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# RICHARD SENNEIT a - ODECLINIO : DO HOMEM PUBLICO AS TIRANIAS DA INTIMIDADE Coppa © HTH TE by Rid ened The Pll of able Man sae Bseaderia Bohs (932), de Osa Shimmer ‘Adelina Bowpar Poul Cit de Melo Aric: nw! Ei Zale (ea din i, a0 02 Bose wT {an Curae Sal 32 5 Hem Den Srp 88 6 ie Soe 32 mm “Todos os direitos desta edigao reservados & ua Bandera Paulista, 702, 32 '04532-002 — Sto Pavlo ‘Telefon: (11) 3167-0801 ax: (11) 3167-0814 ww companiadasletas.com br Para CR. H, CAPITULO 11 O FIM DA CULTURA PUBLICA Uma das maneiras de se retratar o passado é através de imagens do surgimento e do dectinio de um modo de vida determinado. Essas ima- gens produzem naturalmente um sentido de saudosismo, que € um sentimento perigoso. Enquanto ele produz simpatia para com o pas- sado, € dessa maneira, uma certa introvisio (insight), esse saudosismo induz a uma certa resignagao diante do presente e, desse modo, a uma certa aceitagao dos seus males. Nao compus esse quadro do surgimento edo declinio da cultura piblica secular a fim de suscitar saudosismo, © sim para criar uma perspectiva a respeito das crengas, das aspiragdes ¢ dos mitos da vida moderna que parecem ser humanos, mas que de fato sho perizosos. ‘A crenga hoje predominante & que a aproximagdo entre pessoas & tum bem moral. A aspiragio hoje predominante é de se desenvolver a personalidade individual através de experincias de aproximagao ¢ de calor humano para com os outros. O mito hoje predominante & que os males da sociedade podem ser todos entendidos como males da impes soalidade, da alienagio e da frieza. A soma desses trés constitui uma ideologia da intimidade: relacionamentos sociais de qualquer tipo sto reals, criveis e auténticos, quanto mais préximos estiverem das preo- ‘upagées interiores psicoldgicas de cada pessoa. Esta ideologia trans- muta categorias politicas em categorias psicologicas. Essa ideologia da intimidade define o espirito humanitério de uma sociedade sem deuses: calor humano é nosso deus. A histéria do surgimento e do dectinio da cultura pablica faz com que, no minimo, esse espirito humanitério seja Posto em questo. Acrenga na aproximagaio entre as pessoas como um bem moral é em verdade, o produto de um profundo deslocamento que 0 capita: a7 lismo-e credibilidade seevlar produriram no sécvlo passado, Por gay, sa desse deslocamento, as pessoas procuraram encontrar significagans pessoais em situagdesimpessoais, em objetos © nas propria condigney objetivas da sociedad, Nao podiam encontrar taissignificagdes; 4 mes dda que © mundo se tomou psicomérfico, tornou-se também misty cador. As pessoas tentaram, portanto, fugit e encontrar nos dominigy privados da vida, prineipalmente na familia, algum prineipio de ordem na pereepeo da personalidade. Assim, o passado construta um desejo seereto de estabilidade naquele desejo aberto de aproximagio entre sx res humanos. Ainda que fenhamos nos revoltado contra 0 rigor sexual severo da familia vitoriana, continuamos a sobrecarregat as nossas re- lagoes de proximidade com os outros com esses desejos sectetos de se. guranga, de repouso e de permanéneia, Quando as relagdes no con. Segtiom suportar essa carga, concluimos que hi algo de errado com relacionamento, ao invés de reconhecermos 0 que hi de errado com ag expectativas nfo declaradas. Chegar a um sentimento de aproximacao ‘com os outros ocorre, freqilentemente, apés os havermos testado; 6 relacionamiento € ao mesmo tempo proximo (close) e fechado (closed) Se se transforma, ¢ é preciso que se transforme, hi um sentimento de confianga traida. A proximidade sobrecarregada pela expectativa de estabilidade torna a comunicasio emocional — penosa como ela 6 — ainda um passo mais dificil. Como pode a intimidade, nesses termos, realmente ser uma virtude? A aspiragaio de se desenvolver a personalidade através de expe rincias de aproximagao com outros tem uma pauta similar. A crise da cultura pablica do diltimo sécula nos ensinou a pensar na aspereza, nos constrangimentos ¢ nas dificuldades que constituem a esséncia da con digio humana na sociedade como arrasadares. Podemos nos apro ximar deles por meio de uma espécie de atitude espectadora silenciosa, passiva; mas desafis-las, e nos emaranharmos nelas, é pensado como 6 prego para nios desenvolvermos. O desenvolvimento da personalidade hoje em dia o desenvolvimento da personalidade de um refugiado. Nossa ambivaléncia fundamental para com o comportamento agressive provém dessa mentalidade de tefugiados: a agresséo pode ser uma ne- cessidade nos negécios humanos, mas nds a pensamos como um trago pessoal abominével. Mas que tipo de personalidade se desenvolve atra vés das experincias da intimidade? Uma tal personalidade se moldara na expectativa, se nao na experitneia, da confianga, do afeto, do com- forto. Como pode ela ser suficientemente vigorosa para se movimentar ‘num mundo fundado na injustiza? Sera verdadeiramente humano pro ‘por a seres humanos a maxima de que suas personalidades “se desen- ‘volvem", que eles se tornam “mais ricos” emocionalmente, na medida 318 emaue aprendam aconfiar, a ser abertos, a partilhar, a evitar a mani pulagio dos outros, a evtar os desafios agressivos para abter eondligdes Fciais, 08 & minar essas Condigdes para proveito pessoal? Ser humano formar eus brandos para um mundo 4spero? Como resultado do imen- sp temor diante da vida pablica que atacou o século passado, resulta hoje um senso enfraquecido de vontade humana. E por fim, a historia da vida piblica trax baila a mitologia construfda em tomo da impessoalidade enquanto um mal social. Co- -ando com a quebra do equilibrio entre o privado eo piiblico cau- tide pelo movimento dos wilkesistas, amplamente expostas ino con- trole que Lamartine exercia sobre 0 proletariado parisiense, a mito- Jogia segundo @ qual homens sto mais importantes do que medidas (para wllizarmos a expressio de Junius) revela-se realmente como uma reccita para a pacificagio politica. A impessoalidade parece definir um panorama de perda humana, uma total auséncia de relacionamentos, hhumanos. Mas essa propria equagao da impessoalidade com a prépria sacuidade eria a perda, Em resposta ao medo da vacuidade, as pessoas concebem 0 politico como um dominio em que & personalidade sera Geclarada vigorosamente. Assim, ele se tornarao os espectadores pas- sivos de uma personagem politica que Ihes oferega suas intengdes, seus sentimentos, mais do que os seus atos, para a consumagiio deles. Ora, quanto mais as pessoas conceberem o dominio politico como a oportu: nidade para se revelarem umas as outras, compartilhando de uma per sonalidade comum, coletiva, tanto mais serio desviadas do uso de sua fraternidade para transformarem as condigdes sociais. Manter a comu ridade se torna um fim em si mesmo; o expurgo daqueles que real mente no pertencem a ela se torna a atividade da comunidade. Um prinefpio para se recusar a negociar, para se expurgar continuada- mente 0s forasteiros, resulta do desejo supostamente humanitario de apagar a impessoalidade nas relagdes sociais. E, na mesma medida, esse mito € autodestrutivo. A procura pelos interesses comuns € des ‘ruida pela busca de uma identidade comum. Na auséncia de uma vida piiblica, esses ideais supostamente hu: manos passaram a dominar. Por certo, tais erengas doentias nao come garam quando o pablieo terminou: a propria crise na vida pablica en: gendrou-as no século passado. Assim como a cultura pablica do séeulo XIX estava ligada 8 do Muminismo, a atual auséncia de crenga na “pur blicidade” (publicness) esté ligada & sua confusio no séeulo XIX. A conexio é dupa. Falar do fim da vida péiblica é primeiramente falar de uma conse- giéneia, extraida de uma contradigao na cultura do século pasado. A Personatidade em piblico era uma contradi¢ao em termos: levada as 319 llimas conseqiiéncias, destruia 0 termo piblico. Por exemplo, torna, ra-se logico, para as pessoas, pensar que aqueles que podiam ativa, mente expor suas emogdes em piiblico, fossem artistas, fossem pol ticos, eram homens de personalidade superior e especial. Tais homeng m poder controlar, mais do que incluf-ta em sua interagao, a pigs {ia diante da qual se apresentavam, Gradvalmemte, a platéia perdeu 4 {é em si mesina para poder julgé-los; tornou-se espectadora, mais qa que testemunha. A platéia perdera, assim, um sentido de si mesme como forga ativa: como “pablico”. Uma vez mais, a personatidade om Piiblico destruia © pUblico, tornando as pessoas temerosas de trairem, suas emogSes involuntariamente diante dos outros. O resultado foi uma tentativa cada ver maior de se retrair de todo contato com os outros, de se proteger pelo siléncio, até mesmo de parar de sentir a fim de nag demonstrar sentimentos. 