Você está na página 1de 24
A“NOVA” HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA Margareth Rago O Brasil é um pais bastante estranho e, freqiientemente, os brasi- leiros afirmam que aqui tudo pode acontecer. Paraiso ¢ inferno, extrema cordialidade e acentuada violéncia, riqueza ostensiva ¢ altos indices de miséria, populagdio branca e negra, shoppings centers ¢ favelas, tradigzio e modernidade, os extremos, enfim, convivem lado a lado, sem provo- car maiores surpresas nos seus habitantes. Muitas décadas atras, um dos mais importantes historiadores brasileiros, Sérgio Buarque de Holanda (1994) afirmou, ao interpretar a historia do Pais desde os inicios da co- lonizagao portuguesa, que “somos uns desterrados em nossa terra”, re- ferindo-se maneira pela qual mantemos vinculos frouxos com 0 passa- do ¢ as tradigdes, apesar da extrema afetividade que nos caracteriza ‘A complexidade desse universo social aparece quando se tenta ma- pear a producdio cultural brasileira ¢ quando se procura visualizar as ten- déncias ideolégicas, politicas ¢ intelectuais que tém marcado 0 pensamento social no Pais. Em relagao & producdo historiografica mais recente, vale considerar que, a despeito da violenta represso cultural imposta pela di- tadura militar ao longo dos anos 60 e, especialmente, durante a primeira mietade dos anos 70, esta década irrompeu trazendo uma grande expansdo dos estudos histéricos, das pesquisas e publicagdes de livros, artigos e re- vistas, impulsionada pela criagao dos intimeros cursos de pés-graduagaio no Pais, pelo prdprio crescimento do mercado editorial ¢, njo menos, pela intensa pressao da resisténcia politica organizada, formal e informalmen- te. Ainda que sob forte abafamento politico no Pais, vivemos, ao mesmo tempo ¢ contraditoriamente, um periodo de florescimento cultural ¢ inte- Iectual em muitos campos, como na musica € no teatro, o que se explica, em grande parte, pelo proprio crescimento urbano-industrial, pela expan- siio do mercado editorial, publicitario e artistico, pelo desenvolvimento das telecomunicagdes em todo o Pais e, especialmente, pelo relativo fortale- cimento econémico das camadas médias Margareth Rago ¢ professora no Departamento de Histéria do Instituto de Filosofia ¢ Cigneias Humanas da UNICAMP. Anos 90, Porto Alegre, n.11, julho de 1999 3B Além disso, novos grupos sociais, étnicos ¢ sexuais passaram a par- ticipar da vida publica, trazendo suas questies € reivindicagdes ¢, ao mes- ‘mo tempo, ampliando as formas culturais ¢ estéticas de consumo, As mu- theres, principalmente, entraram agressivamente no mercado, participan- do dos cursos nas universidades, nas escolas ¢ em outras instituigdes, en- quanto 0 movimento femtinista levou grande mimero as pragas publicas. exigindo novos direitos sociais ¢ sexuais; os negros colocaram suas de- mandas na agenda piiblica, enquanto 0 movimento operario se reorgani- zava hos grandes centros industriais ¢ propunha a criagzio de um impor- tante partido politico de massas; os jovens, entre os quais muitos estudan- tes, passaram a compor um contingente politico expressive (Stepan, 1988). O desenvolvimento de diferentes areas de estudo ¢ a sofisticagao das pesquisas elaboradas tornam complexa a tarefa de mapear as diver- sas tendéncias histéricas que se entrecruzam no Pais, marcadas por uma grande variedade ¢ riqueza, desde entio. Das questdes femininas ¢ do género & masculinidade, da sexualidade As relagdes raciais, da historia do pablico ao privado, da cigncia A religiosidade e 4 magia, da cultura erudita 4 cultura popular e a midia, da histéria social 4 histéria cultural, assistimos a uma crescente produgdo académica, criativa, instigante e polémica, nas ultimas décadas. De modo geral, essa produgio académica procura acompanhar ¢ atualizar-se com os desenvolvimentos teéricos € tematicos que se pro- duzem no exterior, em especial, na Franga, Inglaterra, Italia e nos Esta- dos Unidos, de onde vém nossas principais referéncias tedricas, meto- doldgicas ¢ tematicas, Contudo, também fica clara a preocupagio de tra~ balharem-se as especificidades locais das experiéncias histéricas tal qual