verdadeiro amor”, sem perceber que © pr6prio fato de terem admitido que nao est&o mais apaixona- dos poderia marcar 0 inicio de um esforgo em prol do casamen- to, em ver de seu fim, Mesmo quando os casais admitem que a Iua-de-mel acabou, que nfo esto mais romanticamente apai- xonados e ainda sio capazes de se comprometer com o relacio- amento, continua apegados ao mito e tencando ajustar suas vidas a ele. Pensam: “Embora a paixio tenha acabado, se tiver- mos forga de vontade para agir como se ainda estivéssemos apaixonados, talvez o amor romantico volte para as nossas vi- clus.” Esses casais valorizam a uniéo. Quando entram em gru- pos de terapia de casais (que é para onde minha mulher, eu e nossos colegas mais préximos encaminhamos a maioria dos casos sérios) eles se sentam juntos, falam um em nome do ou- {10 justficam os defeitos do outro e tentam se apresentar diante do grupo como uma frente unida, acreditando que essa unio seré um sinal de relativa satide matrimonial e um pré-requisito para a sua melhore. Mais cedo ou mais tarde, geralmente mais cedo, temos de dizer-lhes que esto casados demais, unidos demais e precisam estabelecer alguma distancia psicolégica para comegar a trabalhar construtivamente seus problemas. As ve- zes 6 de fato necessério separé-losfisicamente, fazendo-os sen- tarem-se longe um do outro no efrculo do grupo. Repetidamente temos de dizer “Deixe Mary falar por si mesma, John” e “John. pode se defender sozinho, Mary ¢ forte o suficiente para isso”. No final, se continuam na terapia, todos os casais aprendem 100 aMor que uma real aceitagdo da individualidade e distingao de cada um é a tinica base sobre a qual um casamento maduro pode ser construfdo eo amor verdadeiro pode crescen! Mais sobre fronteiras do ego DEPOIS DE DIZER QUE A EXPERIENCIA DE “APAINONAR-SE” £ UM tipo de ilusio que de modo algum constitui o verdadeiro amor, deixe-me concluir dizendo exatamente o contrério, ou seja, afi mando que a paixdo € de fato muito, muito préxima do amor real Na verdade, o que fortalece a concepgao errénea de que a paixdo €um tipo de amor é justamente 0 fato de ela conter uma parcela minima de verdade. ‘A experiéneia do amor verdadeiro também esté relacionada com as fronteiras do ego, uma vez que envolve uma amplingo dos limites da pessoa. Quando estendernos nossos limites através do amor, queremas 10s aproximar do objeto amado, cujo crescimen- todesejamos promover, Para que isso seja possivel, primeiro deve- ‘os amar o objeto amado; em outras palavras, emos de nos sentir atrafdos, envolvidos e comprometidos com um objeto externo, que se encontra além das fronteiras da personalidade. Os psiquiatras chamam esse processo de atragio, envolvimento e compromisso 7 Quei leu o livre de O'Neil, Open Mariage, sabe que este é um dos prinetpios bisices do casamento sberto, aposto ao casamento fechado. Realmente os (O'Neilsforatn muito genie e contidas em sua defesado casamento aberto, Meu trabalho com casais me levau a concur que © dnc tipo de casarmento madu- roque € saudavel endo prejudica seriamente a sade ea evolugio expirtual de cada parceiro 60 casamento aberto. [MAIS SOBRE FRONTEIRAS DO EGO 101 «loinvestimento”,¢ dizem que “investimos" no objeto amado. Mas quando investimos em um objeto extemo, também incorporamos fuicologicamente uma representagio desse objeto emnés. Consi- ‘loremos por exemplo um homem cujo hobby é a jardinagem. Tra lusse de um hobby satisfatério e absorvente. Ele “ama” a jivdinagem, Seu jardim significa muito para ele. Esse homem in- Vestiu no seu jardim. Acha-o bonito, envolvente e esté compro- mtido com ele — tanto que & capaz de pular da cama domingo bem cedo pata cuidar dele, recusar-se a viajar para longe dele © ‘mesmo negligenciar sua mulher por ele. Através desse investi- inento—cuidar do jardim, nutri as folhas ¢ 0s brotos —ele ver. prendendo muito. Passou a entender de jardinagem — solos e sntes, rafes e podas —e conhece seu jardim particular — sui histéria, os tipos de flores e plantes que contém, sua disposi (jlo, seus problemas ¢ até mesmo seu futuro. Apesar de o jardim stir fora dele, por meio desse investimento ele passa também a xinti em seu interior. Seu conhecimento e o significado desse jarilim so parte desse homem, parte de sua identidade, hist6ria e sahedoria, Amando o jardim e investindo nele, incorporou-o de lum modo bastante real, e por isso sua personalidade e suas from- tviras egSicas se expandiram. Portanto, o que acontece durante muitos anos de amore am- rlingdo de limites pelos novos investimentos 6 uma expansio gra- ual mas progressiva da personalidade, uma incorporagao interior do mundo externo e um crescimento, alongamento ¢ afinamento das fronteitas do ego, Assim, quanto mais e por mais