0 ptiblico ficou, assim, esvaziado daquetas pessoas que desejavam ser expressivas nele, quando os termos da ex. pressao se deslocaram da apresentagao de uma mascara para a reve lacdo da personalidade de alguém, do rosto de alguém, atras da mascara que esse alguém usa no mundo. Falar do fim da vida piiblica, em segundo lugar, é falar de uma recusa. Recusamos ver qualquer valor, qualquer dignidade, na repres sfio que o mundo vitoriano se impunha conforme a confusto entre o comportamento pablico e a personalidade se tornava mais aguda, Assim mesmo, tentamos nos “liberar” dessa repressio intensificando 8 termos da personalidade, sendo mais diretos, mais abertos € mais auténticos em nossas relagies uns com os outros. Ficamos confusos quando essa aparente libera¢o produz uma angdstia semelhante Aqucla que sentiam os vitorianos em seus esforgos repressivos para criar uma ordem emocional. Recusamos, também, que deva haver quais. quer barreiras na comunicagao entre as pessoas. A lbgica toda da tec- nologia das comunicagées do século XX foi determinada por essa aber- tura de expressio. E ainda assim, apesar de termos venerado a idéia da facilidade de comunicagao, ficamos surpresos com o fato de que a “mi dia" resulte numa passividade ainda maior da parte daqueles que S40 (os espectadores. Ficamos surpresos com o fato de que, sob condigdes de passividade da platéia, a personalidade se torna cada vez mais uma questo no ar, especialmente em termos de vida politica. Nao conec- tamos nossa crenga na comunicabilidade absoluta com os horrores dos meios de comunicagao de massa porque recusamos a verdade bisica que uma vez deu forma a cultura piiblica. Uma expressao ativa requer uum esforgo humano, e esse esforgo s6 pode ser bem-sucedido na me- dida em que as pessoas limitem aquilo que expressam umas as outras. Ora, uma vez mais, em termos puramente fisicos, recusamos quais- 320 quer limitages na movimentacao péblica na cidade, inventamos uma {ecnologia de transporte para facilitar essa movimentagio pessoal abso: uta, e ficamos entiio surpresos com 0 fato de que o resultado disso & 0 entorpecimento da cidade enquanto um organismo, Os vitorianos lu taram contra a idéia do eu sem limites; era a propria esséncia do des contentamento produzido pela confusto entre 0 piblico e o privado. [Nésapenas recusamos, dessas varias maneiras, as limitagdes do eu. Mas recusar nao & apagar: de fato, os problemas se tornam ainda mais in- tratéveis, porque nao esto mais sendo confrontados, Através, de um ado, das contradigées herdadas do passado, ¢ de outro, da recusa do passado, permanecemos prisioneiros dos termos culturais do século XIX. Desse modo, o final do uma crenga na vida piblica nao é uma ruptura com a cultura burguesa do século XIX, e sim uma escalada de seus termos. Acstrutura de uma sociedade intimista é dupla. O narcisismo se mobiliza nas relagdes sociais, e a experiéncia da abertura de senti- ‘mentos uns para com os outros se torna destrutiva, Essas caracteris- ticas culturais também tém lagos com o séeulo XIX. Para que o narci: sismo seja mobilizado numa sociedade, para que as pessoas se con. centrem em tonalidades intangiveis do sentimento ¢ da motivagao, preciso que se cologue em suspenso um certo sentido do ego grupal Esse ego grupal consiste, em um certo sentido, naquilo que as pessoas ecessitam, desejam ou exigem, quaisquer que sejam as suas impres- soes emocionais imediatas. A semente dessa supressio do senso do exo grupal fora plantada no século passado. A revolugao de 1848 fora a primeira apariedo do dominio de uma cultura da personalidade sobre esses interesses do ego grupal, entio expressos como interesses de uma classe. Para que a Gemeinschaft destrutiva surgisse, era preciso que as pessoas aereditassem que, quando revelam seus sentimentos umas para asoutras, fazem-no tendo em vista formar um vineulo emocional. Esse vinculo consiste em uma personalidade coletiva que elas constroem através de revelagdes mutuas. E as sementes dessa fantasia de serem uma comunidade compartilhando de uma personalidade coletiva tam bbém foram plantadas nos termos da cultura do século XIX. A questio agora é: quais so os efeitos em nossas vidas desse estar enlagado a0 passado, a uma cultura cujos efeitos recusamos, ainda que nao desa- fiemos as suas premissas? A maneira mais clara para se responder a essa questo seria ver mos como cada uma das estruturas da sociedade intimista eresceu a partir dessas raizes do século XIX. A suspensao dos interesses egocén tricos cresceu e se transformou num encorajamento sistematico do ent volvimento nareisistico centralizando as transagdes sociais numa obses- 321 S20 com a motivagao. O eu no implica mais o homem como ator oy hhomem como erindor (muker): € um eu composto de intengdes ¢ a. possibiidades. A sociedade intimista inverteu inteiramente a maxing de Fielding, segundo a qual a aprovagdo ou a censura se ditigem « agies mais do que a atores, Agora, o que importa nao & tanto o que 4 pessoa fer, mas como a pessoa se sente a respeito. O compartthar de iragos de uma personalidade coletiva eresceu, tornando-se tim processg sistematicamente destrutivo & medida que o tamanho da comunidad que pode partilhar dessa personalidade se reduziu. O Caso Dreyfus envolveu a formagio do sentimento de comunidade a um nivel na. cional; na sociedade contemporanea, essa mesma formagio de toma nidade esta agora ligada ao bairrismo. O préprio medo da impessoal dade, que governa a sociedade moderna, prepara as pessoas para yerem a comunidade numa escala cada vez mais restrita. Se o eu ficara re duzido a intengdes, o compartithar desse cu fica também reduzido a excluir aqueles que so muito diferentes em termos de classe, de pol tica, ou de estilo. Interesse pela motivagao e pelo bairrismo: eis as es. truturas de uma cultura construfda sobre as erises do passado, Elas organizam a familia, a escola, a vizinhanga; elas desorganizam « ci. dade. o Estado. Embora o tragado dessas das estruturas pudesse dar um retrato intelectualmente claro, é insuficiente, creio eu, para representar 6 trauma que 0 reinado da imimidade produz na vida moderna. Muitas vvezes contra nosso proprio conhecimento, somos surpreendidos por uma guerra entre as exigéncias da existéncia social ¢ a crenga de que nos desenvolvemos como seres humanos apenas através de modos con- tarios de experiéncia psiquica de intimidade. Os sociélogos inven taram sem querer uma linguagem para essa guerra. Falam da vida em sociedade como uma questio de tarefas instrumentais: vamos & escola, vamos trabalhar, entramos em greve, vamos a assembléias, porque so 1mos obrigados. Tentamos nao investir muito nessas tarefas porque sto veiculos “inspropriados” para o sentimento de calor humano; fazemos de nossas vidas neles um “instrumento", um meio, ao invés de uma realidade onde fazemos compromissos com nossos sentimentos. Contra esse mundo instrumental, os sociélogos contrastam a experiéncia afc tiva, ou holistica (pontual), ou integrativa. Os termos de jargio sto portantes, porque revelam uma certa mentalidade, uma crenga de «que quando as pessoas si verdadeiramente sentimentais (afetiva) real mente despertas para 0 momento presente (holfstica), expondo plena: ‘mente a si mesmos (integrativa) — em suma, quando esto engajados — passam a ter experifncias que sio antagénicas diante das experi {ncias de sobrevivéncia, de luta e de obrigagdes no mundo mais amplo. 