s¢ constituem no Pais, nos diferentes estados, cidades ¢ municipios € outras regides, diferindo radicalmente daquelas vivenciadas em outros contextos histdricos. A RENOVACAO MARXISTA . E A “HISTORIOGRAFIA DA REVOLUCAO” A explosao de uma expressiva produgio historiografica brasileira corre, ainda, num momento em que se tornam visiveis os sinais de es- gotamento do marxismo como modelo privilegiado de interpretagéio do passado. Das primeiras andlises marxistas gue procuravam definir, ini- cialmente de maneira bastante mecanicista, posteriormente de modo mais sofisticado. as estruturas socioeconémicas e os modos de produgdo exis- 74 Anos 90 tentes no Pais passou-se, nos anos 70, a discutir 0 universo mental ¢ as ideologias presentes nas andlises historicas da “realidade brasileira”, Em 1977, Carlos Guilherme Mota publica 0 conhecido /deologia da cultura brasileira (1933-1974) (1977), um dos raros estudos destinados a anali- sar, numa perspectiva assumidamente marxista, as tendéncias ideolgi- cas da produgdo cultural brasileira ao longo de varias décadas, Conco- mitante ao estudo de Fernando Novaes, Portugal e Brasil nos quadros do antigo sistema colomal (1978), voltado para a compreensio das es- truturas econémicas predominantes no Brasil Colénia e ao estudo das formas de insergao da atividade produtiva no Pais nos quadros do siste- ma econémico capitalista europeu, o estudo de Mota desloca 0 foco de atengao do campo econdmico para a dimensao ideolégica do universo da cultura brasileira, mantendo 0 eixo explicativo na definigdio da estru- tura sociocconémica, tal como fora definida pelos trabalhos da famosa Escola Paulista de Sociologia, na qual atuavam socislogos como Flores- tan Fernandes, Azis Simao e Fernando Henrique Cardoso. ‘Varios estudos orientaram-se nessa diregdo, privilegiando o estu- do das ideologias constitutivas tanto dos movimentos sociais do século XIX, a exemplo da Revolugao Praieira, estudada por Isabel Marson, quan- to do pensamento social autoritario, como o de Azevedo Amaral, discu- tido por Adalberto Marson, ¢ ainda veiculada pelos jornais de grande circulagao, como no caso dos estudos de Arnaldo Contier e Maria Hele- na Capelato.? Numa perspectiva marxista bastante sofisticada, esses tra~ balhos detém-se na complexidade da analise da icieologia, apontando para sua dimensio instituinte, mais do que reflexiva. Na virada da década, surgia, também a partir do centro paulista, outro trabalho renovador, focalizando um momento histérico tradicio- nalmente consagrado na narrativa histérica brasileira, a Revolugaio de Trinta. Refiro-me ao Siléncio dos vencidos, de Edgar de Decca (1981). Mesmo que localizado num campo historiografico de inspiragao grams- ciana, © estudo apontava para os posteriores desdobramentos conceitu- ais realizados em nossa historiografia, a partir da incorporagao da anali- se arqueo-genealégica do discurso proposta por Michel Foucault ¢ das discussdes levantadas por Walter Benjamin (1982), nas Zeses sobre filo- sofia da histéria, Questionando a temporalidade que localiza uma profunda ruptura na historia do Brasil no ano de 1930, o autor procura evidenciar como se constitui o imaginario da Revolugao de Trinta, através do silenciamento do conflito capital/trabalho e da produgao do siléncio da classe opera- tia, no final dos anos 20, por uma violenta repressaio politica. Busca-se, Anos 90 75 neste estudo, ndo cxatamente trazer a voz dos vencidos para 0 campo da historia, mas desvendar os mecanismos discursivos através dos quais se processa o silenciamento dos pordedores da luta politica em torno dos acontecimentos politicos de 1930, definidos como Revolug&o de Trinta. © autor analisa a produgao do campo discursivo a partir do qual se es- trutura a meméria € a historiografia da Revolugao de Trinta. possibilita- da pela vitéria do discurso do vencedor e da constituigao de sua memé- tia particular ¢ excludente como memoria oficial e objetiva. Aqui, Dec- ca aponta para a produgdo da exclusao nas formagées discursivas, como sofisticada estratégia da dominagao burguesa. A HISTORIA SOCIAL E A EMERGENCIA DO SUJEITO Este estudo marcou um momento