tempo nos ‘estendermos, quanto mais amarmos, menos clara se tornaré a dis- Lingo entre a personalidade e o mundo. Nés nos identificaremos com o mundo. E & medida que os limites do nosso ego se tornam \nues, comegamos a experimentar cada ver mais o tipo de éxtase experimentado quando as fronteiras do nosso ego caem parcial- mente e “nos apaixonamos”. S6 que, ao invés de nos unirmos de 102 AMOR maneira temporStia e irreal com um Gnico objeto amado, unimo- nos de maneira realista e permanente com grande parte do mundo. Podemios estabelecer uma “unio mistica” com todo o universo. sentimento de éxtase ou beatitude associado a essa unio, embora talvec mais suave e menos dramético, & muito mais estével, dura- douro ¢ em tiltima andlise gratificante. Ea diferenga entre a expe- rigncia de pico, caracteristica da paixdo, e o que Abraham Maslow chamou de “experiéncia de platé"? As alturas nfiosdo subitamente vislumibradas e novamente perdidas; sfo conguistadas para sempre, E dbvio e de conhecimento geral que o ato sexual ¢ o amor, ‘embora possam ocorrer simultaneamente, muitas vezes estio dissociados, uma vez que sGo fendmenos basicamente distintos. Fazer amor — o ato sexual em si—niio é um ato de amor. Contu- do, a experiéneia da relagio sexual e particularmente do orgasmo (mesmo na masturbagéo) também esté associada a um maior ou menor grau de colapso das fronteiras do ego ¢ ao éxtase conco- ‘mitante. E devido a esse colapso que podemos gritar no mamento do clfmax “eu te amo”, ou “oh, Deus” para uma prostituta por quem, momentos depois, quando as fronteiras do ego j foram restabelecitlas, podemos nfo sentir qualquer afeigao, estima ou interesse, Isso ndo quer dizer que 0 éxtase da experiéncia orgésmica no possa ser intensificado compartilhando-o com uma pessoa mada; pode, sim, Mas mesmo sem um parceito amado, ou pat- ceiro algum, 0 colapso das fronteiras do ego que ocorre em con- juno com o orgasmo pode ser total: por um segundo, podemos nos esquecer totalmente de quem somos, nos perder no tempo € ‘no espago, sair de nés mesmos, ser transportados. Podemos nos tomar um s6 com o universo. Mas apenas por um segundo, ‘Ao descrever a prolongada “unidade com 0 universo” asso- cciada a0 verdadeiro amor — comparada com a unidade momen- Religions, Values, and Peak: Experiences (Nova York: Viking, 1970), preticio. [MAIS SOBRE FRONTEIRAS DO EGO 103 linea do orgasmo—, usei as palavras “unio mistica’. O misticis- sno é basicamente uma crenga de que a realidade 6a unidade. Os Infsticos mais literais acreditam que a nossa percepgdo comum do uiniverso contendo uma grande quantidade de objetos distintos cestrelas, planetas, drvores, passaros, casas, nés mesmos — to- «los separados uns dos outros por limites, é errénea, uma ilustio, fissa percepgio errdnea coletiva, o mundo da ilusfio que a maioria «lends acredica ser real, os hinduistas e budistas chamam de maya Hles e outros misticos afirmam que a realidade s6 pode ser conhe- ida experimentando-se a unidade através da rentincia as fron- \viras do ego. Realmente é impossivel vermosa unidade do universo ‘enguanto continuamos a nos considerar um objeto separado, dis- linto. E por isso que os hindufstas e os budistas freqiientemente juistentam que o bebs, antes de desenvolver as fronteiras do ego, conhece a realidade; os adultos, nfo. Alguns até mesmo sugerem que 0 caminho para a iluminago ou o conhecimento da unidade tla realidade passa por uma regressdo, requer que nos tomemos hichés, Esse pode ser uma doutrina perigosamente tentadora para ‘ertos adolescentes e jovens que nfo esto preparados para assu- nirresponsabilidades adultas, aparentemente assustadoras e além «las suas capacidades. “Eu ndo tenho de passar por tudo isso”, al- um assim pode pensar: “Posso desistir de tentar ser um adulto e {ugir das exigéncias da vida madura para a santidade.” Contudo, esse comportamento leva & esquizofrenia, ndio A santidade. A maioria dos mfsticos compreende a verdade elaborada no final da discussao sobre a disciplina, ou seja, que devemos possuir ‘ou conquistar alguma coisa antes de podermos renuneiar a ela— ainda manter nossa competéncia e viebilidade. O bebé sem fron- twiras do ego pode estar mais em contato com a realidade do que seus pais, mas é incapaz de transmitir sua sabedoria. O caminho pra a santidade passa pela maturidade. Néo existem atalhos fi- 104 ‘AMOR ceis e répidos. As fronteiras do ego devem ser fortalecidas antes de poderem ser atenuadas. Uma identidade deve ser estabelecida antes de poder ser transcendida, Deve-se encontrar prépria per- sonalidade para poder perdé-la, A liberagio tempordria das fron- teiras do ego associada & paixo, ao ato sexual ou 20 uso de certas

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