322 natural que as cenas, onde os sociéloges falam da manifestagdo dessa vida afetiva, sfo cenas intimas: a familic, a vizinhanga, a vida passada entre amigos. E necessario vermos o narcisismo e a Gemeinschaft destrutiva organizando essa guerra, dando forma a.essa luta entre relagdes instr rmentais e relacdes socais afetivas. Mas a qualidade da propria guerra pode ser trazida baila se colocarmos duas questdes, ese organizarmos nossa pesquisa em torno das respostas dadas a elas, Em que termos @ sociedade é ferida pela mensuragio generalizada da realidade social em termos psicolégicos? Ela é despojada de sua civilidade. Em que termos ou € ferido pelo estranhamento causaco por uma vida impessoal sig nificativa? Ele € despojado da expressio de certos poderes criativos que todos os seres humannos possuem potencialmente — poderes de jogo — ‘mas que requerem um ambiente a distancia do eu para sua realizagao. Assim sendo, a sociedade intimista faz do individuo um avor privado de sua arte, O foco narcisista na motivagao ? na localizagao do sentimeno comunal dé uma forma a cada uma dessas situacoes, E dificil falar de civilidade na vids moderna sem parecer ser es: nobe ou reaciondrio. O sentido mais antigo do termo conecta “civili dade" com os deveres da cidadania; hoje, a “civilidade” significa saber que anos de Cos-d'Estournel decantar ou refrear em demonstragoes politicas indecorosas e barulhentas. Para recobrar aquela significagio obsoleta de civilidade ¢ relaciond-la ao frémito da vida piblica, eu de- finivia civilidade da seguinte maneira: 6 ¢ atividade que protege as pes- soas umas das outras e ainda assim permite que clas tirem proveito da companhia umas das outras. Usar mascara é a esséncia da eivilidade. As mascaras permitem a sociabilidade pura, separada das circunstan cias do poder, do mal-estar e do sentimento privado daqueles que as usam. A civilidade tem como objetivo a prote¢ao dos outros contra se: rem sobrecarregados por alguém. Se alguém fosse religioso e acredi- tasse que o impulso vital do homem é 0 mal, ou entao se alguém to- masse Freud a sério e acreditasse que o impulso vital do homem é uma guerra interior, entdo, 0 mascaramento do eu, a libertagao dos outros de serem apanhados pela carga interior de alguém seriam um bem evidente. Mas mesmo que nao se faga sufosigdes a respeito, ou que no seacredite em uma natureza humana inata, a cultura da personalidade que surge no século e meio que passou daria a civilidade essa mesma Setiedade e esse mesmo peso. ‘Cidade” e “civilidade” tém uma raiz etimologica comum. Civi- lidade é tratar os outros como se fossem astranhos que forjam um lago social sobre essa distancia social. A cidade é esse estabelecimento hi 523 mano no qual os estranhos devem provavelmente se encontrar. A geg srafia pablica de uma cidade € a institucionalizagao da civilidade, Nop creio que agora as pessoas precisem esperar por uma transformagay maciga das eondigdes sociais, ou entdo por uma volta magica ao pas. sado, para se comportarem de modo civilizado. Num mundo semy th tuais religiosos nem erengas transcendentais, as mascaras nto sto pre, fabricadas. As misearas precisam ser criadas por enstio © err, ‘poe aqueles que as usardo, por intermédio de um desejo de viver com og outros, mais do que pela compulsio de estar perto dos outros, Quanta ins esse comportamento tomar corpo, mais vivos se tornarao a menta, lidade de cidade eo amor pela cidade. Falar de incivilidade é falar nos termos inversos. B 0 sobrecar. regar os outras com o eu de alguém. E um descenso de sociabilidade para com os outros criado por essa sobrecarga de personalidade. Po ‘demos facilmente ter em mente individuos que sio incivilizados nesses termos: so aqueles “amigos” que necessitam dos outros para entrarem dentro dos traumas didrios de suas proprias vidas, que dao pouca im. Portincia aos outros, a nio ser como ouvidos onde derramarem suas confissSes. Ou entao, podemos facilmente imaginar exemplos dessa mesma incivilidade na vida intelectual e literéria, como naquelas auto biografias ou biografias que desmudam compulsivamente cada detelhe dos gostos sexuais, hAbitos de dinheiro e fraquezas de eardter de seus sujeitos, como Se devéssemos entender melhor a vida, os escritos e as ages no mundo dessa pessoa através da exposicdo de seus segredos Mas a incivilidade também ¢ construida pela prépria estrutura da so. ciedade moderna. Duas dessas estruturas de incivilidade irao nos ocu- par: Uma, € 0 aparecimento da incivilidade na lideranga politica mo: derna, particularmente no trabalho dos lideres carismaticos. © lider carismético moderno destr6i qualquer distanciamento entre os seus préptios sentimentos e impulsos e aqueles de sua platéia, e desse modo, concentrando os seus seguidores nas motivagbes que sto dele, desvia-os 4a possibilidade de que 0 megam por seus atos. Este relacionamento entre politicos e seyuidores comegou em meados do século XIX em termos do controle de uma classe pelo ider de uma outra classe. Agora, esse relacionamento segue as necessidades de uma nova situagio de classe, uma situagio em que o Kider precisa se proteger contra ser juk gado por aqueles mesmos que ele est representando. Os meios de co municagio eletrénica desempenham um papel crucial nessa deflexa super-eapondo a vida pessoal do lider, simultancamente ao obseure: cimento de seu trabalho em seu posto. A incivilidade, que essa figura carismatica moderna corporifica, esté em que seus seguidores ficam en: 324 carregados de dar sentido a ele como pessoa, a fim de entenderem o que staré fazendo uma vez que esteja no poder — e os proprios termos da personalidade sfo tais que eles nunea podem sor bem-sucedidos nessa empresa. E incivilizado para uma sociedade fazer com que seus cida: dios sintam que um lider € erivel porque ele pode dramatizar as suas praprias motivagses. Nesses termos, a lideranga é uma forma de se ducio. As estruturas de dominagao permanecem particularmente in contestacas quando as pessoas sio levadas a eleger politicos que pa recem coléricos, como se estivessem prontos a transformar as coisas. Tais politicos estio liberados, pela propria alquimia da personalidade, de traduzir seus impulsos coléricos em agio. A\ segunda incivilidade que nos ocupard é a perversto da frater- nidade na experiéncia comunal moderna. Quanto mais estreito for 0 escopo de uma comunidade formada pela personalidade coletiva, mais destrutiva se tornaré a experiéncia do sentimento fraterno. Forasteiros, desconhecidos, dessemelhantes, tornam-se eriaturas a serem evitadas; os tragos de personalidade compartithados pela comunidade tornam se cada vez mais exclusivos. O proprio ato de compartilhar se torna cada ver mais centralizado nas decisSes sobre quem deve e quem no deve pertencer a ela. O abandono da crenga na solidariedade de classe nos tempos modernos, em favor de novos tipos de imagens coletivas, baseadas na etnicidade, ou no quartier, ou na regido, é um sinal desse estreitamento do lago fraterno. A fraternidade se tornow empatia para tum grupo selecionado de pessoas, aliada & rejeigao daqueles que nao estao dentro do cireulo local. Esta rejeigdo eria exigéneias por auto- nomia em relago a0 mundo exterior, por ser deixado em paz. por ele, ais do que exigéneias para que o préprio mundo se transforme. No entanto, quanto mais intimidade, menor é a sociabilidade. Pois este processo de fraternidade por exclusio dos “intrusos” nunca acaba, uma vez-que a imagem coletiva desse “nds mesmos” nunca se solidi fica. A fragmentagio, a divsao interna, é a prépria légica dessa frater nidade, uma vez.que as unidades de pessoas que realmente pertencem @ ela vio se tornando cada vez. menores. E uma versio da fraternidade que leva a0 fratriefdio, ‘A guerra entre a psique e a sociedade travou-se num outro front, dentro da pessoa do préprio individuo. Ele perde a capacidade de jogo e de desempenho numa sociedade