de grandes mudangas ¢ de acele- rada arrancada da produgao historiografica, que se seguiut ao encontro das propostas extremamente renovadoras de E. P. Thompson (1988), tra- zendo nao sé um novo conceito de classes sociais, mas toda uma énfase Nos aspectos culturais ¢ subjetivos antes ignorados. Ao lado de outros conhecidos historiadores marxistas reunidos em torno das Propostas da Social History anglo-americana, 9 historiador inglés reforga a ruptura com a produgao marxista anterior e realiza uma instigante renovagao concei- tual no interior deste campo epistemologico: num Primeiro momento, ao denunciar o estruturalismo da produgao marxista anterior, predominan- te nos anos 60 ¢ 70, em que os sujeitos quase néo aparecem, ou apare- cem apenas determinados, sem ago, inertes ¢ sem rosto, definidos por sua insergao na infra-estrutura socioeconémica. Reivindicando a presenga ativa dos sujeitos politicos, a ago social ¢ a interferéncia criativa dos agentes historicos, o historiador inglés afirma que “as classes se fazem, tanto quanto sao feitas” e, por seu lado. contribui para a critica do sujei to universal, tal qual € construida pela produgiio historiografica. Seu li- vro, A formagito da classe trabathadora na Inglaterra, publicado inici- almente na década de 60, é traduzido em meados dos anos 80, no Bras! conquistando um grande sucesso nacional. Num segundo momento, a revolugao thompsoniana se faz sentir na maneira pela qual o historiadar inglés propde uma inversiio na leitura dos processos historicos, a exemplo da Revolugdo Industrial, vista como efei- to mais do que como ponto de partida. Atentando Para as transformacdes na forma de representagao do tempo, que de tempo da natureza passa a ser percebido como tempo do mercado, entre os séculos XIII ¢ XVIL 76 Anos 90 Thompson (1979) analisa a constituigao de um novo imaginario social que permite a difuusdo das inovagées tecnolégicas ¢ da propria industria~ jizago na Inglaterra no século seguinte. Assim, ao contrario do tradici- ‘onal procedimento teérico-metodolégico que assume a infra-estrutura econémica como lugar de inteligibilidade da histéria, o historiador in- gigs busca no imaginario a condig&o de possibilidade da mudanga soci- oeconémica ¢ tecnolégica. Cornelius Castoriadis (1986), que também passa a ser amplamen~ te traduzido e divulgado no Pais, fazendo a critica da burocracia de Es- tado, aponta para os limites do conceito de ideologia ¢ propde o de ima gindrio social, ampliando cnormemente as possibilidades de construgaio do conhecimento historico, Na verdade, cada vez mais os historiadores se despedem das formas estruturadas ¢ estritamente racionais do pensa~ mento ou das formas organizadas ¢ institucionais da ago politica para buscarem as manifestagdes incontroladas. emotivas, instintivas da sub- jetividade, ou ainda. as formas informais e anarquicas da ago politica coletiva. Também aqui, os dois autores se tornam importantes referénci- as tedticas ¢ politicas, ao chamarem a atengdo para o revolucionarismo de outras praticas politicas, a exemplo da liderada pelos luditas, ou des~ truidores de maquinas da primeira fase da Revolucao Industrial inglesa, questionando frontalmente categorias como as de “rebeldes primitivos” ou de movimentos pré-politicos, outrora enunciadas por Eric Hobsba- wm e amplamente accitas nas analises académicas.* ‘Varios estudos inspiraram-se nesses debates, como Trabalho ur- bano e conflito industrial, de Boris Fausto (Difel. 1977), Historia do tra- batho e da industria no Brasil, de Francisco Foot Hardman ¢ Victor Leo- nardi (Global, 1982), Nem patria, nem patrdo, de Francisco Foot Hard- man (Brasiliense. 