que nao Ihe permite espago impes- soal onde representar. A tradigto cléssica do theatrum mundi equacionou a sociedade com 0 teatto, a agao cotidiana com a atuagao. Essa tradicao estabelece, Jesse modo, a vida social em termos estéticos,e trata todos os homens como artistas, porque todos os homens podem atuar. A difieuldade 325 com esse imaginério esta no fato de que € a-historico. A historia com, pleta da cultura do século XIX foi a de um povo que estava gradat vamente perdendo a crenca em seus préprios poderes expressivos, que, ao contririo, elevou o artista & condigto de pessoa especial, porque poderia fazer aquilo que as pessoas comuns nao podiam fazer na vida didria; ele exprimia sentimentos criveis de modo claro e livre em pi. Dlico. E ainda assim, a visto da vida social como vida estética, que rigiu o imaginario clissico do theatrum mundi, contém algo de verda- deiro. As relagdes sociais podem ser relagdes estéticas porque compar. tilham de uma riz comum. Essa origem comum reside na experiéneia infantil do jogo. O jogo nia € arte, mas um certo tipo de preparagio para um certa tipo de atividade estétiea, uma atividade que se realiza na sociedade, caso certas condigdes estejam presentes. Isto pode pa- recer um modo rebuscado de se fazer uma afirmagio simples, mas é necessario, porque muito da investigagao psicoldgica corrente sobre a “criatividade” procede com termos to generalizados que se torna di ficil relacionar a obra criativa especifica com as experiéncias especificas da hst6ria de uma vida, O jogo prepara as criangas para a experiénci da ropresentagdo ensinando-as a tratarem as convengées de comporta- ‘mento como criveis. As convengdes so regras para comportamento & distancia dos desejos imediatos do eu. Quando as eriangas aprenderem a acreditar em convengdes, entdo esto prontas a realizar uma obra qualitativa de expresso, explorando, transformando e refinando a qualidade dessas convengées. Na maioria das sociedades, os adultos imaginam e elaboram. esas forgas de representagio através dos rituais religiosos. O ritual nao € uma auto-expressio; ¢ participago numa aco expressiva, cujo sei tido Gltimo se encontra além da vida social imediata, e faz a conexdo com as verdades intemporais dos deuses. O comportamento pil dos cosmopolitas do século XVIII mostra que o ritual religioso nao ¢ SGnico meio pelo qual as pessoas podem representar. O pouf, 0 “ponto”, © discurso de jactfincia sao sinais de que as pessoas podem representar tums para as outras, com propésitos de sociabilidade imediata. Mas os termos em que o fazem sdo ainda os de uma expresso maquinada a uma distincia do eu: nao se expressar 4 si mesmas, mas ants, ser expressivas. Fai a intrusie de questiies da personalidade nas relagies sociais que pds em movimento uma forga que tornou cada vez mais dificil para as pessoas utilizarem as forgas da representagao. Esta in- trusio sobrecarregou, no século passado, o gestual expressivo para com 08 outros com uma diivida autoconsciente: seré que aquilo que de- monstroé realmente o que sou? O que eu parecia presente nas situagdes 326 impessoais, para além do poder que o eu tem de controlar, O autodis tanciamento comecava a se perder. Quando a crenga no dominio pablico chegou ao fim, a erosio de jum senso de autodistanciamento — e com ela a dificuldade de repre sentar na vida adulta — avangou um passo a mais. Mas era um passo importante, Uma pessoa nao pode se imaginar representando diante de seu meio ambiente, representando com os fatos de sua posigao na socie: dade, representando com suas aparéneias diante dos outros, porque tais condigdes agora sao parte integrante dela propria. Os problemas dos ideSlogos da classe média nos movimentos das classes trabalha: doras no final do séeulo XIX derivaram da dificuldade em nao se ter autodistanciamento; tais radicais de classe média estavam inclinados a serem rigidos em suas posigdes, para que, por meio de transformagaes em suas idéias, ndo pudessem transformar ou des-legitimar-se a si pro- prios, Nio podiam representar. Perder a habilidade de representar é perder o senso de que as condigdes mundanais sao plasticas. Essa habilidade de jogar com a vida social depende da existéncia de uma dimensio da sociedade que fica & parte, distanciada do desejo, da necessidade, da identidade intimos Que 6 homem moderno tenha se tornado um ator privado de sua arte é, desse modo, uma questio mais séria do que o fato de que as pessoas prefiram ouvir discos em vez de tocar masica de efimara em casa. A habilidade de ser expressivo est cortada num nivel fundamental, por- que & pessoa tenta fazer com que as suas aparéncias representem aquilo que ela é, para unirmos a questio da expressio efetiva a questo da autenticidade da expressio. Sob tais condigaes, cada aspecto leva de volta s perguntas: Sera que isto 0 que eu realmente sinto? Sera que quero dizer realmente isso? Sera que estou sendo genuino? O eu das motivagdes intervém numa sociedade intimista para bloquear as pes soas para que ndo se sintam livres para jogar com a apresentagio dos sentimentos enquanto sinais objetives e formados. A expresso torna se contingente debaixo do sentimento auténtico, mas a pessoa sempre 6 mergulhada no problema narcisista de nunca ser capaz de cristalizar aguilo que é auténtico em seus sentimentos. Os termos segundo os quais © homem modern € um ator sem uma arte opdem o jogo ao narcisismo. Na conclusdo deste estudo, ten- taremos trazer A baila essa oposigao em termos de classes. Na medida em que as pessoas sintam que a sua classe social é um produto de suas ualidades e habilidades pessoais, sera penoso para elas conceber 0 jogo da representacdo com as condigdes dle classe; estariam transformando- se a si proprias. Ao invés disso, especialmente nas classes que nao sio nem proletirias nem burguesas, mas desordenadamente médias, as pes- 327 a soas estio mais inclinadas a perguntar: 0 que, nelas mesmas, levou-as q ‘ocupar essa posigtio indefinida, sem rosto, na sociedade? A classe coma condigdo social, com regras proprias, regras essas que podem ser my. dadas, esté perdida de vista. As “capacitagses” de alguém determinam ‘a sua Situago; jogar com os fatos de classe se torna penoso, porque pessoa pareceria estar jogando com fatos muito proximos & naturera intima do ew Tendo explorado 0 modo como uma sociedade intimista encoraja © comportamento incivilizado entre as pessoas e desencoraja um senso de jogo no individuo, eu gostaria de terminar este livro perguntando: fem que sentido a intimidade seria uma tirania? Um Estado fascista & uma forma de tirania intimista, e o trabshe enfadonho de ganhar 4 vida, alimentar os filhos, regar a grama 6 uma outra forma; mas ne nhuma dessas formas 6 apropriada para descrever as prov liares a uma cultura onde nao ha vida piblica, CAPITULO 12 O CARISMA SE TORNA INCIVILIZADO. A civilidade existe quando uma pessoa nio se torna um fardo para as outras. Um dos mais antigos usos do “‘carisma’” na doutrina catélica estava em se definir uma tal civilidade em termos religiosos. Padres podem ser homens corruptos ou fracos; podem ignorar o verdadeiro dogma; um dia, podem querer desempenhar seus deveres religiosos, em outro dia podem estar apaticos ou céticas. Se seus poderes como padres dependessem de que tipo de pessoas eram, ou ento de como se sentiam num determinado momento, tornar-se-iam um fardo para seus paroquianos, que haviam entrado na igreja em busea de comunhao com Deus, mas coneluiram, porque o padre era desagradavel, ou nao estivesse se sentindo bem, que nilo poderia fazer contato com Deus. A doutrina do “carisma”” é um caminho em torno desse problema. Quan: do externava as palavras sagradas, “dom da graga"” penetrava no padre, de modo que os rituais que desempenhava tinham sentido, in dependentemente do estado de sua pessoa. A doutrina do carisma era eminentemente eivilizada; era tolerante diante da fraqueza humana, a0 mesmo tempo em que proclamava a supremacia da verdade religiosa, Quando 0 carisma perdeu seu sentido religioso, deixeu de ser ‘uma forga civilizadora. Numa sociedade secular, onde o “carisma" & utilizado para um Iider vigoroso, a origem dese poder 6 mais mistifi- cadora do que numa sociedade sagrada, O que faz. com que uma perso. nalidade poderosa seja poderosa? A cultura da personalidade do século- passado respondeu a essa questo, concentrando-se naquilo que a pes soa sente, mais do que naquilo que faz. Os motivos podem ser, é claro, bons ou maus, mas, no século passado, as pessoas deixaram de julgi-los dessa maneira. A simples revelagdo dos impulsos interiores de uma. pessoa tornava-se empolgante; se uma pessoa podia se revelar em pit 320 bilico e ainda controlar o processo de autodemonstragto, ela era emo. os dirigentes concentram-se em mostrar que homem fino ¢ integro cle ante. Os outros sentiam que ela era poderosa, sem saberem par que é, Se ele & bom, entao aquilo que ele esposa deve ser bom. Em politica Eis o carisma secular: um strip-ease psiquico. O fato da revelagao é g moderna, é suicidio insistir em que “voeés nao precisam saber nada «que incita; nada de claro ou de concreto é reveladlo, Aqueles que cacmy sobre minha vida privada; tudo o que precisam saber € aquilo em que sob o encanto de uma personalidade poderosa tornar-se passivos, es. acredito ¢ os programas que executarei”, Para evitar 0 suicidio, deve-se quecendo-se de suas proprias necessidades quando so empolgados, superar @ falta de habilidade em aparentar ter uma vontade puramente lider carismatico, desse modo, consegue controlar a sua platéia, mais politica. Como se dé essa deftexio a partir da credibilidade politica plenamente e de modo mais mistificador do que a antiga e eiviting para a motivagio? O politico que, concentrande as atengdes em seus doramigiea da Igreja, impulsos — su sofisticagao giscardiana ou kennedyana, sua ira ala ‘Quem quer que vivesse nos anos 1930 ¢ observasse os politicos da Enoch Powell, sua gentileza& la Brandt —, torna-se um lider plausivel ala esquerda, bem como os fascistas, teria um senso intuitivo da ince aparentando 0 comportamento espontineo de acordo com esses impul vilidade dessas personalidades earisméticas seculares. Mas ess per, s0s, e ainda mantendo 0 controle sobre si mesmo, Quando essa espon cepeiio intuitiva pode ser enganosa. Sugere que a figura carismiética ¢ taneidade conirolada se completa, os impulsos parecem reais; por idéntica a do demagogo, o poder de sua personalidade sendo tal que els tanto, o politico éalguém em quem se pode acreditar. Na vida didria pode dirigir sua platéia para a violéncia, se nZo praticada por ela pro impulso e controle parecem conflitantes: um conflito originado da pria, ao menos tolerada quando praticada por ele e por seus capangas, crenga reinante no século passado, quanto & expressio involuntéria, © que é enganoso sobre essa idéia intuitiva esti em que ele pode pre incontrolada de emoyio. Assim, o politico pode parecer um homem Parar as pessoas para acreditarem que quando a demagogia violenta ativo, mesmo que nao faza nada no seu posto. esta ausemte, em politica, o pader do carisma esta adormecido. De fato, A methor maneira de se explorar 0 earisma narcotizante € co preciso que o proprio lider nao tenha qualquer qualidade titanica, ou megar observando as duas teorias reinantes neste século sobre 0 ca- satiinica, a fim de ser earismatico. Pode ser ealoroso, familiar e doce; tisma: as de Weber e de Freud. Essas (eorias, por sua vez, fornecem pode ser sofisticado e afavel. Mus ele aplutinard e cegaré as pessoas de uma perspectiva na experigneia da politica carismatica de uma classe modo tio seguro quanto uma figura demoniaca, se puder centralizar a particular moderna, @ pequena burguesia. Precisamos observar a re- atengdo delas na questio de seus gostos, daquilo que sua mulher esti lagio da tecnologia cletrénica com esse carisma, E finalmente, para vestindo em pablico, do seu amor pelos ees. Jantard com uma familia entendermos 0 carisma secular, seré itl continuarmos a comparaga0 comum, e suscitaré um enorme interesse em piblico; no dia seguinte, entre 0 paleo € as ruas que orientou os estudos histdricos deste livro promulgard uma lei que devastard os trabalhadores do pats, ¢ esta no. Seri que o politico carismatico moderno é semelhante a uma estrela do ticia passara desapercebida diante da empolgagao causada pelo jantar rock ou a uma éiva da 6p Jogara golfe com um ator popular, e com isso passaré desapercebido o fato de que ele acaba de cortar a pensio de aposentadoria de milhoes de cidadaos. Aquilo que surgiu da politica da personalidde iniciada no século passado foi o carisma enquanto uma forge de estabilizagao da AS TEORIAS DO CARISMA vida politica comum. O lider carismatico é um agente através do qual a Politica pode entrar num ritmo regular, evitando pontos embaracosos (Ou questies divisérias ‘de idcologia m “ Um senso de algo de perigoso no alvorogo que os politicos poderiam Esta €a forma do carisme secular que devemos entender, Nio & suscitar a partir dos mais triviais aspectos de suas vidas privadas dew dramitico, ndo 6 extremn, mine 2 om che pSeete ele Noe nascimento ao estudo formal do carisma. O medo desse poder da per- cranes sonalidade dominow o pensamento de Max Weber, que foi 0 primeiro Se um politico de sucesso como Willy Brandt tiver 0 infortinio de sociglogo a isolaro termo “‘carisma” e a analisar suas origens soc um comprometimentoideolgico real, suas posigdes certo modeladas ¢ Esse esforgo ocupou Weber de 1899 até 1919, periodo durante o qual ele estava escrevendo sua obra mais importante, Economia e Sociedade. A controladas por seus subordinados, de modo que na televisio e na im- ” prensa elas percam sua forga e, portant, sua qualidade ameacadorss medida que o livto progredia, a idéia de carisma era formulada ¢ refor 330 331 mulada, até que, na abertura da terceira parte da obra, Weber dey finalmente forma a uma teoria completa. 0 termo “earisma” no aparece no texto de Freud, O Fururo de uma Tlusao, escrito na década de 1930, nem tampouco Freud far quate quer referéncia & obra de Weber. No entanto, a precaugio de litera dade em se afirmar que Freud nio se preoeupou com 0 catisma serie tum obtuso pedantismo. O tema de Freud é 0 mesmo que o de We ber: como pode uma pessoa, pela forga da personalidade, ao ingés de pelo direito adquirido ov pela promogao dentro de uma burberacia, ganhar poder e parecer ser um legislador legitimo? Ao analisar a forga da personalidade como poder politico, Weber Freud assumiram a personalidade eletrizante que tomara forma na metade do século XIX, como modelo da figura carism: historia, Uma personalidade cletrizante conseguia se tornar assim ag jogar sobre si mesma um manto de mistério. Esta “ilusio" que Freud ¢ ‘Weber viram na urdidura da figura carismiitica provinha de uma pro. funda descrenga que ambos compartifhavam. Nenhum deles acreditava que Deus, de fato, enviasse Sua Graga para 0 mundo. Quando alguém aparecia como intermedidtio da transcendéneia, portanto, sua forga pessoal deveriaser uma ilusio, preparada por forgas mundanas, tendo ‘em vista interesses mundanos. Isto significa que nenhum deles deixaria as erengas transcendentais de uma sociedade sem questionamento; ambos tentavam traduzir essas crengas em necessidades seculares que fariam com que os homens acreditassem. Uma pessoa nao precisa erer em Deus para analisar uma soci. dade religiosa, € certo; mas a relutancia de Freud e de Weber em tomar a religido com seus termos proprios criou em ambos uma ilusao toda propria. Esta ilusto estava em que a figura carismatica era alguém que se encarregava de scus sentimentos subjetivos de modo vigoroso, ¢ que cra uma figura de dominagio que agia em meio a paixdes intensas. Uma vez que a Graca religiosa era, em verdade, uma iusto, a pessoa carismatica estava em contato com o “irracional” na sociedade. Por tanto, ambos fizeram uma exclusio fatal: eliminaram da matriz ra- cional e rotincira da sociedade os desejos por uma figura carisiatica ‘Ambos poderia imaginar o intenso poder do carisma