1983), Do cabaré ao lar. A utopia da cidade discipli- nar, de Margareth Rago (Paz ¢ Terra, 1985), Trabatho, lar e botequim, de Sidney Chaloub (Brasilicnse, 1986), A vida fora das fabricas, de Maria Auxiliadora Guzzo Decca (Paz e Terra, 1987), entre outros. De modo geral, esses trabalhos analisam a condigdo operaria no cotidiano da vida social, dentro ¢ fora dos muros da fabrica, percebendo os mecanismos de controle e disciplinarizagao dos trabalhadores, que se difandem nas primeiras décadas do século. nam momento de intensa in dustrializacdo ¢ urbanizago das cidades. Contudo, enquanto os primei- ros atentam para as tendéncias politicas que dominam o movimento ope- rArio, como os anarquistas, socialistas ¢ posteriormente os comunistas. destacando sua importancia na formagio da classe operaria no Pais, os estudos de Chaloub e Guzzo buscam os trabalhadores fora do campo da Anos 90 7 militéncia, dando maior énfase as formas cotidianas da vida social. J4 Francisco Foot Hardman, em Nem pdtrianem patréo (Brasiliense, 1884), revela, num trabalho bastante inovador, o universo cultural, artistico literarto construido pelos trabalhadores & militantes, entre anarquistas e anarcossindicalistas, nas primeiras décadas do século. Progressivamente, outros sujeitos sociais foram incluidos nos es- tudos histéricos, climinando-se a hierarquia dos temas e as problemati- zagies privilegiadas. Mulheres, negros, escravos, homossexuais, prisi- oneiros, loucos e criangas constituiram uma ampla gama de excluidos, que reclamaram seu lugar na historia social do Pais. E de se notar que a curva tendeu a progredir dos setores mais estigmatizados ¢ socialmente excluidos até, mais recentemente, os grupos sociais ou profissionais eco- fomicamente melhor situados, como os aristoctatas do café, por exem- plo, cuja historia, contudo, apenas comega a ser contada (Maluf, 1995) A cnorme ampliagao do leque tematico e dos sujcitos histéricos for- gou um alargamento do campo conceitual e acentuou a busca por novas formas de operar o conhecimento. Nesse contexto, outra importante fonte de renovagao veio da redescoberta da Escola dos Annales, obscurecida pela produgao marxista desde o final dos anos 60, e da Nova Historia, que en- canta com seus novos temas ¢ abordagens, sobretudo ao longo dos anos 80 osse, 1992: Burke, 1991). Dos instintos aos sentimentos, do medo a0 amor, do cheizo as lagrimas, entre a mentalidade c a sensibilidade, pen- sadas nas miltiplas temporalidades existentes na “longa duragao”, os no- Vos temas revelam um vasto campo de pesquisas inexploradas. Ao contré- rio das mudangas revoluciondrias, da ansiosa busca marxista da luta de classes ¢ da Revolugdo, passa-se paulatinamente a olhar para as perma- néncias estruturais, para as continuidades existentes ao longo dos proces sos temporais, © que ajuda, om certa medida, a explicar as faléncias das propostas transformadoras. Duvida-se crescentemente da possibilidade de um conhecimento objetivo, enquanto a dimensdio subjetiva ¢ 0 campo sim- bolico passam a ser avidamente interrogados, EM BUSCA DA DIFERENGA Embora os préprios temas ¢ conceitos com que operavam os pes- quisadores de filiago marxista tenham sofrido uma grande renovagao, a abertura dos historiadores para os novos temas, objctos € atores que pressionam pelo “direito historia”, resulta em importantes deslocamen- tos tesricos ¢ impde a busca de novos conceitos ¢ formas de pensamen- 7B Anos 90 to que déem conta de pensar diferentemente no campo historic, Nesse movimento, percebe-se que varios dos temas pesquisados — como a his, toria do cotidiano, dos sentimentos e dos afetos. da crianga ¢ da familia, da prisdo ¢ de outras instituigées, do corpo ¢ da sexualidade — nao sao totalmente novos, no entanto, passam a ser renovados através das ques- tes colocadas e das novas interpretagGes a que so submetidos. Alem disso, na busca de um “pensamento da diferenga”, Foucault irrompe como um furacdo, ao longo dos anos 70, ao lado de outros pen- sadores como Claude Lefort, Cornelius Castoriadis, Walter Benjamin, provocando amores c édios, fortes adesdes e infinitas contestagdes, so- bretudo dos que reclamam a luta das classes como motor da histéria.* Subverte irremediavelmente o universo mental e conceitual dos histori- adores. Afirmando a positividade do poder, dos micropoderes que engen- dram individualidades, que produzem 0 real, classificam os corpos ¢ normatizam os gestos; chamando a atengdo para a materialidade do dis- curso € para sua dimensao de estratégia discursiva e pratica instituinte; atentando para os modos de subjetivacao e para a cultura de Si, 0 filéso- fo desloca 0 sujeito da centralidade que ocupa no pensamento ocidental eabala nossos alicerces. Nao podemos mais fazer histéria’ trangiiilamente, ou Ingenuamente melhor dizendo. Enfim, disse ele: de que valeria a obstinagao do saber se ele assegurasse apenas a aquisigao dos conhecimentos endo, de certa maneira, e tanto quai fo possivel, o descaminho daquele que conhece? Existem momen. fos na vida onde a questo de saber se se pode pensar diferente. mente do que se pensa e perceber diferentemente do que se ve & indispensdvel para continuar a olhar ou a refietir. (1984) Desde ento, nao podemos mais falar em totalidade historica, em “realidade objetiva”, em determinagées fundamentais da infra-estrutura econdmica sobre tudo o mais desavisadamente, nem podemos deixar de pensar diferentemente o documento. Nesse momento, nos damos conta de que o historiador trabalha primeiramente com a produg&o dos discur- Sos, com interpretagdes, com mascaras sobre mascaras ¢ que a busca da objetividade e de uma suposta esséncia natural é mais uma ilusdo antro- pol6gica. Nao mais fatos, no mais os objetos e os sujeitos no ponto de partida, mas os discursos ¢ as Praticas instituintes produtoras de real, como afirma Paul Veyne, Nao apenas a historia da razio, mas ada lou. cura, ndo apenas a historia social dos prisioneiros, mas as formas pelas quais a prisdo emerge como forma punitiva considerada verdadeira, ne~ Anos 90 79 cessaria ¢ universal; ndo a historia da sexualidade ao longo da histéria, mas a de uma problematica relagdo com 0 sexo. marcada pela emergén- cia de um “dispositivo da sexualidade” no mundo vitoriano, regulando ¢ normatizando os individuos © scus comportamentos: ndo objetos pron- tos ¢ acabados evoluindo ao longo da histéria do progresso ¢ da razao, mas praticas discursivas ¢ ndo-discursivas constituidoras ¢ instituintes ‘Em 1978, é publicado o pioneiro estudo hist6rico do filésofo Ro- berto Machado, Danagdo da norma (Graal. 1978), em que se Ié genea- logicamente a historia do Brasil colonial, percebendo-se ai os primei- ros sinais da emergéncia da sociedade disciplinar. O ano de 1979 as- siste a publicagao do trabalho histérico do psiquiatra Jurandir Freire Costa, também ex-aluno de Foucault, Ordem médica e norma familiar (Graal, 1979). desvendando o estabelecimento da alianga entre a familia © Estado e 0 poder médico ao longo do século passado. Vale ressaltar que esses trabalhos foram recebidos pelo mundo académico com um sentimento misto de estranhamento pela cnorme novidade teérica e de perplexidade, pois, embora de grande qualidade em termos de pesqui- sa histdrica ¢ inovacdo tematica, haviam sido produzidos fora da co munidade dos historiadores. Um novo olhar sc preduzia sobre a hist ria do Brasil, apresentando uma documentagao pouco conhecida pelos historiadores: teses médicas da Faculdade de Medicina da Bahia e do Rio de Janciro, ou documentos de prisées, hospitais ¢ asilos ¢ regula~ mentos escolares. Um novo campo se constituia, das margens para o centro das pesquisas histéricas, evidenciando 0 quanto o discurso mar- xista de interpretaciio histérica, atento aos modos de produgao ¢ estru- turas sociais, havia envelhecido. Aqui nao apenas cmergia a tematica da normatizagéio ¢ medicalizagao da sociedade, como inumeras fontes documentais, absolutamente inexploradas ¢ despercebidas pelos his- toriadores, vinham a tona, trazendo espanto e desconforto, ‘0 passo seguinte foi a prolifcragao dos estudos foucaultianos das relagdes microfisicas do poder no Brasil, com a publicagio de Do caba- ré.ao lar A utopia da cidade disciplinar (Paz ¢ Terra, 1985), ja citado, O espelho do mundo - Juquery, a histéria de um asilo (Paz c Terra, 1986), de Maria Clementina P. da Cunha, Sacralizacéio da politica, de Aleir ‘Lenharo (Papirus, 1988), ¢ Meretrizes e doutores, Saber médico e pros- tituigdo no Rio de Janetro (Brasiliense, 1989). Em Do cabaré ao lar, trabalho as formas da disciplinarizagao da vida social dentro ¢ fora das fAbricas. a construgiio do mito do amor ma- temo, 0 seqiiestro da crianga no interior das escolas ¢ a desodorizagao do espago urbano, como temas destacados para pensar