criando a ordem, ou perdendo sua forga e se tornando rotineiro; nenhum deles imaginou que o carisma pudesse ser uma forca para a trivializagio, ao invés de para a intensificagao do sentimento, e desse modo o lubrificante de um mundo racional e ordenado. ‘A falha de Freud ¢ de Weber em ver 0 carisma como forga de ‘ivializagdo era talvez inevitivel, tendo em vista onde ambos comegamn; 332 Jum escreve que carsma surge sob condgtes de distro © de feet, Mas discordam quanto ao sentido especifico de distiirbio” Re distirbio que Weber tinha em mente é 0 conflito de grupo que so poe ser resi. Nees mementos, pensava Weber as pesses ge prontss para Investiralguém com a aura do poder divin, de sao due Poss aparece como tendo aautoriéade para iar com st rtges que os outs nio podem dominar, A énfase de Weber et em timo as pessoas preciam aredtar numa figura earsmdtia, mais do se nos lementos da propria personalidad do Ide, que fica dee rr candidato provivel a essa eacolna. A eautela de Weber dante das figuras carsmtias ce segue logamente wis, pois a preseng dels Boresaver ecionalment Enquanto Webcr via of momentos de distirbio como eaporé ico, Futuro de wma Tso de Freud vino distibio como o estado fe natrera ne drogho do qual as massas da espée humane esto Sorstntementevagucando, Freud coloea-ocin inguagent vigores (0) a8 massas sto preguigosas ¢ sem inteligénela, nao tem © amor como reniincia instintiva, nao deve ser convencidas da sua inevitabilidade por argumentos, © os individuos apoiam-se uns aos outros dando livre jogo a seu desregramento. Uma pessoa sensata saberia que a auto-recusa e a reniincia sto os tinicos meios pelos quais ele ou ela poderiam sobreviver em companhia deoutros homens e mulheres que tém necessidades conflitantes. Isto, as ‘massas nllo podem chegar a ver por si mesmas.? ‘As massas necessitam, portanto, ser reguladas por uma minoria ou por um tinico lider: E somente pela influéncia de individuos que podem servir de exemplo, € ue as massas reconhecem como seus lideres, que elas podem ser indu: 2idas a se submeter aos labores e & reniincia de que depende a existéncia da cultura, Agora, o problema esta em: como o lider consegue “induzi-los” a re nunciar a suas paixdes? E aqui que Freud introduz a ilusio caris: mitica.’ A rentincia é tarefa da religidlo. A religizo gera a crenga de que as leis de sobrevivéncia e justica na sociedade provém de uma fonte sobre: humana, estando, portanto, além da razio € do questionamento hu- manos. Os terrores do estado de natureza so substituidos pelo terror a ira divina, Mas a presenga dos deuses deve ser diretamente sentida no mundo; sero acreditiveis apenas se se mostrarem através de pes 333 soas extraordinatias, aravés de lideres. A “Graga’ do lider the confere poder emocional sobre as massas; apenas os lideres que parecem dispee dessa Graga podem exigir que os homens renunciem a suas piores pa xdes, podem pedir-Ihes que sejam bons, ao invés de obediéncia. Para Freud, portanto, os lideres earismiticos devem sempre estar presentes na sociedade. pois sem eles as massas €Stara0 sempre prontay para mergulhar a sociedade no caos. Para Weber, tai lideres ocorrem esporadicamente, pois somente em determinadas épocas é que a soci dade mergulha em desordens que cla sente nao poder resolver por « mesma, requerendo ajuda do Além. A partir dessa diferenca entre ay duas teorias, surge uma cisao profunda: Freud acredita que a figura carismética € um ditador emocional criando ordem; Weber acredita que, uma ver que ele aparega em cena, olider carismitico piora o caos, Oesus de Weber é andrquico; por exemplo, ele eleva todos 0s contlitos de grupo a um nfvel simbélico mais alto, uma luta entre grupos que sto esclarecidos € grupos que nio o sio. E nesse estado aquecido, os se. uidores de um lider carismatico podem voltar-se para ele a qualquer ‘momento: apenas exigir-thes ‘A autoridade carismética & naturalmente instivel. O portador pode per. ero seu carisma, pode se sentir “ubardonado pelo seu Deus” (...) pode parecer a seus seguidores que "seus poderes o abandonaram”. Entao sua missio chega ao fim, © a esperanga aguarda e procura por um novo portador.¢ Por que o carisma inevitavelmente vacila? Ao responder a essa questio, Weber recorre novamente a imagem da ilusto, Os seguidores de um lider carismatico esperam que ele Ihes “traga bem-estar”, mas o lider carismatico ¢ ineapaz de traduzir suas intengdes de fa26-lo em atos de bem-estar, porque sua aura é apenas uma ilusio comparti thada; assim sendo, ele deve eair ¢ acabar sendo descartado como um impostura. Weber conta a hist6ria do imperador chinés que diante das enchentes respondeu com oragies aos deuses; como as enchentes nlo pararam, seus seguidores o olhtaram com) uma pessoa igual a qualquer outra, e 0 puniram por fraude e porque havia usurpado o poder, Esta € a contradigao interna da ilusdo carismatica. Mas, diz We- ber, as leis da racionalidade econdmica também fazem o carisma va cia: Cada carisma esta na rota para ter uma vida emocional turbulenta, que rnlo conhece ravioualidade eoundrniew sara desacelerar & morte por su focamento sob o peso dos interesses materiais; cada hora de sua existén cia o leva para mais perto de seu fim, 334 Amedida que a sociedade “reflui de volta aos eanais das rotinas do dis. a-dia”, as pessoas perdem o desejo de ver intervengdes divinas nas {questdes humanas. O argumento de Weber é que o tédio ¢ o espirito de rotina matam 0 desejo de se ter um lider earismético. O carisma nao surge como um alivio fantasiado que as pessoas necessitem ter diante de suas tarefas mundanas.$ Quando um lider carismatico ¢ destruida, argumenta Weber, © fenémeno do carisma, enquanto tal, nao desaparece. Torna-se “rotini- zado", com o que ele quer dizer que o posto ov a posigio do lider carismatico recebe reflexo do entusiasmo que estava ligado a sua pes soa. E somente nesse ponto da transferéncia a partir do homem que declinou, para o posto que ocupava, que o carisma pode ser pensando como uma forga de estabilizagao; o posto suscita algum sentimento porque as pessoas guardam a lembranga do grande homem que 0 ocu- pava, e desse modo o posto adquire uma certa legitimidade. Mas essa “pos-vida” do carisma é apenas um eco esmaecido da paixao que cir cundava 0 lider, ¢ enquanto 0 lider estiver vivo a forga do earisma & disruptivae anarquica. Freud observa a relagdo entre a ilusdo e a ordem na sociedade, de um modo que Weber ni fizera, "“Chamamos uma crenga de ilustio” escreveu Freud: quando o preenchimento do desejo um fator proeminente em sua moti vagio, enguanto independente de suas relagdes com a realidade, do ‘modo como a propria ilusio faz Uma ver que as massas no desejam ter suas paixdes instintivas domi- nadas, que tipo de desejo é esse, que o lider carismatico satisfaz para clas por ilusao, preparando um desejo de ordem da parte delas?® Freud respondeu a essa questio com uma explicagao que hoje soa como todos os chavoes da psicandlise reunidos em um s6. Cadacrianga, ‘num determinado ponte de seu desenvolvimento, substitui a mae como primeiro parente a amar pelo pai. A erianga é ambivalente a respetto dessa substituigdo: ela teme pai na mesma medida em que o quer € 0 admira; ela ainda pensa no pai como um forasteiro perigoso, um in- truso entre mae e filho. Quando a erianga eresee e adentra o mundo exterior & familia e hostil, ela re-inventa os tragos do pai, ela cria para si mesma os deuses, a quem teme, a quem procura ser propicia ea quem el, nio obstante, confia a tarefa de protegé-la. Esta ilusdo é carismética: 0 amor-temor pelo pai é 0 desejo que o lider satisfaz, A religito € a organizagao social da paternidade.? 