a projegdo bur~ 80 Anos 90 guesa sobre as classes trabalhadoras, nas décadas iniciais do s¢culo. Pro- curo, ainda, perceber como os dominados resistiram ao encontrar no anar- quismo a linguagem politica capaz de lhes permitir formular um projeto radical de transformagao social. Assim, os anarquistas, como tendéncia dominante do movimento operario brasileiro no periodo, apontam para a autogestdo do trabalho nas fabricas. para a construgao de uma nova familia, baseada em uniées livres, defendendo a emancipagao das mu- Iheres ¢ a organizacao libertaria da cidade. Alcir Lenharo focaliza 0 discurso veiculado durante o periodo di- tatorial do Estado Novo, no Brasil, entre 1939 e 1945, apontando para as formas de construgao do lider politico Getilio Vargas. tido ainda hoje como “pai dos pobres” ¢, ndo raro, reverenciado pela meméria oficial ¢ pelo senso comum por seu paternalismo. Numa perspectiva bastante ino- vadora, trabalha a disciplinarizagao do corpo pelo poder politico, atra- és dos programas de educagiio e propaganda langados a juventude € tam- bém a partir da construgao da politica como espago sacralizado. Mais recentemente, outro livro marca fortemente a presenga de Foucault na historiografia brasileira. Trata-se de A invengéo do nor- deste e outras artes, de Durval de Albuquerque (Cortez, no prelo), que apresenta o nascimento dessa importante regido brasileira, como con- figuraco discursiva e politica, associada 4 questo da seca. tal como foi formulada pelas elites regionais. Para além dos estudos sobre as formas de normatizagao dos individuos, esse trabalho aponta para as relagdes de poder constitutivas dos discursos instauradores dos para- metros geograficos, histéricos e regionais que difundem e cristalizam, no Pais, a imagem do Nordeste como lugar do atraso rural, do calor abafado e da violéncia. ‘Na verdade, nao apenas a microfisica do poder foi lida a partir das formulagées foucaultianas. Ja em suas ultimas obras, o filésofo deslo- cava suas andlises chamando a atencZo para as questées éticas ¢ estéti- cas da subjetivagao. Fundamentando-se nele ¢ em outros autores pos- modemos, como Deleuze e Guattari, os historiadores procuraram histo- ricizar as praticas desejantes e os processos de desterritorializagao vi- venciados na modernidade brasileira. Nesse sentido, procuro pensar as formas de subjetivagao presentes na cultura do bordel, em Os prazeres da noite. Prostituigdo e cédigos da sexualidade feminina em Sdo Paulo. (1890-1930) (Paz e Terra, 1991). Para além da medicalizagao das sexu- alidades insubmissas e do controle sobre o corpo feminino, trata-se, nesta perspectiva, de explorar as formas alternativas de sociabilidade e de sub- jetivagao vivenciadas na experiéncia do desejo. num momento de inten- Anos 90 81 sa modernizagdo da cidade. Nesta diregao, o recente estudo de Antonio Paulo Benatti, O centro e as margens. Prostituigdo e vida boémia em Londrina, 1930-1960 (Curitiba: Aos Quatro Ventos, 1997), amplia a mensio da anilise das sociabilidades némades e periféricas, apoiado em. ampla pesquisa documental, num momento particularmente importante da vida da cidade de Londrina, no estado do Parana, Incorporar a dimensio da producdo da subjenvidade como espa- go de analise tem sido um enorme desafio para o historiador, acostu- mado desde muito a trabalhar com figuras sociais e sexuais bem defi- nidas, ou com fenémenos antes considerados acabados e nitidamente desenhados. Na verdade. as discussdes em torno da histéria das mu- heres, do corpo ¢ da sexualidade propiciam toda uma série de trans- formagées tematicas ¢ tedricas, forgando-nos a buscar novas frentes conceituais, mais elasticas ¢ flexiveis. HISTORIAS DE EVA E ADAO A entrada massiva das mulheres no mercado de trabalho ¢ a cres- cente pressio do movimento feminista afctam profundamente os estu- dos histéricos também no Brasil. Contudo, a visibilidade que ganham as mulheres como agentes histéricos, a partir dos anos 70, com o trabalho de Heleicth Saffioti, Mito e realidade: a mulher na sociedade de clas- ses, ocorre inicialmente a partir do padr&o masculino da historia social,

Você também pode gostar