335 a: Tais idéias de repetigao e de reinvengio tornaram-se to fami liares que o vigor da obra de Freud fica freqiientemente obscurccidg com isso. Freud nos pede para acreditarmos que a crenga nos deuses esti em ago em qualquer sociedade, caso seus simbolos religiosos pa tentes sejam profundamente esposados, ou simplesmente permitidos enquanto fiegdes polidas, &s quais ninguém presta muita atengao, oy entao sendo ativamente condenados. A Espanha de Filipe Il, a Ame rica de Kennedy, a China de Mao, sto todas sociedades religiosas, ¢ todas da mesma maneira, Um deslocamento infantil governa todas as trés, Todas as trés tém lideres carismaticos. La onde Weber nos pede para tratar o carisma como um evento historieo, Freud nos pede para considerd-lo como uma constante estrutural e funcional. O sucesso de um Estado earismatico, para Freud, esta em que o lider no promete bbem-estar, mas uma chance de voltar a ser psicologicamente depen. dente, eomo se era quando crianga, © contraste entre a disciplina que Savonarola impunha aos flo rentinos e a disciplina que Lamartine impunha aos parisienses, descrito no Capitulo 10, sugere aquilo que & obscuro em cada uma dessas visdes slobais. A crenca em valores transcendentes ou imanentes faz muita diferenga no tipo de ordem que um lider produz na sociedade. Os se. suidores de Sayonarola sao “dependentes” dele, & verdade, mas o re sultado de sua dependéncia era a agiio, uma forma teatral de agi; ao se tornarem obedientes a ele, no se tornavam por isso passivos. A “renineia’” numa cultura governada por termos transeendentes de sig. nificagao é mais do que deixar de agir de modo raim ou destrutivo; & agir de modo novo, mais de acordo com os valores que transcendem a imundicie do mundo secular. Mas ainda, o papel de Savonarola como pai espiritual nao era o de um mestre. Ele era apenas instrumento de uum Poder externo ao mundo, e desse modo sua ascendéncia sobre seus sujeitos nao era total. ‘A teoria de Weber nao pode explicar nem por que Savonarola dera energia a seus Seguidores, nem por que Lamartine conseguia pack ficar os seus. O padre e o poeta criaram ambos uma disciplina na mul- tidao, por meio do carisma, mas uma disciplina de tipos opostos, num ‘caso ¢ no outro. Embora estivesse falando ostensivamente a respeito de religiao, o modelo que Freud utiliza para definir um lider carismatico tinha os mesmos moldes do carisma secular eorporificado por Lamar- fine, A dependéncia sem referéncia a padrées externos de verdade, a dependéncia através da vergonha, a dependéncia que produz. a passi vidade: todas essas supostas marcas da figura religiosa do pai eram marcas da personalidade carismatica secular. Ainda assim, o impacto de se acreditar numa tal personalidade nao estava em aproveitar e ca: 336 nalizar paixdes viciosas e anfrquicas. Estava em assumir desafios con: {ra as injustigas, em representagies dos interesses de classes, e em trie vializd-los, desviando a atengdo para a vida impulsiva do lider-pai, (© carisma é tido come dionisiaco por ambos os pensadores; numa sociedade secular, ele é algo mais ameno — e mais perverso. O carismo moderno é uma arma defensiva contra o julgamento impessoal do Estado que poderia Ievar a exigéncias de transformagoes. A defesa funciona por meio do poder de disfarce, projetando as motivagdes dos sideres; fungoes rotineiras comuns do Estados ficam, desse modo, man tidas. Seu momento arquetipico nao é de uma catdstrofe que prepare 1s pessoas para inventar um deus flamejante, ou um ritual de rendineia fem que as pessoas inventem uri deus-pai. Quando os deuses esto mor: tos, © momento arquetipico da experiéncia carismatiea é 0 momento de yotar em um politico “atraente”, mesmo quando nao se concorda com sua politica, (O carisma secular esté ti longe de ser uma experiéneia dionisiaca que pode eriar, por si mesmo, uma crise. Em sua forma mais recente, televisiva, o carisma desvia massas de pessoas do ato de investir muito sentimento nas questies sociais em geral; a pessoa fica tao entretida com o jogo de golfe do presidente, ou com o seu jantar com uma familia comum, que ela no pode prestar atengZo 2 questies, até que estas tenham chegado a um ponto de crise que esteja entao além da possi bilidade de solugao racional. E dificil imaginar as instituigdes da socie- dade moderna, que atuam como agentes de estabilidade, como as mes ‘mas instituigdes que colocam as questies sociais eventualmente para além do limite do controle racional. Mas o carisma, da mesma forma que a burocracia, € exatamente essa instituigao. Distraindo a atengio da politica para os politicos, ¢ carisma secular evita que as pessoas se preocupem com fatos desagradiveis — que estourou uma guerra mun- dial, que o petréleo est acabando, que cidade esta em déficit — assim como a absorgio desses problemas por meio de agéneias ou ministérios abrigando “experts” para lidar com eles os mantém fora das preocu: pages. Eles s6 chegam a preccupar quando a guerra é catastréfica, 0 petrileo proibitivamente caro. a cidade falida, tudo isto tendo ido lon: ‘ge demais para ser tratado com racionalidade, Isto sugere, creio eu, cue a verdadeira confusdo existente nas teorias do carisma, como as de Freud e Weber, baseia-se numa idéia do carisma enquanto uma resposta ao distirbio. O carisma moderno & ‘ordem, ordem pacifica e, come tal, ele cria crises. Como qualquer teo- I genusina, as idéias sobre 0 carisma defendidas por esses dois eseritores pede erftica e reformulago, Aquilo que eles nos mostram, ao equacionar a personalidade carismitica com a paixio e a ilusio, & a0 337 ee, || ‘opor estas iltimas a racionalidade, € uma certa ilusio a respeito da propria racionalidade. A ilusio esta em que a racionalidade & antitétion & produgao de distérbios. O earisma secular & racional; é um meio ra, cional para pensar sobre a politica numa cultura governada pela erengy no imediato, no imanente, no empirico, rejeitando como hipotéticy, mistiea ou “pré-moderna” a renga naquilo que nao pode ser diteta, mente experimentado. Uma pessoa pose sentir diretamente os sent mentos de um politico, mas ndo pode sentir diretamente as futuras conseqiéncias de sua politica. Por causa disto, ela teria que se deslocar do “engajamento” direto na realidade; teria que imaginar uma reali dade a uma certa distancia do aqui e agora, uma realidade a uma certa distancia do eu. Ela teria gue teutar issiaginar, quando um politicn cheio de honrada indignagao the disser que ira retirar os “fraudadores da lista dos beneficidrios piblieos, o que aconteceré na proxima depressio, caso ela estiver nessa fraude. Quando um homem, ue ficou na prisao durante dez anos sob um regime fascista, anunciar, apés ser libertado e prestes a lomar © poder, que sob a ditadura do proletariado nao haveria tirania porque tudo aconteceria no interesse do Povo, ela tera que pensar, nao sobre o qui corajoso era o homem que enfrentara o fascismo com suas crencas, mas, antes, a respeito do que ssas crengas significariam se realizadas. Quando um escroque altivo e hipdcrita é substituido no posto por um homem caloroso e amigivel, ‘mas igualmente conservador, ela teria que se desengajar do momento imediato, e se perguntar se as coisas efetivamente mudaram de modo signifieativo, Todos esses atos irsplicam um certo grau de suspensio da realidade imediata, envolvem um certo jogo do espirito, um certo tipo de fantasia politica, Na experiéncia comum, sio uma forma de irracio. nalidade, uma vez. que a propria racionalidade ¢ medida pela verdade empirica daquilo que se pode vere sentir. CARISMA E RESSENTIMENTO esses termos, o carisma secular corresponde especialmente bem as necessidades de um certo tipo de politico, no seu trato com uma certa classe de pessoas. O politico, de origens humildes, faz sua carreira in citando 0 piblico com ataques contra o sistema, contra o Poder Esta- belecido, contra a Velha Ordem. Nao o faz enquanto idedlogo, apesar de que, em algumas de suas aparigées na Amériea, ele demonstre sinais de simpatia populista. Ele ndo representa um comprometimento com ‘uma nova ordem, mas sim um puro ressentimento, ressentiment, con 338 tra.a ordem existente. No fundo, sua politica a politica do status, do desrespeito & dignidade, da exclusao das escolas certas; as classes as. quais cle faz apelo detestam aqueles que sio privilegiados, mas nfo tém qualquer idéia de destruir o privilégio enquanto tal. Batendo-se contra fo sistema, esperam abrir um rombo em suas muralhas, através do qual cada um deles podera subir sozinho. O ressentimento esté baseado numa meia-verdade, numa meia-ilusio, o que explica por que @ pe- quena burguesia ocupa o seu devido lugar na sociedade; por causa de uum pequeno ¢ desprezivel grupo que de seu interior controla as rédeas do poder e do privilégio, eles, a pequena burguesia, nao podem ir para nenhum outro lugar; ainda assim, de algum modo, aqueles que acu mularam injustamente as hoas coisas da vida podem bumithar 0 pe queno guarde-livros, 0 vendedor de sapatos, quando os encontram face a face. Nao ha nada de igualitério nesse ressentimento. Humilhagao € inveja se unem para levar as pessoas que sofrem tais injurias de status a esperarem que, por algum golpe da sorte, por algum acidente de per curso, possam escapar. E nessa combinagio de humilhagao e inveja que o politico atua. Uma teoria estranhia de conspiragao resulta do ressentimento: 0 proprio ponto mais alto ¢ proprio ponto mais baixo da sociedade estiio coniventes para destruir aqueles que esto no meio. E assim que 0 senador McCarthy atacou os baluartes do sistema americano por terem protegido anarco-comunistas. Spiro Agnew atacou os “coragies fe- ridos" dos subiirbios americenos ricos, por terem apadrinhado secrets mente o protesto dos negros. O anti-semitismo da Franga de ap6s a Segunda Guerra Mundial é um caso quase puro dessa conspiragao entre o alto e 0 baixo para destruir a pequena burguesia sitiada. De algum modo 0 judeu, como tanqueiro usurario, imperialista do Orien- te Médio, confunde-se na imagem do judeu como comunista, foras teiro, como um eriminoso propenso a enfraquecer os Lares dos bons catdlicos, e até mesmo, comonuma recente onda de anti-semitismo em Orléans, propenso a assassinar as eriangas de familias cristas Tornou-se moda na pesquisa histérica ver a politica do ressenti ‘mento agindo como uma forga regular na historia. Se as classes médias sao retratadas como em corstante ascensio, entZo elas devem estar sempre ressentidas para com a velha ordem, e verdadeiramente teme- rosas dos insultos de status quando esto clamando por direitos econd- micos ou politicos. © problema de se exportar a politica do ressenti- ‘mento de volta eem bloco a historia é mais do que a dispersiva falta de foco central; o ressentimento por um status inferior deve ser um trago sal, mas 0 ressentiment tem duas feigdes modernas pe- culiares, aplicéveis apenas & sociedade industrial avangada, 339 A primeira consist em que a pequena bunguesia&forgada g venta ese sistema de pessoas numa economia impessoal, Gaya poder se torna buroeratizado, como nisma corporagao multingeh > ° torna-se dificil definir-se a responsabilidade de cada ato em cada a viduo. O poder, no capitalismo avangado, se torna invisivel. AS ory mi zagies se protegem contra a prestago de contas por meio de wun pria complexidade administrativa. Agora uma andlise sofisticada pe deria mostrar que de fio uma pequena rede de pessoas se more ho topo dessa ordem administrating, « que de fto exeee tom pay Pessoal enorme, Mes est i do poder nay agua guess O sistema de pessoas ¢ muito mais uma erenga de que uma classe abstrata, invisivel, de pessoas concordou em deixar de fora o munde abaixo dela, através de meios desleais (unfair), co termo “desleal”é « chave para o mito. O lugar social numa burocracia deveria ser deter. minado pelo mérito; a nagdo das earreiras que se abrem aos consid. rados talentosos, do final do século XVIII, chega aqui a seu ponte mé. ximo. Mas haverd pessoas no topo que nao tém talento; elas sobrevivens formando-se em bandos e mantendo fora as pessoas de talento, Assim sendo, se uma pessoa est no ponto mais baixo, a sua falta de starms nao é sua culpa os outros tiram-lhe algo que Ihe de direito. Este as ecto auto-afirmador do mito no define o todo do sentimento de res. sentiment. Pois aquilo que o sistema de pessoas desenvolvera & um es tilo de autoconfianga; elas nao precisam fiear tendo medo delas mes mas, medo dos rostos, enquanto o homenzinho esta sempre care. gado pelo sentimento de estar abrindo seu proprio caminho para dentro, A ansiedade do status, composta por esse sentido da propria (isto ¢, meritocritica) hierarquia traida ¢ os temores de estar se tor. nando “furao" (pushy), € registrada como sendo sentida de modo si ilar e vigoroso nos setores mais baixos dos colarinhos brancos da ¢s- trutura ocupacional da Franga, da Inglaterra e dos Estados Unidos, Poderia ser dito que a invisibilidade erescente do poder efetivo es capitalistas avangados forga as pessoas a inventarem esse de explicarem o que esti acontecendo. Podetia também ser dito que, uma vez que esses paises passam de uma economia man fatureira para uma economia de servigos de habilidade pessoal, a ques- tio do mérito pessoal em relagao a posigio social torna-se mais intensa. Em ambas as interpretagses, o ressensément & peculiar a nossos tem. Pos, algo que nao pode ser exportado para o todo da histéria humana, Uma segunda caracteristiea moderna desse ressentimento é sua tendéncia antiurbana. Algumas pesquisas feitas sobre o ressentimento sentido entre os pequenos burgueses alemiies dos anos 1920 mostram 340 uma correlago entre o senso de uma conspirago vinda do alto © da pase da Sociedade contra o homem comum, e um senso de que a cidade grande é a fonte desse mal. O cardter antiurbano do ressentimenio Emericano € particularmente pronunciado; um vice-presidente recente, por exemplo, foi muito aplaudido por um grupo de veteranos, a0 di Jerlhes que os Estados Unidos seria um Ingar “mais saudével” para pessoas decentes, caso Nova York fosse levada para alto-mar. O anti {ebanismo se segue Togicamente a teoria da conspiragdo; a fim de se reunit € conspirar, o sistema precisa de um lugar onde ninguém co- thes muito sobre outrem; precisa de um lugar para segredos ¢ es tranhos. A cidade é um lugar mitologico perfeito © politico que estiver na erista da onda desse ressentimento deve, no entanto, enfrentar inevitavelmente ume ameaga contra ele proprio. Quanto mais bem-sucedido for em organizar o ressentimento, mais poderoso, mais rico, mais influente ele se tornaré. Como fara centio para manter o seu eleitorado? Nao estaria ele, pelo proprio ato de aumentar 0 seu poder, eruzando os limites, traindo aqueles que 0 co locaram no posto enquanto uma voz contra o sistema? Uma vez que ele se torna parte do préprio sistema, seus seguidores se ressontem. Ele poderd lidar com essa ameaga a sua “credibilidade” tor- nando-se uma figura carismética em termos seculares. O praticante dessa ira de status, que seja bem-sucedido, deve de fato desviar conti- ruamente a atengao das pessoas de suas agdes e posigdes politicas, € concentré-la, ao invés disso, nas suas intengSes morais. A ordem exis- tente continuaré, entio, a dormir tranqhilamente, porque esse ddio aparente contra o sistema é percebido totalmente girando em torno dos impulsos e motivagdes dele, mais do que em torno daquilo que ele faz com seu poder. O lider politico do ressentiment deve representar todas as atitudes a respeito da personalidade que tomaram forma na metade do séeulo passado, se quiser sobreviver & medida que sobe cada ver. mais alto no gover. Nixon é uma figura adequada para ser estudada como ator po litico buscando utilizar 0 poder do ressentiment. A partir de suas pri- meiras batalhas politicas, ele se retratava insistentemente como um lu- tador contra 0 sistema, um sistema dos prOprios protegidos mancomu- nnados com comunistas e traidores. A lula que travou contra Alger Hiss era uma luta contra a Velha Guarda da Costa Leste, que supostamente estaria protegendo Hiss. Sua campanha para o Congresso contra Helen Gahagan Douglas foi travada como uma campanhia contra uma esnobe da sociedade que era “mole” com os comunistas. Bem cedo, na carreira de Nixon, torna-se no entanto aparente 0 problema do lider pequeno burgués de sucesso. O primeiro encontro de Sat |

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